Comunicação, Gêneros e Sexualidades
O Centauro e as experiências entendidas: um episódio da protoimprensa gay brasileira
Esferas
Universidade Católica de Brasília, Brasil
ISSN-e: 2446-6190
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 1, núm. 27, 2023
Recepção: 10 Janeiro 2023
Aprovação: 13 Junho 2023
Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar o conceito de protoimprensa gay brasileira, utilizando como objeto de análise uma edição d’O Centauro, periódico homossexual de 1968. Utilizando como método a pesquisa bibliográfica e elementos das análises de conteúdo e do discurso foi possível compreender que os estereótipos servem como ferramentas para a diferenciação ou reconhecimento de pessoas integradas ou de fora do grupo. Como resultado foi possível identificar uma mimetização dos conteúdos deste veículo com um formato jornalístico tradicional, a coluna de mexericos, derivação das colunas sociais.
Palavras-chave: Comunicação, Jornalismo, Imprensa Gay, Homossexualidade, Protoimprensa.
Abstract: This paper aims to present the concept of the Brazilian gay proto-press, using as an object of analysis an edition of O Centauro, a homosexual periodical published in 1968. Using bibliographic research and elements of content and discourse analysis, it was possible to understand that the Stereotypes serve as tools for differentiating or recognizing people in or out of the group. As a result, it was possible to identify a mimicry of the contents of this vehicle with a traditional journalistic format, the gossip column, a derivation of social columns.
Keywords: Communication, Journalism, Gay press, Homosexuality, Gay protopress.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo presentar el concepto de protoprensa gay brasileña, utilizando como objeto de análisis una edición de O Centauro, periódico homosexual publicado en 1968. A través de una investigación bibliográfica y elementos de análisis de contenido y discurso, fue posible comprender que los Estereotipos sirven como herramientas para diferenciar o reconocer a las personas dentro o fuera del grupo. Como resultado, fue posible identificar un mimetismo de los contenidos de este vehículo con un formato periodístico tradicional, la columna de chismes, una derivación de las columnas sociales.
Palabras clave: Comunicación, Periodismo, Prensa gay, Homosexualidad, Protoprensa gay.
Introdução
Este trabalho[1] analisa como um dos primeiros periódicos dedicados à temática gay trazia ao público suas sociabilidades, assim como discutia temáticas ligadas ao universo homossexual da época. Para essa reflexão foi selecionado o periódico O Centauro, de setembro de 1968, disponível para consulta no Arquivo Edgard Leuenroth, localizado na Universidade de Campinas, em São Paulo.
Dividido em duas partes, a primeira traz a apresentação do veículo, assim como suas características materiais e de conteúdo. Na seguinte, são apontados os estereótipos identificados, explicitando o método utilizado e análise dos resultados encontrados.
Longe de pretender encerrar a temática, este artigo objetiva suscitar possíveis discussões sobre esses discursos, suas aproximações e os distanciamentos daquilo que se compreende como jornalismo e imprensa. Do mesmo modo, apresentar que mesmo não estando estritamente relacionados aos processos da acurácia jornalística (Chaparro, 2008), permitiram estabelecer a proximidade informativa com o valor real da informação, pois tinham como proposta expor, divulgar, exprimir e relatar aos integrantes e seus respectivos grupos, além de outros participantes do círculo homossexual da época, acontecimentos cotidianos da comunidade, justificando aquilo que denominamos protoimprensa gay brasileira.
Protoimprensa gay brasileira
A falta de exemplares preservados torna a apresentação dessa publicação um desafio, sendo difícil compreender a continuidade ou descontinuidade dos assuntos, já que possuímos apenas uma edição d’O Centauro. A descrição se deu, portanto, com base na única edição disponível, além de referências bibliográficas que abordam esse período histórico, que também se mostram raras.
