DOSSIÊ
Recepção: 13 Dezembro 2021
Aprovação: 25 Novembro 2022
Resumo: A pandemia do Covid-19 é um dos fenômenos mais importantes de nossa época. Os cientistas se debruçarão sobre ela durante décadas para tentar entender seus efeitos nas múltiplas dimensões da vida. O presente texto é uma tentativa de contribuir com esse entendimento, problematizando alguns dos impactos da pandemia na vida das populações em situação de rua no Distrito Federal. Uma pesquisa extensa tem sido realizada no DF com essas populações e a partir de um recorte, trouxemos três depoimentos que ilustram os processos de intensificação da estigmatização que sofrem. Abordamos teoricamente o tema a partir das reflexões goffmanianas sobre estigma, mas incorporamos outras contribuições mais recentes de modo a lançar luz sobre o que vem ocorrendo com esses grupos. O diálogo entre a teoria e as pesquisas de campo indicam que para além da perspectiva interacionista, o estigma, deve ser compreendido dentro de um contexto mais amplo de relações de poder e desigualdade. O estigma não é um fenômeno aleatório, mas tem alvos privilegiados e os grupos que sofrem com estigmas ocupam, também, posições desprivilegiadas na sociedade: são minorias étnicas, raciais e sexuais, portadores de doenças majoritariamente endêmicas entre os mais pobres ou ainda as populações em situação de rua.
Palavras-chave: populações de rua, estigma, sociologia.
Abstract: The Covid-19 pandemic is one of the most important phenomenons of our time. Scientists will pore over it for decades to try to understand its effects on the multiple dimensions of life. The following text is an attempt to contribute to this understanding, questioning some of the impacts of the pandemic on the lives of homeless people in Brasília (DF), capital of Brazil. Extensive research has been carried out in Brasília - DF with these populations and, based on a sample, we brought three testimonies that illustrate the processes of intensification of the stigmatization that they suffer. We theoretically approached the theme based on Goofman´s reflections on stigma, but we incorporated other more recent contributions in order to bring to light what has been happening to these groups. The dialogue between theory and field research indicates that, in addition to the interactionist perspective, stigma must be understood within a broader context of power relations and social inequality. Stigma is not a random phenomenon, but has privileged targets, and the groups that suffer from stigma also occupy underprivileged positions in society: ethnic, racial and sexual minorities, carriers of diseases that are mostly endemic among the poorest people including the homeless populations.
Keywords: homeless people, stigma, sociology.
1 Introdução
O presente texto busca refletir sobre a intensificação da estigmatização sofrida por população em situação de rua no Distrito Federal com o surgimento da pandemia do novo coronavírus (sars cov2) e algumas das ressonâncias desses processos. O fenômeno foi detectado em pesquisas de campo realizadas ao longo de 2020 dentro do contexto da pandemia e os pesquisadores se debruçaram sobre ele para tentar compreender algumas de suas causas.
Desde 2018, realizamos trabalhos de pesquisa e extensão com grupos populacionais em situação de rua no Distrito Federal, em especial na região do Plano Piloto e em cidades satélites como Taguatinga, Ceilândia e Samambaia. As pesquisas são conduzidas por um coletivo de pesquisadores e profissionais, principalmente, das ciências sociais e da saúde coletiva, ligados à Universidade de Brasília. O que será apresentado aqui é parte dos resultados de incursões em campo realizada entre abril e julho de 2020 na região do Plano Piloto em Brasília (DF). Esta reflexão é resultante de um recorte específico dentro da pesquisa mais ampla, em razão do impacto da pandemia de COVID19, que afligiu o Brasil desde 2020 e que exponenciou o drama vivido por essa população.
Durante o ano de 2020, mantivemos parte dos trabalhos de pesquisa e extensão com os grupos em situação de rua. Naquele momento, elegemos como problemática de investigação a necessidade de compreender como tais indivíduos estariam vivenciando, em seu quotidiano, a pandemia, com algumas questões: como estavam suas condições de vida? A fome foi agravada? Em termos de saúde física e psíquica, houve alteração? As práticas de solidariedades da sociedade mais ampla para com eles aumentaram ou diminuíram? A assistência do Estado se manifestava de que forma?
Um volume grande de informações foi levantado em diversos campos e o grupo tem feito um esforço no sentido de analisá-lo à luz da teoria social. Para a presente reflexão, fizemos um recorte teórico e metodológico nesse material e o que se segue é o resultado dessa análise. Optamos por apresentar três das 18 entrevistas realizadas durante o período mencionado com pessoas em situação de rua1. Elas são emblemáticas do que foi visto ao longo das pesquisas em 2020 e dizem respeito à intensificação dos processos de estigmatização sofridos no decorrer da pandemia. Por isso mesmo, optamos por analisar os casos à luz dos referenciais teóricos que tratam da estigmatização, incluindo desde as primeiras abordagens interacionistas de Goffman (1988) até as reflexões reformulativas de Parker (2013) e Phelan, Link e Dovido (2013) entre outros.
Sem a intenção de apresentar uma amostra que cubra ou indique um estudo extenso sobre processos de estigmatização em tempos de pandemia em relação à população em situação de rua, apresentaremos e discutiremos a partir dos três casos, a condição prescritiva e estereotipada do fenômeno em questão que é constante em relação a esses atores urbanos, mas que se tornou mais agudo durante a pandemia.
