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Padre José Maurício Nunes Garcia e o hábito da purificação:Sociabilidade e música no Rio de Janeiro do Oitocentos
Priest José Maurício Nunes Garcia and the habit of purification: Sociability and music in Rio de Janeiro from the nineteenth century
Intellèctus, vol. 18, núm. 1, pp. 2-13, 2019
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Artigos Livres

Intellèctus
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
ISSN-e: 1676-7640
Periodicidade: Semestral
vol. 18, núm. 1, 2019

Recepção: 23 Agosto 2018

Aprovação: 23 Abril 2019


Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Compartilhamento Pela Mesma Licença.

Resumo: Almejamos com esse artigo fazer uma breve análise sobre a chegada da corte portuguesa no Rio de Janeiro e o impacto transformador no ambiente artístico da cidade. Utilizaremos a trajetória do padre José Maurício Nunes Garcia e a sua titulação do Hábito de Cristo, para demonstrar como ocorreu sua ascensão pelo reconhecimento de seus serviços prestados. Traçaremos ainda uma análise sobre os hábitos de corte e a edificação da capela real no século XIX no Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Mobilidade social, Hábito de Cristo, padre José Maurício Nunes Garcia.

Abstract: We aim with this article to make a brief analysis about the arrival of the Portuguese court in Rio de Janeiro and the transformative impact on the artistic environment of the city. We will use the trajectory of the priest José Maurício Nunes Garcia and his titling of the Habit of Christ to demonstrate how his ascension occurred in recognition of his services rendered. We will also analyze the court habits and the building of the royal chapel in the XIX century in Rio de Janeiro.

Keywords: Social mobility, Habits of Christ, priest José Maurício Nunes Garcia.

Introdução

O ano de 1808 mudava os rumos da vida de José Maurício Nunes Garcia. Pensar na trajetória deste clérigo e as variações políticas que atravessou, perpassando o antes e depois da chegada de d. João VI no ultramar nos traz a impressão da transformação na vida desse ator social concomitante às mudanças de sua cidade. O percurso de sua vivência artística expunha sua capacidade de adaptação aos estilos: musicais e sociais da corte. Tais características Tornaram José Maurício, um espectador raro inserido na história do império. A ascensão social, trajetória artística e a importância musical que possuía no Rio de Janeiro constituía uma rede de proteção que afirmou sua expoência. Vinculado a referências de peso, tanto nas igrejas, como nas altas rodas sociais, tais peculiaridades fizeram de José Maurício, um indivíduo de trajetória ímpar de seu tempo.

A nossa pesquisa visa compreender como José Maurício conseguiu alcançar tamanho domínio no panorama musical da cidade. Atuante na regência da capela real, nas irmandades de São Pedro e Santa Cecília e nas festividades oficiais da corte. O padre era requisitado para encomendas de peças musicais em diversas outras irmandades e igrejas do Rio de Janeiro. O fomento artístico após a chegada da corte portuguesa gerou uma malha de sociabilidade em torno de José Maurício e seus alunos que desencadeou auspiciosas relações devido o prestígio nos meios artísticos e o talento do músico. Esta influência permitia certa prelazia no panorama da cidade, pois, o padre ministrava um curso gratuito de música para o preenchimento de vagas nos coros e orquestras. Nesse cenário ocorria naturalmente o incentivo para seus alunos que alocados no oficio musical ingressavam no ambiente de trabalho. Embora houvessem embargos, tais artífices começavam a sua vida profissional, como expõe Cleofe Person:

A irmandade de Santo Antônio de Mouraria (RJ) Erecta na Sé da Catedral da cidade, protesta contra o Mestre-de-Capela José Maurício Nunes Garcia que leva os seus alunos (Aprendizes) para atuarem nas cerimônias da Igreja’ [...] ’cobrando para si no caso de impor se-lhe a contratação de músicos de profissão. (ACPM, 2013: 65-15-01)

A mesma relação de poder é vista por Anderson Oliveira, que enfatiza a inserção de músicos formados pelo curso particular de José Maurício, localizado na casa da Rua das Marrecas como instrumento para suprir o fomento artístico nos coros das igrejas.