Vale em primeiro momento destacar a razão de considerar esse periódico artesanal como um integrante de um movimento coeso de uma série de publicações com as mesmas características, integrantes de uma protoimprensa. Em primeiro lugar os destaques, como já referidos, estão nas questões da acurácia e do processo jornalístico para a produção dos conteúdos. Como caracterizado na literatura sobre o tema, disponíveis em Green (2019), Fry (1982 e 1983), Macrae (1983 e 2018), Facchini (2005), entre outros, é possível afiançar que não se trata de material apurado jornalisticamente, nem delimitado dentro dos padrões do jornalismo tradicional, muitas vezes sendo colocados como simples espaços para fofocas. O outro ponto de realçamento está na questão da forma de distribuição que era realizada. Esses periódicos, eram distribuídos entre os integrantes dos próprios grupos, ou entre os demais grupos que compunham a “vida entendida”[2] da época, tendo uma circulação limitada aos próprios membros, sem a priori, terem a intenção ou capacidade de circulação na livre esfera pública-social ou de influência em suas pautas. Finalmente, o terceiro ponto a ser considerado é a periodicidade. Por mais que o tempo não tenha favorecido a preservação das publicações, é notável que existia uma certa inconstância com relação à continuidade desses veículos, seja possivelmente pela capacidade técnica de reprodução, ou ainda por sua inviabilidade econômica.[3]
Esses três aspectos apontam para uma protoimprensa. Longe de estigmatizá-los como veículos irrelevantes, mas de trazer elementos importantes para uma caracterização dentro do escopo das Ciências da Comunicação. É notório que os primórdios da imprensa lusófona, ainda produzida em Portugal, teve como modelos de divulgação as Folhas Volantes. No século XVI, com a popularização da imprensa foram produzidos diversos periódicos informativos, que de acordo com Sousa (2014) eram de dois tipos e tinham como base a tradição noticiosa ainda da Grécia e Roma antigas. Para o autor,
Um primeiro tipo, mais “sério”, configurou-se como antepassado do jornalismo económico, já que abordava essencialmente informação comercial e por vezes quase publicitária (por exemplo, informações bancárias, criação de fundos para seguros entre armadores, enumeração dos navios que chegavam a um porto e da carga que transportavam ou informação sobre a aceitação de mercadorias para transporte marítimo...). As folhas volantes do segundo tipo falavam dos mesmos assuntos que as relações de notícias (reis, rainhas e outras celebridades; assassínios e assassinos; catástrofes; batalhas; trocas comerciais; milagres, feitiçaria, bizarrias da natureza e outros assuntos insólitos, etc.), mas nem sempre com um propósito predominantemente informativo. Nas folhas volantes, acontecia, frequentemente, que a informação servia de pretexto à pregação moralista, ao regozijo ou ao queixume, às vezes sob a forma de poesia e de canções. De qualquer maneira, pode afirmar-se que a imprensa nascente tinha um cariz essencialmente informativo, embora por vezes enquadrasse os factos pelo prisma da moral cristã. Os jornais do século XVII mostram, afinal, que, ao contrário do que por vezes se lê, a imprensa noticiosa não é uma invenção norte-americana do século XIX, mas sim uma invenção europeia dos séculos XVI e XVII, que recupera uma tradição noticiosa (nunca perdida) iniciada com as Efemérides gregas e as Actas Diurnas romanas (Sousa, 2014, p. 34).
Veremos mais adiante, inclusive, a relação entre o segundo modelo de Folhas Volantes com as colunas sociais contemporâneas e consecutivamente aquilo que aparece nos periódicos da protoimprensa gay brasileira. Ressaltamos, inclusive, que as discussões sobre a sociabilidade e o convívio desses homossexuais é visto como ponto de reflexão da própria construção da identidade dessa comunidade e que resultará, posteriormente, em uma maior articulação política e na formalização dos movimentos sociais no país. Portanto, expressamos a ideia de uma protoimprensa gay, estritamente dentro daquilo que compreendemos como imprensa, na atualidade.
Importante também ressaltar que o caráter artesanal das publicações não implica em uma invalidação de sua composição como sendo amadora. Apoiamos a ideia de que essas reproduções eram realizadas dentro das possibilidades da época, sendo inclusive, inovadoras e amplificadoras das sociabilidades presentes naquele momento. A própria constituição e circulação de um veículo, por mais efêmero e artesanal que fosse, já demonstrava um passo à mobilização e a necessidade de comunicação para além do contato presencial e da comunicação face a face.
