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Sonhos proféticos de André Rebouças por uma Democracia Rural: o encontro do ‘maior inimigo dos Fazendeiros’ com as utopias cristãs de Tolstoi1
André Rebouças' Prophetic Dreams for a Rural Democracy: the meeting of the "Farmers' Greatest Enemy" with Tolstoy's Christian Utopias
Intellèctus, vol. 22, núm. 1, pp. 102-127, 2023
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Dossiê

Intellèctus
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
ISSN-e: 1676-7640
Periodicidade: Semestral
vol. 22, núm. 1, 2023

Recepção: 01 Março 2023

Aprovação: 15 Maio 2023


Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Compartilhamento Pela Mesma Licença.

Resumo: O artigo tem como objetivo analisar a visão de propriedade rural elaborada por André Rebouças, em seu projeto de construção de uma Democracia Rural no Brasil e na África. Nesse sentido, o texto está dividido em dois momentos em que o abolicionista propõe a transformação dos latifúndios em pequenas propriedades rurais. Na primeira parte, a proposta é estruturada a partir da leitura de seu livro Agricultura Nacional (1883) como referência, ao longo dos anos 1880, para sua luta em favor da extinção do monopólio territorial. Na segunda parte, o artigo investiga a apropriação das utopias cristãs de Tolstoi, a partir de 1888, pela militância intelectual de Rebouças em defesa da distribuição de terras e contra a miséria e a desigualdade social.

Palavras-chave: André Rebouças, Democracia Rural, tolstoísmo, latifúndio.

Abstract: The article aims to analyze the vision of rural property developed by André Rebouças, in his project of building a Rural Democracy in Brazil and Africa. In this sense, the text is divided into two moments in which the abolitionist proposes the transformation of large estate into small rural properties. In the first part, the proposal is structured from the reading of his book Agricultura Nacional (1883) as a reference, throughout the 1880s, for his fight in favor of the extinction of the territorial monopoly. In the second part, the article investigates the appropriation of Tolstoy's Christian utopias, starting in 1888, by Rebouças' intellectual militancy in defense of land distribution and against misery and social inequality.

Keywords: André Rebouças, Rural Democracy, Tolstoyism, large estate.

Introdução

Quando eu morrer, dirão: - Foi o maior inimigo dos Fazendeiros. Epitáfio que me agrada muito pela novidade porque ainda ninguém o teve no Brasil e, por ora, ainda ninguém quer ter. Mas a herança aí fica, e verás que aparecerão logo muitos bons e maior número de falsos Apóstolos para A Democracia Rural Brasileira. Quanto a mim desejo apresentar-me ao Juiz Supremo dizendo: - “Trabalhei, quanto pude, para extirpar do mundo o monopólio da terra e a escravização do homem. André Rebouças, 19 de junho de 1891. (REBOUÇAS, 1891, Registro de Correspondências, 19 jun. 1891).

O texto acima é parte de uma carta escrita por André Rebouças, no início de seu período de exílio. na Europa, ao seu amigo Zózimo Barroso. Suas palavras demonstram convicção em torno da originalidade e da importância de suas ideias e ações abolicionistas, além de uma preocupação com a sobrevivência de uma certa imagem de si. De fato, conforme diversas produções historiográficas, pode-se afirmar que Rebouças destacou-se como um dos mais conhecidos intelectuais negros brasileiros da segunda metade do século XIX, sobretudo em sua defesa por um projeto de abolição da escravidão, associado à extinção dos latifúndios e à construção de uma nova estrutura fundiária, baseada em pequenas propriedades de terra. (MATTOS, 2022; PESSANHA, 2005; SILVA, 2019; SPITZER, 2001) Essa proposta, chamada por

Rebouças de Democracia Rural, era bastante ousada e prometia gerar um grande impacto social, como pode ser observado, por exemplo, no trecho abaixo, extraído de discurso proferido em praça pública por Joaquim Nabuco, em 5 de novembro de 1884, no Recife.

O período atual, porém, não é de conservação, é de reforma, tão extensa, tão larga e tão profunda que se possa chamar de Revolução, de uma reforma que tire este povo do subterrâneo escuro da escravidão onde ele viveu sempre, e lhe faça ver a luz do século

XIX. Sabeis que reforma é essa? É preciso dizê-lo com a maior franqueza: é uma lei de abolição que seja também uma lei agrária. Não sei se todos me compreendeis e se avaliais até onde avanço neste momento levantando pela primeira vez a bandeira de uma lei agrária, a bandeira da constituição da democracia rural, esse sonho de um grande coração, como não o tem maior ao abolicionismo, esse profético sonho de André Rebouças. (NABUCO, 2005: 57)

Em sua campanha eleitoral para deputado-geral, em meio a aplausos, Nabuco reconhecia Rebouças como mentor intelectual da proposta quase revolucionária de Democracia Rural. Naquele momento, esse discurso tocava em uma ferida grave que despertava posições e atitudes distintas na sociedade brasileira. Ao longo dos anos 1870 e, sobretudo 1880, formou-se certo

consenso em torno da ideia de que o fim da escravidão era necessário e inevitável no país. O cenário mundial apontava para isso. A cada ano o Brasil assumia uma posição de vergonhosa exceção: era um país escravista entre nações livres civilizadas. Como um rápido dominó, a escravidão caía em diversas regiões do mundo desenvolvido, seja pelo avanço de formas capitalistas de produção que defendiam o trabalho livre e fomentavam novos mercados consumidores, seja pela expansão da uma nova moralidade humanista propagadora da extensão da liberdade e da cidadania. (ALONSO, 2015: 27)

Não havia, entretanto, acordo em relação à forma mais adequada de promover a abolição. Nesse momento, muitas dúvidas e discordâncias circundavam também as propostas de formação de um mercado de trabalho. Na época, inúmeros foram os debates a respeito da chamada transição do trabalho escravizado para o trabalho livre. Qual seria o modelo mais adequado e seguro para o progresso econômico do país? Como incluir a futura massa de ex-escravizados como mão de obra? O colonato ou o assalariamento? O trabalhador imigrante ou o nacional? No caso da imigração, qual seria o modelo mais adequado? A forma espontânea ou a subvencionada? (MACHADO, 1994: 52) A economia brasileira entraria em colapso com uma abolição imediata e sem indenização? Como garantir o progresso e o desenvolvimento do país após a extinção legal da escravidão?

