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A rede KFC em Belo Horizonte (MG): uma leitura a partir da teoria dos circuitos da economia urbana
KFC chain in Belo Horizonte (MG): an interpretation as from the circuits theory of the urban economy
Percursos, vol. 23, núm. 51, pp. 211-237, 2022
Universidade do Estado de Santa Catarina

DOSSIÊ

Percursos
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN-e: 1984-7246
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 23, núm. 51, 2022

Recepção: Setembro , 24, 2021

Aprovação: Abril , 18, 2022

Resumo: O artigo discute a implantação da rede estadunidense de fast-food Kentucky Fried Chicken (KFC), especializada na venda de frango frito em baldes, em Belo Horizonte (MG). Simultaneamente, analisa o desenvolvimento de redes e estabelecimentos brasileiros que mimetizam o conceito do KFC, tendo como base a teoria dos dois circuitos da economia urbana propostos por Milton Santos (SANTOS, 1979). Esses estabelecimentos conformam, na cidade, a existência de “imitações” (vinculadas ao circuito inferior ou superior marginal), que antecederam a própria presença do “original” (representativo do circuito superior). Assim, o território revela localizações e especializações que se diferenciam pelos graus de capital, tecnologia e organização. Nessa relação dialética, observou-se que as franquias nacionais/regionais, estabelecimentos locais e filiais do KFC coexistem, originando novas composições, a depender do contexto socioespacial existente nos lugares e abrigando superposições de divisões sociais, territoriais do trabalho e distintos agentes que atuam de forma interdependente. A pesquisa se apoiou em entrevistas semiestruturadas e trabalhos de campo realizados em unidades do KFC, franquias brasileiras e estabelecimentos locais no município de Belo Horizonte (MG).

Palavras-chave: KFC, circuitos da economia urbana, fast-food, globalização do gosto.

Abstract: The article discusses the implantation of the North American fast-food chain Kentucky Fried Chicken (KFC), specialized in the selling of fried chicken in buckets, in Belo Horizonte (MG). Simultaneously, it analyzes the development of Brazilian chains and establishments that mimic the concept of KFC, with the theory of the two circuits of the urban economy in underdeveloped countries proposed by Milton Santos (SANTOS, 1979) as a base. These establishments conform, in the city, the existence of “imitation” (linked to the lower circuit or upper marginal), which preceded the own existence of the “original” (representing the upper circuit). Thus, the territory reveals localizations and specializations, which differentiate by the grades of capital, technology and organization. In this dialectic relation, it was observed that national/regional franchise, local and filial KFC establishments co-exist, originating new compositions, depending on the socio-spatial context existent in the places and harboring overlays of social division, territory of the work and distinct agents, which act interdependently. The study was supported by semi-structured interviews and field work performed in KFC units, Brazilian franchises and local establishments in the city of Belo Horizonte (MG).

Keywords: KFC, circuits of the urban economy, fastfood, globalization of taste.

Introdução

Uma das manifestações cotidianas da urbanização da vida, nas diferentes formações socioespaciais, é a mudança dos hábitos alimentares. A industrialização não criou apenas uma cidade apta a servir como fator produtivo: criou, também, a indústria de alimentos, necessária à reposição das energias das imensas multidões que despendem sua força de trabalho. Desenvolveram-se, assim, processos e técnicas que permitiram a conservação e a durabilidade da comida, redefinindo os circuitos espaciais produtivos dos alimentos e permitindo o seu transporte, conservação e estocagem, além de facilitar as técnicas de preparo e, logo, de consumo. Conforme George (1971), ao longo do período pós-revolução industrial, os produtos industriais foram conquistando uma dimensão progressivamente maior nos orçamentos individuais e coletivos; as interações sociais foram mudando de acordo com a natureza e o grau de elaboração dos produtos alimentícios e; os locais de compra e de consumo foram modificados.

Esse processo ganha desenhos distintos em cada formação socioespacial. Um momento particular nos interessa: nos Estados Unidos, precisamente na Califórnia, em 1948, acompanhando a expansão do rodoviarismo, da cultura do automóvel e da alimentação rápida fora de casa, surge um novo sistema de organização do trabalho e de uso da tecnologia, baseado no autosserviço: o McDonald’s. Nascia o que veio a se chamar, posteriormente, de Nação fast-food (FONTENELLE, 2002;SCHLOSSER, 2001). Nas décadas seguintes, o sistema de alimentação rápida, com suas redes globais, se expandiria incessantemente, sendo incorporado, igualmente, à formação socioespacial brasileira.

Entretanto, cada território conhece “uma evolução própria, resultado de uma conjugação de forças externas pertencentes a um sistema cujo centro se encontra nos países-polos e de forças já existentes nesse espaço” (SANTOS, 1979, p. 32). Esses espaços derivados surgem com o crescimento e a modernização das grandes cidades, que associam lógicas externas a lógicas internas subordinadas, e onde “a lei do novo é também a da conformidade e do conformismo” (SANTOS, 2008, p. 70).

