Comunicação, Gêneros e Sexualidades
Recepção: 03 Janeiro 2023
Aprovação: 18 Julho 2023
Resumo: Este trabalho realiza uma análise das dimensões de um feminino negro no álbum Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água da cantora Luedji Luna, a partir dos conceitos de Encruzilhada (Martins, 2021) e de Espaços Seguros (Collins, 2019). As análises tomam as imagens das faixas “Chororô”, “Ain’t I a Woman?” e “Lençóis” para discutir os processos de autodefinição (Collins, 2019) manifestados pelo corpo da artista, que aciona encruzilhadas-fêmeas no seu transitar pelo tempo e pelo espaço.
Palavras-chave: Encruzilhada, Espaço Seguro, Autodefinição, Álbum-visual, Luedji Luna.
Abstract: This paper makes an analysis of black feminism in the album Bom mesmo é estar debaixo d’água, of the singer Luedji Luna, from the concepts of “Crossroads” (Encruzilhada) (Martins, 2021), and Safe Spaces (Collins, 2019). The analisis take the images of “Chororô”, “Ain’t I a Woman?” and “Lençóis” to discuss the process of self-definition (Collins, 2019) in the artist’s body, that activate female-crossroads when walks by the time and the space. Keywords: Crossroads. Safe Space. Self-definition. Visual Album. Luedji Luna.
Keywords: Crossroads, Safe Space, Self-definition, Visual Album, Luedji Luna.
Resumen: Este artículo hace un análisis del feminismo negro en el álbum Bom mesmo é estar debaixo d’água, de la cantante Luedji Luna, a partir de los conceptos de Encruzijada (Encruzinhada) (Martins, 2021) y Espacios Seguros (Collins, 2019). Los análisis toman las imágenes de los temas “Chororô”, “Ain’t I a Woman?” y “Lençóis” para discutir los procesos de autodefinición (Collins, 2019) manifestados por el cuerpo de la artista, que desencadena encrucijadas femeninas en su tránsito por el tiempo y el espacio.
Palabras clave: Encrucijada, Espacios Seguros, Autodefinición, Álbum Visual, Luedji Luna.
Introdução
Neste trabalho, analisamos as dimensões de um feminino negro no álbum visual “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água” (2020), da cantora soteropolitana Luedji Luna. Ocupamo-nos em investigar o álbum visual da cantora, buscando compreender de que maneira a narrativa versa sobre os lugares de afeto da mulher negra, através da construção de espaços seguros (Collins, 2019) e do repertório imagético das religiões afrobrasileiras, atravessando as noções cosmo-epistemológicas das encruzilhadas (Martins, 2021; Rufino, 2019; Rufino & Simas, 2018). Detemo-nos, mais especificamente, nas faixas “Chororô”, “Ain’t I a Woman?” e “Lençóis”, porque elas nos trazem de forma mais evidente as metáforas visuais que são construídas em um processo de autodefinição da artista.
O álbum musical homônimo conta com 12 faixas. Além das músicas, a obra possui a inscrição no formato de álbum visual. Dirigido pela diretora Joyce Prado, o álbum visual possui mais de 700 mil visualizações no YouTube e foi uma das principais estratégias de divulgação utilizadas pela artista. Com 23 minutos de duração, o álbum visual é composto por seis músicas presentes no álbum musical, que ganharam a expressão audiovisual variando cenários, figurinos e coreografias a cada faixa.
As canções de Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água possuem letras que versam sobre o lugar da mulher negra nas relações amorosas, familiares, com a cidade, com a posse de bens e consigo mesma, através das reflexões sobre a autoestima e autocuidado. Há uma relação aparente entre o feminismo negro e as religiões afrobrasileiras que se atravessam e compõem a trama do álbum-visual, conforme Luedji Luna publica em sua conta no Twitter: “A água é um elemento ligado às emoções e a Oxum. O álbum visual carrega referências sobre minha religião e meu entendimento enquanto mulher negra”.
Além das músicas originais, o álbum possui uma versão cover de “Ain't got no” de Nina Simone, que é acrescida do poema “A noite não adormece nos olhos das mulheres”, escrito e declamado ao fim da canção pela poeta Conceição Evaristo. A presença da composição de mulheres negras é trazida também na música “Lençóis”, em que a poeta Tatiana Nascimento declama o poema “Quase”, no qual ela fala sobre o amor que espera receber e dar.