A constituição desta protoimprensa gay está evidenciada igualmente pela quantidade de periódicos encontrados na pesquisa. De acordo com o levantamento bibliográfico e documental existiram, ao menos, 38 publicações entre as décadas de 1960 e 1970 que compartilhavam dessas características (Tabela1).
Título | Ano | Cidade | Responsável | Local |
O Snob | 1963-19 69 | Rio de Janeiro | Gilka Dantas (Agildo Guimarães) | AEL-Unicamp |
Força | 1963 | Rio de Janeiro | Não citado | Citado em GREEN, 2019 |
Zona Norte | 1963 | Rio de Janeiro | Não citado | Citado em GREEN, 2019 |
O Vagalume | 1964 | Rio de Janeiro | Não citado | Citado em GREEN, 2019 |
O Mito | 1966 | Niterói | Antonio Kalas | Citado em GREEN, 2019 e MICCOLIS, 1980, p.7 |
O Bem | 1966 | Rio de Janeiro | Não citado | Citado em GREEN, 2019 |
Edifício Avenida Central | 1966 | Rio de Janeiro | Não citado | Citado em GREEN, 2019 |
O Show | 1966 | Rio de Janeiro | Não citado | Citado em GREEN, 2019 |
O Estábulo | 1966 | Niterói | Dalia Lavi | AEL-Unicamp |
Le Sophistique | 1966 | Campos | Adriana Gueiros | AEL-Unicamp |
Mais | 1966 | Belo Horizonte | Não citado | Citado em GREEN, 2019 |
Fatos e Fofocas | 1966 | Salvador | Di Paula | Citado em GREEN, 2019 e MICCOLIS, 1980, p.7 |
Charme | 1966 | Rio de Janeiro | Não citado | Citado em GREEN, 2019 |
O Pelicano | 1966 | Rio de Janeiro | Não citado | Citado em GREEN, 2019 |
Le Carrilon | 1966 | Rio de Janeiro | Não citado | Citado em GREEN, 2019 |
Chic | 1966 | Rio de Janeiro | Não citado | Citado em GREEN, 2019 |
Os Felinos | 1967 | Niterói | Gato Preto | Citado em GREEN, 2019 e MICCOLIS, 1980, p.7 |
Gay Society | 1967 | Salvador | Jackie de Maga | Citado em GREEN, 2019 e MICCOLIS, 1980, p.7 |
Gay | 1967 | Salvador | Jackie de Maga | Citado em GREEN, 2019 e MICCOLIS, 1980, p.7 |
Zéfiro | 1967 | Salvador | Di Paula | Citado em GREEN, 2019 e MICCOLIS, 1980, p.7 |
Baby | 1967 | Salvador | Di Paula | Citado em GREEN, 2019 e MICCOLIS, 1980, p.7 |
O Centauro | 1968 | Rio de Janeiro | Anita Chambarelly | AEL-Unicamp |
O Vic | 1968 | Rio de Janeiro | Katherine Wood | AEL-Unicamp |
Le Femme | 1968 | Rio de Janeiro | Blanca Marie (Anuar Farah) | AEL-Unicamp |
O Grupo | 1968 | Rio de Janeiro | Georgette de La Cruz | AEL-Unicamp |
La Saison | 1969 | Rio de Janeiro | Jéssica Shelley | AEL-Unicamp |
Eros | 1970 | Rio de Janeiro | Frederico Jorge Dantas | AEL-Unicamp |
Litlle Darling | 1970 | Salvador | Di Paula | AEL-Unicamp |
Gay Press Magazine | 1976 | Rio de Janeiro | Claude Auger | AEL-Unicamp |
O Tiraninho | 1977 | Salvador | Orlando Andrade | AEL-Unicamp |
Elo | 1978 | Salvador | Di Paula | AEL-Unicamp |
Subúrbio à Noite | 196[?] | Rio de Janeiro | Frank Gasparelly | Citado em MICCOLIS, 1980, p.7 |
Darling | 196[?] | Rio de Janeiro | Georgette de La Cruz e Agildo Guimarães | Citado em MICCOLIS, 1980, p.7 |
20 de Abril | 196[?] | Rio de Janeiro | Bette Taylor | Citado em MICCOLIS, 1980, p.7 |
O Centro | 196[?] | Rio de Janeiro | Bette Taylor | Citado em MICCOLIS, 1980, p.7 |
O Galo | 196[?] | Rio de Janeiro | Não citado | Citado em MICCOLIS, 1980, p.7 |
Opinião | 196[?] | Niterói | Gigi Berger | Citado em MICCOLIS, 1980, p.7 |
Persona | 196[?] | Não Citado | Não citado | Citado em Eros (Ano I, nº 5) |
Características d’O Centauro
A edição d’O Centauro analisada data de setembro de 1968. Em sua capa está assinalado tratar-se do nono número do primeiro ano da publicação, logo, podemos afirmar que as atividades do periódico foram iniciadas no corrente ano deste exemplar. Além de trazer a imagem de uma pessoa com caracteres e trejeitos ligados ao feminino e ao nome de Ana Carina Berg, está igualmente presente o símbolo de uma figura mitológica (o Centauro), que dá nome ao periódico, expresso acima de uma insígnia em formato de V (Figura 1).