Nesse sentido, a informação, variável-chave do presente, rege as ações definidoras de novas situações geográficas e constitui o sustentáculo da difusão de novos desejos de consumo inspirados nos chamados países ricos. Enquanto novos gostos são difundidos em escala nacional, mas subsistem gostos tradicionais, “a organização econômica é forçada a se adaptar tanto a novas realidades como a realidades herdadas, bem como à necessidade de modernização dinâmica. Isto é verdadeiro tanto para os meios de produção como para os meios de distribuição” (SANTOS, 2003, p. 126). Dessa forma, circuitos econômicos diversos coexistem nas cidades, responsáveis tanto pelo processo econômico urbano como pelo processo de organização espacial (SANTOS, 2003).

Analiticamente, Santos (1979) distingue a existência de um circuito superior, constituído pelos bancos, comércio e indústria de exportação, indústria urbana, serviços modernos, atacadistas e transportadores; e um circuito inferior, composto essencialmente por formas de fabricação não “capital intensivo”, pelos serviços não modernos fornecidos a varejo e pelo comércio não moderno e de pequena dimensão. Ambos os circuitos são frutos da modernização: o superior, resultado direto da modernização tecnológica, compõe-se de atividades criadas em função dos progressos tecnológicos. O inferior, resultado indireto da modernização, relaciona-se “aos indivíduos que só se beneficiam parcialmente ou não se beneficiam dos progressos técnicos recentes e das atividades a elas ligadas” (SANTOS, 1979, p. 38).

Todavia, algumas atividades, embora apresentem um predomínio de características de um dos circuitos, podem também apresentar atributos do outro. De acordo com Santos (1979), isso acontece sobretudo no circuito superior e em certas categorias de fabricação em que é possível a coexistência de empresas utilizando tecnologias diferentes e diversamente organizadas. Nas palavras do autor, “poder-se-ia mesmo falar da existência de um circuito superior ‘marginal’, ao lado de um circuito superior propriamente dito” (SANTOS, 1979, p. 43).

De toda forma, a diferença essencial entre as atividades do circuito inferior e as do circuito superior baseia-se nas diferenças de tecnologia e organização. “O circuito superior utiliza uma tecnologia importada e de alto nível, uma tecnologia ‘capital intensivo’, enquanto no circuito inferior a tecnologia é ‘trabalho intensivo’ e frequentemente local ou localmente adaptada ou recriada” (SANTOS, 1979, p. 43). O primeiro é imitativo, enquanto o segundo dispõe de um potencial de criação considerável.

Logo, tendo como base teórica os circuitos da economia urbana propostos por Milton Santos (SANTOS, 1979), este artigo busca analisar a rede estadunidense de fastfood Kentucky Fried Chicken (KFC), a terceira marca de restaurante de alimentação rápida mais valiosa do mundo (LOCK, 2020), e seu uso corporativo do território belo-horizontino. Para tanto, a pesquisa busca compreender a rede global KFC como pertencente ao circuito superior da economia urbana por sua tecnologia importada e de alto desempenho, capitalização e organização burocrática.

Simultaneamente, a pesquisa identificou, no circuito inferior da economia urbana, estabelecimentos locais belo-horizontinos que possuem baixa densidade tecnológica e formas de organização localmente adaptadas ou recriadas, além de recursos financeiros limitados. Finalmente, as franquias de redes brasileiras instaladas em Belo Horizonte possuem formas de produção menos modernas do ponto de vista tecnológico e organizacional, mas dispõem de certa organização científica e marketing especializado, pertencendo, portanto, ao circuito superior marginal emergente. Dessa forma, como observa Silveira (2013), a cidade se revela como um conjunto de divisões territoriais do trabalho, em que racionalidades distintas permitem a coexistência de diferentes agentes e contextos.

Como recurso de método, a pesquisa se apoiou na elaboração de uma periodização1 da chegada do KFC no Brasil e da sucessão de eventos relacionados à implantação de restaurantes de fast-food especializados na venda de frango frito em baldes no país e em Belo Horizonte, com destaque para a difusão e as resistências ao consumo de frango frito no balde. A periodização incorporou o desenvolvimento de redes de franquias nacionais ou estabelecimentos locais que mimetizam o conceito do KFC, muitas vezes antecedendo-se à sua chegada ao território brasileiro - isto é, o hábito de comer frango frito no balde se instalou antes da própria rede que o criou e difundiu (ARAÚJO; TOZI, 2020).

Foram realizadas, ainda, entre 2018 e 2021, entrevistas semiestruturadas e trabalhos de campo em unidades do KFC, das franquias brasileiras e nos estabelecimentos locais que comercializam frango frito no balde no município com o objetivo de realizar uma análise qualitativa do fenômeno. Realizaram-se quatro entrevistas semiestruturadas, sendo: com o gerente de vendas de uma franquia brasileira internacionalizada; com o diretor executivo de uma franquia nacional; com o proprietário de uma franquia regional belo-horizontina; e com o dono de um dos estabelecimentos locais. Somente uma dessas entrevistas, realizada em outubro de 2019, foi feita presencialmente. As demais foram realizadas de maneira remota, seja por meio de troca de e-mails, comunicação pelo Whatsapp ou por telefonema, em parte por limitações causadas pela pandemia de Covid-19. Os trabalhos de campo e as entrevistas semiestruturadas buscaram abarcar parte da diversidade dos estabelecimentos imitativos do KFC em Belo Horizonte, abrangendo três diferentes níveis de franqueamento (franquia internacionalizada, nacional e regional) e os circuitos da economia urbana (superior, superior marginal emergente e inferior).