Luedji Luna declara sua intenção de trazer no álbum a centralidade de sua experiência como mulher negra. “[...] é um desnudar, um mergulho sobre a experiência de amar, ser amada, e não ser amada também”. A narrativa demonstra a construção de um território de familiaridade, político e seguro, entre mulheres negras. Tratam-se de possibilidades de vermos o espaço e o tempo, a partir do corpo de Luedji Luna, que descortina passados, presentes e futuros, e direciona uma rede empenhada por um coletivo de mulheres negras. Desse modo, o álbum visual de Luedji Luna se configura como um fenômeno no qual podemos observar construções sobre as vivências no mundo, através de uma narrativa e análise multisemiótica em que elementos verbais, sonoros e imagéticos constroem sentidos e modulam uma experiência de espectatorialidade.
O álbum visual e as encruzilhadas como espaços seguros
O álbum visual, como uma forma de representação imagética, está ligado diretamente aos processos de visualização de espaços, corpos e cosmovisões. Trata-se de um formato audiovisual com relação intrínseca à música, e posicionamo-nos próximo às discussões feitas por Ferreira e Farias (2021) que, ao revisitarem as conceituações sobre o gênero, entendem que o álbum visual “[...] incorpora, num processo dinâmico de produção e reprodução, elementos que possibilitam o seu reconhecimento enquanto gênero audiovisual ligado à música, ao tempo que aciona matrizes e referências culturais [...]” (Ferreira & Farias, 2021, p. 81).
Historicamente, a representação de pessoas racializadas no audiovisual esteve à serviço da manutenção da subalternidade e do estigma gerados pela razão negra (Mbembe, 2014), ou seja, a via colonial que torna o sujeito negro um ser de externalidade, através do preenchimento de sua identidade por um juízo externo e pela circulação cotidiana de textos que promovem sua desumanização.
A luta pelo acesso às instâncias de criação no audiovisual objetiva atingir um espaço em que a perspectiva de pessoas afetadas pelo racismo possa ganhar expressão e disputar a legitimidade nos circuitos comunicacionais em que circula. Manter negras e negros em um lugar de externalidade nas formas representacionais é uma articulação do racismo para reiterar a desvalorização dos corpos, costumes, crenças e hábitos culturais dos racializados. Pois, “da escravidão em diante, os supremacistas brancos reconheceram que controlar as imagens é central para a manutenção de qualquer sistema de dominação racial” (Hooks, 2019, p. 30).
Por isso, temos como base teórico-metodológica a noção de olhar opositor da (o) negra (o) cunhado por Hooks (2019). Observando os processos de espectatorialidade de mulheres e homens nos EUA, a filósofa identifica a competência de criticar, exigir e criar novas formas representacionais no audiovisual, a partir de um movimento de recusa às representações viciosas narrativamente e imageticamente, que conferiam às mulheres negras lugares de subserviência, sexualização e falta de agência.
Nesse sentido, as produções de pessoas negras, que se propõem acionar uma perspectiva crítica ao racismo, promovem não apenas uma disputa de narrativas, mas reivindica novos modos de aparição de seus corpos, desarticulando estereótipos, repetições gestuais e monotematizações, agregando novas formas de olhar para as culturas negras diaspóricas e continentais, permitindo, assim, uma expansão dos sentidos do que significa ocupar politicamente a negritude. Ao lidarmos com o álbum visual de Luedji Luna, entendemos a importância da subjetividade negra para os processos sociodiscursivos do audiovisual, pois há a necessidade da presença de um corpo que vive a experiência da negritude para que, em níveis de linguagem e de tematização, possa-se ter acesso à novas perspectivas nas narrativas que versam sobre os afetos da mulher negra.
A necessidade de lançar sobre o mundo sua própria narrativa, possibilita a ressignificação do processo de racialização, a partir do que Achille Mbembe (2014) diferencia como declaração de identidade, que está em oposição ao juízo de identidade. Para o autor, se em um momento o alterocídio da racialização involucra cotidianamente o negro em textos, gestos, falas e histórias que o torna um ser/coisa produzido pela raça, um segundo modo de inscrição da racialidade se encontra no instante em que é possível entender a raça como fruto de nomeações externas e que, portanto, pode ser descaracterizada ao passo em que o sujeito racializado começa declarar a si mesmo. Desse modo, a produção de novos sentidos para o que se define como “o negro”, possibilita a ressignificação das identidades e corpos racializados, incluso nisto a expressão audiovisual.
