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Recepção: 10 Janeiro 2023
Aprovação: 16 Maio 2023
Resumo: O documentário O dilema das redes (Jeff Orlowski, 2020) trata de temas como manter o usuário conectado o máximo de tempo nas redes sociais, a extração contínua de dados e a ameaça à democracia. Para isso, o filme emprega elementos ficcionais e não-ficcionais. Este trabalho debate alguns de seus elementos ficcionais, como as encenações, bem próximas do docudrama. Nossa hipótese é que, ao centrar a trama ficcional no indivíduo e suas ações, intensifica-se o processo de identificação da recepção e de leitura realista-emocional-educativa da audiência, oxigenando, por consequência, o espectro do docudrama, tanto na realização, quanto no seu debate analítico-teórico.
Palavras-chave: Documentário, Docudrama, Melodrama, Redes sociais.
Abstract: The subject of the documentary The social dilemma (Jeff Orlowski, 2020) is how social media were designed to keep people connected all the time. It further discusses continuous data obtainment and the threat to democracy. The film uses fictional and non-fictional elements to reach this debate. In this paper, we aim to discuss some of its fictional elements such as resources of enactments which resembles docudrama. Our hypothesis is that the process of identifying the reception and realistic-emotional-educational reading of the audience is intensified when the plot focuses on the individual and its actions. Consequently, there is a renewal of the docudrama spectrum, both in terms of production and in its analytical-theoretical debate.
Keywords: Documentary, Docudrama, Melodrama, Social Media.
Resumen: El documental El dilema de las redes (Jeff Orlowski, 2020) trata sobre cómo las redes sociales fueron estructuradas para mantener al usuario conectado el máximo de tiempo posible, así como para la extracción continua de datos, y la amenaza a la democracia. Para ello, la película utiliza elementos ficcionales y no ficcionales. En este trabajo, trataremos de algunos de sus elementos ficcionales, más específicamente de los recursos de escenificaciones, muy cercanos al docudrama. Nuestra hipótesis es que el proceso de identificación de la recepción y lectura realista-emocional-educativa de la audiencia se intensifica cuando la trama se centra en el individuo y sus acciones. En consecuencia, se produce una renovación del espectro del docudrama, tanto en términos de producción como en su debate analítico-teórico.
Palabras clave: Documental, Docudrama, Redes Sociales.
Introdução
O documentário O dilema das redes (Jeff Orlowski, 2020), disponibilizado no Brasil pela plataforma digital Netflix, trata de como as redes sociais digitais foram estruturadas para manter o usuário conectado o máximo de tempo para a contínua extração de dados (data exhaust) e para o uso delas, a partir de um novo modelo de negócios do capitalismo de vigilância (Zuboff, 2018). Alerta também para as consequências que podem advir desses usos.
Para isso, a obra fílmica se vale de elementos ficcionais e não-ficcionais. Neste trabalho, trataremos de alguns dos seus elementos ficcionais, mais especificamente dos recursos de encenações, bem próximos de características da narrativa docudramáica. Optamos por embasar a análise da ficção presente em O dilema das redes a partir de aspectos do docudrama, em função de esse gênero fílmico usualmente apresentar uma narrativa de caráter persuasivo, que convida o espectador a acreditar que a situação acontece tal como é contada na história criada, e adequada ao propósito desta investigação.
O modo como o filme faz uso de elementos presente em docudramas, ao intercalar as encenações com os depoimentos que enunciam um discurso de autenticidade do documentário (Nichols, 2016), aproxima o espectador e facilita seu entendimento sobre um assunto de ordem bastante abstrata, mas totalmente integrada ao cotidiano atual: a atuação dos algoritmos, a extração dos dados e as alterações estruturais que as novas tecnologias digitais e seus novos modelos de negócios vêm promovendo nos âmbitos individuais e coletivos. O nosso debate se concentra no modo como o filme materializa tal abstração.