As três entrevistas selecionadas foram realizadas durante a madrugada, sempre depois da meia-noite, nas portas de dois supermercados 24 horas e de uma farmácia. A equipe dispõe de gravadores e câmeras de vídeo, nos quais as entrevistas semiestruturadas foram registradas e depois lançadas em uma base de dados que já dispõe de mais de 300 depoimentos, resultantes da pesquisa mais ampla. Em alguns casos, os depoentes não permitem a filmagem, mas aceitam que as conversas sejam registradas por meio de tecnologia de gravação de áudio. Ademais, os diários de campo foram utilizados, sobretudo, no pós-entrevistas e nas conversas informais, para o registro de informações sobre as reações da população à presença desses sujeitos em situação de rua nos poucos locais que se encontravam abertos no auge do lockdown.
Para respeitar as normas sanitárias vigentes, as entrevistas foram realizadas a uma distância segura, além de haver a oferta de máscaras e álcool em gel aos entrevistados. Os seus nomes verdadeiros foram modificados a partir do pedido de um deles e, por isso, estendido a todos os que aqui são citados. As entrevistas foram anotadas com a anuência dos mesmos através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, atendendo a legislação da Universidade de Brasília (UNB).
Por um lado, trata-se de trabalho etnográfico que, por meio das entrevistas, conversas informais e registros de campo, busca descrever parte do mundo em que essas pessoas vivem, como se relacionam com a sociedade mais ampla, como constroem as interações e os esforços que realizam para preservá-las. Por outro lado, o material acumulado também passou por procedimentos mais detalhados de análise. As entrevistas foram transcritas e lidas pela equipe. Há, nesse momento, um trabalho de escuta psicanalítica em que a fala do depoente e de sua singularidade revela muito de seu drama pessoal e das forças sociais que geram esse sofrimento. O pesquisador precisa ter a curiosidade de escutar e ficar atento para aquilo que sobressai na fala de cada sujeito e analisar esse material não em uma perspectiva narcísica, como aquele que sabe tudo, mas como aquele que se interessa sociopsicanaliticamente por compreender esse sujeito, o mundo em que vive e as interações que constrói.
Em terceiro lugar, e corroborando o trabalho de escuta e os registros etnográficos, a análise das entrevistas é feita a partir de um movimento constante de sistematização das questões-guias que dão um norte à pesquisa e a partir daí se lança mão da análise do discurso do material separado. Houve, portanto, um recorte das entrevistas a partir de categorias (palavras e frases que remetem a fenômenos sociais) que se repetiam, tais como aqueles que marcam os processos de estigmatização que é uma das questões guias da investigação. Esse material foi então classificado, e colocado em tabelas, em seguida foi codificado e reaglutinado a partir da homogeneidade dos conteúdos das mensagens. Por fim, partindo da revisão da literatura sobre o estigma, procedeu-se as inferências e interpretações do material.
O artigo está organizado da seguinte maneira: Inicialmente, discutiremos a situação de rua no contexto das políticas públicas e da teoria social. Em seguida, contextualizamos a temática no DF e apresentamos os casos escolhidos. Por fim, retomamos o debate teórico sobre estigmatização e sua intensificação no contexto pandêmico com o intuito de lançar uma luz na compreensão do que estaria acontecendo no DF.
Utilizar o conceito de estigma como um prisma na compreensão dos casos aqui apresentados pareceu ser sociologicamente frutífero para entender as situações de desvalorização e rechaço social vividas e relatadas por essas pessoas nas ruas de Brasília, especificamente durante o início da pandemia no país. Não é objetivo do presente texto uma digressão histórica da pandemia do novo coronavírus, uma vez que outros pesquisadores já fizeram esse relato e teríamos pouco a acrescentar. Umas poucas palavras merecem menção e, em seguida, avançaremos para o objeto a ser analisado.
Em poucos meses, a doença que parecia ser um fato ocorrendo numa terra distante, tornou-se uma tragédia quotidiana, ceifando a vida de pessoas muito próximas de todos nós. Em 25 de fevereiro de 2020, a Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo confirmou o primeiro caso no país. Em 15 de março já havia suspeitos de Covid-19 em todas as unidades da Federação e, em 15 de abril, todos os Estados e o Distrito Federal já haviam registados pelo menos uma morte. Em 02 de junho de 2020, o país já contabilizava mais de 30 mil mortes. Em 24 de março de 2021 já eram 300 mil vidas ceifadas em terras brasileiras. Em 8 de outubro do mesmo ano, o país alcançou 600 mil mortes. Um ano depois, em 2022, mais 88 mil mortes foram registradas até o momento
As consequências econômicas foram catastróficas: pessoas perderam renda e emprego, empresas faliram e o número de desempregados pode ter chegado a 200 milhões no mundo, segundo a Organização Internacional do Trabalho. Muitas foram as estratégias para conter a disseminação da doença, em sua maioria fracassadas. Diversas cidades no mundo declararam lockdown mais de uma vez deixando as ruas desertas, comércio fechado e pessoas trancadas em seus lares.