Refletir sobre “Bom Mesmo É Estar Embaixo D’água” nos coloca em contato com a intensa presença da ação de “cruzamentos” ou “encruzilhamentos” que compõem a materialidade do álbum, suas melodias, letras e temáticas abordadas. Tais dimensões parecem intercruzar a obra, tramando uma narrativa em que as visualidades, sons, cenários e performances corporais habitam o tempo-espaço da encruzilhada. Este é visto por nós como uma experiência de leitura crítica, política, espiritual e estética do mundo encarnado pelas mulheres negras, que ampliam vivências pessoais, enunciando sujeitas coletivas para dizer sobre uma visão perspectivada sobre seu viver na sociedade brasileira e a consequente urgência da criação de espaços seguros.
Neste sentido, Leda Maria Martins (2021) observa a encruzilhada como uma concepção filosófica basilar das culturas africanas e afrobrasileiras. Advinda, principalmente, dos princípios religiosos das tradições candomblecistas, a encruzilhada é uma representação espaço-temporal do cruzamento de ruas, local sacralizado pela potência das comunicações e trânsitos evocados na figura de Exu, força energética e arquetípica que instaura a concepção de tempo, linguagem e da mobilidade destas culturas.
Como demonstram Rufino e Simas (2018), nos diferentes troncos sociolinguísticos e cosmovisões da diáspora negra, as figuras de Elegbara (vodum jeje-fon), Aluvaiá (nkissi bantu-congo) e Esú (orixá ketu-iorubano), cada qual com sua particularidade, representam a comunicação, os conflitos e a possibilidade da dinâmica do mundo, seja do axé (energia vital) ou do tempo, em diferentes direções, e em vibração positiva ou negativa.
A encruzilhada enuncia os fluxos entre passado, presente e futuro, bem como os cruzamentos das diversas matrizes que compõem as culturas afrodiaspóricas, gestadas no encontro sinérgico entre as diferentes culturas africanas raptadas para o Brasil, que sobreviveram às duras penas às influências, golpes e choques com as concepções cristãs e na confluência dos saberes indígenas. As encruzas são locais “nos quais se confrontam e se entrecruzam - nem sempre amistosamente - práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim” (Martins, 2021, p.51).
A encruzilhada ocupa uma centralidade nas múltiplas experiências religiosas e cosmovisões afrobrasileiras, que se cruzam entre si e se organizam metaliguisticamente enquanto um repertório encruzilhado. As encruzas se fazem presentes no candomblé, no culto às energias da natureza, mas também ocupam um lugar de grande importância na umbanda, no culto às entidades falangeiras, encantados ou espíritos desencarnados, um “[...] amálgama entre ritos de ancestralidade dos bantos, calundos, catimbós, elementos do cristianismo popular e do espiritismo” (Simas & Rufino, 2019, p. 66).
Nas umbandas, as encruzilhadas são locais de devoção aos espíritos das ruas, bares e bordéis. Espíritos que habitavam a cidade, que era/é um complexo de sociabilidade colonial, cristã e ocidental, que julga e relega aos guetos as práticas entendidas como pecaminosas e desviantes. Nas encruzas convivem seres carnais e espirituais que desafiaram e permanecem desafiando as normalidades coloniais, o chamado povo de rua (Rufino, 2019), representado pelas entidades exus (masculino) e pombagiras[1] (feminino).
Para nós, uma segunda dimensão das encruzilhadas se encontra na defesa de uma análise interseccional para os campos opressivos das mulheres negras e racializadas realizada por Crenshaw (2002), ao trazer a metáfora imagética do cruzamento de avenidas."[...] Raça, etnia, gênero e classe constituem as avenidas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos” (Crenshaw, 2003, p. 176). Para a autora, a mulher negra se encontra no atravessamento de tais avenidas de opressão e subordinação estrutural, que lhe confere mais violência e privação de direitos.
Em 1979, Lelia Gonzalez (2020) também apontava tal lugar de tripla opressão vivida pela mulher negra brasileira em sua análise político-econômica do Brasil. Nesse sentido, as encruzilhadas nos apontam um lugar analítico importante para nosso gesto de reflexão, pois nos convida a olhar para os arquétipos e performances presentes nas religiões afrobrasileiras acionados por Luedji Luna, mas também para as temáticas de opressão, resistência, (sobre)vivências e potencialidades da mulher negra presentes em seu álbum.