André Rebouças propôs uma resposta original e bastante ousada para algumas dessas perguntas e inquietações relativas ao pós-abolição no Brasil. Neste estudo, em um primeiro momento, pretendo analisar sua visão de propriedade rural construída como um “sonho profético” de dissolução dos latifúndios em pequenos lotes de terra, registrado sobretudo em seu livro Agricultura Nacional (1883). Em um segundo momento, investigo a adesão de Rebouças às utopias cristãs de Tolstoi, como suporte intelectual para a transformação da estrutura fundiária e construção de um outro Brasil e, posteriormente, para a civilização da África.

Antes de iniciarmos o percurso anunciado no parágrafo anterior, é importante mencionar alguns conceitos e noções que fundamentam a reflexão proposta. André Rebouças será tratado como um intelectual, definido como pessoa dedicada à “produção de conhecimentos e comunicação de ideias, direta ou indiretamente vinculado à intervenção político-social.” (GOMES, HANSEN, 2016: 10) Seus escritos, leituras e ações serão tratados como expressões de sua militância intelectual entendida, conforme Jean-François Sirinelli (1994), como um

engajamento, uma atuação que tem como objetivo interferir na sociedade e contribuir na condução das decisões políticas em um sentido amplo. Segundo o autor, essa experiência ocorre em atividades que envolvem formas de produção, circulação e recepção de ideias e/ou produtos culturais e sofre mutações conforme interações com contextos específicos. (SIRINELLI, 1994: 9-10)

André Rebouças nunca ocupou formalmente cargos políticos nem se filiou a partidos. Sua atuação política, no entanto, ocorria nos bastidores, nas conversas, reuniões, cartas e sobretudo em seus textos publicados na imprensa, folhetos e livros pelos quais tentava influenciar deputados, senadores, ministros, latifundiários e empresários em favor de intervenções e reformas na sociedade. Essa movimentação política será analisada com base no conceito de cultura política.

De acordo com Ângela de Castro Gomes, a historiografia tem trabalhado o conceito de cultura política compreendendo-o como uma ferramenta capaz de explicar e interpretar o “comportamento político de atores individuais e coletivos, privilegiando suas percepções, suas lógicas cognitivas, suas vivências, suas sensibilidades.” (GOMES, 2005: 30) Nesse sentido, o trabalho com esse conceito pressupõe perceber as visões de mundo, as orientações e sentidos atribuídos pelos atores políticos a uma dada realidade, por meio da articulação de imagens, ideias, símbolos, crenças, valores, mitos, ideologias e vocabulário. Mesmo considerando a diversidade de culturas políticas existentes em uma mesma sociedade, todas elas geralmente apresentam um determinado projeto de Estado, de sociedade e uma certa leitura do passado e do futuro. (GOMES, 2005: 31-33; BERSTEIN, 1998: 350-363)

Agricultura Nacional: Por uma Democracia Rural

Em Agricultura Nacional: Estudos Econômicos. Propaganda Abolicionista e Democrática, Rebouças (1883) esboçou propostas de solução para aqueles que foram, sem dúvida alguma, os maiores dilemas do Brasil do século XIX. Como expressão de sua militância abolicionista, esse livro foi publicado originalmente em 1883, editado pela segunda vez em 1988, e hoje se encontra esgotado.

As primeiras ideias a respeito dessa reforma da estrutura fundiária no Brasil começaram a ser gestadas em artigos publicados por Rebouças, entre 1874 e 1875, no Jornal do Commercio.

Naquele momento, ele concluía uma fase de sua vida marcada por grandes dificuldades, fracassos e falências em projetos empresariais como engenheiro. (TRINDADE, 2011: 140-152) Suas experiências, inspiradas em uma economia de mercado dinâmica, com reduzida burocracia e baixa regulação estatal, esbarravam e conflitavam com a letargia de uma elite agrária conservadora, alimentada pelo “parasitismo” e pela dependência em relação à burocracia estatal. (CARVALHO, 1998: 119-121)

Agricultura Nacional reproduz e amplia os estudos produzidos nos anos 1870. A publicação é composta por 68 capítulos divididos em duas partes. A primeira apresenta um diagnóstico detalhado da produção agrícola de café, açúcar, algodão e fumo nas províncias do Império, considerando o quantitativo de sua produção a partir de suas condições climáticas, as características de suas terras, a hidrografia, os meios disponíveis para armazenamento e escoamento da produção, a relação dessa produção com a mão de obra escravizada, a concorrência na venda desses produtos a partir de comparações com outros países produtores, entre outros. Tudo isso é demonstrado por meio de tabelas, estatísticas e números retirados de estudos econômicos nacionais e estrangeiros, a respeito de agricultura e ainda de documentos oficiais, como os relatórios do Ministério da Fazenda.

A segunda parte do livro traz um Projeto de Lei de Auxílio à Agricultura Nacional em artigos detalhados, acompanhados dos resultados esperados a partir de sua aprovação. Como um homem de ciência de seu tempo, Rebouças fundamentava empiricamente seus argumentos lançando mão de estudos científicos de Economia, Agronomia, Botânica, entre outras. Ao final, temos uma perspectiva otimista e promissora para todas as partes envolvidas no processo produtivo: maior lucro e rentabilidade para os fazendeiros e libertação dos antigos laços de dominação para imigrantes e ex-escravizados, transformados em pequenos proprietários.