No dia 11 de março de 2020, o governo do Distrito Federal decretou a paralisação das aulas em escolas e faculdades, suspendendo o atendimento ao público em serviços não essenciais, tentando assim evitar aglomerações. Os comércios também foram obrigados a fechar as portas e as quadras comerciais do Plano Piloto ficaram desertas. Com a ausência de circulação de transeuntes, minguaram também o dinheiro e outras formas de ajuda que pingavam nas mãos das populações em situação de rua. Elas passaram, então, a se concentrar nas portas de mercados, farmácias e igrejas, ainda abertas, em busca de alguma forma de auxílio, comida ou mesmo de trabalho para sobreviver.
Algumas medidas foram tomadas por parte do governo do DF visando minimizar o sofrimento desses grupos. Em março de 2020, o Governo local anunciou oficialmente que disponibilizaria cerca de 400 vagas para abrigar essa população. O local escolhido foi um autódromo, próximo ao centro de Brasília. Em maio, foi aberto um segundo alojamento no Estádio do Abadião, em Ceilândia, com capacidade para 200 pessoas. As estruturas ofereciam dormitórios, banheiros, área para a lavagem de roupas e alimentação.
Não obstante, essas medidas foram incapazes de atender a totalidade da população e impostas pelo Estado sem uma investigação prévia das reais demandas desses grupos. As ações do Estado demonstraram um grande despreparo e falta de conhecimento para lidar com essa população, sobretudo nessa situação. Assim, em meio à urgência de uma pandemia cujo vírus possui maior probabilidade de matar os que já apresentam comorbidades e que se espalha justamente em razão da aglomeração, o aparato do Estado se viu no meio de situações urgentes e por vezes contraditórias: como abrigar sem aglomerar? Como abrigar, sem deixar sair às ruas? A sua atuação, nesse sentido, foi infeliz, precária e parcialmente desastrosa, em grande medida como resultado da própria falta de conhecimentos sistematizados sobre esses grupos. Sobre isso, cabe aqui uma retomada do debate no âmbito do Estado e da teoria social sobre essa população.
2 Invisibilidades nas situações de ruas: quem está pelas ruas, sem abrigo?
O termo “população em situação de rua” e a sigla PSR, oficializados com a assinatura do decreto 7.053/2009, que promulgou a Política Nacional para a População em Situação de Rua (BRASIL, 2009), são frutos tanto de uma elaboração Estatal como de um processo de amadurecimento dos movimentos sociais na tentativa de luta por reconhecimento e direitos. Mesmo tentando dar conta de uma multiplicidade, essas situações e essas ruas necessitam ser pluralizadas, no intuito de melhor tentar, pelo menos, enxergar quem está nas ruas das cidades brasileiras. A noção incluída no documento se refere a um
Grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória (BRASIL, 2009).
Declerck (2006) afirma existir um movimento histórico de estabelecer distinções, classificar, hierarquizar e, ao mesmo tempo, colocar à distância “a surda e angustiante anomia dessa população” (DECLERCK, 2006, p. 11). Escorel (1999) observa que, na passagem das décadas de 1960 a 1970, os primeiros trabalhos e mesmo definições para a população de rua foram elaborados a partir das noções de pobreza e miséria. No final da década de 70, surge um crescente contingente de pessoas vivendo na rua e trabalhando com o lixo, fazendo surgir também a figura do catador (CASTELVECCHI, 1985). Posteriormente, com o surgimento de outras categorias de trabalho na rua, essas definições se complexificam ainda mais: catadores de material reciclados, guardadores de carro, vendedores ambulantes, profissionais do sexo.
Outras denominações, segundo determinadas características, aparecem e desaparecem de acordo com a fugacidade da própria rua. É comum entre aqueles que possuem uma casa, o uso do termo maloqueiro como referência justamente à maloca ou mocó. Os que se utilizam de albergues são chamados de albergados. Trecheiros ou pardais são nomeados a partir dos trabalhadores ou andarilhos que cruzam de uma cidade para outra ou de pequenas áreas agrícolas para outras (VARANDA; ADORNO, 2004). A riqueza de denominações e representações associadas a essas populações se entrecruzam à própria multiplicidade, muitas vezes díspares, das vidas em situação de rua.
Hardt e Negri (2016) sugerem o uso do termo multidão para analisar as infinitas condições singulares daqueles que fazem uso da rua como espaço de sobrevivência. Não obstante, uma constante se mantém, qual seja: elas são dioturnamente objetos de processos estigmatizadores, congelando comportamentos como desviantes ou características como forma de menosprezo, humilhação e exclusão social.
Depois de pouco mais dez anos da promulgação da supracitada política nacional, somente uma única pesquisa foi realizada de forma oficial por parte do poder público federal. Publicada em 2008, por meio do antigo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, esse trabalho indicou que, à época, cerca de 50.000 pessoas viviam em situação de rua no país. A pesquisa conseguiu ainda traçar características do perfil e do cotidiano dessas pessoas (BRASIL, 2008).
Apenas em 2016, depois de uma estimativa elaborada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), utilizando dados disponibilizados por 1.924 municípios via Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas), registrou-se 101.854 pessoas em situação de rua (NATALINO, 2016). Em março de 2020, os dados foram atualizados pelo mesmo instituto, constatando que a população em situação de rua cresceu 140% desde 2012, chegando a quase 222 mil brasileiros e tendendo a aumentar com a crise econômica acentuada pela pandemia da Covid-19. O estudo cita que entre as pessoas em situação de rua estão muitos desempregados, trabalhadores informais, como guardadores de carros, recicladores de lixo e vendedores ambulantes (NATALINO, 2020). Se não se conhece por completo o perfil dessa população, - a não ser por estimativas de um número total, que não para de aumentar - ela continua sendo reconhecida por um conjunto múltiplo de denominações estereotipadas e percepções fragmentadas, geralmente negativas, de quem são.