De acordo com Lélia Gonzalez (2020, p. 136), a negação de subjetividade e corpo é uma das premissas da dominação colonial que se espraia nos territórios e formações nacionais da América Latina, com toda a expropriação econômica e epistemológica de identidades negras e indígenas. Perpetuadas na história de nosso país, as colonialidades são atuantes na homogeneização de saberes e culturas em prol de uma identidade nacional, e suposta “democracia racial”, conformando-se como “aquilo que oculta algo para além do que se mostra” (González, 2020, p. 80). Trata-se de um projeto universalizante que mascara as violências e epistemicídios aos grupos e identidades de povos originários e negros - que experimentam diferentes formas de negação. Essa leitura deriva de uma metodologia colonial, que entende a tentativa de sobreposição às tradições, culturas e saberes de um território como fragmentação de identidades, a partir da imposição do tempo linear como a única possibilidade de leitura válida.
Nessa construção moderno-colonial, o feminino compõe um dos lugares de cerceamento, quando as mulheres precisam corresponder unicamente aos padrões de gênero e sexuais vinculados à santificação da maternidade, à reprodução e ao cuidado. Com metodologias masculinistas e patriarcais, a superioridade e totalização da esfera pública acabou por delegar as mulheres ao espaço privado de suas casas, retirando a politicidade de uma percepção comunitária para a individualização e a binarização, com papéis sociais muito bem delimitados, como indica Rita Laura Segato (2012, p. 218). Segundo a autora, na modernidade-colonialidade, a esfera pública é totalizada e restrita aos homens, enquanto o espaço doméstico, e as relações entre as mulheres, são privatizadas.
Analisando as encruzas-seguras
Nas intensidades das ondas do mar que se quebram, o corpo de Luedji Luna é remontado como um quebra-cabeça. Lentamente, seios, ombros, pescoço, pele, lábios, cabelos, olhos, cores compõem o primeiro plano imagético do clipe. Na passagem das faixas entre “Chororô” e “Ain’t got no”, em referência à canção da cantora negra norte-americana Nina Simone, uma narrativa é tecida acionando uma confluência visual e auditiva para uma síntese da negação que a letra da música anuncia, pela interpretação autoral de Luedji Luna: “Não tenho dinheiro no banco/ Nem guardado nalgum canto/ Quase que não tenho nada/ E quase tudo que tenho levo guardado dentro/ Alguns sonhos guarnecidos”.
Durante a faixa “Chororô”, somos levados para as ruas noturnas de Salvador (BA). A música é ritmada de forma rápida, com percussão, baterias e uma guitarra que dá seu tom acelerado. Luedji Luna se inscreve na tela, grávida e usando um vestido de alças vermelho e feito de cetim. A imagem percorre paredes, grafites, pichações, prédios e sustentações envelhecidas de edifícios históricos da cidade. Luedji Luna surge subindo uma escadaria de forma bastante acelerada e que se torna ainda mais dinâmica pela edição, transmutando-a em um vulto vermelho. Em seguida, não à toa, a montagem convoca o pixo da saudação do orixá/entidade de umbanda Exu, com a presença do tridente, símbolo muito utilizado para ambas as representações na construção de paramentas, assentamentos e estátuas votivas.
Chamados nas figuras masculinas de “exus” e nas faces femininas de “pombagiras”, estes espíritos regem uma série de textos e performances durante os ritos de incorporações mediúnicas, nos quais a resistência a moralidade cristã, higienista e racista emergem em cânticos, falas e conselhos. Tais gestos desafiam a sacralidade do corpo, o pudor, a penitência pelo trabalho, o controle do corpo e da sexualidade feminina, e a sobriedade dos senhores do poder. “Malandros, prostitutas, cafetões, ladrões de toda estirpe, assassinos, excomungados, bêbados, eternos caminhantes, fugitivos, achacadores de otários, toda a sorte de miseráveis que, em seus corpos e práticas, forjam um inventário tático de modos de ser e praticar a rua.” (Rufino, 2019, p. 110)
O povo de rua é o nome dado à falange/conjunto que reúne tais espíritos e arquétipos, mas também compreendem uma leitura de mundo aos viventes, pois as entidades são metáforas das formas de vida dos povos desfavorecidos, que reúnem filosofias, posicionamentos políticos e práticas desviantes. Para tal, “[...] o povo de rua compreende desde referenciais identitários produzidos a partir de modos de vida afetados pelas problemáticas tangenciadas nas intersecções entre raça/gênero/classe [...]” (Rufino, 2019, p. 111), como também aqueles que se encontram desviados da moral cristã.