O material em questão possui 21 páginas, contando com sua capa. É mimeografado em folha sulfite A4 e possui diversas ilustrações, que em sua maioria aludem a figura feminina. Das 25 imagens presentes, ao menos 22 remetem à representação feminina. Na segunda página são apresentadas: Anita Chambarelly (presidente e coordenadora), Julie Andrews (Vice-presidente), Thelma Hermti’s (Secretária) e as colunistas: Anita Julie Thelmu, Jéssica Boren, Jeane Moreau Moron e “O Fantasma”. É importante destacar que apesar dos nomes femininos, é notório (Green, 2019; Colaço, 2022) que os conteúdos produzidos nesta e nas demais publicações tinham como agentes homens homossexuais.
Internamente, os títulos ou chamadas: Destaque Mensal, que traz uma ilustração feminina de André Keeler Voile, intitulada “Miss Snob 68”; Participação Especial: Lady Gilka Dantas, que apresenta uma carta assinada pela responsável pelo periódico Snob; Participação Especial: Ana Karina Berg, com uma carta-crítica endereçada a Bety Thaylor; Fofocas em Foco, assinada por Anita Chambarelly e com diversas informações sobre a sociabilidade homossexual; Noturno, assinado por Julie Andrews, que disponibiliza uma miscelânea de contos e notícias; Seleções Diversas, entrevista realizada com Chistine
Saint-Laurient Casparelly e assinada por Thelma Hérmit’s e coluna sobre horóscopo. Passarela de le Femme, assinada por Jéssica Bòren que aborda questões teatrais; XY – 24 – KW –69, por Jeane Moreau que disponibiliza questões relacionadas a obra de Oscar Wilde; e por fim a seção Fantasma (Figura 2) que traz diversas mensagens anônimas endereçadas a outras personalidades da época.
Deste conteúdo, é necessário ressaltar que duas páginas, por conta da ação do tempo, têm a legibilidade prejudicada. As referidas páginas dizem respeito a parte da entrevista na seção Seleções Diversas, assim como o início das dicas de horóscopo.
É possível verificar, por meio do processo de leitura flutuante (Bardin, 2016), que esses conteúdos se aproximam do tradicional formato jornalístico das colunas, em especial, as colunas sociais ou de mexericos (Marques de Melo, 2003; Marques de Melo & Assis, 2016).
Cada uma das colunas traz características particulares. Assim, pode-se assinalar que aquela que possui maior semelhança com outro formato é a coluna escrita por Thelma Hérmit’s. Desenvolvida por meio do esquema de perguntas e respostas, é muito semelhante à uma entrevista ping pong, construindo um diálogo estruturado com sua entrevistada.