Seis anos depois de ter se tornado sacerdote, José Maurício foi convidado a assumir a função de mestre-de-capela da Sé Catedral do Rio de Janeiro. A conjugação da carreira eclesiástica com o talento musical deve ter pesado nessa indicação. Afinal, cabia ao mestre-de-capela funções importantes como as de organista, regente e compositor da Catedral. Além disso, era responsável por organizar toda a parte musical das cerimônias religiosas realizadas na Sé pela Câmara da cidade. Também estava ao seu encargo tanto o preparo quanto a contratação dos músicos que atuavam na igreja. Há indícios de que, diante desta prerrogativa, o padre José Maurício tenha dado emprego a alguns de seus alunos de música formados na escola que manteve em sua residência. Este expediente deu a ele algum tipo de poder, por ter o privilégio de controlar aquelas contratações (OLIVEIRA, 2011: 51-66).

Tais ocupações permitiram o padre José Maurício investir em seus alunos na inserção dos coros das igrejas e no auxilio de sua produção artística, desta forma os músicos iniciantes conseguiam visibilidade e reconhecimento na comunidade e meio religioso.

Incensos, fumaça e pólvora: Prenúncios da Corte no Rio de Janeiro

A corte lusitana de d. Maria I, regida pelo príncipe d. João, buscou estratégico refúgio em sua maior colônia (MANCHESTER, 1968:44). Em meio às pressões napoleônicas, partiu para o ultramar e tornou do Rio de Janeiro a sede do império português. O translado da corte para os portugueses aparentava ser uma atitude trágica e covarde, os deixando em um período de crise a mercê das incertezas conflitantes na eminência da invasão das tropas de Napoleão Bonaparte. Este acontecimento desencadeou uma série de fatos inusitados temperados pelo misticismo: superstições; previsões e intervenções divinas que revelava a mentalidade confusa da população em meio a tormenta. Os súditos presenciavam a perda de sua identidade com a partida da família real, nesse momento caótico, Mello de Moraes expunha um incidente a respeito retirada da corte:

Quando se tractava em Lisboa de objectos de maior gravidade, apareceu um incidente burlesco, que pelo seu ridículo não se lhe deu peso algum: que foi , uma beata a propalar, que lhe fora revelado, que o príncipe regente, não devia empreender a viagem, para o Brasil, porque a nau em que se embarcasse, havia de naufragar. O príncipe soube da pretendida revelação da beata: e quando já havia desprezado a impressão, que lhe causa semelhante desconcerto de ideias, contou o fato a José Egydio, acrescentando, que se dizia que a beata era um anjo; ao que José Egydio respondeu: Sim, mas de certo, que não tem asas, e merecia uma de pau (MORAES, 1872: 73).

Entre visões e incertezas havia certa revolta em relação à transferência da monarquia. troncos de diversas famílias da alta nobreza partiram para as terras tropicais. Os marqueses de Angeja, Lavradio, Alegrete; Torres Novas; Pombal. Os Condes de Caparica; Belmonte; Redondo; Calvário, são alguns exemplos dos que compunham aproximadamente quinze mil pessoas, que deixaram os súditos lusitanos à mercê de Napoleão (ASSUNÇÃO, 2008: 43).

A população portuguesa indignada e revoltada, não tinha o poder de interferir em tal fato. A identidade do súdito era o rei, segundo São Thomás de Aquino: “A igreja era considerada o Corpus Christie, sendo guiada pelo próprio cristo como a cabeça da igreja e do cristianismo”, em termos na esfera política como assenta Ferrol: “o rei está para o reino, assim como a alma para o corpo, e Deus para o mundo” (FERROL, 1957: 210). Sobretudo em uma sociedade de ordens onde a razão é regida por um só indivíduo, logo o reino português só possuía duas vias a trilhar: agregar-se a Napoleão ou permanecer inconformada quanto à partida do legitimador de sua identidade.

O momento estava longe de lembrar para o povo lusitano os ideais que coroava a história portuguesa. Os grandes heróis do reino exaltados por d. João V através da arte, e o espírito transformador de d. José I que acabava de restaurar a autoestima da população, após o terramoto que havia arruinado Lisboa. O povo se dividiu no sentimento de impotência e de revolta a ponto de uma parcela dos súditos abnegarem ao príncipe d. João. E se transformarem em bonapartistas. Uma das figuras insurgentes do período foi o padre Antonio Teles. Segundo Paulo de Assunção a intenção desta parcela da população vislumbraria no governo de Napoleão algum alento para Portugal (ASSUNÇÃO, 2008: 43).