Até então, os debates em torno da transição do trabalho escravizado para o trabalho livre, travados nos Congressos Agrícolas de 1878, apontavam para soluções como trabalho assalariado, sistema de parceria ou de arrendamento. Nesse cenário, em seus estudos sobre economia e agricultura, Rebouças inovava ao defender uma proposta em que os imigrantes e os futuros libertos assumiriam a condição de pequenos proprietários de terra. Assim, em seu entendimento, a extinção legal da escravidão deveria pavimentar o caminho para a democratização do acesso à terra, assegurando a real integração do ex-escravizado à estrutura da sociedade. (JUCÁ, 2001:105)

Em Agricultura Nacional, o Brasil de André Rebouças é um imenso território, pouco e mal explorado, mas, ao mesmo tempo, potencialmente produtivo. A seu ver, faltava racionalidade na exploração das riquezas, o que o levou a propor um diagnóstico do problema e também uma solução. O latifúndio e a escravidão são apresentados como os dois pilares que sustentavam o profundo atraso da agricultura brasileira e do país, como um todo. (JUCÁ, 2001: 114) O caminho rumo ao desenvolvimento econômico, ao progresso e à civilização passava necessariamente pela destruição desses alicerces. Ambos precisavam ruir, caso contrário a abolição seria incompleta. (JUCÁ, 2001: 95)

Para o autor, a superação do atraso passava também por uma reestruturação das atividades agrícolas com base em pequenas propriedades rurais. Essa compreensão diferencia Rebouças de outros abolicionistas de seu tempo, que se limitavam a defender o fim do cativeiro e a transição para o trabalho livre. O abolicionismo de Rebouças previa, portanto, a integração social do futuro ex-escravizado, como condição necessária para o progresso do país e meio capaz de quebrar o monopólio da terra, visto como o maior obstáculo à construção de uma democracia genuína e de um capitalismo dinâmico. (SOARES, 2017: 265) O projeto de Democracia Rural era ambicioso e tinha como proposta a reestruturação econômica e social do país, por meio da conciliação de vários segmentos sociais. Imigrantes, ex-escravizados, homens livres pobres e fazendeiros deveriam fazer parte de um todo, cada qual com um lugar bem definido, mas estreitamente ligados por uma interdependência harmônica. (AZEVEDO, 1987: 101-102)

O plano de Rebouças era transformar latifúndios em colônias agrícolas que produziriam a riqueza do país. Em centenas de páginas, o livro tenta persuadir os latifundiários de que deveriam aderir ao modelo da Democracia Rural, argumentando que seu patrimônio aumentaria significativamente pela transferência do padrão de riquezas do cativeiro para a terra em produção. (LESSA, 2001: 5-7)

Para Rebouças, a chave de superação do atraso no país estava na figura dos pequenos proprietários de terra. Estes, ao produzirem para uma economia de mercado, poderiam se tornar “moléculas” básicas e fundamentais para o progresso. (LESSA, 2001:5) Mas, de acordo com Rebouças, as terras dos grandes fazendeiros não seriam distribuídas gratuitamente aos libertos ou imigrantes. Tal medida ia de encontro ao seu pensamento liberal, ferindo o princípio da conquista por meio do esforço individual. Sua proposta era que os latifundiários dividissem suas fazendas em pequenos lotes, vendidos ou arrendados para imigrantes e ex-escravizados.

Esses assumiriam a responsabilidade pelo trabalho de produção agrícola propriamente dita, enquanto aos fazendeiros caberia a transformação da matéria-prima recebida e o escoamento da produção, nas fazendas ou engenhos centrais. (PESSANHA, 2005: 111-112) Outro caminho seria a distribuição, também para imigrantes e ex-escravizados, das terras devolutas do Estado, nos terrenos marginais às estradas de ferro.

No projeto de Rebouças, a pequena propriedade rural não deveria existir, necessariamente, apenas enquanto unidade independente e autônoma em todas as fases do processo produtivo. O autor propõe que se aplique no Brasil o princípio da centralização agrícola, por meio da criação de fábricas, fazendas ou engenhos que atuariam como unidades centrais agregadoras de um conjunto de pequenos produtores agrícolas, fornecedores de matéria-prima que deveriam ser processadas por uma estrutura forte. A democratização da terra passaria, em um primeiro momento, pela divisão dos latifúndios em pequenos lotes de 20 hectares. Os pequenos produtores venderiam suas colheitas para as fazendas ou engenhos centrais. Esse modelo teria o mérito de fortalecer pequenos produtores independentes, combatendo assim outros sistemas de acesso à terra como parceria e colonato, responsáveis pela exploração e subserviência dos homens livres em relação aos grandes fazendeiros. (JUCÁ, 2001: 96)

No seu entendimento, essa unidade central financiaria, como um banco territorial, o ciclo produtivo de seus pequenos associados. Assim, tanto por seu papel de financiadora como de processadora e comercializadora, a unidade central poderia garantir a introdução do progresso técnico nas pequenas unidades e o consequente fortalecimento dos pequenos proprietários de terras que atuariam como seus produtores satélites. Desse modo, seria possível o desenvolvimento de formas mais avançadas de produção, socialmente mais justas e capazes de fundar um novo tipo de riqueza. A proposta idealizada por Rebouças apostava na ferrovia de penetração que poderia favorecer a ocupação de terras virgens não utilizadas, ampliando a produção. Seu projeto de Democracia Rural é um modelo geral que abrange tanto a pecuária quanto a agricultura e poderia sofrer adaptações conforme as variações pedológicas, climáticas e morfológicas do imenso território brasileiro. (LESSA, 2001:6)

André Rebouças, ao defender a extinção do latifúndio improdutivo, “mergulha em especificações sobre o cadastramento de terras, loteamento de terras devolutas, colonização nos eixos ferroviários, transmissão de propriedades pelo simples endosso de títulos, inviolabilidade

da cabana e do lote apossado, etc.” (LESSA, 2001:5). O caminho para o alcance desse objetivo seria a aplicação de um imposto fundiário progressivo, de acordo com a dimensão física das propriedades. Segundo o autor, os proprietários de terras improdutivas pagariam altos impostos e assim seriam impelidos a adotar outro padrão de organização produtiva. A Lei de Terras de 1850 deveria ser modificada, de modo que as terras devolutas pudessem se tornar acessíveis à posse de qualquer família que se candidatasse à atividade camponesa. Assim, caberia ao Estado facilitar a posse do território rural efetivamente ocupado. (LESSA, 2001:5)