Este artigo está organizado em duas partes: na primeira delas apresentam-se particularidades sobre a instalação do KFC no Brasil e em Belo Horizonte e caracterizamse os estabelecimentos imitativos dessa rede global na capital mineira. Na segunda parte, reflete-se sobre a divisão do trabalho e sobre como coexistem, no território, os diferentes tipos de trabalho dos estabelecimentos imitativos do KFC.

A rede de fast-food KFC: tentativas de instalação no Brasil e seus estabelecimentos imitativos em Belo Horizonte (MG)

A rede KFC, cuja especialidade é a venda de cortes de frango frito em baldes, está presente em 144 países (STATISTA RESEARCH DEPARTMENT, 2020) e já havia tentado se instalar no Brasil em duas ocasiões: em 1978 e em 1992. Entretanto, a ideia de comer “frango frito e gorduroso com as mãos” parece não ter obtido sucesso e as atividades no país são encerradas. Após 11 anos, em 2003, a corporação inicia sua terceira tentativa de implantação no Brasil, a partir da cidade do Rio de Janeiro. Desta vez, contudo, a empresa introduziu adaptações ao seu cardápio original, adequando-o aos hábitos brasileiros: foram incluídos no menu arroz, feijão e salada e disponibilizados talheres aos clientes, renunciando ao slogan que caracteriza a marca nos Estados Unidos: "It's finger lickin' good", ou “Bom de lamber os dedos” em tradução livre.

Por sua vez, a instalação do KFC em Belo Horizonte, em 2017, marca o início da interiorização da rede no país. Em 2019 foi inaugurada a segunda unidade do KFC na cidade e, em 2020, foram abertos mais três restaurantes na capital mineira e outros dois em Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Em 2021 foi inaugurado um restaurante em Betim (RMBH), totalizando oito unidades no estado. Todas as unidades do KFC em Minas Gerais se encontram em shopping centers, revelando uma distinção na estratégia territorial em relação às unidades iniciais cariocas e paulistas, que se instalaram em estabelecimentos de rua (ARAÚJO, 2021).

Além disso, interessa-nos compreender o fato de que, mesmo antes de sua chegada a Belo Horizonte, havia outros 20 restaurantes de alimentação rápida especializados em fornecer baldes de frango frito, espalhados pelo município2 (Figura 1). Ressalta-se, neste contexto, que esses estabelecimentos imitativos se encontravam nas diversas regiões da capital, sendo a maioria deles nas regiões Noroeste e Oeste (com quatro restaurantes em cada, identificados em 2017). Destaca-se, ainda em 2017, a presença de quatro redes de franquias brasileiras implementadas em regiões periféricas da cidade, entre 2012 e 2015. Essas quatro possuem propostas e gama de produtos semelhantes àqueles comercializados pelo KFC, como foi possível observar durante a pesquisa.


Figura 1
Localização dos restaurantes especializados em frango frito no balde em Belo Horizonte MG em 2017
Fonte: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte - Mapa das Regionais Administrativas do Município de Belo Horizonte (2011). Elaboração própria (ARAÚJO, 2021).

Essas redes conformam, de certa maneira, a chegada de “imitações” que antecederam a própria presença do “original”. Entende-se, aqui, que esses estabelecimentos imitativos são “iniciativas renovadoras, que, trazendo ao mundo ao mesmo tempo necessidades novas e novas satisfações, nele se propagam em seguida ou tendem a propagar-se por imitação forçada ou espontânea, eletiva ou inconsciente, mais ou menos rapidamente, mas em passo regular” (TARDE, 1993, p. 23).

Assim, a dialética entre psicoesfera e tecnoesfera (RIBEIRO, 1991;SANTOS, 1996) manifesta-se, concretamente, no fato de que o hábito de comer, com as mãos, frango frito no balde já existia em Belo Horizonte, por meio de estabelecimentos imitativos - franquias brasileiras e estabelecimentos locais -, antes da chegada da primeira unidade do KFC em território mineiro. Logo, quando essa rede materialmente se associou à cidade, ela se beneficiou de uma condição prévia: a psicoesfera que fora difundida pelas franquias nacionais e regionais e pelos estabelecimentos locais, e, também, por grandes campanhas de publicidade e marketing, nacionais e locais, da própria KFC.

Existe, então, uma linha tênue entre o conformismo e a resistência, entre a imitação e a criação: se, por um lado, a existência do KFC e de seu produto, frango frito no balde, fomentou o desejo de um novo consumo em Belo Horizonte (e no Brasil), este não se inseriu no cotidiano sem resistência, mesmo que seja possível traduzir resistência como adaptação de estabelecimentos locais na oferta de produtos que mimetizam aqueles da rede global. Santos (1996) denominou esse processo de flexibilidade tropical, visando destacar os processos de adaptação e criação em face às suas condições objetivas de existência. Nas palavras do autor, nas grandes cidades, sobretudo em países subdesenvolvidos,

[...] a precariedade da existência de uma parcela importante (às vezes a maioria) da população não exclui a produção de necessidades, calcadas no consumo das classes mais abastadas. Como resposta, uma divisão do trabalho imitativa, talvez caricatural, encontra as razões para se instalar e se reproduzir. (SANTOS, 1996, p. 259)

Nesse sentido, certa flexibilidade tropical se manifesta por meio de uma diversidade de estabelecimentos locais especializados na venda de frango frito no balde, impedindo uma homogeneização dos hábitos alimentares. Embora a maioria desses estabelecimentos mimetize o cardápio do KFC, oferecem, ainda, molhos especiais, sanduíches e sobremesas diversas e possuem estratégias de marketing, formatos de lojas, cardápios, preços e embalagens distintas entre si e em relação ao próprio KFC. Essa adaptação não é apenas uma garantia contra processos por uso não autorizado de direitos autorais e de marca, mas o reflexo dos artifícios de ajuste que consideram os hábitos alimentares nacionais e locais como elementos fundamentais da sua sobrevivência econômica na cidade.