A encenação que entrecorta as entrevistas e auxilia na construção do pontode vista da obra é um recurso fílmico auxiliar neste documentário, mas não menos importante, visto que a persuasão é uma característica estruturante tanto do documentário quanto do docudrama (Lipking, 2002). Estruturante no sentido de que a escolha estética sobre a história a ser contada e a forma de contá-la influencia na relação entre o espectador e o discurso fílmico – o que impacta na identificação do espectador com a situação representada e o conduz a uma interpretação educativa (Fuenzalida, 2008).
O enredo ficcional de O dilema das redes se constrói por meio da história de uma família que vive dilemas relativos ao uso das redes sociais digitais e suas consequências. Dessa forma, parece-nos pertinente entender como esses mecanismos fílmicos estão estruturados no documentário pelo levantamento de suas características e identificação delas na obra.
O dilema das redes se debruça sobre um assunto real do mundo histórico atual, que são os efeitos das mídias sociais na sociedade. Efeitos decisivos no âmbito da modulação deliberada de comportamentos dos indivíduos e de ameaça à democracia. Para isso, o documentário realiza entrevistas com pessoas que trabalharam no desenvolvimento de plataformas como Google, Gmail, Facebook, Twitter, Instagram, Pinterest, Youtube, entre outras, além de estudiosos do tema e ativistas. Os depoimentos alertam o espectador sobre o risco que ele corre, quando inserido nesse mundo digital. A encenação ficcional, representada pela família de Bem (um adolescente que faz uso frequente das redes sociais), reforça esse ponto de vista do filme ao acionar elementos para que o espectador se identifique com personagens ou situações por eles vividas, a fim de reforçar esse direcionamento discursivo de alerta sobre o dilema que é usar as plataformas digitais, que foram desenhadas para viciar e modular comportamentos.
A análise fílmica adotada neste trabalho segue as recomendações Jacqueis Aumont e Michel Marie (2004). Como postulam os autores, quando se analisa um filme, é importante identificar como os materiais fílmicos imanentes remetem a um significado cuja matéria prima é de ordem estética e discursiva, para, a partir daí, extrair interpretações que funcionarão como “motor imaginativo e inventivo da análise” (Aumont e Marie, 2004, p. 15). Em sua relação com a teoria, a análise fílmica pode aproximar, fornecer, aperfeiçoar ou contestar pressupostos teóricos. Isso faz com que o documentário aqui em foco acene para a importância da articulação entre imagem, som e depoimentos por meio de uma montagem para debatermos, primeiramente, a estrutura narrativa do docudrama, seus objetivos moralizantes e a aposta no melodrama como um recurso que engaja o espectador ao argumento central do filme, sem perder de vista que um filme não existe por si, dissociado de suas condições de realização e circulação.
Esse aspecto será útil para a apreensão do modo como O dilema das redes lança mão de recursos ficcionais numa narrativa documental e, assim, expandir os limites e o alcance do próprio docudrama tanto do ponto de vista empírico quanto teórico.
Possíveis relações entre documentário e docudrama
Um documentário tem como base a produção de uma narrativa audiovisual sobre um assunto real, de uma pessoa, de um fato. Diferente dos filmes de ficção, os documentários não abordam um mundo imaginário, criado pelo cineasta. São obras que tratam do mundo em que vivemos e transmitir impressão de autenticidade deve estar na sua gênese (Nichols, 2016). No entanto, não deve ser entendido como um filme que revela a verdade sobre um acontecimento ou como a reprodução fiel da realidade (Nichols, 2016) – discussão já apaziguada nas pesquisas sobre o gênero. Trata-se de uma representação do mundo em que vivemos, “mediada por um cineasta que exerce uma relação de poder e responsabilidade ética com a vida daqueles que são representados no filme” (Santos, 2010, p. 72).
São obras fílmicas que defendem uma visão do mundo, reivindicam uma abordagem do mundo histórico e a capacidade de intervenção nele, moldando a maneira pela qual o vemos (Nichols, 2016).