Vale reforçar que as colunas são partes das práticas jornalísticas desde a década de 1920, nos Estados Unidos (Dornelles, 2017) e traziam informações diversas a vida da burguesia. Dornelles (2017), estuda como esse formato se fez presente no interior do Rio Grande do Sul, oferecendo um retrospecto das colunas sociais na história da impressa brasileira. Assim, para a autora:
Quando foram criadas, as colunas sociais, diferentemente das atuais, eram vistas como o lado informal do jornal, voltadas para o público feminino. Uma espécie de “descanso” concedido ao leitor das notícias sobre crimes, violência e mortes do chamado yellow journalism (no Brasil, imprensa marrom ou sensacionalista). Devido a essa característica, muitas delas se voltaram ao humor na formatação do texto. As notícias abordando os integrantes da burguesia eram levadas ao leitor algumas vezes de forma irônica, ressaltando o lado extravagante dos ricos e aos poucos dando maior importância às fofocas, ainda sem atingir seriamente a reputação dos personagens retratados (Dornelles, 2017, p. 133).
Quando foram criadas, as colunas sociais, diferentemente das atuais, eram vistas como o lado informal do jornal, voltadas para o público feminino. Uma espécie de “descanso” concedido ao leitor das notícias sobre crimes, violência e mortes do chamado yellow journalism (no Brasil, imprensa marrom ou sensacionalista). Devido a essa característica, muitas delas se voltaram ao humor na formatação do texto. As notícias abordando os integrantes da burguesia eram levadas ao leitor algumas vezes de forma irônica, ressaltando o lado extravagante dos ricos e aos poucos dando maior importância às fofocas, ainda sem atingir seriamente a reputação dos personagens retratados (Dornelles, 2017, p. 133).
No corpus analisado é possível perceber que existe uma adaptação deste formato, que ao invés de abordar a vida das elites locais ou nacionais, se volta a interação e sociabilidade dos próprios integrantes do grupo homossexual. Os participantes são tratados por seus “nomes de guerra”[4], e a reputação dessas personagens é atacada diretamente. São utilizados diversos artifícios para se realizar a comunicação, desde a ironia, até os xingamentos explícitos a outros participantes, principalmente aqueles ligados a outros grupos e que se indispunham, de alguma maneira, com os integrantes d’O Centauro.
Apesar de haver parte da literatura de referência sobre o tema que desqualifica essas publicações colocando-as, muitas vezes, como sendo apenas boletins de fofocas, como Green (2019), as revisões têm, igualmente, mostrado ser importante validá-las como veículos de comunicação dentro de uma imprensa que começava a se formar no período (Colaço, 2022). É nítido que esses veículos buscam mimetizar o formato jornalístico, assim como realizam discussões para além desse aspecto formador e identificador de relações que é a fofoca. Sobre essa temática vale destacar as contribuições de Bianca Breerma e Gerben A. Van Kleef (2012), ambos da Universidade de Amserdã e que por meio de seu estudo Why People Gossip: An Empirical Analysis of Social Motives, Antecedents and Consequences (2012), abordam questões que envolvem a fofoca e sua importância na preservação e na proteção de grupos sociais frente a outros.
Portanto, além de terem sido um elemento agregador à época, sua representatividade enquanto imprensa não deve ser descartada, já que se dá por meio de um formato jornalístico validado dentro de espaços tradicionais do conhecimento das Ciências da Comunicação,ainda que muitas vezes tenham sido produzidos de forma artesanal.
Os estereótipos encontrados e o método de análise
Para observar os estereótipos na publicação foi realizada a leitura integral do material selecionado. Essa análise serviu para a identificação e a localização dos estereótipos utilizados nas enunciações discursivas. Este método é o mesmo aplicado na tese em desenvolvimento[5] e funciona como um resgate das significações culturais e comunicativas por meio dos elementos apresentados no discurso
Os estereótipos, apesar de apresentarem características elementares que podem acabar por gerar o estigma social (Goffman, 2004), são essenciais para a significação no processo de comunicação. É por meio da estereotipia que se torna possível construir uma doxa comum necessária para o entendimento básico das mensagens, passo fundamental para o estabelecimento de uma comunicação compreensível. Trata-se dos elementos partilhados culturalmente, simplificações que tornam a significação possível e compartilhável. Essa visão é defendida especialmente pela autora Ruth Amossy (2010).[6]
Portanto, os estereótipos são como chaves de leitura dos elementos simbólicos, culturais e coletivos expressos nos discursos dessas publicações e que podem, por meio de análise discursiva, serem resgatados dentro de seus contextos de enunciação como pontos de partida e de construção das mensagens.