3 A situação de rua na capital federal durante a pandemia: uma incursão de campo (os casos)
O vírus chegou ao Brasil nos corpos dos mais ricos desse país, mas foi entre os mais pobres que ele fez as maiores vítimas. As ruas das grandes metrópoles brasileiras não ficaram aquém desse processo. O Covid se espalhou rapidamente entre as populações em situação de rua com consequências em diferentes campos, dos quais três merecem destaque: perda de trabalho e renda por parte desses grupos, intensificação da estigmatização sofrida e ruptura dos frágeis vínculos sociais entre eles e sociedade mais ampla (NUNES et al., 2022; MACIEL et al. 2020; TIENGO, 2022).
A visibilidade, a letalidade e a potência de contágio da nova doença se materializaram logo na sua chegada afetando drasticamente a vida nas grandes cidades. A proposta de distanciamento social e o evitamento de aglomerações como estratégias para conter a propagação do vírus, trouxeram aspectos até então inéditos ao movimento das grandes metrópoles brasileiras e mundiais como o fechamento do comércio, o esvaziamento das ruas, o retraimento das atividades econômicas e a diminuição da cirulação de pessoas.
No DF, constatou-se o aumento de pessoas que, sem condições de pagar o aluguel ou mesmo de voltar para casa, estavam se abrigando nas ruas. Foi possível perceber o aumento do uso de marquises e viadutos da capital federal para abrigos improvisados. Eram profissionais autônomos, profissionais do sexo, vendedores ambulantes, guardadores e lavadores de carro, pedintes e uma miríade de outros atores sociais que da noite para o dia perderam quase por completo as condições de sobrevivência naquele ambiente. A grande imprensa nacional registrou como a vida ficara mais dura para aqueles sujeitos que retiravam seu sustento do frenesi da vida urbana.
Os poucos comércios que se mantiveram abertos durante o período noturno nas regiões do Plano Piloto, Águas Claras e Taguatinga, tais como padarias, alguns supermercados e farmácias tornaram-se locais de aglomeração não somente de clientes, mas também dessas populações que viam ali um local de oportunidades tanto para conseguirem algumas moedas quanto para aquisição de alimento. Os relatos a seguir foram recolhidos nas portas desses estabelecimentos com anuência dos entrevistados e realizados durante a madrugada em razão do menor movimento de pessoas à porta de comércio de médio e grande porte.
3.1 Caso 1 - “Tenho dinheiro e não posso entrar”: novas situações de ruas
Mesmo durante a madrugada, havia uma fila para entrar em um supermercado 24 horas na região central de Brasília, e Roberto tem sua entrada barrada pelo segurança: a temperatura no termômetro estava indicando acima de 38°, segundo o funcionário. Jovem e negro, vestido com roupas sujas, uma máscara de tecido e um odor forte pela falta de asseio, Roberto sai protestando: “estou com dinheiro e não posso entrar!” (ROBERTO, 2020. Informação verbal).
A fila segue e Roberto pergunta à pessoa da frente se pode comprar mortadela e pão para ele; há uma confusão, pois para fazer o pedido, chega muito próximo ao cliente. Empurrões e grito. Ameaças de chamar a polícia. Na saída do supermercado, avisto Roberto com um saco de pão abrindo uma bandeja de mortadela. Também havia comprado, na esperança de entregar o pedido a ele quando saísse.
Depois de agradecer e se afastar teatralmente de mim, Roberto começa a me contar espontaneamente.
Agora tenho lanche, café e almoço. Estou com dinheiro aqui e ele não deixa ninguém entrar. Um dos porteiros do mercado já veio me falar que o gerente não quer ninguém rondando o supermercado, quanto mais lá dentro, comprando. O negócio da febre é caô dele. Estava era com fome mesmo (sorri). Está servido? (ROBERTO, 2020. Informação verbal)
Eu me apresento e conto que faço pesquisas com pessoas em situação de rua. Ele me interrompe.
Opa. Mas eu não sou pop rua, não senhor! Trabalhador, olha aqui. Vendo pano de prato há 03 anos por aqui tudo. Não estou é vendendo nada nem para voltar para casa com dinheiro para pôr comida. Meu nome é Roberto, 20 anos, moro em São Sebastião. (ROBERTO, 2020. Informação verbal)
Conversamos um pouco e Roberto aceita o convite para ser entrevistado.