A representação do real, contida num documentário sob um ponto de vista construído nos coloca de frente a uma questão que Nichols (2016) propõe: todo filme é um documentário, na medida em que as obras fílmicas, mesmo as de ficção, revelam atributos de uma cultura e características de indivíduos ali representados. Os documentários estão divididos entre os de satisfação de desejo (que seriam os filmes de ficção) e os de representação social (que seriam os de não-ficção). De outra forma: a indicialização de elementos da cultura manifestada em obras fílmicas ficcionais fragiliza a fixação de “fronteiras bem delimitadas” entre filmes de ficção (como sendo “necessariamente algo imaginado”) e os de não-ficção (como representação do real) (Santos, 2010, p. 71). Nessa perspectiva, vale ressaltar que, apesar de se tratar de um gênero fílmico de não-ficção, documentários podem, sem grandes problemas, usar elementos e técnicas ficcionais na composição das suas narrativas.
É no âmbito da representação do real (com ou sem elementos de ficção) e da presença de traços culturais em obras fílmicas ficcionais que o documentário encontra esse gênero considerado híbrido, o docudrama. Dito de outro modo, podemos vislumbrar uma intersecção do docudrama com o campo do documentário ao partir do pressuposto de Nichols (2017) de que todo filme revela, de certa maneira, atributos de uma cultura e características individuais; da fragilização de fronteiras entre ficção e não-ficção que a indicialização desses atributos culturais podem ter como consequência, segundo Santos (2010); e da interferência no mundo que Lipking (2002) e Fuenzalida (2008) defendem como característica do docudrama por meio da convicção que pretendem no público – que é também um atributo de filmes documentários.
Docudrama é considerado um tipo de gênero fílmico híbrido que se encarrega de criar uma ficção a partir de fatos acontecidos no mundo histórico. Fatos de relevância para a opinião pública, para a história ou ainda bastante dramáticos. Filmes desse gênero podem ser considerados de ficção ou estar numa fronteira entre ficção e não-ficção, justo por trazerem elementos que os aproximam também de documentários.
De forma análoga, o docudrama também representa o mundo histórico e social e é potencialmente capaz de intervir nele, haja vista o número de foragidos da justiça que foram capturados pelas autoridades judiciais após as exibições em rede nacional do programa Linha Direta (Santos, 2010, p. 73, grifo do autor).
Na pesquisa sobre o documentário, o docudrama ocupa uma posição marginal. Há importantes estudos, tanto no contexto estrangeiro (Rosenthal, 1999) quanto brasileiro (Santos, 2010), porém uma aproximação entre a produção e a reflexão revela um significativo descompasso entre ambos, com maior peso para a primeira em detrimento da segunda, o que sinaliza para a necessidade de mais pesquisas sobre ele. Algumas hipóteses nos ajudam a compreender esse lugar à margem que o docudrama ocupa na pesquisa sobre o documentário: o docudrama perderia o seu valor documental ao recorrer explicitamente à ficção – uma justificativa que só sobreviveria no senso comum, pois, na prática, o documentário se utiliza de elementos ficcionais desde Nanook, o esquimó (Robert Flaherty, 1922), primeiro documentário da história do cinema. Outra possibilidade, apontada por Santos (2010), diz respeito à resistência de muitos pesquisadores do campo do cinema em se voltar para uma modalidade audiovisual que encontra na televisão seu maior difusor. Nosso intuito, portanto, é contribuir para minimizar essa lacuna, ainda que estejamos cientes do enorme desafia que apresenta.
Embora a dramatização presente no documentário O dilema das redes não seja exatamente a criação de uma ficção a partir de acontecimentos reais, mas baseada em assunto pertencente ao mundo histórico atual, percebemos que essa ficção se refere a situações que podem estar presentes no mundo real contemporâneo com características narrativas similares às do docudrama. Não se trata de verossimilhança, mas de situações com as quais o espectador possa se identificar e que possam produzir uma interpretação (Fuenzalida, 2008) a partir da narrativa.