Em Belo Horizonte, mapeamos 23 estabelecimentos locais e franquias nacionais/regionais especializados em fornecer baldes de frango frito, no ano de 2020, localizados nas diversas regiões do município, sobretudo, fora da região Centro-Sul, a mais rica da cidade (Figura 2). Entre eles, a semelhança visual com o KFC é evidente, ao mesmo tempo em que as soluções tecnológicas adaptativas são marcantes.


Figura 2
Localização dos restaurantes especializados em frango frito no balde em Belo Horizonte MG em 2020
Fonte: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte - Mapa das Regionais Administrativas do Município de Belo Horizonte (2011). Elaboração própria (ARAÚJO, 2021).

A maioria das logomarcas utilizadas pelos restaurantes mapeados (Figura 3) é composta pela representação gráfica de frangos ou galos, reforçando o carro-chefe desses empreendimentos, apesar de todos eles servirem outros tipos de refeição e de terem cardápios bastante diversificados em relação às opções de carne.


Figura 3
Logomarcas dos estabelecimentos especializados em frango frito no balde
Fonte: Instagram e Facebook oficiais dos estabelecimentos (2021).

As logomarcas desses estabelecimentos diferem bastante da logo do KFC, ao passo que, entre elas, há uma construção visual comum. Mas, se por um lado, as logomarcas criadas pelos restaurantes não remetem, nitidamente, à do KFC, por outro, seus registros de marcas reportam-se diretamente a ela. Palavras-chave como “frango no balde”, “fried chicken”, “no balde” e “chicken" são comumente associadas ao KFC e à sua especialidade: “Frango’s no Balde”, “Tudo no Balde”, “Uai Fried Chicken”, “Crunchy Fried Chicken”, “Chicken Town” e “Dot Chicken”, por exemplo.

De forma semelhante, alguns estabelecimentos buscam uma padronização dos baldes de frango análoga ao KFC, como é o caso da Dot Chicken, Uai Fried Chicken, Daniel Lanches e Tia Ruth Lanches, enquanto outros, como o Frango’s no Balde e o Frango Americano Brasil, fornecem recipientes de plástico com tampa, o que permite a sua reutilização pelos clientes, que podem, assim, levá-los para casa (Figura 4). Dessa forma, o processo de adaptação desses restaurantes que mimetizam o KFC expande-se, de certa maneira, na continuação da sua adaptação pelos consumidores.


Figura 4
Baldes de frango comercializados pelos estabelecimentos

As embalagens de alguns restaurantes são similares entre si, como as do Frango’s no Balde e do Frango Americano Brasil, não só pelo formato e material de produção do recipiente, mas também devido à semelhança de suas logomarcas. Outras, como as da Tia Ruth Lanches e do Daniel Lanches, são idênticas ou têm o mesmo padrão, como as do Uai Fried Chicken, porque possivelmente são compradas de um mesmo fornecedor3 que comercializa baldes para frango frito em formatos, tamanhos e estampas padronizadas e, por isso, com valores mais acessíveis de compra.

Além do frango frito no balde, alguns restaurantes servem refeições completas, caso da Dot Chicken e o Frango’s no Balde. Outros estabelecimentos especializados em frango frito no balde se caracterizam como bares/restaurantes, com funcionamento noturno, e comercializam porções, “tira-gostos” e bebidas alcoólicas, como a Chicken Town, o Frango Americano Brasil e a Uai Fried Chicken.

Nesse contexto, a diversidade de refeições oferecidas por esses estabelecimentos é bastante relevante. Uai Fried Chicken, Frango Americano Brasil e Frango’s no Balde, por exemplo, além de comercializarem coxas, sobrecoxas e filés de frango empanados (como o KFC), oferecem, em seu cardápio, coxinha da asa e meio da asa (também chamado de “tulipa”) de frango empanados e servidos em baldes. Essa parece ser, então, uma mistura entre o frango empanado do KFC e o tradicional frango a passarinho servido nos bares de Belo Horizonte.

Além disso, são notáveis as soluções criativas, inspiradas no carro-chefe do KFC, mas suficientemente adequadas ao público desses estabelecimentos locais: o Frango’s no Balde, por exemplo, utiliza dois outros tipos de empanamento para o frango - um com queijo parmesão, denominado “Frango Parmelé”, e outro com Doritos4, denominado “Frangoritos” - e produz medalhões de frango empanados e servidos no balde. A Dot Chicken, igualmente, possui diferentes sabores de empanamento do frango, para além do sabor tradicional inspirado no KFC: queijo, sweet chilli apimentado e bacon.