O translado da corte, entretanto, foi de grande importância para o crescimento da nova capital do reino. Inserido nessa esfera de transformação, o padre José Maurício havia conquistado parte do cenário musical do Rio de Janeiro.

A presença da corte trouxe aos súditos do ultramar uma nova adaptação aos hábitos. Tal conjuntura favoreceu a criação de diversas instituições para o aprimoramento da estrutura administrativa. Para nosso contexto, citamos a criação da capela real do Rio de Janeiro inspirada em sua congênere portuguesa que nos trópicos seria um alento que expressaria a importância e referência religiosa e artística na nova sede do reino..

A capela real do Rio de Janeiro foi instituída por d. João VI em 1809, seguindo as tradições da corte lisboeta. A legitimação oficial de uma capela para os ofícios régios primava, sobretudo, pela presença do monarca na igreja atuante nas missas, batizados, casamentos, sagrações e solenidades e toda celebração que era importante para a afirmação da coroa em obediência à igreja católica (CARDOSO, 2007: 07). Estes hábitos cotidianos promoviam a socialização da corte com os seus súditos, além de revelar a importância da religião como instrumento de controle social e propaganda para a monarquia. A atividade religiosa era um evento de encontros sociais, que guardada às devidas limitações, permitia a observação entre súditos e o rei. De acordo com Diogo Curto: “A capela real surge como um local privilegiado simultaneamente do culto divino e do culto do monarca, pois quem ofende a Cristo presente na hóstia, acaba por ofender o próprio Rei, que assim se apresenta como uma imitação de Jesus” (CURTO, 1993: 144).

A capela real portuguesa era reconhecida pela produção musical, pois abrigava a orquestra real e a corte de músicos era tradicional desde suas edificações na corte lisboeta no século XVI (CURTO, 1993: 144). O mestre de capela era o responsável por administrar os arquivos da igreja, organizar os eventos, separar músicos e preparar a orquestra, além de realizar o pagamento dos funcionários e toda a função administrativa e burocrática da instituição. Esse cargo era ocupado geralmente por um músico de destaque, compositor e instrumentista, era comum que o mestre de capela também fosse um clérigo, pela necessidade do conhecimento litúrgico e por se tratar de um ambiente religioso.

O padre José Maurício se enquadrava nos padrões dessa função, pois, era organista, regente e compositor. Tais características foram benéficas tanto por suas qualidades musicais, quanto para o reconhecimento de sua produção artística, que já

possuía algum renome, pois suas obras constavam no testamento de seu professor de música Salvador José de Almeida Faria unido ao nome de outros compositores e mestres de capela da corte portuguesa (CAVALCANTI, 2015: 110).

As funções administrativas exercidas na igreja, como a contratação e o pagamento de funcionários o permitiu ter contatos com outros funcionários da administração régia proporcionando meios de acesso e maior influência para o contato do príncipe d. João.

Esse cargo ocupado por José Maurício rendeu boa remuneração em seus primeiros anos. Ainda na primeira metade do século XIX recebia como côngrua a quantia de 125$000 (cento e vinte e cinco mil réis), sendo equivalente a 600$000 (seiscentos mil réis) anuais. Valor este maior que seu antecessor, João Lopes Ferreira, que recebia o equivalente a 45$000 (quarenta e cinco mil réis) por trimestre, ou, 180$000 (cento e oitenta mil réis) anuais. Tal remuneração alcançada por José Maurício fazia jus ao cargo de mestre de S.A.R. ocupado em Lisboa por Marcos Portugal (MARQUES, 2008: 64).

O prestígio por tal ofício se expandia para além de sua função pública. A sua notoriedade o fazia alvo de toda sorte de encomendas para a música de solenidades religiosas e festividades oficiais da cidade. A irmandade de São Pedro dos Clérigos o pagava anualmente por suas encomendas e serviços musicais a quantia de 90$000 (noventa mil réis) (DINIZ, 1983: 41-53). José Maurício contava ainda com as obrigações para a realização do calendário comemorativo oficial do reino, tal a posse de vice-reis, casamentos, óbitos e batizados da família real e nobreza (fatos ocorridos em Portugal, porém comemorados na colônia para a afirmação do poder real e legitimação da coroa). Conforme apontou Cleofe Person de Mattos: “Há indicações de um “Te Deum” composto em vinte e nove de novembro do ano de 1798, para o nascimento do príncipe D. Pedro. A obra não é identificada, porém, seu pagamento para a realização da solenidade foi de 102$400 (cento e dois mil e quatrocentos réis)” (MATTOS, 1997: 47). Ainda de acordo com a autora:

O conjunto musical utilizado nessas cerimônias seria arregimentado entre os músicos da Sé, muitos deles amigos de longa data, e os alunos do curso de música. Como havia de pagar antecipadamente os músicos e o reembolso nem sempre ocorriam com celeridade, essas arrematações não lhe garantiam uma renda estável. Mais tarde firmaria um contrato com o Senado da Câmara, de acordo com o qual recebia 102$400 (cento e dois mil e

quatrocentos réis) fixos anuais para reger as quatro cerimónias, e os músicos seriam pagos à parte (MATTOS, 1997: 47).

A chegada do príncipe regente em 1808 promoveu uma série de transformações no âmbito artístico e cultural que permeava o conjunto de templos no Rio de Janeiro. As evidências comprovam a apreciação de d. João quanto à produção musical apresentada e organizada pelo padre José Maurício na então sé, igreja de Nossa Senhora do Rosário. Uma das atitudes de Sua Alteza Real, no ano de 1809, foi o hábito da Ordem de Cristo dado ao músico.

A promoção deste título transmite uma série de questionamentos: possivelmente José Maurício foi um dos primeiros súditos do clero negro tropical a receber essa mercê das mãos do príncipe? É possível que sim, em termos, para a legitimidade do clero mestiço, o padre se fez um importante exemplo a partir de suas obras sacras que receberam elogios e investimentos. Tal gratificação demonstra a aprovação do regente que não era leigo no conhecimento musical. De acordo com Assunção:

Em Portugal as ideias iluministas entraram lentamente e não fizeram parte da formação de D. João, que preferia muito mais as artes ao debate das ideias políticas”. (...) “D. João possuía hábitos similares ao doo seu pai, D. Pedro

III. Era religioso e apreciava a música barroca. Vivia no Palácio de Queluz, num idílio bucólico que os jardins da propriedade ofereciam. (ASSUNÇÃO, 2008: 62).

A isso se acresce o fato de que uma das principais características remetentes à personalidade joanina era o apreço pela música e religiosidade, tal como afirma Porto Alegre:

“Há soberanos que são seguidos nas suas jornadas por seus monteiros, pelos seus cães, pelos seus cavalos, outros por seus atores e histriões; muitos pelos seus soldados e alguns pelos seus bufos e parasitas; o senhor D. João VI era acompanhado pelos seus padres e pelos seus músicos” (PORTO ALEGRE, 1856: 01-02).

A estima do regente pela música sacra o precedia e isso lhe rendia comentários, tais como o do diplomata prussiano conde de Flemming: “O rei de maneira alguma é carola [...] No entanto, frequenta assiduamente as igrejas, dando muita importância à música sacra e fazendo que os outros assistam a mesma" (OBERACKER Jr. 1985:260). Pequenos bordões também eram cantados á época:

Que fazes João?

Faço o que me dizem. Como o que me dão. E vou para Mafra.

Cantar o Cantochão (VASCONCELOS, 1870: 127)

A tradição do mecenato português legava boa fama em termos de produções desde d. João V. A música era uma das características da família Bragança, pois a própria dinastia era composta de monarcas músicos. Nesse aspecto vale mencionar a rainha Maria Bárbara de Bragança que assumira o trono da Espanha como consorte de Felipe VI e a influência que Maria I obteve na juventude na corte de seu avô, o rei d. João V. Estes pilares fizeram da capela real de Lisboa um dos espaços mais requisitados por músicos europeus dentre os quais podemos citar: Domênico Scarlatti; David Perez e Nícollo Jomelli. Nomes que certamente influenciaram o padre José Maurício, visto que no testamento de seu professor Salvador José de Almeida Faria, continha partituras desses artífices da Sé Patriarcal (CAVALCANTI, 2015).

Tais detalhes revelam a influência musical de José Maurício, o que provavelmente possibilitou a aceitação de sua arte por parte do príncipe d. João. As influências do mestre de capela corroboravam com o repertório da capela real lisboeta, o que causou fácil identificação emocional e que atesta a credibilidade e o acúmulo de cargos de José Maurício no meio artístico do Rio de Janeiro.