Em sua análise do desenvolvimento da produção de docudrama, Mercadé, Puig e Álvarez (2012) apontam que houve um distanciamento de elementos documentais e mais aproximação com os elementos ficcionais: o gênero foi sofrendo maior dramatização, especialmente desde os anos 1980, com a influência marcante das obras norte-americanas. Vale ressaltar que, como houve uma prevalência televisiva dos docudramas, a maioria dos autores aqui citados voltaram seus estudos para obras feitas para o formato da televisão – à exceção de Lipking, que analisa filmes cinematográficos em longa-metragem.
Quando vemos um dos algoritmos enviando uma notificação ou vídeo a Ben (adolescente que frequentemente usa as redes sociais digitais) para que ele fique mais tempo no celular, muitas vezes Ben volta a sua atenção ao aparelho, como na cena em que ele conversa com seu amigo sobre Rebecca. A cena do diálogo é intercalada com a da sala dos A.I.s: os algoritmos (encenados por atores) conversam entre si, dizendo que está na hora do intervalo da aula de Ben e resolvem enviar uma notificação sobre Rebecca, já que a localização deles está próxima. Ben interrompe a conversa para ver a notificação do celular. Aqui, o filme tenta estabelecer para o espectador uma sensação de êxito da tecnologia. Outro reforço desse ponto de vista são as orientações da irmã mais velha de Ben, Cassandra, que sempre o alerta sobre o mal do celular.
Esse alerta de Cassandra é um elemento importante já que ela e Ben passarão juntos por uma situação indesejada e desconfortável, que, segundo a trama, foi provocada pela manipulação dos algoritmos. Ben, curioso, já tendo recebido (pelos algoritmos) e visto muito conteúdo sobre os Radicais do Centro, vai ao protesto marcado por esse grupo. Passeia por entre as pessoas como se quisesse entender aquela manifestação. Ben não tem cartaz, nem está gritando palavras de ordem. Só observa. Em certo momento, há uma confusão e os policiais começam a reprimir os manifestantes. Ben é empurrado e cai no chão. Cassandra, que por acaso passa de carro pela manifestação, sai do carro em busca dele, como se o fosse tirar dali. Ela vê o irmão e grita seu nome. Ben se levanta para ir ao encontro de Cassandra, mas um policial o detém, colocando-o de joelhos, algemando-o e fazendo com que fique deitado no chão. Cassandra, indo ao encontro do irmão, esbarra numa policial, que também a detém, algemando-a e colocando-a também deitada no chão também.
Os dois irmãos, em câmera lenta e numa montagem de campo e contracampo dos seus rostos, se olham, assustados. A sequência é carregada de emoção e drama, intercalada por imagens de arquivo de outra manifestação real com pessoas detidas da mesma forma. Não tem um ritmo vertiginoso, como nos filmes de ação, no entanto, a trilha é bastante dramática. Podemos inferir a interpretação educativa e moralizante que a cena pretende: seguir os Radicais do Centro, negar vacina e a ciência, acreditar em desinformação podem se reverter em situações constrangedoras.
Essa sequência ilustra o fato de que o docudrama, em sua representação do real, deve ser visto para além de sua potencial função de documento. Compartilhamos com Lipking que essa perspectiva embota a interligação dos elementos narrativos e não-ficcionais no docudrama como um sistema geral, que é audiovisual e midiático. Desconsiderar essa interligação seria, portanto, uma negligência aos usos e desdobramentos do docudrama na construção de pontos de vista, uma vez que “os componentes narrativos do personagem, conflito e resolução não podem ser separados da visão de realidade que eles encaminham” (Lipking, 2002, p. 4, tradução nossa). A renovação deste gênero audiovisual passa pela experimentação de suas formas narrativas e de representação. Isso implica que o registro como documento é importante, sem dúvida, mas não suficiente. Ultrapassar as fronteiras já consolidadas pelo gênero é uma forma de também oxigená-lo. Nessa direção, ao recorrer às encenações, não para representar uma realidade pré-existente, mas para materializar um acontecimento abstrato (a ação dos algoritmos), por meio da imagem e do som, esse documentário acena para outras possibilidades do docudrama, assim como para novas conexões com outros formatos da cadeia audiovisual.