Morro de medo de ficar aqui. A polícia vem toda hora. Já manda parar e já quer saber da mochila. Eu falo que sou trabalhador, mas só acalmam quando confirma que só tem os panos de prato que vendo [...] já tinha dormido na rua quando moleque, mas depois que entrei para igreja, nunca mais. Mas tenho que levar dinheiro para casa, então fico aqui [...] tenho medo de levar facada, de me levarem os panos, de cair no sono e não acordar nunca mais. (ROBERTO, 2020. Informação verbal)
Roberto segue contando sobre a experiência de estar nas ruas:
Semana passada, quando começou mesmo, eu dormi, de sexta até segunda aqui pelo Plano. Dormia ali pelas quadras, meio escondido. Sou preto, né. No escuro ninguém me vê mesmo, tipo pantera negra. Agora já faz mais de 4 dias que não volto com dinheiro. Por que para voltar, eu tenho, mas voltar sem poder colocar comida em casa, com esse tanto de pano para vender, melhor não voltar porque é mais uma boca com fome, trancado em casa. (ROBERTO, 2020. Informação verbal)
Quando questionado por que as vendas caíram, ele responde:
Pessoal nem abre mais o vidro. Hoje, estou comendo porque vendi 5 panos. Ontem não vendi nada, hoje vendi um. Já mete a cara feia, uns olham para baixo, outro você vê que já sente medo da gente chegar e pegar o tal do vírus [...] e até parece, eu sei ler e escrever, o vírus é de gente rica e eles colocam a culpa em nós, trabalhador pobre, quem tem o vírus é eles. É muito mais fácil, você ter o vírus e estar passando para mim, do que o contrário. Eu não conheço ninguém que viajou para Itália ou China. Já você, eu aposto que conhece ou já até viajou. (ROBERTO, 2020. Informação verbal)
Roberto conta de sua vida e do trabalho como vendedor e do medo que sente de dormir desprotegido pelas ruas.
Tem muita gente má nas ruas, que não tem casa, não divide família, não sabe nem falar direito Mata por nada. Semana passada, abriu o abrigo lá autódromo, um monte de família que estava por aqui na área do supermercado, foram para lá. Mas quando eu soube que tinha que passar por uma triagem, ser de situação de rua. Eu não sou maloqueiro da rua não. Sou trabalhador. (ROBERTO, 2020. Informação verbal)
Sobre sua rotina nas ruas nesses dias, ele diz:
Eu fico aqui pelo mercado até ficar com mais sono, depois me embrenho por essas quadras e árvores, arrumo um canto escondido e seguro [...] não tenho medo de pegar essa doença não. Tenho medo é de gente, desses maloqueiros que estão prontos para te levar tudo, para comprar pedra. (ROBERTO, 2020. Informação verbal)
3.2 Caso 2 - “A gente da rua sempre viveu distanciamento social”
Emílio guarda carros perto de uma rua comercial com várias farmácias que funcionam durante dia e noite. Segundo conta, já trabalha nesse ponto há dois anos, desde que saiu do interior de Goiás para viver nas ruas de Brasília. Ele aceita ser entrevistado, porque, segundo o próprio, nunca sentiu tanta violência no ar e tem gente morrendo é de falta de humanidade. Aceita colocar a máscara e se dirigir a uns bancos afastados entre si, perto de uma das farmácias. Emílio logo começa a falar:
Antes fazia ponto aqui de dia, mas quando começou esse negócio de vírus da China, não teve uma alma que dava qualquer trocado pelo serviço de vigiar os carros [...] desde segunda estou tentando fazer o corre de madrugada porque vi que o movimento aumentou e na esperança de ganhar um pouco mais de dinheiro e respeito. (EMÍLIO, 2020. Informação verbal)
Quando questionado sobre por que gostaria que uma equipe de TV fosse procurálo, ele conta:
Alguém precisa de mostrar que essa doença não é nossa não. Eu vi o pessoal falando que o negócio é mundial e não tem a ver com quem não tem dinheiro ou mora na rua. Teve uma dona, que saiu daquela farmácia ali, toda cheia de máscara, luva e a porra toda, tem umas máscaras que o povo coloca pela frente da cara assim [...] pois é, ela já chegou falando: ‘não chega, nem perto, não chega nem perto, não que você está doente’. Entrou no carro e saiu disparada [...] como doente? Estou aqui trabalhando, em pé o dia todo! Chega e fala que estou doente, por conta do que? Que eu vivo na rua e guardo carro de mademe?! (EMÍLIO, 2020. Informação verbal)
Sobre a pandemia, Emílio explica:
Piorou, piorou demais. Não tem essa não (sorri)! Estou rindo de nervoso! Porque nos primeiros, dias teve uns dois sujeitos que jogaram as moedas no chão para não chegar nem perto. Então para nós aqui, tem que escolher não. Só piora mesmo. (EMÍLIO, 2020. Informação verbal)
Sobre estar nas ruas, o entrevistado conta:
Não quis ir para o autódromo não. Nunca tive hora para dormir, nem chão. Durmo onde eu quero. Aí ter que acostumar de dormir na hora que o povo quer, como o povo quer. E vai ficar lá, fazendo o quê? A gente da rua sempre viveu distanciamento social. Então agora, que tem menos aqui, eu posso ficar ainda mais tranquilo. Vou me amontoar a troco do quê? (EMÍLIO, 2020. Informação verbal)
Emílio ainda fala: “Tinha que vir alguém da televisão, para mostrar isso. Que tem gente tendo que se virar e aguentar o tranco nas ruas.” (EMÍLIO, 2020. Informação verbal)
3.3 Caso3 - “Só estou aqui por causa de fome mesmo”
Sérgio estava guardando carro no estacionamento de um supermercado atacadista na região de Taguatinga e Ceilândia. Embora fosse um local privado do próprio estabelecimento, ele estava lá oferecendo ajuda para carregar compras e pedindo algo por ter vigiado o carro.Com poucos clientes e muitas recusas, Sérgio parou para conversar.