A percepção e identificação emocional se referem à habilidade para perceber e identificar as emoções próprias e alheias, incluindo na voz das pessoas, nas obras de arte, na música, nas histórias. (...) - facilitação emocional, envolve a habilidade para usar as emoções para facilitar os processos cognitivos na solução de problemas, tomada de decisões, relações interpessoais (ANDRADE; GARCIA; GARGALLO, 2008: 13).

O hábito de Cristo era um título militar-religioso, sobre o domínio da Coroa portuguesa desde o século XVI (OLIVAL, 2010). Alcançar esta mercê afirmava a soberania do rei que concedia provisões e benefícios e reafirma o estabelecimento da hierarquização social. O súdito a pedir tal graça reconhece o poder central, no caso o

monarca e atesta a sua superioridade ante aos demais súditos do reino (HESPANHA, 1993). Tais relações configuravam uma esfera de socialização política entre a nobreza e a coroa imperial (RAMINELLI, 2006: 62-107).

As relações entre a coroa portuguesa e seus súditos legitimavam o domínio dos espaços e funções no ultramar. Condições estas que tiveram sua origem no período colonial contemplando os súditos moradores d’além-mar com mercês e benesses em troca de serviços prestados. Essa relação que advém da dependência alavancava a ascensão almejada por muitos plebeus do reino. O reconhecimento desses servidores da coroa acompanhava títulos ordenados que geralmente estavam acima de sua posição social hierárquica. O hábito da Ordem de Cristo era um dos mais desejados títulos. Tal afirma Raminelli: “incapaz de manter tropas, construir fortificações e resguardar minimamente a longa Costa atlântica, a monarquia valia-se dos prestimosos serviços dos moradores. Para além do Hábito de cavaleiro, o provimento das patentes militares atuava como estratégia régia para assegurar a soberania e a defesa das possessões” (RAMINELLI, 2015: 175).

O hábito de Cristo foi concedido ao padre José Maurício em vinte e seis de abril de 1809:

A concessão do Hábito da Ordem de Christo foi detonada com o gesto espetacular de D. João, ao ouvir o padre cantar na Real Quinta, algo de Cimarosa: Entusiasmado, o Príncipe tira do peito do Visconde de Vila Nova da Rainha a condecoração que aí brilhava e coloca-a na batina do padre, dois meses mais tarde, principiam as medidas administrativas. (ACPM, 2013: 02- 06-05).

A obtenção desse título foi um ato grandioso que definitivamente representa uma ruptura na trajetória do padre. A proximidade com o príncipe d. João e a convivência com a nobreza possibilitada pela música elevou o padre à intimidade real. Tal acontecimento transpunha o limite de seu desempenho, pois o almejado título era condizente com os cargos que ocupava de sua atividade na capela, ingresso na irmandade de São Pedro dos clérigos e a sua atuação musical a serviço da corte, que se estreitava a partir das celebrações religiosas e solenidades oficiais. O alcance do hábito de Cristo legou ao padre José Maurício o prestígio digno por seus serviços prestados e afirmou sua capacidade, conferindo credibilidade diante da corte portuguesa. Como expõe o decreto da Ordem do hábito de Cristo Quinze de Fevereiro de 1810:

Dom João por Graça de Deos, Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves, d’aquem e d’além mar, em África de Guiné e da Conquista, navegação e comercio da hetihopia, Arábia, Pérsia, e de Índia. E do Mestrado, Cavalleria e Ordem de Nosso Senhor Jesus Christo: Faço saber a vós, monsenhor Almeida do meo conselho, que ora estaes encarregado de lançar o Hábito da dita Ordem, que José Maurício Nunes Garcia, mostrando desejo e devoção de servir a Nosso Senhor, e a mim, na mesma Ordem, Me pedio por Mercê, houvesse por bem recebe-lo he manda-lo lançar o Hábito della: E tendo-lhe Eu feito essa Mercê, e a Graça da Dispensa das Provanças, e Habilitaçoens de sua pessoa, havendo-o por habilitado receber: Por esta vos mando, Dou poder e comissão que lhe lanceis o Hábito dos noviços della na minha Real Capella de Nossa Senhora do Monte Carmo, que lhe serve de cabeça da Ordem nesta Corte, na forma na definiçoens e de que assim me foi lançado, fareis assentamento no livro de matrícula dos cavalleiros noviços, e nesta carta fareis guardar no cartório da Arca da parte das cartas dos Hábitos que na ditta minha Real Capella Mando lançar e lhe passareis vossa certidão com o trabalho desta para sua guarda. Esta se cumprirá sendo registrada no registro geral das Mercês e passa pela Chancelaria Real da Ordem. Rio de Janeiro Quinze de Fevereiro de 1810. (...) O Príncipe com guarda: Marquez de Angeja: Presidente: Carta pela qual V.A.R. Manda lançar o Hábito dos Noviços da Ordem de Christo a José Maurício Nunes Garcia. Como nella se declara. Para V.A.R. Por portaria do registro e secretaria de Estado dos Negócios do Brazil de vinte seis de Abril de 1809, e Despacho do Tribunal da Mesa de Consciência e Ordens de Vinte e oito de Junho do mesmo anno . Francisco José Ruffino de Sousa Lobato a fez escrever. Faustino Maria de Lima Fonseca e Gutierrez o fez. (ARQUIVO NACIONAL, 1809).