Em O dilema das redes, os elementos ficcionais são peças que compõem esse sistema geral a que Lipking (2002) se refere, na medida em que intensificam a defesa do argumento central do filme. A aproximação entre documentário e docudrama deve ser vista na relação que os dois gêneros estabelecem com o mundo histórico: o primeiro, na medida da sua representação; o segundo, na medida em que os filmes recorrem a semelhanças diretas e motivadas, advindas do real para recriar uma história – com a mesma importância do documentário (Lipking, 2002).
Na práxis humana atual, as redes tentam manter a atenção dos usuários por mais tempo possível. Essa tentativa é para que, em momento oportuno, quando o usuário estiver suscetível (bastante engajado), sejam enviados anúncios comerciais para ele. No filme, os algoritmos de Ben leiloam a sua atenção a anunciantes; o anunciante que melhor pagar por ela tem seu anúncio enviado a Ben. Nesse sentido, a sala dos algoritmos comemora cada objetivo alcançado, que é vender a atenção de Ben aos anunciantes. Há uma cena específica em que o algoritmo do crescimento pergunta aos outros dois se eles já se perguntaram se a linha do tempo faz bem a Ben. Seus outros dois colegas de trabalho se entreolham surpresos pela pergunta e respondem não. O que fez a pergunta dá um sorriso sem graça e, constrangido, segue trabalhando. Essa curta passagem explicita que a escolha de humanizar os algoritmos pode impedir ou dificultar o entendimento sobre o funcionamento desses mecanismos – já que a pergunta prenuncia uma questão de ética e esse tipo de questionamento advém da natureza humana e não da natureza maquínica.
Na sala dos algoritmos, além dos elementos de monitoramento e controle, há um espaço no qual é projetado um avatar de Ben, como se fosse uma holografia digital. Inicialmente, esse avatar é todo azul, sem nenhuma definição que o remeta a Ben. Ao longo do filme e da atuação dos algoritmos nos cliques do adolescente, o avatar vai ficando cada vez mais parecido com Ben: roupas, cabelo, tênis, fisionomia. A constituição do perfil digital de Ben vai-se fazendo aos poucos, a cada situação criada pelo filme que envolva a relação de Ben com a tecnologia. Próximo ao final do documentário, quando Ben e sua irmã passam pela situação da manifestação, o avatar dele ganha suas feições. Esse elemento visual e narrativo reforça o discurso do documentário: alertar as pessoas sobre a influência da tecnologia na vida cotidiana, uma vez que, ao juntar dados pessoais e sensíveis, o sistema algorítmico compõe um perfil do usuário das plataformas digitais e consegue direcionar de forma mais precisa conteúdos mais fáceis de assimilar, podendo chegar 1a modulação de comportamento por predição.
Assim, quando Fuenzalida (2008) defende que o docudrama é uma encenação de situações cotidianas, cuja narrativa alude à práxis humana, sem ritmo vertiginoso e com protagonistas que vivem fortes emoções e grandes incertezas, percebemos que a trama ficcional de O dilema das redes lança mão desses recursos do docudrama, embora seja um documentário. Isso permite considerar a práxis humana para além de sua materialidade física, pois os algoritmos não existem per se, mas como resultado do desenvolvimento tecnológico realizado pelo homem. A busca por uma representação acessível sobre o seu modo de funcionamento para o grande público – não podemos esquecer que o filme foi lançado pela Netflix – é importante e merece uma análise mais detalhada, ainda que passível de críticas.