Vivo com minha mulher na rua mesmo. Somos catadores. Temos duas crianças, mas não posso falar isso para qualquer um, não. O Jéfferson me falou que nesses tempos de pandemia se descobrirem que a gente carrega duas crianças na carroça atrás de latinha, papelão e cobre, tiram da gente. (SÉRGIO, 2020. Informação verbal)
Ele conta a trajetória da família:
Estamos nas ruas mesmo. Estávamos pelo plano, por conta do lixo, mas agora com tudo fechado, acabou o trabalho de recolha. Não tem nada. Para o senhor vê, tirava de 30 a 50 reais por dia. Semana passada, teve dia que foi zero. Dormimos tudo com fome. Eu só estou aqui por causa de fome mesmo. (SÉRGIO, 2020. Informação verbal)
E complementa,
Não tinha como ficar em canto algum lá no plano. Com carroça, mulher e duas crianças. Logo, estavam mandando sair, tirar carroça, fazer silêncio, ameaçando chamar polícia [...] eu vim para cá, porque a mulher fica com as crianças ali para o meio do mato e eu tento me virar com o que encontrar.
Hoje é porque não deu nada, ontem também não. (SÉRGIO, 2020. Informação verbal)
Segundo ele, não está conseguindo dinheiro,
Não tem como. Ninguém nem chega perto. É um ou outro. O resto se antes não olhava na cara, agora se olhar é capaz de achar que nós somos o vírus. Eu não tenho medo de ser pobre não, por isso que também não tenho medo de doença nenhuma [...] zero reais. Nunca tinha deixado de pelo menor ganhar um real na rua. Zero. Ninguém nem tira a mão do bolso para nada, ainda mais para deixar um trocado agora. Passa pelo dinheiro, né? Ainda bem que só trabalho com moeda, níquel! [sorri] (SÉRGIO, 2020. Informação verbal)
Falando sobre as cidades satélites, observa:
Aqui a gente consegue se esconder. Lá no plano é tudo aberto, aquele mar de arvores e rua, não tem jeito. O povo olha e já pensa que a gente é da pedra, do corre, como eles falam. Agora do vírus também. Quem está na rua, tem o vírus. Lá na cooperativa, falam para a gente se apresentar com a profissão: sou catador, profissional da reciclagem. (SÉRGIO, 2020. Informação verbal)
4 Vida nas ruas e estigmatização
Importante aqui retomarmos o debate goffmaniano sobre estigma, incorporando outras perspectivas e destilados teóricos, tais como as de Parker e Aggleton (2003) e Phelan, Link e Dovido (2013), que reformularam e ampliaram as interpretações do fenômeno. A retomada desse debate poderá lançar luz sobre a compreensão das novas condições sociais desses sujeitos no contexto pandêmico. Segundo Goffman (1988), o termo estigma surgiu entre os gregos antigos para designar sinais corporais que buscavam
Evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor: uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que deveria ser evitada, especialmente em lugares públicos. (GOFFMAN, 1988, p. 11)
Para o sociólogo, o termo deveria ser aplicado a todos os casos em que uma característica observável é salientada e interpretada como “um sinal visível de uma falha oculta, iniquidade ou torpeza moral, proporcionando ao indivíduo um sinal de aflição ou um motivo de vergonha.” (GOFFMAN, 1988, p. 11). Ainda segundo o autor, o processo de estigmatização não ocorre devido à existência do atributo em si, mas, pela relação incongruente entre os atributos e os estereótipos.
O estigma resulta, portanto, de processos de atribuição de uma identidade social deteriorada e a categorização ou um “significativo descrédito” de pessoas com uma marca socialmente desacreditada, como desviante ou marginal. Esse processo constitui em poderoso signo de controle social e tem sido usado para marginalizar e desumanizar indivíduos que apresentam certos traços socialmente desvalorizados. (GOFFMAN, 1981, p. 11)
Não obstante tal definição, no contexto teórico goffmaniano, o estigma não pode ser analisado em perspectiva estática, mas dinâmica. Assim, o que era sociologicamente relevante para o autor era analisar menos a rotulação externa de uma condição de estigmatizado, e sim as interações que se processam entre os atores e a ordem social mais ampla que acentuarão ou amenizarão tal condição depreciativa.
Nos casos específicos aqui analisados a condição de vida em situação de rua é, por si só um estado que gera estigma. Até aqui, nada de novo. Não obstante, a intensificação das relações sociais desses sujeitos que vivem e trabalham em pontos fixos da cidade com a população da região, cria liames de sociabilidades e com eles sistemas de solidariedades que, apesar de frágeis, mantêm esses sujeitos ligados ao tecido social e amenizam os processos de rotulações depreciativas, de estigmatização e permitem a sobrevivência naquele ambiente.
