DOSSIÊ
No documentário "Encontro com Milton Santos: o mundo global visto do lado de cá", de Silvio Tendler, Milton relata que sua opção pela geografia foi a opção pelo moviment.: "Eu acho que foi a opção pelo movimento. O fato de eu ter, quando garoto, me impressionado com essas populações que mudavam de lugar, que se transportavam de um lugar pra outro, acho que isso talvez tenha me dado a dimensão da disciplina" (ENCONTRO, 2006). De fato, a dialética, no pensamento de Milton Santos, se expressa através da ideia de movimento, que, por sua vez, está relacionada à história e à transformação: “A gestação do novo, na história, dá-se, frequentemente, de modo quase imperceptível para os contemporâneos, já que suas sementes começam a se impor quando ainda o velho é quantitativamente dominante. [...] mas a história se caracteriza como uma sucessão ininterrupta de épocas. Essa ideia de movimento e mudança é inerente à evolução da humanidade. É dessa forma que os períodos nascem, amadurecem e morrem” (SANTOS, 2011, p. 141).
Tomando o movimento como pressuposto, e considerando que em 2021 se completaram 20 anos desde que este grande intelectual brasileiro nos deixou, lançamos este dossiê com o intuito de reconhecer como seu pensamento, cuja grande característica foi o engajamento com os problemas do nosso tempo, pode ainda iluminar as questões do presente e indicar possibilidades para o futuro. Os autores e autoras aceitaram o desafio de trazer as contribuições de Milton Santos para outros contextos de leitura, reconhecendo que, se por um lado, a teoria se realiza no concreto, por outro, o encontro com a verdade é sempre, também, um encontro com o futuro.
Para Milton Santos, é função da intelectualidade o casamento permanente com o porvir por meio da busca da verdade. O próprio geógrafo já havia insistido que “toda teoria é sinônimo de teoria revolucionária”, ao passo que o puro “empirismo” se presta “a um objetivo ideológico das classes dominantes” (SANTOS, 2008, p. 106). Assim, por exemplo, mesmo quando destaca a dimensão do cotidiano em sua geografia através da categoria do lugar, não aborda sua concretude a partir do mundo das aparências apenas, do empírico enquanto tal, mas em relação dialética com a outra dimensão que compõe intrinsecamente o espaço, a dimensão do tempo, ou, da história, bem como com outras escalas, a da formação socioespacial nacional e do mundo, mediadas, por fim, pelo que ele nomeou de território usado (o espaço banal, "espaço de todas as dimensões do acontecer, de todas as determinações da totalidade social" - SANTOS, 2000, p. 3).
Assim, o dossiê inicia com a apresentação de quatro artigos que promoveram reflexões de ordem epistemológica acerca da obra de Milton Santos, a começar por “Impressões sobre um lugar para pensar o Brasil e o mundo: acervo Milton Santos no IEB”. A participação no processo de transferência dos arquivos e livros do espaço residencial de trabalho de Milton Santos para o Instituto de Estudos Brasileiros da USP, motivou a reflexão oferecida neste escrito por Manoel Lemes da Silva Neto (PUC - Campinas) sobre a trajetória e o processo de produção intelectual do geógrafo. Em “Formação socioespacial: a antítese do circulacionismo e do pós-modernismo”,José Messias Bastos (UFSC) e João Vitor Sandri Coelho (UFSC) buscam ressaltar a compreensão sobre a centralidade da categoria de formação socioespacial na proposta que Milton Santos lança para a compreensão da realidade. Consideram a categoria como paradigma interpretativo para a Geografia Humana, destacando sua representatividade enquanto herança do materialismo histórico, e evidenciam seu caráter dialético através da primazia da totalidade. No artigo “A virada linguística na filosofia geográfica de Milton Santos”, Rosalvo Nobre Carneiro (UERN) argumenta que a produção miltoniana dos anos 1990 é marcada pela incorporação filosófica da linguagem, da racionalidade e do agir comunicativos em sua geografia. Por sua vez, Anita Loureiro de Oliveira (UFRRJ) e André Luiz Bezerra Tavares (UFRRJ), no artigo ““Me olha de novo?”: sentidos do existir em Milton Santos e Linn da Quebrada, miradas negras em diálogo”, propõem que a consolidação da epistemologia existencial no pensamento de Milton Santos, possibilita a análise de corpo-espacialidades cotidianas plurais, como a revelada pela arte de Linn da Quebrada.
De fato, na produção da década de 1990 do geógrafo brasileiro, a ideia de transformação aparece casada com a dimensão do cotidiano. Milton pensou em possibilidades de transformação da realidade a partir da vida cotidiana enquanto mundo da heterogeneidade criadora, “da produção ilimitada de outras racionalidades”, que abrange também “temporalidades simultaneamente presentes, o que permite considerar, paralela e solidariamente, a existência de cada um e de todos, como ao mesmo tempo, sua origem e finalidade” (SANTOS, 2011, p. 127-128). Elaborou sobre a mutação para o período popular da história a partir da dialética entre o cotidiano e a história no lugar, com a percepção da centralidade da periferia e da cultura popular que "exerce sua qualidade de discurso dos ‘de baixo’, pondo em relevo o cotidiano dos pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da exaltação da vida de todos os dias” (SANTOS, 2011, p. 144). Partindo do lugar vislumbrou a universalidade, não representando um pensamento único, mas a humanidade como um bloco revolucionário. Mas chega a estas conclusões sem negligenciar o papel do Estado e da questão nacional (SANTOS, 2014, p. 245), revelando o quanto ainda é presente, nesta fase, a herança hegeliana que começou a explorar nos anos 70. Com efeito, é como se dissesse, com Hegel, “que a história do mundo” é “apenas a arena na qual o espírito ‘objetivo’” - o Estado - abre caminho “para a reflexão sobre si realizada pela humanidade na esfera do ‘espírito absoluto’” - da arte, da filosofia ... - (PINKARD, 2018, p. 543), o que significa também dizer que o Estado não deve ter uma configuração infinita (LOSURDO, 1987, p. 117-118).
Estas relações entre lugar, cotidiano e transformação aparecem no artigo “Tecnologia da sobrevivência: saberes e novos usos na ocupação Cidade Locomotiva em Ribeirão Preto/SP”, em que Helena Rizzatti (UEM) desenvolve o conceito de “tecnologia da sobrevivência” a partir do encontro entre a teoria miltoniana e a realidade cotidiana de um lugar. Para a favela, é lançado um olhar dialético, posto que resiste e ao mesmo tempo reproduz a urbanização corporativa brasileira. Este artigo, junto com o de Sérgio
Henrique de Oliveira Teixeira (UNILA), “O pensamento de Milton Santos e a análise crítica do planejamento corporativo do território”, demonstra a força que o pensamento de Milton mantém para o estudo de realidades urbanas. Neste último, o autor analisa a contribuição de Milton Santos para o campo do planejamento territorial, mobilizando categorias miltonianas para compreensão do papel assumido pelo planejamento urbano hegemônico enquanto transmissor do glabalitarismo.
Insurgente a este globaritarismo, Milton Santos propôs uma outra globalização que, por sua vez, supõe que “a centralidade de todas as ações seja localizada no homem” (SANTOS, 2011, p. 147). Através de sua teoria, Milton defendeu a superação da tirania do dinheiro e da informação através de uma Geografia do homem. De fato, não só a Geografia Humana em suas muitas particularidades, se ocupa dos problemas sociais que tocam a todos os homens e mulheres, mas também a geografia como um todo, uma vez que não existe ciência, mesmo a mais ocupada com fenômenos estritamente naturais, que não se volte para os problemas da humanidade. E é partir daqui que emergem muitas questões próprias do saber geográfico, novas e antigas, como a questão das assimetrias de poder e riqueza entre os países e blocos de países, entre diferentes regiões no interior de um mesmo país e até de uma mesma cidade, mas também as atuais questões em torno das discriminações de gênero e raça, o problema das migrações e ainda a importantíssima questão ambiental e da transição ecológica hoje em debate no mundo.
As desigualdades sociespaciais são enfocadas no artigo de Luiekakio Afonso (UAN - Angola) “Uma leitura da urbanização recente da cidade de Luanda a partir da teoria dos dois circuitos da economia urbana”. O autor faz uma leitura da urbanização de Luanda com suporte da teoria dos dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos, onde identifica e analisa suas profundas desigualdades.
Marina Araújo (UFMG) e Fábio Tozi (UFMG) também se apoiam na teoria dos dois circuitos para analisar a implantação da rede KFC em Belo Horizonte, bem como de outras redes de franquias e estabelecimentos que mimetizam seu conceito, porém, antecederam o original. Assim, elementos dos dois circuitos coexistem no território, formando novas composições, como demonstra o artigo “A rede KFC em Belo Horizonte (MG): uma leitura a partir da teoria dos circuitos da economia urbana”.
Um tema de grande destaque na obra de Milton Santos foi o das técnicas. O mundo contemporâneo para o geógrafo brasileiro é formado por um sistema de técnicas presidido pelas técnicas da informação que passam a “exercer um papel de elo entre as demais” (SANTOS, 2011, p. 142) - técnicas, estas, inseparáveis da política. “A informação, sobretudo a serviço das forças econômicas hegemônicas e a serviço do Estado, é o grande regedor das ações que definem as novas realidades espaciais” (SANTOS, 2014, p. 285). Se a lógica da informação pode servir para a construção de espaços pouco centrados nas pessoas, as diferentes lógicas de circulação de informação guardam também um elemento transformador, sendo capazes de impor “novos mapas ao mesmo território”. Portanto, pensar o lugar da comunicação e do ecossistema midiático na construção das nossas sociedades faz-se um esforço crucial.
É o que objetiva o artigo “O novo e o velho na organização da mídia no território brasileiro: contribuições para a leitura da conjuntura atual a partir de Milton Santos”, de André Pasti (UFABC). No escrito, o autor busca contribuir para a leitura da atual conjuntura política brasileira, relacionando território e informação.
Por fim, a relação entre a técnica e as políticas públicas é promovida nos dois últimos artigos do dossiê. Em “Tecnologias da informação e conhecimento geográfico: análise do uso das geotecnologias a partir da obra de Milton Santos”,Marcel Petrocino Esteves (UNICAMP) apresenta possibilidades de emprego de tecnologias da informação como subsídio para as políticas públicas territoriais, a partir de uma análise das contradições emergentes de sua aplicação em processos de reconhecimento do espaço. Catia Antonia da Silva (UERJ) busca compreender as mutações recentes engendradas pela técnica no mundo do trabalho e no acesso a políticas públicas trabalhistas e previdenciárias em “Milton Santos e Século XXI: meio técnico científico informacional para a compreensão do presente-futuro”.
Em adição aos 11 artigos que compõem o dossiê, é com alegria que recolocamos em circulação ideias contundentes de Milton Santos transmitidas pela emoção característica de sua fala, através da transcrição da conferência “Nuevas concepciones de la Geografía", proferida no V Encontro de Geógrafos da América Latina, realizado em
Havana (Cuba) em 1995. Tal conferência, que antecede a publicação de A “Natureza do Espaço”, foi transcrita e publicada originalmente em 2005 pelo Professor Alvaro López Gallero, da Universidade da República (Montevidéu - Uruguai), entretanto, não podia ser encontrada em meios digitais.
Encerrando o conteúdo do dossiê, Gabriel Carvalho da Silva Leite (UFPA) nos apresenta a resenha do mais recente livro de Pedro de Almeida Vasconcelos “O universo conceitual de Milton Santos”.
Após este percurso entre os 11 artigos que exploraram tão rigorosamente a fertilidade do pensamento de Milton Santos, reencontrando toda a energia transmitida através de sua fala e, por fim, revisitando sua trajetória através da resenha apresentada, nós, organizadores, nos sentimos muito agradecidos e satisfeitos com o resultado desta proposta cujo objetivo foi homenagear e festejar a obra, o legado e, afinal, a presença de Milton Santos.
Referências
ENCONTRO com Milton Santos: o mundo global visto do lado de cá. Direção de Silvio Tendler. Rio de Janeiro: Caliban, 2006. (99 min.), son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ifZ7PNTazgY. Acesso em: 10 mar. 2021
LOSURDO, Domenico. La catastrofe della Germania e l’immagine di Hegel. Milano: Istituto Italiano per gli Studi Filosofici: Napoli/Guerini e Associati, 1987.
PINKARD, Terry. Hegel. Il filosofo della ragione dialettica e della storia. Trad. S. Di Bella, Milano: Hoepli, 2018.
SANTOS, Milton. O papel ativo da geografia: um manifesto. XII ENCONTRO NACIONAL DE GEÓGRAFOS, 12., Florianópolis, 2000. Anais [...]. Florianópolis: [s.l.], 2000. Disponível em: http://miltonsantos.com.br/site/wp-content/uploads/2011/08/O-papel-ativo-da-geografiaum-manifesto_MiltonSantos-outros_julho2000.pdf. Acesso em: 10 mar. 2021.
SANTOS, Milton. Por uma geografia nova. São Paulo: Edusp, 2008.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2011.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2014.