Nos instantes finais do filme, entrevistados falam sobre o modelo de negócio corrosivo de extração e uso de dados para a modulação de comportamento das pessoas e a consequente destruição da democracia: se nós criamos, nos podemos mudar. Essa frase é de Tristan Harris, cientista da computação que já atuou no departamento de design ético do Google. Durante uma de suas falas, aparecem encenações com pessoas ao redor de uma estação de trabalho com algumas telas. A pessoa que está sentada digita algo (enquadramento nas mãos, que estão no teclado) e para um tempo antes de apertar o enter. É como se ela representasse a mudança ética de paradigma (o filme deixa em aberto se é uma personagem de uma programadora que tenha sugerido um designer mais ético de alguma plataforma). Ao apertar o enter, a sala dos algoritmos começa a falhar. luzes e painéis piscam, mostrando que estão falhando (por causa do enter), os algoritmos se entreolham sem saber o que está acontecendo e começam a falhar também até que desaparecem, ficando apenas o algortimo do engajamento. Sua roupa fica branca, sem blazer.
Os painéis com dados de Ben somem. O avatar de Ben já não tem as telas ao seu redor e ele está completamente humanizado, seus movimentos não são mais semelhantes aos de um robô. O avatar, que sempre esteve suspenso, toca os pés no chão e desce da plataforma. Vai ao encontro do algoritmo com roupa branca e ambos ficam frente a frente. Um dos entrevistados fala que é necessária a mudança e que não devemos ser tratados como recurso de extorsão e que é a crítica que leva à melhoria. Nesse momento, o algoritmo olha no olho de Ben e diz: “Olá!”
Nota-se, nessa sequência, uma perspectiva moral e uma estética que moraliza o melodrama acionado pelo docudrama. Isso remete à discussão encaminhada por Santos (2010), que argumenta: enquanto o documentário define sua posição com imagens indexais, o docudrama geralmente se constrói numa perspectiva moral e numa estética moralizante, com argumentos e metáforas poderosas e atrativas. Isso pode ser ilustrado na sequência antes comentada, em que a mudança se dá por meio da disputa do “bem” versus o “mal”, uma forte característica do melodrama, e cuja indicação para o espectador da “vitória” do primeiro se dá quando dois algoritmos desaparecem, momento marcado pela cor branca, numa associação que sugere neutralidade ou paz. Ao fazer uso de recursos do melodrama para compor sua estratégia retórica e persuasiva, o docudrama apresenta pontos de contato com a instância melodramática, como o apelo às emoções e a rivalidade bem versus mal, porém isso não autoriza um nivelamento entre ambos. Em outras palavras, todo docudrama é melodramático, mas o inverso já não se confirma porque é preciso considerar também as formas narrativas. O melodrama é um gênero que se adequa a inúmeros formatos, dos textuais aos audiovisuais, enquanto o docudrama só pode ser concebido por meio da imagem e do som.
Outro aspecto da narrativa docudramática a ser destacado é a escolha dos atores e a motivação dos personagens. Em O dilema das redes, os atores não são celebridades, mas profissionais desconhecidos. Apesar de Ben ser um personagem sem uma clara motivação, se entendermos que os algoritmos estão induzindo-o a mudar de comportamento, podemos tomá-los como carregados de uma motivação clara: a manipulação.
Quanto às causas dos acontecimentos, elas parecem divididas entre as de origem pessoal, quando Ben decide ver as notificações e vai vendo os conteúdos dos Radicais do Centro até o ponto de ir à manifestação organizada por eles; e também podem ser atribuídas aos algoritmos, parte de uma estrutura tecnológica que tem como objetivo modular o comportamento das pessoas – de acordo com os entrevistados.
Já os traços interpretativos seguem as convenções do docudrama, orientadas a um fim comercial (Mercadé, Puig e Álvarez, 2012, p. 128): é comum que o caráter melodramático construa vítimas que lutam e viram mártires ou heróis que conseguem uma vantagem moral e política, assumindo um papel de liderança no grupo a que pertence (Mercadé, Puig e Álvarez, 2012, p. 128). Ben tampouco é a vítima que serve de exemplo ao espectador, no entanto ele não vira herói ou mártir, muito menos tem qualquer vantagem política ou moral. Ele é o protagonista de uma história com fins morais, vencido pela tecnologia perversa.