O processo decorreu por um ano até José Maurício ter seu título, mas obteve de imediato a concessão para utilizar a insígnia da ordem em público e a dispensa de provanças e habilitações que diminuíram o tempo e a burocracia para a obtenção da mercê. Alguns aspectos se fizeram interessantes nos processos burocráticos em que José Maurício estava envolvido, principalmente na rapidez com que esses procedimentos ocorriam. Tais suspeitas podem estar ligadas à influência social e a comprovação dos cargos que ocupava. O privilégio da rede protecionista que o envolvia junto à administração real e da igreja.

O decreto do príncipe Regente demonstra a promoção de José Maurício nos princípios da fundação da capela real. A mercê de mestre e cavaleiro da Ordem de Cristo concedida ao padre, promoveu o cargo de mestre de capela que já exercia na catedral da Sé transpondo-o para a capela real. O pedido de dispensa presente no requerimento encontra-se onde se lê: “E tendo-lhe eu feito essa Mercê e a Graça da Dispensa das Provanças, e Habilitaçoens de sua pessoa, havendo-o por habilitado receber: Por esta vos mando, Dou poder e comissão que lhe lanceis o Hábito dos noviços della na minha Real Capella de Nossa Senhora do Monte Carmo, que lhe serve de cabeça da Ordem nesta Corte” [...] (ARQUIVO NACIONAL, 1809).

A legitimação de José Maurício foi afirmada ao ser dispensado dos embargos e do julgamento que era cabido às autoridades eclesiásticas. Desta forma o príncipe fez uso de seu poder soberano para a consolidação e jurisprudência sobre a ocupação e atuação do noviço na Ordem do hábito de Cristo. Tais prerrogativas induzem ao pensamento de quão era o prestígio do padre junto ao príncipe regente. O lançamento ao hábito possuiu peso diferenciado da petição, pois esse decreto era acompanhado da dispensa de provanças e habilitações. De acordo com Hespanha:

No nível político-constitucional, os actos incausados (como as leis ou os actos de graça do príncipe), alterando a ordem estabelecida, são, por isso, prerrogativas extraordinárias e muito exclusivas dos vigários de Deus na Terra – os príncipes. Usando este poder extraordinário (extraordinaria potestas), eles imitam a Graça de Deus, fazendo como que milagres. Como fontes dessa graça terrena, introduzem uma flexibilidade quase divina na ordem humana. Como senhores da graça, os príncipes: Criam novas normas (potestas legislativa) ou revogam as antigas (potestas revocatoria); Tornam pontualmente ineficazes normas existentes (dispensa da lei, dispensatio legis); Modificam a natureza das coisas humanas (v.g., emancipando menores, legitimando bastardos, concedendo nobreza a plebeus, perdoando penas); Modificam e redefinem o “seu” de cada um (v.g., concedendo prémios ou mercês) (HESPANHA, 2005: 95-113).