Os casos aqui apresentados sugerem que, antes da pandemia, esses sujeitos em situação de rua encontraram o seu espaço no tecido social. Os lavadores de carros conhecem e são conhecidos por muitos dos frequentadores assíduos ou moradores das super quadras do Plano Piloto. O vendedor de rua também conseguia se manter com alguma dignidade. Os rostos desses sujeitos, de um modo geral, se tornam familiares, dada a frequência com que trabalham na região, o que facilita a venda de seus produtos. O catador de materiais recicláveis também ocupava uma posição na estrutura social que lhe permitia transitar pela cidade, adquirir mais facilmente produtos recicláveis, ser conhecido e conhecer pessoas.
Os três casos aqui apresentados sugerem que os vínculos construídos ao longo de anos frequentando/trabalhando na mesma região, embora não sejam capazes de eliminar por completo o estigma presente na ordem social mais ampla que recai sobre esses sujeitos - -uma vez que é a interação face a face e não o status que ameniza a condição social de estigmatizado - permitem um tipo de inserção e sua sobrevivência nas ruas do DF. Mas a pandemia alterou substancialmente essas relações redimensionando para baixo as posições sociais e as visões sobre essas pessoas.
5 Intensificação da estigmatização como reforço das estruturas sociais
Antes de nos debruçarmos sobre a análise dos processos de intensificação da estigmatização, é fundamental retomarmos os debates mais recentes que trouxeram à luz novas perspectivas sociológicas sobre esse fenômeno. Desde a década de 1970, o conceito de estigma foi extensamente utilizado na análise de diferentes objetos de estudo e as reflexões teóricas sobre o tema se multiplicaram levando a outras perspectivas não contempladas por Goffmann. Sem descurarmos as contribuições desse autor, retomaremos os debates levantados por Parker e Aggleton (2003) e Phelan, Link e Dovido (2013), revisitando seus achados para, em seguida, propormos uma interpretação dos casos aqui apresentados.
Parker observa que desde a publicação do trabalho seminal de Goffman em 1963, os referenciais teóricos sobre estigma foram vastamente utilizados para problematizar as situações de portadores de doenças infectocontagiosas como a AIDS, pessoas com deficiências e grupos em situação de rua. Na década de 1980, por exemplo, com o desenvolvimento da epidemia de HIV/AIDS, se multiplicaram os estudos e o interesse pelo debate em torno do tema do estigma. Naquele momento inicial do crescimento da AIDS, pouco se sabia sobre ela, pois tratava-se de uma doença nova, sem nome nem etiologia conhecida. Em países como os EUA e a Inglaterra, a estigmatização escolheu determinados alvos como homossexuais, haitianos, hemofílicos e viciados em heroína. Em outros países como o Brasil, os alvos de estigmatização foram os homossexuais, usuários de drogas injetáveis e prostitutas. Os resultados desses trabalhos levaram a novas compreensões sobre o fenômeno do estigma.
Para além da perspectiva goffmaniana de analisar o estigma dentro de um quadro teórico de interação, a partir de negociações com a ordem social, Parker e Aggleton (2003) asseveram que a estigmatização é um processo social que reforça a desigualdade, ou seja, o estigma é empregado para transformar sistematicamente diferença em desigualdade: desigualdade de classe, de gênero, de idade, de raça ou etnia, de sexualidade ou orientação sexual. Nesse caso, os relatos acima indicam que a população em situação de rua ou que nela se abriga, vive e sobrevive, historicamente estigmatizada estaria, no contexto da pandemia, sofrendo uma intensificação desse processo, sentindo serem criadas barreiras e reforços de apartações sociais. Semelhante ao que aconteceu na Inglaterra, USA e Brasil quando a expansão da AIDS e os processos de estigmatização dela advindos escolheram alvos preferenciais, como homossexuais, prostitutas, usuários de drogas e imigrantes da África, com a expansão da pandemia nos grandes centros urbanos brasileiros, alvos determinados também foram eleitos pela ordem social como fonte de perigo. Neste caso, toda a repulsa social recaiu sobre as populações em situação de rua.
Assim, não foram os filhos das classes médias e altas - que se aglomeram em baladas, como denunciado pela imprensa - os alvos de estigmatização, mas os que ocupam as posições mais desprivilegiadas, como as populações em situação de rua. São estes que, mais uma vez, carregando formas materializadas de relações de categorizações, poder e dominação, se perpetuariam dessa vez por novos contágios, novos temores e ainda mais evitamentos. Assim, o contexto de pandemia reforça de maneira aguda as relações sociais e de desigualdades existente entre as diferentes posições na ordem social.
Partindo da perspectiva que os processos de estigmatização se configuram como mecanismos de reforço de estruturas sociais já existentes e, portanto, de desigualdades já presentes no tecido social, Parker e Aggleton (2001) sustentam que o fenômeno vai muito além de uma depreciação da identidade pessoal. Desempenham também um papel de perpetuação de uma determinada ordem social, como processos que explicitam nas relações cotidianas, pontos de intersecções entre cultura, poder e diferença.