O Frango Americano Brasil, além do frango frito no balde, sabor tradicional e queijo parmesão (denominado “Franqueijinho”), oferece coração de frango e moela de frango empanados “ao tempero americano” e balde de risoto. Percebe-se, então, a diversidade de formas híbridas criadas por esses restaurantes que transitam entre a reprodução dos padrões KFC e adaptações distintas ao contexto local onde se inserem.

Em relação aos molhos oferecidos pelos restaurantes, muitos deles são similares aos do KFC. A maioria deles oferece molhos barbecue, mostarda e mel (denominada Honey Mustard pelo KFC) e maionese temperada, além de outras criações específicas como a “baconese” (maionese com bacon, da Dot Chicken) e a maionese defumada (da Uai Fried Chicken), por exemplo. Os molhos são elementos secundários, aparecendo em segundo plano nas imagens e outros materiais de divulgação veiculados nas propagandas, mas nenhum dos estabelecimentos possui um “molho secreto” como o do KFC.

Apenas dois restaurantes oferecem sanduíches: a Dot Chicken e a Chicken Town. O principal ingrediente desses hambúrgueres é o filé de frango empanado, assim como os do KFC, mas todos eles possuem salada (alface e tomate). Chama-se a atenção para a semelhança entre o sanduíche “Chicken Cheddar e Bacon”, comercializado pela Dot Chicken, e o “Cheddar Melt”, produzido pelo KFC. O primeiro tem como ingredientes pão “especial”, filé de frango empanado, muçarela, alface, tomate, cebola caramelizada, cheddar cremoso e molho barbecue. O segundo é composto por pão com gergelim, filé de sobrecoxa empanado, queijo cheddar cremoso e cebola ao molho shoyu.

A publicidade da maioria desses estabelecimentos está atrelada, principalmente, a happy-hours, performances artísticas e musicais e eventos como campeonatos de futebol transmitidos pela televisão. Também são frequentes os materiais publicitários nos quais as imagens do frango frito estão atreladas ao consumo de chopp e cerveja. Ora, no Brasil, o consumo de bebidas alcoólicas, o futebol e a música são importantes motivadores de sociabilidade entre as pessoas e, portanto, é possível inferir que esses restaurantes que comercializam o frango frito no balde almejam que a permanência dos clientes no estabelecimento seja maior do que em uma rede de fast-food. Evidencia-se, aqui, outra adaptação entre formas locais tradicionais de comensalidade e adoção de novidades.

Diferem, sobremaneira, das estratégias de marketing do KFC e, especialmente, da Chicken Town (franquia nacional), que buscam incentivar o consumo por meio de um discurso de superioridade, tradição e qualidade de seus produtos. Distinguem-se, igualmente, das propostas de refeições rápidas do KFC que, em Belo Horizonte, encontram-se em shopping centers, em um formato de loja compacto, mas com grande escala de produção e acelerada circulação de consumidores. Ou seja, a venda dos produtos alimentícios não se vincula às formas de sociabilidade amparadas em permanências alongadas.

Pode-se dizer, dialogando com Milton Santos (1996, p. 220), que “desse modo, as respectivas divisões proteiformes de trabalho, adaptáveis, instáveis, plásticas, adaptamse a si mesmas, mediante incitações externas e internas” e se revelam como morfologias da flexibilidade tropical. Baseados em uma multiplicidade de combinações em movimento permanente, dotados de grande capacidade de adaptação e sustentados no seu próprio meio geográfico (SANTOS, 1996), esses agentes econômicos locais criam e recriam suas atividades produtivas na cidade.

Nessa direção, o dono de um dos pequenos estabelecimentos locais entrevistado em 2021 revela que antes da criação de seu restaurante próprio, ele era franqueado de uma rede nacional e possuía mais de um restaurante na cidade (E4, 2021. Informação verbal). Comandou esses restaurantes até meados de 2019, quando decidiu fechar os estabelecimentos e iniciar um empreendimento próprio, aproveitando tanto o maquinário quanto a expertise adquiridos enquanto franqueado. A empresa foi aberta tendo o frango frito no balde como carro-chefe e, segundo ele, sua inspiração vem do fracasso da franquia da qual era franqueado. Nas palavras do entrevistado,

essa franquia que eu fazia parte, ela tinha muitos problemas operacionais, com a clientela, com a sua rede de franquia, ela tinha muita deficiência. E, ao longo do tempo, eu fui me adaptando. Eu já mexo com cozinha há muito tempo. Chegou em um ponto em que a gente fazia tudo por nós mesmos; a franquia não nos dava um suporte. Infelizmente, ela tinha muitos problemas internos. Disso, eu tirei os pontos que eu poderia melhorar, o que eu achava ruim, o que eu poderia diferenciar... foi aí que eu abri o meu empreendimento. Nele, o frango é frito, mas não tem nada a ver com ela [a franquia]: modo de preparo, modo de tempero, tipo de farinha, tudo é diferente dela. E os produtos que eu tenho aqui na loja não têm nada a ver com ela, nem com o produto que ela comercializava. (E4, 2021. Informação verbal)

Esse relato feito pelo proprietário do restaurante belo-horizontino Tudo no Balde, leva à reflexão sobre a adaptabilidade do circuito inferior. Para Milton Santos, “o circuito inferior só pode funcionar através de uma adaptação estreita às condições conjunturais” (SANTOS, 1979, p. 253), que é favorecida pela divisibilidade e a mobilidade tanto da força de trabalho como do capital. Os agentes do circuito inferior podem, assim, “seguir com mais flexibilidade diante das variações quantitativas e qualitativas da demanda e, assim, melhorar os rendimentos marginais da empresa” (SANTOS, 1979, p. 253).