Tais poderes responsabilizavam ao próprio regente. Principalmente no que tange as leis por ele outorgadas ou às pessoas beneficiadas pelas mesmas ordenações. Conforme Olival:

[...] não convem usar-se de tanto Rigor, mayormente com pessoas, que as leys fazem nobres E qualificadas, E que bastara que nas sentenças e provisois se diga por clausula geral, vista a dispensação que para este cazo se ouve de sua sanctidade, sem se declarar mais em particular, pois bastara ficar acostada aos autos, o Breve em que tudo se especifica (OLIVAL. 1991: 235)

A ação de d. João em conceder a mercê ao padre José Maurício, em termos de efeito se fez de forma natural contrastando com a visão depreciativa quanto à sua condição de filho de pretos forros. A sua origem não o impediu do alcance dessa obtenção, o que afirma o argumento de Fernanda Olival:

A partir dos finais do século XVI, a Coroa propiciou a abertura de exepções frequentes aos seus adeptos servidores. Do ponto de vista político, e da cultura política sedimentada pelo hábito da petição, é inegável que, no século XVI e XVII, a noção de serviços à sua Majestade ganha terreno nas condicionantes da hierarquização social, independente de outras marcas de

nascimento (OLIVAL, 1991: 236).

Estas práticas fortaleciam os poderes reais sobre todas as leis corroborando com o ato da graça que imitava a benevolência divina na concessão de atos milagrosos. Tal o processo do padre José Maurício e o seu dito “defeito de cor” que se fazia invisível aos olhos do príncipe regente que o reconheceu apenas por seu talento e o bom emprego de sua função que o fizera mestre de capela. De acordo com Raminelli,

no mundo ibérico, para receber títulos, assumir cargos eclesiásticos e postos na administração régia, os súditos não poderiam ter origens cristã-nova ou moura. Os defeitos de “qualidade” ou “defeitos mecânicos” eram também impedimentos, embora fossem menos graves e mais facilmente perdoados, segundo o caso, pela monarquia (RAMINELLI, 2015: 217).

Atualmente Francis Dutra (2010) avança com a pesquisa em termos da origem gentia, mulata e negra e defende que tais defeitos não foram concebidos como sanguíneos puramente, mas também qualitativos. Para Fernanda Olival (2005) a legislação não inibia a titulação de índios e negros no exercício de funções eclesiásticas e administrativas, sobretudo na ausência de homens brancos a serviço do reino.

Esse fator poderia impedir a sua promoção por preconceitos étnicos, porém isso não ocorreu. Segundo Raminelli: “Ao reconhecer e remunerar os serviços de índios e negros, a monarquia contrariava os princípios da hierarquia racial defendida, na qual ocorria o predomínio de súditos brancos e cristão velhos, ciosos de sua honra e privilégios” (RAMINELLI, 2015: 218).

A dispensa de provanças e habilitações conferia em termos, o protecionismo do príncipe regente ao padre, a contraponto, este que já houvera passado pelo processo de genere, o qual já havia analisado a questão de seu dito “defeito de cor”. Afirma Raminelli:

Com a intervenção régia, o mérito individual era poderoso o bastante para alterar a natureza defeituosa e tornar o militar valoroso de preto forro a nobre [...]’. ’Ninguém se desanime, nem pela falta de prêmio, nem pela baixeza de nascimento, cada um é capaz de fazer-se nobre, este é o segundo nascimento que depende do próprio valor, em que se nasce não para uma vida breve, mas sim para a eternidade de um grande nome (RAMINELLI, 2015: 218).

O principal diferencial foi à transposição de sua atuação na catedral da sé, para a capela real, ou, seja: a partir desta mudança passou a ter principal função como músico perante as outras igrejas do reino. Isso atraiu a visibilidade da população local e o convívio com a nobreza e família real.

Dispensado dos embargos e protegido do príncipe regente, José Maurício passou a receber doze mil réis de tença, efetivos pelos serviços de mestre de capela real e por professar o hábito da Ordem de Cristo. Tal ação foi decisiva para a carreira do padre José Maurício, que passou a ser um dos músicos nativos principais da corte no Rio de Janeiro em sua época.

Fontes

Acervo Cleofe Person de Mattos: 02-06-05

Acervo Cleofe Person de Mattos: 65-15-01

ANRJ. José Maurício Nunes Garcia. Caixa 331 – Doc. 1221. – Ordens Militares Comprovantes. 22-06. 1809.

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CAVALCANTI, Nireu (2004). O Rio de Janeiro Setecentista: A vida e a construção da cidade da invasão francesa à chegada da corte. Rio de Janeiro: Ed. ZAHAR. CURTO, Diogo R (1993). A Capela Real: Um espaço de Conflitos: Século XVI a XVIII. Porto: Editora.

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