Nesse sentido, é possível entender o estigma e a estigmatização não simplesmente como fenômenos isolados, ou como expressões de atitudes individuais ou de valores culturais, que geram um tipo específico de interação e sim como integrantes de uma constelação de outros processos sociais que operam para a constituição de uma dada ordem social. Sobre isso, Parker e Aggleton afirmam:
É possível ver a estigmatização desempenhando um papel chave na transformação da diferença em desigualdade, e pode funcionar, em princípio, em relação a qualquer dos eixos principais da desigualdade estrutural interculturalmente presente: classe, gênero, idade, raça ou etnia, sexualidade ou orientação sexual, e assim por diante. Segundo, e mais importante ainda, a estigmatização simplesmente não ocorre de uma maneira abstrata. Pelo contrário ela é parte das complexas lutas pelo poder que estão no coração da vida social. Dito de forma mais concreta, o estigma é empregado por atores sociais reais e identificáveis que buscam legitimar o seu próprio status dominante dentro das estruturas de desigualdade social existentes. (PARKER; AGGLETON, 2001, p. 16)
Link e Phelan (2001), partindo da mesma ideia, mas por uma perspectiva dos próprios mecanismos de estigmatização, afirmam que o núcleo duro que permite o surgimento de processos de rotulação, estereotipização, separação, perda de status e discriminação, são as relações desiguais de poder entre os diversos grupos sociais existentes no tecido social.
Se voltarmos nossos olhos para os casos acima apresentados, eles sugerem que o contexto da pandemia tem sido responsável por um processo de intensificação da rotulação social da população em situação de rua, acentuando ainda mais os processos de estigmatização já existentes sobre esses sujeitos. Naturalizar esse processo é um erro sem tamanho. Esses atores sociais da rua foram eleitos, a partir de uma determinada característica específica, qual seja, sua posição desprivilegiada na estrutura social, e as representações sociais que recaem sobre ela. Sobre isso, Esposito (2003) observa como o contato, a relação, o estar em comum, é esmagado quando surge o risco da contaminação.
As crenças difundidas de que essa população específica - e não outra - é portadora/disseminadora contumaz do vírus e da doença esconde, na verdade, todo um conjunto de ordenamento social, ideologia e padrões morais de que esses sujeitos estariam aquém. Não custa lembrar que a rotulação de todo um grupo populacional a partir de variáveis individuais serve para obscurecer o fenômeno sociológico em questão - a existência de pessoas vivendo pelas ruas - é parte intrínseca do próprio sistema econômico e político desigual, cujas instituições e indivíduos operam também para a sua manutenção. O que a intensificação da estigmatização esconde é, na verdade, a reprodução das diferentes posições que cada grupo ocupa na estrutura social e os mecanismos de poder e dominação usados para perpetuar essas diferenças.
6 Conclusão
Uma época de pandemia como a do Covid-19, é o momento oportuno para reforçar as posições sociais e as classes na estrutura social. Os processos de estigmatização aqui apresentados indicam a necessidade na ordem social de estabelecer distinções, de classificar, hierarquizar e, ao mesmo tempo distanciar os diferentes grupos sociais nela existentes. As rotulações são muito úteis nesse processo pois ligam uma pessoa ou um grupo a um conjunto de características desagradáveis que formam o estereótipo (os estigmatizados). Ao mesmo tempo e por exclusão, cria também um outro grupo: os normais que não possuem essas caracterítiscas (LINK; PHELAN, 2001).
É verdade que essa falta de discernimento sobre pessoas infectadas ou não, tende a gerar cada vez mais respostas emocionais fortes e automáticas por parte da população em múltiplas direções, mas, tal como foi constatado ainda na década de 1980 com a pandemia de HIV/AIDS, a intensificação da estigmatização e do rechaço social recai sobre alvos específicos e as populações em situação de rua foram eleitas socialmente como portadoras por excelência da COVID19. Em outras nações, outros grupos foram eleitos e estigmatizados.
Importa salientar que a mídia, as redes sociais e a própria ciência contribuíram para a intensificação da estigmatização dessas populações em situação de rua. Cohen (1972) analisou como a sociedade reage diante de situações que representam ameaça ou perigo ao seu funcionamento. Para o autor, essa reação, que ele chama de pânico moral, passa por uma forma estilizada e estereotipada, em parte construída pela mídia e outros agentes, e envolve a construção de “barricadas morais” e a nomeação de especialistas socialmente aceitos que rapidamente vaticinam diagnósticos, formas de ação e tratamento contra as ameaças. Todavia, como alertado acima, não se pode esquecer que essas construções de muros sociais são ideologicamente orientadas e possuem alvos bem definidos. Em tais condições, Rohloff e Wright (2010) afirmam a constituição de um processo descivilizacional parcial e de curta duração, mas capaz de evaporar as solidariedades interpessoais para com alvos eleitos socialmente como a fonte de perigo, o que transparece nos relatos dos casos acima.
Segundo a própria OMS, por meio da OPAS (2020), a pandemia do novo coronavírus gerou novos processos de disseminação de estigmas e humilhações que são alimentados pelos estereótipos que a sociedade tem sobre determinados grupos (ZAROCOSTA, 2020). A OMS alerta que o estigma pode minar a coesão social e levar a um isolamento social de grupos e foi o que constatamos ao investigar as populações em situação de rua do DF durante a pandemia.
Não restam dúvidas de que as condições de vida dessas populações foram agravadas ao longo da pandemia. Os resultados de nossa investigação permitem afirmar que tal agravamento não é resultado apenas das mudanças econômicas advindas nas grandes cidades com a pandemia, mas é fruto de processos de intensificação da estigmatização que se ancora em estruturas sociais de poder e desigualdade entre as diferentes posições sociais e escolhem alvos definidos para rotular, estigmatizar e excluir.
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Notas