Em seus estudos, Rebouças chamava atenção para dois pilares fundamentais de sustentação de sua nova visão de propriedade rural no Brasil: o princípio da liberdade individual e a divisão do trabalho. O primeiro, no seu entendimento, seria capaz de transformar a lavoura escravagista esterilizadora em indústria agrícola progressista, por meio da livre iniciativa e do espírito de associação. Nesse sentido, o autor defendia a não intervenção do Estado nas atividades agrícolas por considerá-la nociva e retrógrada ao desenvolvimento econômico. Já em relação ao segundo ponto, a divisão do trabalho, André Rebouças propunha um número mínimo de operações pelos agentes envolvidos, de modo que, dentro do processo produtivo, fosse possível atingir maior eficiência e produtividade. (JUCÁ, 2001: 93) Em outras palavras, o autor previa a transformação da produção extensiva, muita terra e muito braço, em produção intensiva, pouca terra e redução da mão de obra, por meio da adoção de maquinários e técnicas produtivas modernas. (PESSANHA, 2005: 107)

A fazenda central (ou engenho, conforme o caso), ao receber as matérias primas, deveria gradualmente adotar técnicas avançadas, responsáveis pelo aumento da qualidade dos produtos. Assim, por exemplo, o fumo, o café em pó, o chocolate e o açúcar granulado ganhariam maior espaço tanto no mercado nacional quanto internacional. Ou seja, a modernização da agricultura impulsionaria a modernização da indústria brasileira, de modo que os produtos pudessem ser exportados já prontos para o consumo, ampliando os lucros dos empresários. (JUCÁ, 2001: 94-95)

Para Rebouças, o sucesso desse projeto seria capaz de elevar a economia brasileira de um “estágio feudal” para um sistema capitalista de produção (JUCÁ, 2001: 101), responsável pela criação de renda e emprego de modo crescente. Dessa forma, em sua idealização, o Brasil seria transformado em uma Democracia Rural capitalista com um mínimo de proletários e o máximo de proprietários. (REBOUÇAS, Gazeta da Tarde, n. 124, 1 dez. 1880: 1) A visão de propriedade

rural de Rebouças era baseada em um modelo de desenvolvimento capitalista estadunidense. Em artigo que antecedeu a publicação de Agricultura Nacional, o autor explicitou a questão:

O liberto e o agregado passarão a ser lavradores com propriedade territorial: a vastíssima região, que hoje é esterilizada por 20.000 fazendeiros, dará riqueza e bem-estar a 3 milhões de libertos e de agregados; nascerá assim a Democracia Rural Brasileira, predestinada a produzir no continente Sul-Americano os prodígios que a Democracia Yankee tem realizado na América do Norte. Ao lado dos 3.000.000 de libertos e agregados se colocarão, todos os anos, 400 a 500.000 imigrantes, como ora acontece na portentosa república dos Estados Unidos. (REBOUÇAS, Gazeta da Tarde, n. 124, 1 dez. 1880: 1)

A referência para Rebouças vinha de uma cultura política anglófona, mas também, de modo específico, das granjearias dos Estados Unidos, historicamente formados por pequenos fazendeiros. Ao visitar esse país em 1873, ele se impressionou com a vocação daquele território para o progresso e passou a buscar naquelas terras a inspiração para a modernização da sociedade brasileira (BRITO, 2019: 241-266). Uma fonte de inspiração fundamental para o projeto de Democracia Rural vinha das ideias de Benjamin Franklin, defensor da integração entre liberdade do indivíduo e sua virtude política comunitária. A noção de liberdade aplicada à abolição da escravidão não se concretizaria como uma expressão de egoísmo, isolamento e indiferença social e sim como sinônimo de um autogoverno de cidadãos livres das amarras dos domínios territoriais de seus velhos senhores. Assim, para Rebouças, essa liberdade só se concretizaria na propriedade da terra em uma dimensão coletiva, materializada nas relações comunitárias entre as pequenas propriedades e os engenhos centrais. (CARVALHO, 2009: 55-57)

No plano de Rebouças, as fazendas ou engenhos centrais deveriam assumir um papel fundamental de aglutinação em torno de uma vida social comunitária e articulada com as pequenas propriedades. Nesses espaços, os ex-excravizados e imigrantes estabeleceriam relações entre si e com a sociedade a partir de um novo ethos coletivista e solidário, como no modelo estadunidense de granjeiros. Para isso, além das funções técnicas ligadas à produção, era preciso idealizar também funções sociais. De acordo com Maria Alice Rezende de Carvalho, a chave da proposta do autor está na “constituição social do ‘pequeno fazendeiro proprietário’, que, levado a cooperar com seus iguais, terminaria por experimentar um tipo de sociabilidade comunitária, antagônica àquela do latifúndio.” (CARVALHO, 2012: 34) Conforme esclarece a

autora, Rebouças extraía da cultura política anglo-saxã uma noção de liberdade como sinônimo de autogoverno de cidadãos livres e proprietários. Essa concepção, fundamentada no republicanismo inglês do século XVII, teria sido relida por Benjamin Franklin nos Estados Unidos, reunindo a “autossatisfação do indivíduo e sua virtude política”. (CARVALHO, 2012: 34)

Para André Rebouças, no caso do Brasil, a concentração histórica da propriedade de terras (latifúndios) impedia a prosperidade e a liberdade do seu povo. Desse modo, a “liberdade que emergiria do processo de abolição da escravidão somente seria efetiva se referida a um fundamento material – a terra – e a uma dimensão coletiva, autogovernativa.” (CARVALHO, 2012: 35) De acordo com Maria Alice Rezende de Carvalho, em uma matriz americanista, assim como Benjamin Franklin, Rebouças idealizava um modelo de propriedade rural como um embrião de uma nova comunidade política, capaz de associar a virtude pública e o interesse individual. (CARVALHO, 2012: 35)

É importante mencionar que, embora a influência dos Estados Unidos tenha sido central no projeto agrário de André Rebouças, encontramos também outras referências na construção de seu argumento, como a França, país por excelência da pequena propriedade no século XIX. Em Agricultura Nacional, a proposta dos engenhos centrais teve como inspiração inicial o sistema erguido em Guadalupe e Martinica, nas Antilhas francesas. Além disso, Rebouças reconheceu que a ideia inicial de centralização agrícola vinha do filósofo iluminista francês Marquês de Condorcet, em suas palavras, “o ilustre filantropo e patriarca de 1789.” (REBOUÇAS, 1883: 192)

Na “Democracia Rural” idealizada por André Rebouças, caberia também aos engenhos centrais outra grande responsabilidade: oferecer educação técnica para libertos e imigrantes. Em Agricultura Nacional, o autor propõe uma educação técnica e agrícola, diretamente ligada aos processos produtivos do campo. (PESSANHA, 2005: 134-135) Em seu projeto, ele enxerga o africano como “um homem por civilizar” e não como um “degenerado” por uma “herança biológica imutável”, nos termos correntes em parte da ciência de sua época. Assim, a democratização da terra, acompanhada de planos de educação, criaria possibilidade para a evolução dos ex-escravizados e dos imigrantes voluntários a um patamar mais elevado da sociedade. Caso contrário, a seu ver, os pequenos proprietários seriam tutelados pelos fazendeiros latifundiários e submetidos quase às mesmas condições vividas na escravidão.