As pombagiras ocupam o lugar marcado pelo enfrentamento interseccional, pois nelas, convergem as imagens que a moralidade cristã tenta a todo custo apagar e denotar estigma, como a liberdade sexual, a possibilidade da independência em relação ao homem, capacidade de ser mais potente que o masculino, bem como o julgamento de sua moralidade devido a sua origem racial, como no caso das malandras e ciganas.
A montagem exemplificada na imagem acima conjuga sentidos comparativos, pois, a presença do tridente (04), da cor vermelha e do movimento vultuoso, presente no imaginário em tornos de ambas as figuras religiosas supracitadas, realizam uma comparação do corpo de Luedji Luna, que, mesmo sem estar vestido com vestes e indumentárias, pode corresponder à representação performática de uma pombagira no universo narrativo acionado.
Durante toda a execução de “Chororô”, Luedji Luna caminha pelas ruas de Salvador, encontra blocos de carnaval com quem dança e, em quase todo o momento, permanece em constante movimento. Ela também disputa este espaço, com o seu próprio corpo e identidade, que samba e se insere na paisagem entre mulheres que também estão ali, por diferentes nuances e corporalidades, reescrevendo o espaço da cidade. Nesse sentido, parece haver uma forte relação com pautas e disputas encabeçadas pelo feminismo negro e com os saberes e religiões afrobrasileiras, que ocupam a capital baiana.
Uma das figuras centrais, e que destacamos no quinto frame da Figura 1 (05), é a captura do corpo de Luedji Luna andando sobre uma encruzilhada. Seu corpo é filmado em contra-plongée, distanciado da lente e centralizado, evidenciando a grandezas dos edifícios e da rua, bem como caminho trilhado pelo conjunto de postes iluminados. Seu andar cadenciado e a cor intensa do vermelho, em contraste com a composição acinzentada das ruas, destacam a corporificação de seu gesto andarilho.
Nas práticas da umbanda, os trabalhos e ritos feitos para exus e pombagiras são oferendados em locais diferentes. As “encruzilhadas machos” são aquelas que se cruzam formando uma intersecção com quatro saídas, e são utilizadas para os exus. Enquanto aquelas que formam o formato da letra “T”, tendo três saídas, são as chamadas “encruzas fêmeas”, utilizadas para as pombagiras. Demonstrando uma independência e poder de atuação de ambos os polos generificados, que não são hierarquizados em sua definição. A encruzilhada, portanto, também é mulher e símbolo de enfrentamento, pois:
O vasto repertório e as múltiplas textualidades discursivas das pombagiras compreendem-se como golpes, operados e assentados em uma espécie de poder feminino das encruzilhadas. O mesmo, emergente dos vários deixados pelo projeto colonial, racista e patriarcal edificado nos estupros, servilismos, objetificações, regulações dos corpos sob a égide do pecado, entre tantas outras formas de violência. (Rufino, 2019, p. 111-112)
Neste trecho do álbum, emerge uma reivindicação das energias femininas/feministas negras, que exigem passagem e caminhos abertos, um corpo performático que mesmo em condições opressivas desvela continuidade e desarticula as limitações noturnas. O dançar de Luedji Luna é uma performance de afronta ao controle do corpo das mulheres negras em múltiplas temporalidades. No sexto frame, vemos a artista repetir o balançar dos ombros característicos que pombagiras incorporadas em seus médiuns fazem ao gargalhar, no mais puro deboche e gesto de cura. “É na gargalhada da mulher pintada como vagabunda que versa sobre o poder feminino interseccional, antir-racista das ruas, esquinas e terreiros da diáspora africana. É essa mesma gargalhada que nos desloca e nos aponta outros caminhos.” (Rufino & Simas, 2018, p. 90).
A letra da música se complementa com as andanças, pois, em Chororô, Luedji Luna realiza a leitura de um inventário de bens, sentimentos, pessoas e documentos que não possui, e destaca os elementos que estão em sua posse. Sem teto, sem amigos, dinheiro, homem ou mulher que ame, mas com quase um amigo, um passaporte vencido, sonhos guarnecidos e um ventre de parir três filhos. Luedji Luna versa sobre insegurança e despossessão, mas também sobre a autoconstrução e resistência, pois como canta “e quase tudo que tenho, levo guardado dentro”.