Ao mesmo tempo, é pertinente recuperar a distinção proposta por Raffestin (1993) entre o “saber-fazer” e o “saber-manejar”, que se observa inerente à tecnologia do circuito superior e às formas adaptativas dos restaurantes Tudo no Balde, Chicken Town e Dot Chicken. Os proprietários desses três estabelecimentos, como relatado em entrevista, trabalharam em franquias nas quais se inspiraram para criarem seus próprios restaurantes. Destaque-se que o criador da Chicken Town trabalhou por seis anos no KFC da Inglaterra.

Ainda segundo Raffestin (1993), existe uma circulação externa da informação das multinacionais relacionada à tecnologia necessária à utilização do produto - e aqui estendemos essa reflexão para as franquias brasileiras que inspiraram a Dot Chicken e o Tudo no Balde, ainda que possuam densidade tecnológica menos moderna. Entretanto, o que é transferido para os “territórios concretos” é o “saber-manejar”, não um “saberfazer” o produto. A informação sobre o “saber-fazer” é a base do poder das multinacionais e permanece um segredo corporativo dentro dessas instituições. O que é adaptado pelos agentes do circuito superior marginal e inferior entrevistados é o “sabermanejar” que adquiriram em experiências pretéritas de trabalho.

Os estabelecimentos imitativos do KFC e os circuitos da economia urbana em Belo Horizonte (MG)

Os estabelecimentos imitativos do KFC, que possuem uma heterogeneidade de formas no território belo-horizontino, não são meras práticas artesanais ou improvisadas, mas um conjunto elaborado e organizado de conhecimentos que exigem investimentos importantes para os agentes menos capitalizados, revelando certa expertise típica do circuito inferior, como já debatemos anteriormente (TOZI, 2010). Os restaurantes Daniel Lanches, Uai Fried Chicken, Frango’s no Balde e Tia Ruth Lanches, por exemplo, possuem formas de organização mais rudimentares, baixo investimento em publicidade, técnicas simples e diversas soluções criativas e bem contextualizadas à cultura brasileira, configurando-se, empiricamente, como manifestações de flexibilidade tropical e do circuito inferior da economia.

Nesse sentido, a diferença entre os agentes do circuito superior e inferior da economia urbana, sempre conforme Santos (1979), faz-se presente. Enquanto os agentes do circuito superior são padronizados (redes globais de fast-food, como o KFC), os agentes do chamado circuito inferior dispõem de um considerável potencial de criação, apoiados nas condições e limitações dadas pelo local circunscrito de ação.

Interpostas entre as formas mais simples e as sofisticadas, a franquia regional Dot Chicken e as franquias nacionais Frango Americano Brasil e Chicken Town apoiam-se em formas intermediárias de tecnologia, possuem produtos caracterizados por alto grau de padronização e o tipo de comercialização feito por elas é caracterizado pela uniformidade na apresentação não só dos produtos, mas também dos locais onde são produzidos e comercializados, o que as tornam representativas do circuito superior marginal da economia urbana, conforme sustentado por Di Nucci e Hiese (2018) para a realidade argentina.

Esse circuito superior marginal encontra-se ao lado de um circuito superior propriamente dito e, quanto às suas atividades, elas podem apresentar características de ambos os circuitos da economia urbana (o superior e o inferior), apesar de haver um predomínio de características de um deles. Segundo Santos (1979), o circuito superior marginal constitui-se de formas de produção menos modernas do ponto de vista tecnológico e organizacional:

O circuito superior marginal pode ser o resultado da sobrevivência de formas menos modernas de organização ou a resposta a uma demanda incapaz de suscitar atividades totalmente modernas. Essa demanda pode vir tanto de atividades modernas, como do circuito inferior. Esse circuito superior marginal tem, portanto, ao mesmo tempo um caráter residual e um caráter emergente. Nas cidades intermediárias é o caráter emergente que domina. (SANTOS, 1979, p. 103)

Por isso, entendemos aqui que as franquias nacionais e regionais especializadas em venda de frango frito no balde estudadas nesta pesquisa (Lug’s Franchising, Chicken Town, Dot Chicken e Frango Americano Brasil) compõem o circuito superior marginal emergente da economia urbana. Elas são derivadas de uma complexidade de tarefas relacionadas à tecnificação, padronização e financeirização da economia contemporânea e expansão do consumo. No entanto, a inserção na alta economia não impede a situação de vulnerabilidade dos agentes dessa divisão do trabalho, como observa Silveira (2014).

É preciso ressaltar que os limites entre os circuitos da economia urbana propostos por Santos (1979, 2012) não são rígidos e, dentro de cada circuito, há grande heterogeneidade morfológica, de maneira que sua diferenciação interna é bastante grande. Por esse motivo, o que se busca aqui não é apenas classificar ou categorizar os estabelecimentos dentro da teoria dos circuitos, mas um esforço reflexivo visando compreender o que eles representam no contexto socioespacial da metrópole belohorizontina.