Assim, em Agricultura Nacional, encontramos a preocupação do autor com a educação dos pequenos produtores rurais. Segundo Rebouças,

cada fazenda central, cada engenho central, cada fábrica central terá suas escolas noturnas e de domingos, onde se ensinarão todos os elementos, necessários a educação e instrução do cidadão de um país realmente livre, e os princípios técnicos da especialidade a que ele destinar. Ali os meninos e os operários terão sempre diante dos olhos o grandioso espetáculo dos majestosos palácios da indústria moderna, povoados de máquinas em movimento, erguendo-lhes o espírito, e citando-lhes a atividade, aguçando-lhes a inteligência, desenvolvendo-lhes o espírito inventivo, e sublimando-lhes incessantemente o coração até Deus, pela evidência de que há criaturas, que podem criar, como o Criador!! Ali, sim, nós cremos que se educarão operários, artistas e cidadãos. (REBOUÇAS, 1883: 374-375)

Dessa forma, libertos e imigrantes teriam a oportunidade não só de alfabetização como também o aprendizado das práticas agrícolas, manuseio do solo, uso de máquinas e equipamentos destinados à lavoura. Em suma, o investimento em educação é apresentado no livro como caminho necessário para o desenvolvimento econômico do país e elevação cultural e moral dos libertos como cidadãos e proprietários de terras.

Um ano após a publicação do livro Agricultura Nacional, em 1884, uma parte importante do projeto de Democracia Rural parecia finalmente encontrar espaço político para possível aprovação no Brasil. Por meio de um plano de reformas apresentado por Manuel Pinto de Souza Dantas, presidente do Conselho de Ministro, parte das propostas de Rebouças foram levadas ao Parlamento do Império. Dantas era o chefe de governo do parlamentarismo monárquico e ocupava, portanto, o cargo que na Inglaterra é chamado de primeiro-ministro. O projeto de lei previa a libertação dos escravizados a partir dos 60 anos e a desapropriação de terras às margens de rios navegáveis e de estradas de ferro, destinando-as à formação de colônias agrícolas onde imigrantes e ex-escravizados receberiam lotes como pequenos proprietários, assim como um salário mínimo. (ALONSO, 2015: 239-244)

Como era de se esperar, as ideias foram muito mal recebidas pelos representantes dos latifundiários escravocratas tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados, onde André Rebouças foi insultado e acusado de ser um dos cérebros das reformas propostas por Dantas. (ALONSO, 2015: 249) Além disso, ele foi chamado de comunista, alcunha da qual ele logo fez

questão de se afastar, apresentando-se na verdade como um defensor da propriedade privada no sentido capitalista.

As reações das oligarquias agrícolas foram fortíssimas por sentirem-se ameaçadas não só em termos econômicos, mas também na hierarquia de prestígio social e poder político. Por um lado, falava-se em guerra civil e desordem, por outro, em crise econômica e falência das finanças. A propaganda abolicionista foi denunciada como ameaça à tranquilidade pública, ao mesmo tempo em que se pedia a demissão de funcionários públicos abolicionistas como agitadores e ameaçadores da ordem. Rebouças, chamado de agitador, foi obrigado a suspender as atividades do Centro Abolicionista na Escola Politécnica onde atuava como professor concursado para as turmas de engenharia. Nos jornais, surgiam notícias de capangas contratados para matar abolicionistas. Por abrir as portas para a abolição em grande escala, sem indenização e com distribuição de terras, também a Reforma Dantas foi acusada de comunista, mantra que embalou todas as discussões parlamentares até a dissolução do gabinete, sem a aprovação da lei, em 1885. (ALONSO, 2015: 250-254, 261-262)

Além disso, os críticos de Dantas acusavam seu projeto de ferir os interesses dos grandes proprietários e por isso produzir uma grande queda no câmbio prejudicando as exportações, algo que acreditavam que seria recuperado apenas com a queda de seu gabinete e pela política adotada por Saraiva, seu sucessor, que descartou da proposta a questão da distribuição de terras e incluiu a indenização aos proprietários. Diante dessa questão, em conferência pública, José do Patrocínio perguntava aos presentes:

Senhores, antes de tudo é preciso saber a quem aproveita a ascensão e a baixa do câmbio. A baixa do câmbio aproveita exclusivamente aos intermediários da venda do café. Por um lado eles conseguem impopularizar o governo, porque o pintam como desfavorecido da confiança dos capitais, por outro lado eles têm o lucro material da operação. (PATROCÍNIO. Gazeta da Tarde, n. 116, 22 mai. 1885: 1)

É impressionante a repetição desses discursos e a sobrevivência desses impasses que envolvem as relações entre capital, trabalho e o enfrentamento político da desigualdade social no Brasil, até os dias de hoje. .

Apesar de todos os protestos abolicionistas como os de José do Patrocínio e Rebouças, após a demissão de Dantas, a Lei dos Sexagenários foi aprovada com indenização aos escravocratas, por meio da prestação de serviços dos libertos, e sem a tão sonhada distribuição de terras. Todos os embates políticos em torno da proposta de lei serviram também para acirrar os ânimos entre a oligarquia agrária e os defensores do trabalho livre. Certamente, durante a vigência do Gabinete Dantas entre 1884 e 1885, a discussão despertou o ódio do landlordismo escravocrata, no dizer de Rebouças. Foi, portanto, curta, mas bastante tumultuada a repercussão política das ideias de Democracia Rural, nos anos que antecederam a abolição da escravidão.