Para este trabalho, foi realizada a leitura integral dos conteúdos, identificando os pontos nos quais os estereótipos ligados a sociabilidade estavam expressos e quais eram seus contextos. Com isso, temos a seguinte lista de menções (Tabela 2).
Vale ressaltar que compreendemos os estereótipos como significações de algo ou alguém, sempre referenciados de maneira genérica. Trata-se de uma construção discursiva na qual aquele que fala busca conferir características mínimas de diferenciação entre uma coisa, objeto, pessoa de outra, fazendo referência a uma característica que a lhe destigue. Portanto, a leitura para busca desses estereótipos foi direcionada a encontrar no texto os momentos nos quais os autores realizaram essa ação de atribuir valor para identificação de algo ou alguém.
Estereótipos | Seções | Contexto |
Querida | Especial Gilka Dantas; Notícias Importantes | Agradecimento a Anita Chambarelly, diretora d’O Centauro. Se refere aos convintes feitos a LiSandra Di Castro para atuar no filme. De maneira irônica ser efere a Katherine Wood. |
Vida intendida (sic) | Especial Ana Karina Berg; O Fantasma | Trata sobre a introdução de Ana Karina Berg nos meios homossexuais Da época e em mensagem destinada a Sharon Shene. |
Deus, Criador | Especial Ana Karina Berg; Mundo em Crise – Fofoca sem Foco; Em Busca da Fé. | Aparece como benevolente, justo, bondoso, criador do universo e exemplo de sabedoria. |
Boneca | Realizou-sena...; Notícias Importantes; MovimentoTeatral | Referência a ganhadora do Miss Snob; elogios à colunista Heppy Le Mon, do Snob; tece críticas a Anita, diretora d’O Centauro. |
Mocidade, Jovens | Mundo em crise – Fofocas em Foco | Apresenta em tom crítico como senão tivessem experiência o suficiente para lidar com situações complexas. |
Homens de espírito; Homem de mil instrumentos; Gênio, Mestre | Mundo em crise – Fofoca sem Foco; Realizou-se...; XY-24-KW-69. | Artistas, escritores e cientistas são colocados como almas de eleição, citados nominalmente: Pedro Bloch e Oscar Wilde. |
Dispeitada(sic), bichas podres, podre, fofoqueira, bruxa, cobra, semi-analfabeta (sic), despauperada, cafona, cafonisse, pelada, escrota, frustrada, mendiga, suja, Incapassitada (sic) | Realizou-se na...; Le Femme; O Fantasma; Especial Ana Karina Berg | Se referem a xingamentos direcionados à integrantes de outras turmas, ou a calúnias das quais as colunistas dizem ter sido vítimas por integrantes de outras turmas. |
Clã, pessoa de gabarito muito elevado, personalidade, nossa gente, carascentaurinas, belas, madrinha, bonita, culta, senhora presidente, amiga, atualizada, elegante, novas estrelas, meninas. | Especial Gilka Dantas; Realizou-sena...; Notícias Importantes. Le Femme; XY-24-KW-69; O Fantasma. | Denominações e Elogios relacionados a própria turma do Centauro, ou a integrantes queridas de outras turmas, nomeadamente pessoas do Snob. |
É possível identificar uma quantidade superior de estereótipos, justamente quando os autores se referem aos grupos de sociabilidade, seja para destacar ou descredibilizar grupos concorrentes, o que pode ser visto como uma afirmação daquilo que Bianca Breerma e Gerben A. VanKleef (2012) apontam, a proteção e preservação de grupos sociais frente a outros.
Esse comportamento demonstra que, apesar de haver uma articulação interna de interação, os veículos de comunicação serviam como esferas de expressão na qual essa coesão buscava um fortalecimento dos laços sociais e do afastamento daqueles comportamentos que eram considerados inadequados.