A fim de orientar o espectador, O dilema das redes cria para o público a encenação do que seria a ação dos algoritmos na vida de Ben, conjugada com os efeitos que a tecnologia tem em seu cotidiano. É como se cada pessoa ou família que assistisse ao documentário pudesse se identificar com algum personagem daquela família ou localizar alguém em situação análoga, seja como a mãe de Ben, preocupada com os efeitos das redes sociais na vida dos filhos; seja como Cassandra, irmã mais velha, que não usa celular por entender seus possíveis efeitos (mas usa a internet no computador, o que não a deixa fora das atualizações do mundo). É ela quem alerta a mãe e o irmão sobre isso. Finalmente, seja na pré-adolescente Isla, que não consegue passar um jantar cotidiano em família sem o celular.
Há uma cena em que a mãe coleta o celular de todos, trancando-os num cofre por uma hora, até que terminem de jantar. Mas Isla quebra o cofre e resgata seu celular. Há também uma outra cena em que Isla sofre sozinha com comentários jocosos da sua rede social sobre suas orelhas grandes que aparecem num post com uma foto sua. Assim, essa história (mesmo não sendo a recriação de um fato real) é repleta de elementos da narrativa do docudrama e que esses elementos mostram uma escolha do realizador em apoiar-se no melodrama para provocar no espectador reflexões sobre o dilema de usar as redes sociais, que qualquer família pode estar atualmente vivenciando.
Considerações finais
Este trabalho se debruçou sobre os elementos e os recursos fílmicos de encenação ficcional do documentário O dilema das redes para identificar como ele trata os assuntos referentes às tecnologias digitais incorporando a história fictícia de uma família que vive o dilema de usar as redes sociais digitais. Para isso, trouxemos à discussão o conceito e as características da narrativa melodramática do docudrama, presentes no gênero do docudrama, cuja função é convencer o espectador de que o uso das redes sociais traz consequências importantes, mesmo que isso implique construir uma representação distorcida de como funcionam os algoritmos.
O docudrama adaptou a estrutura narrativa de personagem/conflito/encerramento – clássica do folhetim e depois adaptada pelo cinema – para configurações de vítima/julgamento/articulação. Nessa estrutura, estão presentes julgamentos ou encaminhamentos morais, próprios do docudrama, ideologicamente enraizados nesse gênero híbrido que reúne realidade e encenação. Isso pode ser identificado na narrativa de O dilema das redes, com uma representação frequente da vida doméstica, e também a partir do favorecimento de histórias sobre homens, centrando-se em vítimas ou sobreviventes.
Além disso, a análise revela que tanto o docudrama quanto o campo do documentário são fecundos para que outros trabalhos acadêmicos explorem o uso criativo, incomum e inovador que a cinematografia faz dos elementos de diferentes gêneros ao misturá-los em suas narrativas, promovendo, por consequência, a oxigenação das formas de fazer e analisar o docudrama ou filmes que recorram à sua matriz temática ou estrutural, sempre ligadas a histórias extraordinárias que tiveram repercussão social, que mexeram com a opinião pública.
Dessa maneira, a partir das características do docudrama, tomadas aqui como ferramentas de análise, identificamos a presença de uma narrativa melodramática no documentário O dilema das redes e compreendemos como o filme a utiliza como potência persuasiva para que o espectador seja afetado pelo alerta sobre os danos causados pelo uso das redes sociais.
Notamos também a convergência entre a persuasão dos argumentos emocionais da encenação e a lógica argumentativa racional das entrevistas, que se complementam e se reforçam para a constituição de um ponto de vista do filme. A ficção aqui serve como uma metáfora, capaz de envolver e convencer o espectador frente ao dilema das redes. Por isso não é gratuito que a trama da ficção esteja centrada em um indivíduo e suas ações, numa tentativa de potencializar o processo de identificação da recepção e de leitura realista-emocional-educativa da audiência.
Referências bibliográficas
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O DILEMA das redes. Direção: Jeff Orlowski Produção: Netflix, Intérpretes: Skyler Gisondo, Kara Hayward, Vincent Kartheiser Roteiro: Jeff Orlowski e Daves Coombe Los Gatos: Netflix, 2020. (94 min), color.