É preciso distinguir, nessa direção: i) a produção menos sofisticada ou doméstica do circuito inferior - cuja comercialização é destinada à sobrevivência e cujos atores expressam um uso do território como abrigo; ii) a produção baseada em tecnologias menos modernas do circuito superior marginal e; iii) a produção amparada por elevado nível tecnológico do circuito superior - cuja comercialização é destinada ao mercado global e cujos atores usam o território nacional como recurso. Apresenta-se, então, uma síntese analítica das características e manifestações dos estabelecimentos imitativos da rede de fast-food KFC pesquisados (Quadro 1). Longe de almejar-se uma proposta definitiva, trata-se de um esforço intelectual e uma proposta de debate com base na pesquisa realizada.


Quadro 1
Características dos estabelecimentos imitativos do KFC em Belo Horizonte
Fonte: Elaboração própria, com base em Tozi (2017) e Santos (1979).

Por meio da pesquisa documental, dos trabalhos de campo e das entrevistas semiestruturadas, foi possível observar que nenhum dos estabelecimentos imitativos analisados possui características inteiramente de um ou outro circuito da economia urbana.

Um aspecto a ser destacado no circuito superior marginal - e que o aproxima do circuito inferior - é a vulnerabilidade de seus agentes, conforme apontado por David (2010). Após o início do isolamento social e das medidas sanitárias relativas ao combate à pandemia de Covid-19 em Belo Horizonte, três unidades do Frango Americano Brasil foram fechadas e um desses estabelecimentos foi reaberto com atendimento somente em formato delivery. De forma semelhante, o restaurante Tudo no Balde iniciou suas atividades em 2020 em loja física, entretanto, a fechou e passou a trabalhar somente com entregas em domicílio a partir do início de 2021.

Como destaca Silveira (2014), na atualidade, as técnicas mais flexíveis têm criado um leque de possibilidades de trabalho e resistência para o circuito inferior (restaurante Tudo no Balde, por exemplo) e circuito superior marginal (a franquia Frango Americano Brasil). De fato, as medidas de combate à pandemia e o fechamento do comércio em diversas cidades afetaram diretamente as micro, pequenas e médias empresas pois, como possuem menos liquidez, não conseguem suportar a ausência de atividade por longos períodos (ARROYO, 2020). Reafirma-se, então, a vulnerabilidade desses agentes que precisaram (e necessitam, constantemente) se reinventar para sobreviver nos diferentes contextos da economia urbana.

Constatou-se, em consequência, que não apenas o circuito superior marginal possui um caráter misto - ora suas atividades têm características do circuito superior, ora do circuito inferior - mas o circuito inferior, na heterogeneidade de formas manifestas, possui atividades que o aproximam do circuito superior marginal emergente. São exemplos empíricos dessa constatação os restaurantes Frango Americano Brasil e Frango’s no Balde.

Por meio dos trabalhos de campo e observações realizadas, foi possível perceber que o Frango Americano Brasil, apesar de ser uma franquia nacional, possui um nível de organização simples, poucos trabalhadores que acumulam muitas e diversas tarefas, pouco investimento em marketing e formas simples de tecnologia, o que o aproxima do circuito inferior. Por outro lado, possui produtos padronizados e, por ser uma franquia nacional, tem características do circuito superior marginal emergente, tais como gestão financeira e contábil, controle de filiais e produtos com preços fixos.

O Frango’s no Balde, por sua vez, apesar de apresentar um nível de organização simples, no qual o dono do estabelecimento toma para si todas as tarefas - a direção, a gestão contábil e o trabalho -, o que o caracteriza como um estabelecimento do circuito inferior, possui, por outro lado, grande investimento em publicidade, utiliza tecnologia intermediária e tem certo nível de padronização de seus produtos e, portanto, se aproxima do circuito superior marginal. Destaque-se que, durante o trabalho de campo, fomos informados pelo dono do estabelecimento, em entrevista realizada em julho de 2021, que o Frango’s no Balde está se preparando para se tornar uma franquia e, portanto, tem buscado atingir um nível maior de uniformidade na apresentação dos produtos e dos locais onde eles são produzidos e comercializados.

Outro aspecto observado que merece destaque é a forma de organização do trabalho nos diferentes circuitos da economia urbana. Enquanto no circuito superior predominam as lógicas taylorista e científica-informacional e o sistema de produção em cadeia, no circuito inferior a divisão de trabalho é acompanhada de uma multiplicação das tarefas concentradas em poucos trabalhadores que atuam de forma mais artesanal e mais rudimentar. No circuito inferior, é comum ainda, que o proprietário assuma, sozinho e ao mesmo tempo, a direção, o capital e o trabalho, como observado nos restaurantes Tudo no Balde e Frango’s no Balde.

No circuito superior, ao contrário, predominam equipes reduzidas, sem grande qualificação - portanto, com baixo salário -, equipamentos adaptados e procedimentos cada vez mais padronizados e automatizados, para que possam servir as encomendas da maneira mais breve possível. Essas características foram observadas em duas unidades belo-horizontinas do KFC visitadas e remetem, igualmente, aos aspectos destacados por Fischler (2020) como diferenciais geminais dos processos introduzidos pelo McDonald’s. No circuito superior marginal, apesar de haver certa padronização na produção das refeições, há poucos trabalhadores que também acumulam tarefas menos mecânicas, se comparados aos do circuito superior, a exemplo do restaurante Frango Americano Brasil.

Enfim, foi possível apreender que as diversas mudanças que ocorreram ao longo do tempo nas dimensões técnicas e políticas criaram diferentes modalidades de ações não só para atores hegemônicos, mas, também, para os não hegemônicos, cujos graus de organização e de capitalização são variados, como observa Montenegro (2006). Daí deriva a diversidade dos circuitos de produção e de consumo: da fragmentação da oferta, proveniente de formas de trabalho realizadas com diferentes graus de capital, tecnologia e organização (SILVEIRA, 2014) e que resultam em um conjunto de divisões territoriais do trabalho, em que racionalidades distintas permitem a coexistência de diferentes agentes e contextos.

Considerações finais

Este artigo buscou apresentar as análises acerca da rede global de fast-food Kentucky Fried Chicken (KFC) e sua relação com o território brasileiro e belo-horizontino, tendo como base a teoria dos circuitos da economia urbana (SANTOS, 1979). Por meio da pesquisa foi possível apreender a importância do papel desempenhado pela informação, em sua fluida circulação pelo globo, na formação de novos hábitos alimentares e novos consumidores nos países pobres, como o Brasil. Contudo, os tempos da formação socioespacial brasileira são internamente distintos, e a primeira unidade do KFC se instala em Belo Horizonte 14 anos após sua chegada aos estados de São Paulo e Rio de Janeiro.

Nesse sentido, há importantes mudanças dentro do contexto das relações socioculturais e socioespaciais que a rede global KFC fomentou por sua simples presença enquanto cadeia de fast-food no Brasil e, particularmente, em Belo Horizonte. E, assim, franquias internacionalizadas, nacionais e regionais, estabelecimentos locais e unidades da rede global KFC coexistem na cidade, gerando novas situações e aconteceres geográficos de acordo com cada contexto social existente nos lugares e abrigando divisões sociais e territoriais do trabalho superpostas e interdependentes, apesar das suas lógicas distintas.

É preciso ressaltar, no entanto, que os limites entre os circuitos da economia urbana não são rígidos e, dentro de cada circuito, há grande heterogeneidade de formas, de maneira que sua diferenciação interna é bastante grande. Por esse motivo, o que se buscou, ao longo desta pesquisa, não foi classificar ou categorizar os estabelecimentos imitativos dentro da teoria dos circuitos, mas propor um esforço reflexivo para entender o que eles representam no contexto socioespacial da metrópole belo-horizontina.

Portanto, a partir da diversidade e da convivência dos estabelecimentos dedicados à venda de frango frito no balde em Belo Horizonte pode-se afirmar, como propõe a teoria original, que os circuitos da economia urbana são vaso-comunicantes. Diante do fortalecimento do circuito superior, formas de trabalho criativas e imitativas surgem no circuito inferior, satisfazendo às demandas das camadas populares e sua limitação ao consumo imposta pela renda. Ao mesmo tempo, as empresas do circuito superior marginal ou emergente encontram brechas nas áreas nas quais a KFC não se instalou, bem como no oferecimento de cardápios adaptados aos hábitos alimentares brasileiros (refeição completa e uso de talheres, ao invés do simbólico “comer com os dedos” que caracteriza a rede norte-americana).

Contudo, como outras redes de fast-food estadunidenses, o KFC influenciou, por meio da circulação da informação por ele produzida, a criação de novos hábitos de consumo em Belo Horizonte, mesmo antes de sua presença concreta, como parte de um processo de “globalização do gosto”. Desse modo, a precedência da psicoesfera sobre a tecnoesfera na capital mineira revela a ação de forças sociais hegemônicas que geram uma relação dialética e indissociável entre os circuitos da economia urbana neste território. Finalmente, o surgimento de estabelecimentos diversos e adaptativos pertencentes ao circuito inferior e superior marginal indicam uma flexibilidade tropical reveladora de que esse processo não é de mão única.

Referências

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Notas

1 A periodização apoiou-se na proposta apresentada por Santos (1996).
2 Com base em levantamentos sistemáticos de estabelecimentos por meio das ferramentas de busca Google, desde 2017.
3 Há diversas empresas sediadas em São Paulo (SP) que produzem baldes de papel para comercialização de frango frito com estampas padronizadas e semelhantes às do Uai Fried Chicken, Daniel Lanches e Tia Ruth Lanches, daí a hipótese de que esses estabelecimentos podem ter adquirido seus baldes de papel de um mesmo fornecedor. São exemplos dessas empresas a Soluplex (https://abre.ai/soluplex) e a VRGráfica (https://abre.ai/vrgrafica). Destaque-se que na plataforma do Mercado Livre é possível encontrar, igualmente, empresas como a TRY Comércio (https://abre.ai/comerciotry) e SANTOSROBSON46 (https://abre.ai/santosrobson461) que também comercializam esses baldes de frango padronizados a baixo custo. Esse circuito de produção e distribuição é um tema que esperamos enfrentar em etapas futuras de pesquisa.
4 Doritos é um tipo de salgadinho frito à base de milho, sabor queijo nacho industrializado e produzido pela empresa Elma Chips.


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