Mas, os afetos tecidos na rede das imagens do álbum visual, também estão inscritos sob encruzilhadas, embebidos em conflitos, pois os momentos de autoconstrução afirmativa possuem elipses de tristeza e solidão, expressos na finalização da canção, em que Luedji Luna encara a câmera parada enquanto diversas pessoas das ruas a circulam e gesticulam em time-lapse.
Na interpretação de “Ain't I a woman?”, que ressoa o discurso feminista e abolicionista da Sojourner Truth[2], vemos outra modulação das encruzilhadas fêmeas, entretanto, seu gesto agora é fabular e admite o uso de adereços que deslocam a captura da imagem e tentam adentrar na cosmovisão, para além do cotidiano. Há o uso performático de elementos cênicos que evidenciam os arquétipos das pombagiras.
Na fumaça que esconde a sujeita na tela, ela surge com uma garrafa de champanhe, mão na cintura e véu no rosto, a pombagira costurada por Luedj Luna e Joyce Prado gargalha diante de uma letra musical em que a solidão da mulher negra ganha evidência. Em uma letra que promete vingança e questiona: “eu sou a preta que tu come e não assume/ e não é questão de ciúmes/ tampouco de fé/ por acaso eu não sou uma mulher?”.
A figura incorporada por Luedji anda pela cidade e lança sua promessa de vingança e praga aos ventos. No gargalhar da ironia, a tônica de drama e tristeza alçada pela interpretação de “Ain't I a woman?” encontra um processo de cura através do revide e do exercício da rebeldia. As flores, que fazem parte do arquétipo de inúmeras destas entidades, assumem o lugar de arma, que chicoteia uma parede e desarticula visão romântica presente no buquê, pois, assim como em inúmeras cantigas, contos e arquétipos das pombagiras, as flores são bonitas, cheiram bem, mas também tem espinhos e podem machucar.
Desse modo, entendemos que em “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água”, há dois modos de convocar a presença das visualidades das pombagiras e das encruzas fêmeas, uma diz sobre uma vivência transgressora da liberdade no cotidiano, e é articulada quase que discretamente pela montagem e gestos presentes na performance do andar pela cidade. Outra aposta na fabulação assumida e convoca efeitos especiais, roupas características e uma performance gestual repetitivamente arraigada ao arquétipo de tais falangeiras.
Seguindo a análise, retornamos à faixa “Chororô” para observarmos outros elementos corporais que se manifestam na encruzilhada fêmea que o álbum apresenta. Na música, ao referir-se àquilo que não possui, Luedji Luna se olha no reflexo do espelho de uma barraquinha de camelô na rua, usando uma coroa em seu cabelo crespo e volumoso.
A partir desta imagem, o que impera é uma percepção para a dualidade indicada na letra da música: a negação e a possibilidade de afirmação de sonhos guardados “dentro de si” em sua autoimagem. A negação é retomada com a letra de Nina Simone e encontra amparo para tornar-se um modo discursivo e de poder, a partir da modernidade e de seus aspectos coloniais, no qual faz a sua própria identidade, escorada na “outrificação” de corpos pelo cerceamento de gênero, raça e sexualidade.
Ainda que o clipe de Luedji Luna se refira à mulher no lugar da maternagem e do cuidado vemos nos frames que a cantora está grávida de seu primeiro filho, Dayo - ela subverte essa lógica situada em um âmbito de controle e leva o cuidado e a relação com o feminino para outro lugar, que não corresponde à normativa moderna dominante. Luedji Luna coloca em evidência os aspectos coloniais e a percepção binária do mundo, de espaços e de identidades.
Os reflexos dos espelhos, os frames centrados no corpo de Luedji Luna, inscrevem-se enquanto os sentidos deste “ser e tornar-se mulher negra”, que carregam um caminho entre a opressão, a solidão - Luedji Luna no início da narrativa aparece sozinha festejando o Carnaval - o acolhimento no permitir-se chorar na canção “Ain’t Got No”, e a reivindicação vingativa diante do abandono expresso na música “Ain’t I a woman?”.
O álbum-visual apresenta uma narrativa composta por diferentes sentidos, implicando o ver/escutar/sentir para os afetos de e entre mulheres negras. A possibilidade de se autodefinir é preponderante nesse processo de cura de todo o arrebatamento de sentidos políticos na qual a modernidade-colonialidade se impõe (Segato, 2012).