É possível identificar uma presença constante do caráter de classe nesses estereótipos, mimetizando aquilo que as colunas sociais apresentavam como a vida da burguesia (Marques de Melo, 2003; Marques de Melo & Assis, 2016). Essa presença se faz notável tanto nas escolhas de xingamentos e elogios, sejam entre as colunistas, seja na apreciação da figura intelectual.
Os estereótipos usados como forma de xingamento, trazem a imagem de uma figura que não sabe se portar, ou não tem condições financeiras que se equiparam “a elite” do mundo “entendido”. Isso pode ser observado, principalmente, nos estereótipos: bichas podres, semi-analfabeta (sic), despauperada, cafona, cafonisse, pelada, escrota, frustrada, mendiga, suja, Incapassitada (sic). O oposto ocorre com os estereótipos que estão no contexto do elogio, nos quais prezam-se as características relacionadas a finesse e a vida culta, como vemos nos estereótipos: pessoa de gabarito muito levado, personalidade, belas, bonita, culta, senhora presidente, amiga, atualizada, elegante, novas estrelas.
Esses estereótipos demonstram a falta de reflexão sobre as questões de classe e as desigualdades sociais, nas quais a equipe d’ O Centauro também estão incluídas. Emulam e/ou buscam exercer uma imagem positiva e de uma vida ligada aos estereótipos da riqueza e da vida burguesa.
Por mais que, a princípio, pareçam distantes das práticas jornalísticas, tidas como objetivas na maior parte de suas expressões, essas manifestações, principalmente pelo nítido tom classista que apresentam, se mostram conectadas com aquelas realizadas pelas colunas de mexericos dos grandes jornais, comuns à época. O que faz com que compreendamos o motivo de essas publicações serem vistas e definidas como jornais por seus produtores e leitores. Essa assertiva encontra respaldo na criação da Associação Brasileira de Imprensa Gay (ABIG) pelos produtores e integrantes das publicações (Colaço, 2022), que ocorreu antes mesmo de qualquer movimento homossexual ser organizado politicamente no país.
Trata-se de uma transposição daquilo que era reproduzido em parte dos jornais, para a realidade das sociabilidades homossexuais da época, traçando categorias, espaços de poder e refutação de figuras que se apresentassem fora daquilo que era visto como o comportamento elitizado que deveria ser exercido dentro e fora dessas bolhas de sociabilidade. E, conforme destacamos, possuem aspectos relacionados as noticiabilidades cotidianas desses grupos e dos indivíduos, por mais que em sua práxis a apuração não seja evidenciada com clareza.
Dois estereótipos, em particular, “querida” e “boneca”, encontraram espaços de atuação distintivos, porém, ligados aos tratamentos dados aos integrantes do grupo ou dos grupos adversários. No segundo caso, os termos foram utilizados de maneira irônica, invertendo o tratamento amistoso dentro do círculo social dos produtores do periódico. Ambos os estereótipos não apresentam, a priori, nenhuma característica ligada aos elementos de classe, presentes nos elogios e xingamentos anteriormente destacados.
A figura masculina, quando presente no discurso, possui espaço prioritariamente positivo nas enunciações, em todas as citações relacionadas aos homens. Encontramos estereótipos que buscam destacar as qualidades masculinas, sendo todas relacionadas a intelectualidade. Seja pela apresentação de um júri masculino, ou um escritor famoso e aclamado por seus trabalhos homoeróticos, como é ocaso de Oscar Wilde. Os elementos destacados são aqueles relacionados ao grande espírito e a capacidade de compreensão das complexidades da vida.
Outra figura que também aparece como benevolente, e que de certa maneira pode ser apreciada dentro deste espectro masculino, é o estereótipo de deus. Em todas as citações, a figura divina é colocada como masculina, além de ser referenciada como criador do universo, justo, bondoso. Deus aparece em três textos diferentes, sendo um deles totalmente dedicado a questão da fé, como um alicerce da vida cotidiana, realizando sutilmente uma crítica a religião institucionalizada. Trata-se de um elemento importante para a compreensão da construção dessas identidades, já que a Igreja, como aponta Foucault (2006) foi responsável não apenas pela construção dos discursos sobre a sexualidade, mas sobre seu aprisionamento dentro das estruturas de discursos permitidas, estando a homossexualidade nesta lógica, fora espectro aceitável da manifestação sexual.