André Rebouças sentiu na pele esse ódio da aristocracia agrária em relação ao seu projeto de transformação do latifúndio em pequenas propriedades. Após uma militância intensa, as estruturas latifundiárias do país permaneciam inabaláveis e fortes. Por trás de tudo isso reinavam, a seu ver, as ideias e comportamentos de uma elite responsável pelo atraso do Brasil, por meio do monopólio territorial. Era preciso enfrentar esse inimigo poderoso que não acreditava nas vantagens econômicas e na expansão de seu próprio lucro, mediante a implantação de uma Democracia Rural no país. Para isso, ele precisava encontrar novas armas e afinar os velhos instrumentos.

Logo após a abolição da escravidão, no período que antecedeu a queda da monarquia, entre maio de 1888 e novembro de 1889, Rebouças intensificou sua militância intelectual em favor da mudança na estrutura fundiária do país. Passou a dar maior ênfase a uma visão de propriedade rural como fruto do trabalho e não de antigas e questionáveis doações aristocráticas (do tempo das sesmarias) que ainda sustentavam terras improdutivas. A seu ver, a legalização das terras deveria seguir o critério de sua produtividade, nas mãos dos pequenos agricultores. Em seus artigos de jornal, o abolicionista dirigia-se aos seus leitores latifundiários, afirmando: “Não há laço algum místico entre o proprietário e a terra. (...) Vosso direito de propriedade sobre a terra é uma mentira que brada aos céus”. (REBOUÇAS. Revista de Engenharia, n.220, p.238, 28 out. 1889; n. 218, p.207, 28 set. 1889.) Assim, nesse novo cenário, Rebouças começa gradualmente a subir o tom em relação à mensagem mais conciliatória de Agricultura Nacional, marcada por uma tentativa de convencer a oligarquia rural das vantagens econômicas de seu projeto. Assim, a partir de 1888, sua militância pela distribuição de terras passou a contar com outras armas, ao agregar novas ideias como suporte, por meio de suas leituras da obra do escritor russo Leon Tolstoi (1828–1910).

O encontro de André Rebouças com as utopias de Tolstoi

Bruno Gomide, em um estudo sobre a circulação dos romances russos no Brasil entre 1887 e 1936, foi pioneiro na identificação das leituras tolstoicas de Rebouças. Segundo Gomide (2004: 75-76, 129, 208, 210), o aboliconista encontrou em Tolstoi um aliado em suas causas, capaz de lhe indicar caminhos, questões e críticas às mentiras da civilização e uma arena de combate contra as injustiças sociais. Posteriormente, o tema foi desenvolvido pela historiadora Hebe Mattos (2018) ao analisar a influência da experiência russa de emancipação servil no pensamento social de Rebouças, a partir de suas citações de Tolstoi em seus escritos de exílio. Segundo a autora, Rebouças identificava-se com uma espécie de religiosidade estóica, pacifista e anti-institucional do escritor russo, em quem buscava suporte para resistir ao avanço do racismo no mundo ocidental. (MATTOS, 2018: 83, 92)

Mais recentemente, um artigo de Hebe Mattos (2022), em parceria com Robert Daibert Jr., aprofundou as reflexões a respeito das leituras de Tolstoi realizadas por Rebouças. Por meio da análise de sua correspondência ativa, os autores investigaram sua autocompreensão como um “Tolstoi Africano”, vista como expressão de uma dupla consciência enquanto intelectual ocidental e negro no final do século XIX. De acordo com o estudo, em seu período de exílio (1889-1898), André Rebouças mobilizou o pensamento de Tolstoi no sentido de conduzir uma redefinição de seu pensamento racial e transitar, em base universalista e cristã, para um pensamento crítico da modernidade liberal. (DAIBERT; MATTOS, 2022: 436-456)

Ao relacionar os temas cristãos ao ativismo social, Tolstoi pregava a mensagem de um “Jesus sem Igreja”, um cristianismo sem rituais e sem dogmas, com forte compromisso ético e humanitário, capaz de superar as injustiças sociais, as desigualdades e assim transformar o mundo. Sua mensagem incluía também a defesa de uma resistência não-violenta ao mal, representado muitas vezes pelos ricos, pelo Estado ou pelas instituições religiosas. (NABOKOV, 2021: 187; PARINI, 2011: 8-9, FIGUEIREDO, 2017: 6)

O tolstoísmo era baseado na concepção cristã de amar ao próximo como a si mesmo, tentando transpor essa máxima para um ativismo social. Tolstoi acreditava em uma conversão moral dos ricos que, ao abraçarem a mensagem do evangelho, entenderiam os males da riqueza e da grande propriedade, e poderiam renunciar a seus luxos e privilégios, em nome de uma visão

altruísta, solidária, baseada em valores comunitários. (PARINI, 2011: 7; BERNARDINI, 2018: 139; BARTLETT, 2013: 395) As leituras de Tolstoi tiveram grande impacto sobre as ideias de André Rebouças em relação à distribuição de terras no Brasil e posteriormente na África. De acordo com seus diários, (REBOUÇAS, Diário, 17, 22, 24 e 25 jul. 1887: fls. 198, 203, 205, 206). o primeiro contato com o pensamento do escritor russo se deu no ano de 1887, a partir da leitura do livro “Que faire?”. (TOLSTOI, 1887)

Nesse texto, por meio de uma narrativa não-ficcional, Tolstoi relata seu encontro pessoal e perturbador, nas ruas de Moscou, com as violentas contradições entre a miséria e o luxo, a riqueza e a pobreza na experiência das classes trabalhadoras que migraram para os centros urbanos, após o fim da servidão em seu país. Nessa experiência, o autor frustra-se com a ineficácia das tentativas de enfrentamento do problema por meio da doação de esmolas e da filantropia. Em seu entendimento, a migração da população pobre do campo para a cidade provocava uma miséria ainda maior do que aquela vivenciada nas áreas rurais. (TOLSTOI, 1887: 16-50)

O autor condenava também a ilusão das maravilhas do progresso e do avanço da ciência e da técnica que, ao invés de melhorar as condições de vida dos trabalhadores, muitas vezes acabam por piorá-las. O caminho apontado no livro como solução era: não mentir a si mesmo e aos outros. Ou seja, assumir a própria responsabilidade na exploração do trabalho alheio, arrependendo-se e abandonando essa prática em nome de um ideal altruísta e solidário de serviço ao próximo. Os privilegiados precisavam humilhar-se, reconhecendo sua ignorância, pequenez, imoralidade e dureza, passando por uma conversão moral, abandonando seu egoísmo e apego às riquezas, em nome de interesses coletivos do povo que precisava ser reconhecido como igual, sem vantagens ou distinções, e compensado por uma espécie de pagamento de dívida, contraída pelas práticas de injustiça e exploração. (TOLSTOI, 1887: 104-131)

Em sua argumentação, Tolstoi condenava ainda o acúmulo de riquezas produzido pela exploração do trabalho alheio e recomendava a adoção dos princípios do evangelho de que um rico dificilmente entrará no reino dos céus se não repartir efetivamente seus bens e não apenas as migalhas do que lhe sobrava. O problema da miséria poderia ser solucionado, conforme o autor, se cada pessoa passasse a viver exclusivamente do fruto de seu próprio trabalho, servindo-se a si mesmo e não sendo servido pelos outros, deixando de perseguir a propriedade e

o acúmulo de bens. (TOLSTOI, 1887: 70, 120-122) O tolstoísmo trouxe para Rebouças subsídios para um discurso militante cristão contra a injustiça social, algo que não havia aparecido ainda em seus textos anteriores, como Agricultura Nacional, livro construído por argumentos econômicos fundamentados em estatísticas.

Em setembro de 1888, portanto meses após a extinção legal da escravidão, André Rebouças passou a escrever uma série de artigos intitulada Abolição da Miséria, publicada quinzenalmente na Revista de Engenharia até fevereiro de 1889. Nesses textos, ele argumentava que a superação da miséria só seria possível por meio do combate ao monopólio territorial. (REBOUÇAS, Revista de Engenharia, n. 204, 28 fev. 1889: 40) Para isso, apropriando-se das ideias de Tolstoi, Rebouças defendia um enfrentamento da questão baseado numa visão cristã:

A máxima fundamental de Jesus — Ama a teu próximo como a ti mesmo — é um ataque direto ao Egoísmo. O teu ideal é o teu Eu; pois bem esse Eu há de ser estendido até compreender a Humanidade inteira. Amas muito a ti mesmo; tanto pior; há de amar a todos—brancos amarelos ou pretos; — a todos— nacionais ou estrangeiros; Americanos, Europeus, Asiáticos, Africanos, ou Oceânicos: a todos, sem exceção alguma, como a ti mesmo. Se o egoísmo é um dos maiores fatores da Miséria; se é o egoísmo quem gerou o monopólio territorial, a escravidão, a servidão da gleba, o salariado; quem inventou privilégios e isenções; quem se ostenta lubricamente no absenteísmo e no parasitismo; é ao egoísmo que se deve dar combate para chegar à Abolição da Miséria pelo consenso unânime: pela confraternização de toda a Família Humana. É preciso repetir incessantemente: — o problema da Abolição da Miséria é mais religioso do que político. (REBOUÇAS, Revista de Engenharia, n. 196, 28 out. 1888: 229-230)

Essa era a aplicação do cristianismo tolstoico defendido por Rebouças como capaz de promover mudanças práticas na estrutura fundiária pela extinção do latifúndio e expansão da pequena propriedade. Em suas palavras,

O grande Abolicionista Russo, o Conde Tolstoi, escreveu um celebre livro - Que faire? - para demonstrar a incapacidade e a inutilidade da esmola. Durante a sempre memorável Propaganda da Anti-Corn-Law-League, respondeu Richard Cobden aos Landlords, que faziam grande cabedal das suas esmolas: Mas, “é exatamente a vossa esmola que nós não queremos. Resignai vossos monopólios e vossos privilégios: haja Justiça; haja Equidade: e não será necessário mais dar esmolas, e muito menos mendigá-las.” (...) A maior e a melhor esmola é a da Abstenção; é a da Abnegação. (REBOUÇAS, Revista de Engenharia, n. 198, 28 nov. 1888: 253-254)

Assim, André Rebouças defendia a conversão moral da nossa aristocracia agrária, de modo a renunciar a seu egoísmo e “parasitismo”, em nome de uma nova atitude altruísta e isenta de preconceitos, conforme a utopia de Tolstoi. O texto acima cita o economista, político e industrial britânico Richard Cobden e sua participação ativa na liga contra a lei dos grãos, que ousou contrariar os interesses agrários da aristocracia inglesa. No trecho, o verbo resignar tem o sentido, hoje pouco usado mas comum na época, de renunciar voluntariamente. Ou seja, a aristocracia agrária deveria renunciar a seus monopólios territoriais. Esse, a seu ver, era o caminho de transformação da estrutura fundiária no país. No mesmo artigo, Rebouças evoca o exemplo e a experiência de conversão do próprio

Conde Tolstoi; que reduziu-se a simples operário para melhor combater a Miséria. Criou assim o Tolstoísmo,- a abdicação e o repudio de todos os privilégios, isenções e monopólios aristocráticos no altar da Humanidade; a conversão do Parasitismo Oligárquico e Fetichista no mais elevado Altruísmo; - a consagração do Trabalho e a condenação da ociosidade e da preguiça, adornadas com os ouropéis do luxo e da vaidade. (REBOUÇAS, Revista de Engenharia, n. 198, 28 nov. 1888: 253-254)

O escritor russo era herdeiro de uma família nobre de senhores de terra e fazia parte da alta aristocracia. Como um latifundiário, dispunha de uma grande quantidade de servos à sua disposição. Por muito tempo, ele viveu uma vida de luxo, bebidas, jogos e prazeres em bordéis. No fim dos anos 1870, no entanto, Tolstoi passou por um processo de conversão cristã, arrependeu-se de sua cumplicidade com a instituição da servidão em seu país, sentindo-se também culpado pela vida que levava enquanto milhões de pessoas sofriam na pobreza. (PARINI, 2011: 7-9) Nessa época, o escritor já era consagrado internacionalmente e passou a usar seu prestígio em campanhas humanitárias, pautadas em uma leitura do cristianismo, voltada para defesa incondicional dos pobres e para ações de combate à miséria. (BARTLETT, 2013: 19-27) Antes mesmo da extinção legal da servidão na Rússia, Tolstoi libertou todos os seus servos e distribuiu-lhes suas terras. (FIGUEIREDO, 2018: 679)

Inspirando-se nas ideias e na experiência do escritor russo, André Rebouças prosseguiu sua militância intelectual por meio de publicações em defesa de reformas profundas no Brasil, fazendo diagnósticos críticos de nossas mazelas sociais e propondo a construção de uma nova sociedade, cuja célula seria a pequena propriedade. No ano de 1889, ele publicou um livro intitulado “Orphelinato Gonçalves de Araújo: lemas e contribuições para a abolição da miséria.”

(REBOUÇAS, 1889) Mais uma vez, citando o “Que faire?” de Tolstoi (1887), ele afirmava a impotência da caridade contra a miséria e condenava o “parasitismo” das elites brasileiras, seus privilégios e as graves consequências de suas ações para o atraso do país. Em sua análise, além da aristocracia latifundiária, Rebouças incluía também as elites teocráticas, representadas pelo clero católico e suas instituições, e as elites militares, compostas pelas altas patentes da Marinha e do Exército. A seu ver, os três segmentos sobreviviam injustamente à custa do trabalho alheio, acumulavam grandes fortunas e propriedades, contribuindo para a formação e perpetuação da miséria na sociedade. (REBOUÇAS, 1889: 8-13, 26-33)

De modo bastante utópico, também nesse texto, André Rebouças defendia a conversão moral desses três segmentos sociais aos princípios cristãos tolstoicos da abnegação, da equidade e do altruísmo. Motivadas por esses sentimentos humanitários e também por novas legislações responsáveis por acabarem com seus monopólios, privilégios e isenções, essas classes dirigentes deixariam de acumular riquezas e seriam levadas a abrir mão de suas grandes propriedades de terra. Mais uma vez, Rebouças propõe como solução uma grande expansão das pequenas propriedades no campo, ocupadas por famílias de trabalhadores nacionais, ex-escravizados, ou imigrantes. Como contrapartida ao lote de terras recebido, essas famílias deveriam adotar de duas a quatro crianças desamparadas ou órfãs. (REBOUÇAS, 1889: 20, 30-42)

Outra medida bastante ousada apresentada no livro diz respeito a um projeto que previa a abolição legal do direito de herança. Essa medida, em suas palavras, era “de máxima urgência para a progressiva evolução dos sentimentos altruístas da Espécie Humana”. (REBOUÇAS, 1889: 47-48) A nova legislação poderia contribuir para uma mudança moral nas classes dirigentes, estimulando o trabalho e o desapego ao acúmulo de riquezas. Por outro lado, por meio da expansão das pequenas propriedades, seria possível abrir espaço para o surgimento de uma nova família rural, espécie de célula promissora da sociedade. (REBOUÇAS, 1889: 31-32)

A partir de 15 de novembro de 1889, os projetos de André Rebouças para o país foram abalados pelo golpe militar que derrubou a monarquia no Brasil. Como um monarquista convicto, ele acompanhou inicialmente a família imperial no exílio em Portugal e na França. Em seu ponto de vista, a implantação da República era uma expressão do ressentimento dos latifundiários, antigos senhores de escravizados que se sentiam prejudicados pela abolição da escravidão sem indenização. Em suas palavras, o fim do Império foi uma “vingança dos

Landlords, escravizadores de Africanos e de Italianos, e usurpadores do território nacional”. (MATTOS, Cartas da África, 2022 (1891-1893): 154) Em outro registro sobre as reações à queda da monarquia no Brasil, Rebouças relata uma conversa em que um “hediondo escravocrata disse a Taunay ter ficado muito contente [com a Proclamação da República] ‘Porque a Princesa Redentora chorou a valer’.” (MATTOS, Cartas da África, 2022 (1891-1893): 219)

Em 1892, após residir na Europa desde sua saída do Brasil em 1889, André Rebouças decidiu empreender uma viagem pelo continente africano, onde permaneceu por 14 meses, passando por Lourenço Marques (Moçambique) e, em seguida, por Barberton, Queenstown e Cape Town (África do Sul). Dizia que partia para esse continente incumbido de uma missão científica e civilizatória. Esse novo projeto também era motivado pelas ideias de Tolstoi. Conforme afirma a historiadora Hebe Mattos, durante o exílio e principalmente ao longo de sua viagem africana, “o pacifismo, o ascetismo, o desprendimento dos bens materiais e a crítica social radical de Tolstoi serão continuamente evocados por Rebouças.” (MATTOS, 2022: 328) Ao longo dos anos seguintes, em diversos textos, ele continuou a apresentar, de modo recorrente, sua adesão às propostas do escritor russo, interpretando-as como um algo inovador e promissor não mais para o Brasil, mas para a África.

Nos momentos de preparação de sua viagem, escrevia a Taunay dizendo: “nada posso fazer de melhor do que ir à África: escrever um livro tolstoico – Entorno d’África – e esperar por lá que termine a expiação aguda dos seculares pecados do Brasil escravocrata e monopolizador de terra em latifúndios indefinidos.” (MATTOS, Cartas da África, 2022 (1891-1893): 104) E ainda às vésperas da viagem, afirmava: “vou trabalhar na África, no Continente-Mártir. Vou semear a doutrina de Jesus e de Tolstoi; de Trabalho e de Humildade; de Sacrifício e de Abnegação”. (REBOUÇAS, Registro de Correspondência, 3 mar. 1892) Logo ao chegar ao continente africano, escreveu ao seu amigo José Joaquim de Maia Monteiro dando as primeiras notícias de sua nova jornada: “Aqui estou na eterna e perpétua luta contra os monopolizadores de terra e escravizadores de homens. Tal qual como no Brasil!!!” (MATTOS, Cartas da África, 2022 (1891-1893): 153)

Rebouças assustou-se com a miséria em Lourenço Marques, atual cidade de Maputo, Moçambique. Sob o impacto do que observou, produziu uma “síntese da hedionda exploração de escravagismo, de monopólio territorial e de landlordismo, que agora põem em crise toda a África Oriental portuguesa.” (MATTOS, Cartas da África, 2022 (1891-1893): 162-167) Em seu

diagnóstico, destacam-se a fome, a violência, a nudez, a fraude nas moedas e salários, elementos que se traduzem na miséria moral e material dos africanos. