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“Me olha de novo?”: sentidos do existir em Milton Santos e Linn da Quebrada, miradas negras em diálogo
Do you look at me again?”: senses of existing in Milton Santos and Linn da Quebrada, black visions in dialogue
Percursos, vol. 23, núm. 51, pp. 80-104, 2022
Universidade do Estado de Santa Catarina

DOSSIÊ

Percursos
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN-e: 1984-7246
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 23, núm. 51, 2022

Recepção: 25 Setembro 2021

Aprovação: 21 Abril 2022

Resumo: "Me olha de novo?" é um convite que Linn da Quebrada nos faz ao lançar seu segundo álbum, "Trava línguas" (2021), que consiste em estabelecer possibilidades de abertura e um outro diálogo com ela e com sua arte. Uma outra mirada para sua própria construção existencial e musical. Vinte anos após a morte do professor Milton Santos, esse mesmo convite a uma nova mirada é direcionado a estudantes, pesquisadores e professores, não só de geografia, para uma outra possibilidade de reelaboração epistemológica e corporal de Milton Santos. A consolidação de uma epistemologia da existência, que é fundamentalmente dialógica, e que vislumbra a investigação da ação no cotidiano, entendido pelo autor como espaço contínuo, facilita, a partir da obra de Milton Santos, a análise das questões lidas pela perspectiva existencial e pelo sentido relacional do corpo com o espaço, através da corporeidade. A dialogicidade entre geografia e arte, tendo Linn da Quebrada como referência artística e política, para além da questão inicial, é realizada por sua criatividade, inventividade e intelectualidade orgânica ativa, que tensionam as compreensões espaciais, explorando uma existência profunda, reveladora de uma corpo-espacialidade plural. Trata-se, portanto, de uma reconstrução do método pela vida, em que a geografia corporificada se faz - cotidianamente - nas brechas da fechada trama da ciência.

Palavras-chave: corpo-espaço, ação, cotidiano, existência, geografia.

Abstract: “Look at me again?” is an invitation that Linn da Quebrada made us when releasing her second album, “Trava línguas” (2021), which consists of stablishing possibilities of opening in another dialogue with her and her art. Another glance to her own existential and musical construction. Twenty Years after Professor’s Milton Santos death, the same invitation to a new glance is directed to students, researches and professors, not only in the geography area, to another possibility of epistemological and body re-elaboration from Milton Santos. The consolidation of an epistemology of existence, which is fundamentally dialogical, and envisions the investigation of action in daily life, understood by the author as a continuous space, facilitating, from the Milton Santos’ work, the analyses of questions considered by the existential perspective and by the relational sense of body and space, through corporeity. The dialogicity between art and geography, with Linn da Quebrada as artistical and political reference, beyond the initial question, is performed by its creativity, inventiveness and active organic intellectuality, which strain spatial comprehensions, exploring a deep existence, which reveals a plural body-spatiality. Thus, it concerns a reconstruction of the method by the life, in which embodied geography is realized – daily – in the breaches of the enclosed science plot.

Keywords: body-space, action, daily, existence, geography.

Reflexões iniciais

“Me olha de novo?” é uma das perguntas que Lina Pereira dos Santos, a Linn da Quebrada, faz ao compartilhar o lançamento do seu segundo álbum, “Tr

“O tigre não lardeia sua tigretude, ele simplesmente ataca”1

Wole Soyinka

“Me olha de novo?” é uma das perguntas que Lina Pereira dos Santos, a Linn da Quebrada, faz ao compartilhar o lançamento do seu segundo álbum, “Trava línguas” (LINN DA QUEBRADA, 2021). Fazer esse convite a um novo olhar, que permite abrir a possibilidade para uma outra percepção de alguém, é o que propicia também reconhecer que a trajetória de vida de uma pessoa não é linear. A principal abertura reflexiva desta pergunta é aquela, dialógica, de estabelecer uma troca; “ser canal”.

É a partir desse canal, dessa dança de sentidos (RIBEIRO, 2009), que propomos uma dialogicidade entre as obras de Milton Santos e Linn da Quebrada, e sugerimos uma mirada negra do legado epistemológico do professor Milton Santos, em convergência com discursos insurgentes da multiartista e travesti negra, Linn da Quebrada, revelando contribuições para o pensamento socioespacial crítico acerca da relação entre corpoespaço e cotidiano. Por meio da aproximação das epistemologias das existências (SANTOS, 1996), base destas geografias corporificadas (OLIVEIRA, 2019) que privilegiam as investigações da vida, do movimento, do corpo e dos gestos em suas análises, é que se estabelece o diálogo entre a intelectualidade orgânica de Linn da Quebrada e o legado epistemológico de Milton Santos.

A questão filosófica que abre esta introdução aponta uma miríade de caminhos e reflexões que se apresentam também em forma de questões. Milton Santos é negro. O convite a olhá-lo de novo, revela a perspectiva da pluralidade de olhares possíveis ao intelectual negro, principalmente àqueles que tensionam o pensamento hegemônico sobre a obra do autor. É o caso da questão insurgente levantada por Cirqueira (2010):

é possível que a abordagem acerca do corpo tenha sido uma forma dissimulada e indireta de tratar da questão étnico-racial, num momento de resistência para se discutir isso no seio da geografia? O corpo seria uma metáfora ou “código” destinado a exprimir uma significação subterrânea, dissimulada nos textos, sobre as relações étnico-raciais? (CIRQUEIRA, 2010, p. 115-116)

Mesmo sendo uma pergunta com resposta difícil, ela revela a dificuldade de se escapar de questões como essas (ainda mais de respondê-las) em um país estruturalmente racista, e que mesmo assim, não conseguiu interditar o desenvolvimento de um brilhante legado e insubstituível contribuição para formação de uma perspectiva existencial na geografia direcionada à análise espacial do cotidiano.

Um acadêmico negro em uma academia branca. “Me olha de novo?” O desafio de olhar Milton Santos, vinte anos após sua morte, e passados dez anos da política de ação afirmativa impulsionada pela Lei de Cotas Socio-raciais (Lei n.º 12.711/12), que contribuiu para uma entrada expressiva de pessoas negras nas universidades públicas2, nos ajuda a refletir sobre a importância da corporeidade negra no espaço universitário. Por meio dessa política afirmativa, estudantes pretos ou pardos passaram, em 2018, a compor maioria nas instituições de ensino superior da rede pública do País (50,3%), ainda que seguissem sub-representados, visto que constituíam 55,8% da população na ocasião da pesquisa (IBGE, 2018, p. 9). De acordo com Ratts,

O debate público acerca das ações afirmativas para grupos sociais historicamente discriminados com foco para as cotas raciais pode ser inserido numa discussão acerca da relação entre educação e corporeidade. Há um notório incômodo com os corpos negros, corpos que pensam, que propõem esse debate, e com as corporeidades negras que estão adentrando a universidade brasileira de forma coletiva e organizada (RATTS, 2011, p. 29)

Para o autor, a ampliação da implementação de Ações Afirmativas e das cotas raciais tem relação com a formação do movimento negro de base acadêmica na década de 1970, com a constituição dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros entre os anos 1980 e 1990 e com a criação dos Coletivos de Estudantes Negros/as na década seguinte (RATTS, 2011). Além disso, a interiorização da universidade pública, rumo às periferias - como aquela na qual nos encontramos, numa periferia da metrópole do Rio de Janeiro - também foi algo que possibilitou um fortalecimento dessas corporeidades que passaram a ocupar esse espaço e a questionar o perverso pacto da branquitude (BENTO, 2002). A instigação a olhar para Milton Santos “de novo” é um estímulo crítico à branquitude acadêmica e à reelaboração da percepção corporal e epistemológica de um Milton Santos que ele próprio evidenciou:

Desculpem evocar o meu caso pessoal. Tenho instrução superior e posso apresentar um documento, imagino que sou uma individualidade forte, mas tenho certeza de que neste País não sou um cidadão completo. Eu não posso ser cidadão se não sou tratado como cidadão, e não sendo tratado como cidadão raramente serei tratado como uma individualidade forte. (SANTOS, 1998, p. 154)

Perceber no movimento do pensamento de Milton Santos, a possibilidade de reconhecer a importância das relações raciais a partir da dimensão espacial do corpo é algo que parece estar na crítica que o próprio autor realiza ao enunciar que:

Ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo. Essa ambiguidade marca a convivência cotidiana, influi sobre o debate acadêmico e o discurso individualmente repetido é, também, utilizado por governos, partidos e instituições. Tais refrões cansativos tornam-se irritantes, sobretudo para os que nele se encontram como parte ativa, não apenas como testemunha. Há, sempre, o risco de cair na armadilha da emoção desbragada e não tratar do assunto de maneira adequada e sistêmica. (SANTOS, 2000, p. 4)

Olhar Milton Santos de novo, dessa vez sem negar a potência da emoção, tendo a arte como aliada, passa por reconhecer a atuação do professor em discussões ligadas ao movimento social de negros/as no Brasil, principalmente porque “O aumento do prestígio de Milton Santos ocorria [de forma] concomitante à dinamização das relações étnicoraciais no Brasil” (CIRQUEIRA, 2010, p. 111), e com isso, a aparição de convites para falar acerca de temas dessa natureza, como foi o caso dos debates sobre a lei de cotas socioraciais, deixava de ser novidade:

Folha - O senhor defende o chamado sistema de cotas? Santos - Essa pergunta gera um bloqueio do debate. Porque você só tem duas formas de responder: sim ou não. Folha - Qual seria a pergunta correta? Santos - o que eu devo fazer para que o negro entre e permaneça na universidade? A resposta seria: com políticas compensatórias. O mundo inteiro tem políticas compensatórias de conquista social. Não me refiro aos negros somente. Folha - O senhor está falando de reparações? Santos - Há duas diferenças. Uma é a quantificação da reparação, que eu não vou discutir. Mas a reparação é necessária. Na medida em que uma comunidade é secularmente posta à margem, a nação tem que se ocupar dela. Os negros não são integrados no Brasil. Isso é um risco para a unidade nacional [...]. (SANTOS; STYCER, 1995, p. 60-61 apudCIRQUEIRA, 2010, p. 111)

Ao propormos uma mirada racial com Milton Santos para pensar as corporeidades negras na Universidade, sugerimos que a análise espacial do cotidiano precisa ser explicitamente corporificada, para que possa contribuir, de fato, para a consolidação de uma prática dialógica da ciência com a arte e, dessa forma, estar mais perto do cotidiano de jovens estudantes negros/as. Neste diálogo da obra do professor Milton Santos com a arte política transfeminista negra de Linn da Quebrada, em uma conjuntura de enegrecimento da universidade pública, parece fértil pensarmos a pluralidade de saberes que compõem os temas de pesquisa que fazem sentido a essas novas corporeidades que ocupam tais espaços de saber. O próprio Milton Santos (1996) dizia que “Quem pensa o novo são os homens do povo e seus filósofos, que são os músicos, cantores, poetas, os grandes artistas e alguns intelectuais”.

Para além dos quase dez anos da Lei de Cotas, é importante pensar acerca dos novos olhares, mais coloridos, que chegaram às universidades. É um momento fértil para revisitar e reler a obra de pensadores/as negros/as que travaram disputas políticas e epistemológicas (GOMES, 2019) para que ocorresse um movimento de deslocamento das estruturas sociais, enfrentamentos esses, não somente limitados à luta por acesso à educação. A respeito da presença de corpos negros nas universidades e da mudança radical do ambiente universitário, Nilma Lino Gomes afirma que essa ocorreu:

Não somente pela participação quantitativa, pela corporeidade, pelos diferentes níveis socioeconômicos, mas principalmente graças aos valores, às cosmovisões, às representações, às identidades que passam a fazer parte do campo do conhecimento. A presença negra de estudantes e docentes, destacando-se aqueles que possuem posicionamento, pensamento e postura indagadores e afirmativos no campo da produção do conhecimento, traz inflexões potentes. E são esses sujeitos que questionam os currículos e a cultura universitária. São aqueles que, muitas vezes apresentam, aos docentes e aos discentes, intelectuais negras e negros que também produzem conhecimento e refletem sobre o Brasil e o mundo. E cobram a sua presença afirmativa nos currículos e nas práticas acadêmicas. (GOMES, 2019, p. 241)

Ainda referente ao deslocamento nas estruturas sociais promovido pelas ações afirmativas, Muniz Sodré endossa que

as cotas realmente são um deslocamento de placas tectônicas da sociabilidade humana. As universidades e as plateias, que antes eram colonizadas pela epiderme clara, porque a forma social escravista continua, ela perpetua o racismo. Essas formas colonizadas agora se tornaram colorizadas. As cotas colorizaram a superfície dos públicos da universidade. Isso não é um jogo de palavras. Colorizar significa diversificar as cores. (ESPAÇO..., 2021)

As cotas socio-raciais, enquanto um movimento de placas tectônicas da sociabilidade convergente à emergência de conhecimentos emancipatórios, rasgam o nexo da linearidade universal e imparcial, e revelam a afirmação de negros e negras como “sujeitos de história, conhecimento e culturas”, e “reafirmam formas alternativas de ser humanos e sujeitos de direitos não reconhecidos pelas concepções hegemônicas de humanidade e cidadania” (GOMES, 2019, p. 241).

Em uma leitura geográfica da cidadania, Santos (1998) questiona: “O que é ser cidadão? O que é ser um indivíduo completo? Ser classe média é ser cidadão? O que é ser cidadão no Brasil?” E finalmente: “Negros são cidadãos?” (SANTOS, 1998, p. 148). Para ele, a “cidadania é uma conquista lenta, dura”.

Países como o nosso, o Brasil, jamais conheceram a figura do cidadão. O que aqui se chama por esse nome é um arremedo de cidadão. Eu gosto de insistir no fato de que no Brasil as classes médias recentemente expandidas jamais fizeram cidadãos. As classes médias sempre desejaram reter privilégios - e o privilégio é inimigo da cidadania -, enquanto os pobres e todas as minorias jamais tiveram direitos. (SANTOS, 1998, p. 148)

Desde o espaço do cidadão (SANTOS, 1987), o tema da cidadania aparece na obra de Milton Santos, mas no final da década de 1990, o autor passa a enfatizar ainda mais a perspectiva existencial da análise geográfica. A confluência discursiva em torno da lei de cotas e dos questionamentos de Milton Santos acerca da cidadania, canalizam para a compreensão de que as cotas socio-raciais e a pluralidade produzida pela entrada de estudantes negros e negras balançaram o pilar do privilégio da branquitude acadêmica e desvendaram, com olhares mais atentos, seu pacto narcísico. Pensar em uma perspectiva que rompa com o pacto narcísico da branquitude (BENTO, 2002) significa deslocar a percepção linear e ocularcêntrica e conduzi-la à noção de sentidos de mundo, que permite a abertura analítica não somente de novos olhares, mas audições, tatos, gostos, gestos, portanto, sensos de mundo que se articulam a partir da própria corporeidade, como ressalta a Socióloga Oyèrónkẹ Oyěwùmí.

O termo “visão de mundo” (worldview), que é usado no Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade, captura o privilégio da visão ocidental. É eurocêntrico usar isso para descrever as culturas que podem privilegiar outros sentidos. O termo “sentido de mundo” (world-sense) é uma forma mais inclusiva de descrever os conceitos de mundo, pelos diferentes grupos culturais. (OYEWÙMÍ, 2018, p. 309, grifo da autora)

É nesse movimento de investigação mais cuidadosa de um Milton Santos que se redescobria no final do século XX e desenvolvia uma geografia própria e atenta ao cotidiano, que construímos diálogos abertos a partir da construção da epistemologia da existência, valorizando uma opção metodológica pela vida. Para tanto, é fundamental partir do corpo como lastro das epistemologias (e geografias) das existências, em busca “de novas metodologias e novas epistemes que possam produzir novos olhares e novas interpretações sobre o mundo” (SILVA, 2014, p. 32), e nesse caso, sensos e sentidos de mundo que redirecionam a redescoberta do próprio corpo e sua relação com o espaço.

A virada epistemológica, que propõe a geografização do cotidiano, entendendo-o como um espaço contínuo, respeita o tempo dos movimentos, das ações, dos gestos e, por assim dizer, do próprio corpo.

Esse cotidiano é delimitado pelo espaço contínuo e não por um espaço de pontos, ou de fluxos. É no espaço contínuo, onde todos os tipos de homens, todos os tipos de empresas, todos os tipos de instituições trabalham juntos, funcionam juntos e juntos estruturam a vida da comunidade e o espaço ao mesmo tempo. É o que estou chamando de horizontalidade e se completa com as verticalidades formadas por pontos discretos povoados por agentes hegemônicos desinteressados da vizinhança, despreocupados da co-presença. (SANTOS, 1996, p. 11)

A análise espacial cotidiana comunica-se com o ritmo, pela condição do movimento, que abarca o espaço contínuo e a rítmica. É o ritmo, espaço temporalizado no próprio corpo. Muniz Sodré, em aula magna do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF), em março de 2021, levanta questões importantes para o debate que aqui queremos tratar.

As questões levantadas pelo professor Muniz Sodré acerca de espaço e território, numa perspectiva afrodiaspórica, dialogam com o ritmo do movimento do espaço contínuo, o cotidiano, na interpretação de Milton Santos. A primeira questão exposta por Sodré (e a que traremos aqui), diz respeito à territorialização ativa vinculada à cultura da diáspora negra no continente americano, “das formações civilizatórias afros nas Américas, porque todas essas formações civilizatórias, com ou sem escravidão, têm em comum uma coisa, que é um tipo especial de territorialização operada pelo ritmo musical e pela dança. Ora, o ritmo musical e a dança são formas de territorialização” (ESPAÇO..., 2021).

O ritmo tem um espaço próprio, o ritmo suscita um imaginário específico e isso implica uma reflexão prática, uma reflexão corporal sobre a duração, sobre o tempo de vida. O ritmo não se trata de um artifício técnico no contexto da musicalidade, não é uma parte técnica da musicalidade apenas. Eu tô falando do ritmo como uma configuração simbólica do tempo vivido. É uma configuração que conjugada à dança, termina criando, gerando um contexto, uma espécie de lugar, ou uma espécie de cenário cinestésico, ou um cenário sinergético, onde ritualisticamente alguma coisa acontece. Vejam, ritmo e cenário cinestésico. Tanto que em algumas línguas africanas - eu cito, por exemplo, Kimero, que é falada numa região do Quênia, a palavra pra dizer música tem o mesmo sentido de canto, mas também de deslocamento espacial. Por quê? Por meio da dança, então música é tanto cantar quanto se deslocar espacialmente por meio da dança. [...] o ritmo na verdade é uma tecnologia de agregação humana. Dizer que o ritmo é uma tecnologia de agregação humana, é dizer que o ritmo é político. É dizer que o ritmo é um vetor poderoso de sociabilidade. Sociabilidade é essa convivência humana que se apoia na copresença do outro. [...] por meio da dança o ritmo elabora simbolicamente o espaço. O ritmo refaz o espaço. Refaz de que maneira? Ainda que modifique momentaneamente, modifica as hierarquias territoriais, estimule o poder expressivo do corpo, até o ponto de produção de imagens próprias de liberação e autorrealização. Se estivermos em uma pesquisa voltada para uma geografia propriamente humana, humana em toda amplitude do sentido de humano, não apenas geografia humana que considere a economia voltada pro humano, a política voltada pro humano. Não é isso. A geografia que considere o corpo, a corporeidade, nós podemos perceber o quanto o espaço e o território têm a ver com as formas não hegemônicas de constituição dos povos nacionais. (ESPAÇO..., 2021)

Sodré nos fala de como o ritmo é político e é um vetor poderoso de sociabilidade. Isso parece bastante interessante à geografia na medida em que a sociabilidade tem a ver com o estar junto, com a copresença e a coexistência. Trata-se de compreender as epistemologias das existências como essa geografia propriamente humana, no seu sentido mais aberto e ampliado, que considere a pluralidade existencial, caracterizada pela vida em movimento. É nesse sentido que apresentamos a estrutura deste trabalho. Além desta introdução, o artigo conta com mais duas seções, a primeira que percorre evidências de uma “recente descoberta” pelo campo geográfico de um Milton Santos da epistemologia da existência, e de sua geografia cidadã. E a segunda, baseando-se em tal epistemologia, fundamentalmente dialógica, em que se busca efetivar uma troca com a obra musical e intelectual de Linn da Quebrada, a fim de reconhecer corpo-espacialidades plurais (OLIVEIRA, 2019a, 2019b).

Epistemologia da existência e a dança de sentidos: a corporeidade negra como potência

A epistemologia da existência (SANTOS, 1996) afirma o existir como condição para ver o mundo. Aqui propomos evidenciar como a arte pode nos ajudar a reconhecer cosmopercepções de mundo (OYEWÙMÍ, 2018) a partir de diferentes sentidos e corporeidades, numa dança de sentidos (Ribeiro, 2009) que considere que a emoção compõe nossa reflexividade. Em um diálogo com Denise Stoklos, Milton Santos fala sobre como “na maior parte do tempo era refreado” a considerar a emoção como inerente às formas de descobrir, mas de como estava bastante interessado em buscar a originalidade que resulta dessa epistemologia das existências.

[D.S] Esse distanciamento entre a emoção e a leitura do real, também nos criou uma dificuldade para nos aproximarmos da nossa própria emoção. Houve essas pequenas seqüelas, mas dá para reajustar. É a emoção, afinal, que está determinando o que a gente não queira desistir e se entregar ao cinismo que todos os convertidos ao neoliberalismo assumiram de que “é assim mesmo”, “é mais um passo”, “estamos evoluindo”, “esse é o movimento global”, “as leis são assim mesmo”, enfim, é um cinismo absoluto. Não tem graça não ser cidadã, não ter compaixão, não ter reverência, enfim, tudo que nos é dado como único patrimônio, único no sentido de bom, de uno, não de pouco, de menos. E seu trabalho, professor, também nos pede essa emoção.

[M.S] Aliás, foi uma descoberta recente. A maior parte do tempo eu era refreado. Recordo-me dos anos que ensinei na França e nos EUA, entre as décadas de 60 e 70, e da minha volta ao Brasil, quando retomei contato com as pessoas daqui. Fui intelectual na Europa e nos EUA sem ser cidadão, era regido pela razão, pelo esquema. A descoberta dessa nova condição [me levou a pensar sobre] essa epistemologia da existência, como estou chamando agora. Quer dizer, o existir como condição para ver o mundo. E isso inclui, em primeiro lugar, a emoção. Porque a razão reduz a força de descobrir, porque só a emoção nos leva a ser originais. Não só a emoção, claro, mas por meio dela é mais rápido. Propor uma coisa nova na universidade é muito difícil, embora seja o lugar da proposição do novo. Essa força, digamos, de esquecer, de ser original, só a emoção permite. E ela então passa a ser um dado do pensamento. Não é a razão que produz o grande pensamento. E aí é preciso caráter. Uma interpretação da sociedade brasileira em movimento permite ver, digamos, uma outra coisa, um futuro mais perto. Nós fomos tratados e educados para examinar o chamado presente, não imaginando que o futuro está aí, embutido no presente. Na realidade, cada ato nosso é presente, agimos em função do futuro. A ação é presente, mas a aspiração dela é o futuro. (SANTOS, 2002, p. 63-64, grifo nosso)

O existir como condição para ver o mundo, permite uma abertura dialógica de análise da sociabilidade humana a partir do (re)conhecimento da existência de qualquer pessoa. Porque, ora, “É o espaço geográfico que transforma em existência a sociedade global, este ser que é um todo, mas um todo em potência. O existir, ser em ato, oferece esta idéia de epistemologia da existência, porque existindo estão todos” (SANTOS, 1996, p. 14). Trata-se da “reconstrução do método através da vida” (SANTOS, 1996, p. 7), do ser em ação, da ação presente aspirando um futuro, do sentido da ação.

A epistemologia das existências que Milton Santos nos instiga a refletir, embasando a ação como sentido de aspiração do futuro, torna-se fundamental para entender a espacialização do cotidiano, dando o tom geográfico necessário, reconhecendo-o politicamente. Afinal,

O cotidiano supõe o passado como herança. O cotidiano supõe o futuro como projeto. O presente é esta estreita nesga entre o passado e o futuro e cuja definição depende das definições de passado e de futuro: desta existência do passado, da qual não nos podemos libertar porque já se deu; e desse futuro, que oferece margem para todas as nossas esperanças, exatamente porque ainda não existe. É que a base do fato é que cada um de nós são dois, oscilando entre a necessidade e a liberdade, entre o que somos e o que queremos ser, entre a dificuldade de afirmação diante das situações e a crença de que podemos ser outra coisa e de que podemos construir outra coisa. (SANTOS, 1996, p. 10)

É nesse campo mais que ambíguo de sentidos que para o autor o cotidiano abarca, pelo menos, três dimensões fundamentais para entendê-lo a partir de um olhar espacial. Segundo Milton Santos, essas três são “corporeidade”, “individualidade” e “socialidade”. A corporeidade está ligada a “uma dimensão objetiva que dá conta da forma com que eu me apresento e me vejo, que dá conta também das minhas virtualidades de educação, de riqueza, da minha capacidade de mobilidade, da minha localidade, da minha lugaridade” (SANTOS, 1996, p. 10). A individualidade, por sua vez, associada à perspectiva subjetiva, está intrinsecamente conectada à socialidade, que diz respeito às nossas relações sociais:

há dimensões que não são objetivas, mas subjetivas; aquelas que têm a ver com a individualidade e que conduzem a considerar os graus diversos de consciência dos homens: consciência do mundo, consciência do lugar, consciência de si, consciência do outro, consciência de nós. Todas estas formas de consciência têm que ver com a individualidade e lhe constituem gamas diferentes, tendo também que ver com a transindividualidade, isto é, com as relações entre indivíduos; relações que são uma parte das condições de produção da socialidade, isto é, do fenômeno de estar junto. Esse fenômeno de estar junto inclui o espaço e é incluído pelo espaço. (SANTOS, 1996, p. 10)

A geografização do cotidiano, proposta por Milton Santos, diz respeito à análise política, sobretudo, reconhecendo sua dimensão central, a dimensão espacial. É reconhecer o cotidiano como espaço contínuo, e que tem tudo a ver com a própria cidadania, “com a questão do espaço do cidadão, com a questão do espaço banal” (SANTOS, 1996, p. 11). E como afirma o autor, a corporeidade é feita de dados objetivos, a individualidade, de dados subjetivos, e a cidadania, de dados políticos (SANTOS, 1996).

A análise geográfica do cotidiano supõe ligar corporeidade, individualidade e socialidade, apontando para o que trabalhamos intelectualmente hoje (SANTOS, 1996), principalmente por reconhecer nas geografias das existências um fazer geográfico em busca de sentidos (SILVA, 2014). “O que dá sentido do fazer ciência é a construção dos sentidos de fazer geografia, fazemos quando ensinamos, fazemos quando pesquisamos, fazemos quando aprendemos com o outro” (SILVA, 2014, p. 31).

Pensar o fazer profissional remete-nos ao diálogo com a produção do conhecimento, que é uma ação coletiva, inserida numa relação espaçotempo da experiência coletiva e em fundamentos que podem contribuir, consciente ou inconsciente, para o papel social de sujeito e objeto diante do mundo do qual a ciência participa. (OLIVEIRA, 2014, p. 9)

Pela valorização do estar junto, a existência põe em relevo um desdobramento fundamental, a copresença (SANTOS, 1996). Estarmos juntos/as implica também em reconhecer a dimensão subjetiva, ligada à individualidade. Principalmente pela relação tempo-espacial que o/a sujeito/a desenvolve com o mundo e com os outros, em especial no Brasil, país que tem um passado pela frente (VIEIRA JR., 2021), ao continuar ignorando os destroços do seu pretérito escravocrata. Não à toa, Milton Santos afirma “a escravidão marcou o território, marcou os espíritos e marca ainda hoje as relações sociais desse país” (SANTOS, 1997, p. 135).

Não é somente, mas também pela marcação da ferida escravagista no íntimo espiritual e corporal da sociedade brasileira, principalmente nos/as descendentes de africanos/as raptados/as e escravizados/as, que emerge uma reelaboração da própria humanidade, melhor dizendo da própria existência. A necessidade de (de)composição de seu próprio esquema racial (KILOMBA, 2020), diante de uma sociedade excludente subjetiva, objetiva e politicamente, que é revelada na dimensão corporal os usos e abusos da copresença. Faz-se substancial para pessoas negras e os/as demais oprimidos/as e interditados/as no/pelo espaço contínuo do cotidiano

se fazer presente na arena de disputa societária em busca de sentido, sobretudo para si enquanto coletividade. Daí a necessidade de compreender o sujeito no contexto de totalidade, tendo em vista que as histórias podem (e devem ser entendidas também nas partes que constituem a totalidade). (CAMPOS, 2014, p. 52)

A questão racial, a realidade africana e a existência do racismo são pautas caras ao Movimento Negro e a intelectuais negros e negras que há bastante tempo buscam descolonizar os currículos e que, “por meio das suas práticas e de diversas formas de organização afirmativas, identificam a presença da colonialidade nos padrões de poder, de trabalho e de conhecimento no Brasil” e, dessa forma, “desconstroem o mito ôntico colonial do humano e não humano” (GOMES, 2019, p. 241).

O corpo negro descendente, enquanto sujeito histórico de um processo desumanizador, insurge em uma espacialidade que pouco age institucionalmente para sanar as sequelas espaço-temporais dessa presença negada. É nesta dobra que reconhecemos a corporeidade negra como potência em ação e autodeterminação, principalmente se entendermos o corpo negro como

fenômeno que transcende dualidades, por isso mesmo plástico, dinâmico, autopoético, resiliente, adaptável e atravessado pelas mais distintas formas de ‘dobras’ e ‘quebras’ localizadas na pós-travessia atlântica. Corpo que é, sobretudo, plural, síntese dos corpos que foram aprisionados, embarcados e trazidos para a voraz máquina econômica do antigo sistema colonial. Corpo-síntese dos corpos mercadorias que, por séculos, foram banalizados, percebidos e visualizados como ausentes de alma pelos raptores, detratores e algozes coloniais. (TAVARES, 2020, p. 20)

É no sentido de provocar aberturas, desde o menor movimento até aqueles que concretizam o sentido da ação, que as reflexões existenciais de “quem soul eu?”, estimuladas pela artista multimídia, Linn da Quebrada, principalmente no seu álbum “Trava Linguas” (2021), ganha força e elaboração para repensar a corporeidade, a socialidade e a individualidade, com “tesão” e emoção, nos levando a caminhos ainda não desbravados na Geografia. Apesar dessa abertura parecer fazer mais sentido agora, Santos já indicava diferenças entre o artista e o homem da universidade: “O grande artista é livre, e sabe que, se não há emoção, ele não se aproxima da verdade. E o homem da universidade imagina que tem de reprimir a emoção para produzir” (SANTOS, 2002, p. 62). Acreditamos que essa aproximação da ciência com a arte pode trazer grandes contribuições para a corporificação de nossas análises geográficas do cotidiano.

Entre os escombros da costela de Adão: “É da palavra que eu faço do meu corpo, verbo, e do meu verbo, carne, pra que possa ser ação” (LINN DA QUEBRADA, 2021). Para Linn da Quebrada, a palavra é o caminho que guia o ser a ser corpo e assim ser ação, possibilitar movimento, transformação. Milton Santos apontava possibilidades de transformação da realidade a partir da vida cotidiana enquanto mundo da heterogeneidade criadora, “da produção ilimitada de outras racionalidades”, que abrange também “temporalidades simultaneamente presentes, o que permite considerar, paralela e solidariamente, a existência de cada um e de todos, como ao mesmo tempo, sua origem e finalidade” (SANTOS, 2011, p. 127-128).

A produção de racionalidades alternativas àquelas que tentam padronizar os corpos de modo normativo reconfigura as dimensões espaciais do cotidiano, incluindo a reelaboração do seu “esquema racial”, ligado à corporeidade (principalmente, mas não somente), mas também da individualidade e socialidade. Partindo de corpos para os quais as interdições à existência costumam ser cotidianas, a reflexão de “quem soul eu?”, feita por Lina Pereira, ao se apresentar como Linn da Quebrada, travesti negra, que vive a dissidência sexual e de gênero, revela como sua própria existência grafa a potencialidade linguística, que cabe no bojo interpretativo do existir, tão caro às epistemologias das existências, e que insurge e resiste à burocratização da existência (RIBEIRO, 2011).

conhecida como linn da quebrada. que brada. que berra. Que borra. Que burla. Que engana & convence. ou não. que tenta co.vencer. vem ser. vem ser você também. desde que me conheço eu invisto sobre essa empreitada de me investigar e fazer de mim minha própria obra de arte, inacabada & inesgotável, encontro na palavra um abismo. principício. início & fim em mim mesma. ciclo de um movimento de incorporação que exige presença & vazio. é preciso estar oca para dar espaço aos ecos de tantas vozes que tantas vezes me habitam. ser canal. correnteza & maré. para assim permitir que essas palavras encarnadas & pulsantes possam escorrer & irrigar outras áreas desertas & áridas. meu corpo é um texto & minha língua é nanquim. o que vocês vão encontrar aqui é um pedaço do que já fui & tive de inventar para que eu pudesse não sobreviver, mas também, e principalmente, existir. (LINN DA QUEBRADA, 2020)

A intelectualidade orgânica de Linn da Quebrada é reconhecida através da língua, da linguagem e de sua reflexividade, mas também, e simplesmente, de sua existência. Ao refletir acerca da sua própria produção e sobre a potencialidade alcançável da ferramenta que possibilitou a construção de um dos seus canais de atuação, a música, a artista e intelectual revela o movimento de seu pensamento na produção de sua própria individualidade. Nas suas próprias palavras:

eu encaro a palavra, pela sua superfície e na sua profundidade. Na sua forma e no seu conteúdo. Eu faço muitas coisas, eu sou cantora, eu sou atriz, eu sou atroz, eu sou apresentadora, fiz filme, série [...]. Muitas pessoas gostam de me ouvir falar, e eu tenho me perguntado: por que será isso? E eu entendo que seja de alguma forma pelas correntezas do meu pensamento, mas eu percebi que o que me une em todas as áreas do meu trabalho, da minha atuação, é a palavra. É na palavra que eu faço da minha carne, verbo. É na palavra, pela palavra e com a palavra que eu faço do verbo, carne; que eu faço da palavra vírus e antidoto, porque eu percebo que a palavra tem poder, ela tem muito poder. A palavra, ela é feitiço. E as músicas, elas têm justamente essa possibilidade. A música já é esse algo que você vai ficar cantando, repetindo, que por muito tempo, por muitos momentos, aquilo vai permeando sua cabeça; você vai cantar, vai cantar de novo, e esse é o poder da música, porque ela constrói e produz os nossos afetos, os nossos desejos, as nossas sensações [...]. A música, ela não só reproduz o mundo tal qual ele é, a música, a arte, a palavra, ela produz. E por isso eu tenho essa investigação em perceber quais palavras estão me rondando, estão permeando os meus pensamentos em determinado momento. Eu começo a perceber e a atrair essas palavras pra mim, a perceber o que elas significam, e eu começo a brincar com elas de alguma forma, movendo elas e entre elas, formando um novo jogo e percebendo que outros significados, que outras sensações essas palavras podem formar. (LINN DA QUEBRADA, 2021)

O jogo de palavras entre carne, verbo, corpo e ação, contido nas duas entrevistas, revela a metodologia do Trava Línguas (LINN DA QUEBRADA, 2021a), baseada na repetição e movimentação de palavras, com abertura para a possibilidade de criação de outros sentidos e significados, como ela mesma diz:

Trava-linguas, em si, diz respeito a algo que é difícil de ser dito, que tem a ver com a repetição de palavras. E o que eu faço com trava línguas, tem a ver também, com algo que a gente pode dizer que é difícil de ser dito, que é difícil de ser nomeado. Mas acima de tudo o que eu venho pesquisando nesse álbum é se é possível encontrar a diferença na repetição. E mais do que qualquer outra coisa, como a gente percebe a repetição na diferença. Trava línguas é uma elaboração de rotas de fuga. Trava línguas tem a ver com esse meu momento no mercado da música, Trava línguas é um pedido para que olhem pra mim de novo. É completamente diferente de tudo aquilo que eu vinha experimentando em Pajubá [2017], talvez radicalmente diferente, mas ainda sim na diferença, muito provavelmente, tem coisas que se repetem. esse é o processo de investigação entre a diferença e entre a repetição, naquilo que é difícil de ser dito, naquilo que é difícil de ser capturado. Porque Trava línguas é uma rota de fuga em relação a esse mercado. (LINN DA QUEBRADA, 2021)

Tais reflexões de uma artista travesti, negra e brasileira sobre sua arte não podem fugir da análise de investigações sobre a diáspora. Nas trilhas sonoras do Atlântico Negro3, o corpo e obra de Linn da Quebrada grafam espacialidades da insurgência. Segundo Paul Gilroy, a desproporcionalidade entre o poder crescente da música e o poder expressivo da língua reside no fato de que “o poder expressivo da música no âmbito do Atlântico negro têm crescido em proporção inversa ao limitado poder expressivo da língua” (GILROY, 2012, p. 160).

Em sua reflexão acerca de fazedores da cultura negra na diáspora, no renomado texto “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”, Stuart Hall, põe em relevo “os elementos de um discurso que é diferente - outras formas de vida, outras tradições de representação” (HALL, 2003, p. 343), sendo uma dessas formas, a maneira “como essas culturas têm usado o corpo - como se ele fosse, e muitas vezes é, o único capital cultural que possuímos. Temos trabalhado em nós mesmos como telas de representação” (HALL, 2003, p. 343). Essa interpretação de uma cultura negro-diaspórica voltada para o olhar do corpo, sendo muitas vezes o único capital cultural que possuímos, cose a rede socioespacial da música negra TLGB+, por exemplo.

“Esse corpo negro ainda que parado para falar ou fixado em fotografia enuncia sentidos. Na memória corporal ou na difícil construção da cidadania, a linha do corpo negro continua desenhando o espaço. Fio da memória. Fio da identidade.” (RATTS, 2006, p. 68). O corpo negro dissidente de gênero e sexualidade, por ser cultural - portanto, espacial e histórico, é ação e representação em si. Captura os poderes de linguagem e discurso, deslocando o pensamento hegemônico para outras formas de pensar a vida. De pensar a própria existência. Partindo da espacialização do cotidiano e das representações artísticas e discursivas de Linn da Quebrada, na trilha espacial contínua, o corpo ganha foco. É a partir das trocas intersubjetivas espaço-temporalmente localizadas no cotidiano urbano-metropolitano de São Paulo que Linn da Quebrada rearticula a concepção espacial da corporeidade com a construção imaginativa de existências corporais construídas e reconstruídas cotidianamente, como é o caso da reivindicação do seu corpo como uma ocupação.