Essa vivência é o que observamos no álbum de Luedji Luna. Em todas as relações que a cantora apresenta ao fazer seu corpo transitar pela praia, pela festa, como pombagira, construindo relações consigo mesma e com outras mulheres negras, ela manifesta um modo de resistência. Na faixa “Lençóis”, ela declara: “Eu não me sinto só na imensidão do céu”. Neste momento, Luedji Luna transita entre este lugar de denúncia da negação de identidade e da solidão de mulheres negras, caminhando para a autodefinição e a criação de espaços coletivos como tática de pluralizar a história. O frame aponta mulheres negras de diferentes gerações ao redor de Luedji Luna. Entre elas, a menina mais jovem é envolvida por uma fita vermelha e termina o clipe deitada no colo da cantora.
Figura 5 - Frames de “Lençóis” (Reprodução/Youtube).
Há um aceno para uma outra construção espaço-temporal nesta narrativa. Em relação ao espaço, as mulheres negras ocupam uma relação íntima, familiar e acolhedora, e não unicamente privada, e por isso, dissidente de uma formação nuclear da família moderna dependente da privação patriarcal. Além disso, esta presença reifica a corporificação desta narrativa. São os corpos delas que narram. Na cena, elas estão dentro de uma construção antiga, são as ruínas do castelo Garcia D’Ávila, construído durante o período colonial em Salvador (Ferreira & Farias, 2021, p. 81). As ruínas do castelo agora são ocupadas por mulheres negras, indicando por uma dupla visão: as disputas com a história moderna-colonial; e um lugar também de possibilidade na formação política de redes coletivas de afeto.
As temporalidades são posicionadas de modo a vermos diferentes gerações de mulheres. No centro, a menina jovem indica uma possibilidade de futuro que se almeja construir: mais plural e inclusivo, a partir de um presente encarnado pela rede coletiva de mulheres negras. Assim, o espaço seguro é um conceito indicativo de projeção no tempo e no espaço, afinal são “[...] instituições comunitárias negras de importância vital para o desenvolvimento de estratégias de resistência” (Collins, 2019, p. 186). O contemporâneo é o lugar de ação e abertura de diferentes temporalidades, como acompanhamos no clipe, que acionam outros imaginários possíveis para um futuro a ser construído. Assim, a narrativa parece indicar a trajetória de mulheres predecessoras que foram encobertas pela metodologia moderno-colonial, para serem relidas, avistando um projeto de continuidade na história.
Considerações finais
A experiência do álbum visual de Luedji Luna convoca uma série de referências que mobilizamos neste trabalho a partir das noções de encruzilhada e de espaço seguro, observando a movimentação/ performance do corpo da artista como uma mulher negra construindo relações com a cidade, com a festa, com a fé, com ela mesma – no espelho – com outras mulheres.
A encruzilhada está presente como cenografia, mas também como forma conceitual que enreda a narrativa, através da multiplicidade de contradições afetivas acionadas pelo eu lírico das canções e no gestual das imagens. O trabalho da artista reposiciona a encruzilhada como território de possível habitação para a mulher negra, demonstrando a importância de trazer a imagem mental do feminino ao assumirmos esta categoria, seja de forma analítica ou religiosa, na forma de nkissi ou deidade desencarnada-encantada. As encruzilhadas podem ser fêmeas e ao mesmo tempo transgredir as normas do patriarcado. Nas esquinas do repertório das religiões afrobrasileiras, novos modelos de equidade de gênero e retomada das agências parecem ser anunciadas.
São esses os elementos que encontramos ao construirmos as miradas que entrecruzam os movimentos de autodefinição e de construção de um espaço seguro pela artista. Estão todos postos nessa encruzilhada fêmea, na forma de uma Pombagira que, quando questiona, também se afirma como mulher. Abrem-se, nesse caminho, novas questões referentes às percepções de temporalidades, que podem ser tomadas como desdobramentos deste movimento analítico realizado aqui: o corpo da artista que baila, como na definição de Martins (2021), enquanto define a si própria e redesenha o tempo em espiral.
Referências
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____________________. (2019a.) Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Mórula editorial.
Notas
Informação adicional
Agradecimentos: Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (Capes) pelo apoio às investigações que possibilitaram a
escrita deste artigo.