A ideia de um estilo de vida próprio também é apresentada por meio do estereótipo da “vida intentida” presente em duas seções “Especial Ana Karina Berg” e “O Fantasma”, nas quais fazem menção a um estilo de vida própria da homossocialidade da época. É possível encontrarmos em outras expressões como “clã” e “nossa gente”. Presente em outros textos, também a ideia de uma destacada sociabilidade cotidiana, lida aqui como a heteronormatividade. Mesmo aqueles estereótipos que adjetivam pejorativamente integrantes de outros grupos, parecem ceder espaço para essa compreensão de uma vida compartilhada por meio de regras e costumes que fogem ao padrão social da época. Portanto, há uma desqualificação, ou qualificação, dos integrantes e grupos, dentro de uma lógica mais ampla de convivência da qual todas e todos fazem parte.
Por fim, outros dois estereótipos que aparecem no texto “Mundo em Crise” da seção “Fofocas em Foco” dizem respeito a juventude. Os “jovens” ou a “mocidade” são apresentados como pessoas que não possuem clareza sobre suas reivindicações, assim como sua ação no mundo, contrastando com a visão ligada a esse público durante, especialmente, as décadas de 1960 e 1970, na qual a rebeldia era considerada o motor para diversas transformações e questionamentos sociais.
Considerações finais
O Centauro apresenta elementos importantes para a compreensão da protoimprensa gay brasileira. Trata-se de um material relevante para o entendimento da homossocialidade, assim como apresenta traços dos comportamentos dos homossexuais da época.
Sobre o tipo de jornalismo nele impresso, fica evidente a mimetização do formato das colunas sociais, em especial das colunas de mexericos, presentes nos grandes jornais e que tratam da vida cotidiana da burguesia local, nacional ou internacional. No caso d’O Centauro, o que observamos é uma adaptação destes valores para a lógica e vivência da “vida intentida”, aquela experiencia “experimentada” por esses integrantes à margem social, que por meio de suas vivências buscavam ampliar ou estabelecer laços de convivência.
Por esse motivo, acreditamos que estamos diante do fenômeno de uma protoimprensa gay, uma vez que fica evidenciada pela forma de tratamento daqueles que escrevem, chamados de colunistas, assim como pelos estereótipos relacionados as questões de classe que os textos buscam mimetizar os conteúdos presentes nas grandes publicações da época. Apesar de não ficarem claras se pela práxis adotada as questões de apuração e verificação dos fatos eram elementos essenciais à escrita dos conteúdos. Nota-se a intenção de informar sobre questões ligadas ao cotidiano dos integrantes dos círculos da “vida intendida”.
Também é perceptível que a fofoca é utilizada, como apontam Bianca Breerma e Gerben A.Van Kleef (2012), como elemento de proteção e preservação dos grupos sociais frente aos demais. Na publicação d’O Centauro é possível encontra uma obstinada, persistente e perseverante defesa de seus integrantes e aliados, ao mesmo tempo em que há uma refutação àqueles que são indesejáveis ou que manifestem atitudes que estejam fora dos padrões tidos como socialmente aceitáveis pelo grupo.
Por se tratar de uma pesquisa em desenvolvimento, as próximas etapas objetivam, igualmente compreender como as demais publicações deste período lidavam com essas relações, de que forma se relacionavam com os integrantes de suas turmas e de outras concorrentes, a fim de concernir se esses comportamentos eram vistos em outros núcleos de homossocialidade ou eram exclusivos nas produções presentes d’O Centauro.
Referências
Amossy, R (2010). Estereótipos In Charadeau, P.; Maingueneau, D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo. Contexto.
Bardin, L. (2016). Análise de conteúdo. Lisboa. Edições70.
Beerma, B; Kleef G.A.V. (2012). Why People Gossip: An Empirical Analysis of Social Motives, Antecedents, and Consequences. Journal of Applied Social Psychology, 42(11), 2640-2670. Recuperado de: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1559-1816.2012.00956.x
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Notas