De noite pelas calçadas

Andando de esquina em esquina

Não é homem nem mulher

É uma trava feminina

Parou entre uns edifícios, mostrou todos os seus orifícios

Ela é diva da sarjeta, o seu corpo é uma ocupação

É favela, garagem, esgoto e pro seu desgosto

Tá sempre em desconstrução

Nas ruas, pelas surdinas é onde faz o seu salário

Aluga o corpo a pobre, rico, endividado, milionário

Não tem Deus nem pátria amada

Nem marido, nem patrão

O medo aqui não faz parte do seu vil vocabulário

Ela é tão singular Só se contenta com plurais

Ela não quer pau

Ela quer paz (LINN DA QUEBRADA, 2017a)

A música “Mulher” (LINN DA QUEBRADA, 2017a) sintetiza o elo dialógico entre as epistemologias (geografias) das existências e a construção artística de Linn da Quebrada, principalmente pelo seu caráter existencial ligado à emoção, “tesão” e desejo, também da possibilidade de interpretações geográficas da realidade considerando como corporeidade, individualidade e socialidade aparecem na obra da artista. O corpo como ocupação, é em síntese, a fissura, que provoca não somente o vício da repetição, mas também o corte no imaginário concebido enquanto corpo e humanidade.

A intelectualidade orgânica de Linn da Quebrada revela o sentido da ação através da linguagem, a ferramenta com a qual confronta o mundo, e mobiliza os lugares, os espaços de horizontalidade e emoção (SANTOS, 2002, p. 113). A consolidação de uma episteme sensível, capaz de enxergar as existências criativas, depende de uma escuta que precisa ser acompanhada de uma leitura interpretativa dos gestos (RIBEIRO, 2005, p. 99).

Considerações finais

Os elos dialógicos que vinculam a corporeidade com a epistemologia da existência podem ser encontrados na própria elaboração epistemológica, haja vista sua consubstanciação com o espaço contínuo do cotidiano. A obra de Linn da Quebrada abre espaço para sentidos dialógicos por se tratar de uma construção voltada para “pensar e dançar”, para “colocar o pé no chão e dançar, pra se dançar com o corpo inteiro, entendendo essa integridade ou se propondo uma integridade de corpo inteiro, não essa divisão de corpo e mente, mas a pensar enquanto dança com o seu corpo na plenitude e na integridade” (LINN DA QUEBRADA, 2021a).

Para Santos, “as massas se mobilizam nos lugares, nos espaços de horizontalidade e de emoção, em que produzem a linguagem com a qual elas afrontam o mundo” e o autor reconhece que a “música já nos fornece algumas respostas que pertencem mais ao domínio do espontâneo que ao do organizado”. De acordo com Santos, “não existe uma racionalidade única, nem uma única forma de pensar e de viver no mundo. A descoberta de novas formas de coexistência é uma tarefa urgente que não pode ser abandonada à mera espontaneidade, porque exige um mínimo de organização” (SANTOS, 2020, p. 113). Sem pretender organizar a espontaneidade, mas com a vitalidade das ações tentativas, e das experimentações de si e com os/as outro/as, Linn da Quebrada surpreende ao reestabelecer “compromisso com o fracasso, com o erro, com a falha”, pois acredita que seu sucesso denuncia o fracasso desse cistema4 (LINN DA QUEBRADA, 2021a).

É no propósito de buscar o fracasso do “cistema” que o álbum Trava línguas é lançado. Uma proposta de auto reelaboração espaço(corpo)-temporal, que abrange o sentido da espontaneidade da música, da possibilidade de abrir espaço para que “as canções se imponham por seu conteúdo melódico e não por sua tecnicidade” (SANTOS, 2002, p. 113). A música é linguagem com a qual se confronta o mundo “distorcido” pelas normatividades universalizantes. O tempo lento, próprio de cada ser no mundo, constituise como a força dos fracos (SANTOS, 1994), que se expressa na defesa das temporalidades diversas e que se opõem e resistem às imposições de um relógio despótico do mundo (SANTOS, 2001).

Ao dar centralidade à dimensão do corpo na ciência geográfica, evidencia-se a possibilidade do próprio corpo ser considerado como um espaço, mas também como escala síntese privilegiada para a compreensão da natureza do espaço pela via da emoção que nutre a elaboração de futuros abertos. Tanto no que diz respeito às suas ficções no cotidiano, quanto das produções artísticas que estimulam o ser, pensar, cantar e dançar um outro mundo. Uma outra geografia.

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Notas

1 Tradução livre da Citação de Wole Soyinka “A tiger doesn't proclaim his tigritude, he pounces” retirada do texto “A sombra do seu sorriso”, de Sueli Carneiro, publicado originalmente, no correio Braziliense, em 6 de julho de 2011, em homenagem a Milton Santos. A intelectual negra, a partir da metáfora entre tigretude e negritude, afirma sobre Milton Santos: “Negritude, no seu caso, não careceria de afirmação, era pura expressão de racionalidade e sensibilidade humanas em sua acepção maior, construídas possivelmente graças à permanente vigília” (CARNEIRO, 2011, p. 89).
2 A proporção de pessoas pretas ou pardas (que compõem a população negra) cursando o ensino superior em instituições públicas brasileiras chegou a 50,3% em 2018. Apesar dessa parcela da população representar 55,8% dos brasileiros, é a primeira vez que os pretos e pardos ultrapassam a metade das matrículas em universidades e faculdades públicas. A proporção de jovens de 18 a 24 anos pretos ou pardos no ensino superior passou de 50,5% em 2016 para 55,6% em 2018”. As estatísticas são reflexo de “políticas públicas que proporcionaram o acesso e permanências da população preta e parda na rede de ensino” (IBGE, 2018, p. 9).
3 É possível concluir que o corpo negro se move por essa cartografia cultural, consciente ou inconscientemente, em transe ou em trânsito, embalado em trilhas sonoras do Atlântico negro, acústicas e/ou eletrônicas: afoxé, congada, samba, blues, jazz, reggae, funk, samba-reggae, rap, drum’n’bass, etc. (RATTS, 2006, p. 68).
4 Neologismo que faz referência à cisgeneridade do sistema cultural dominante.


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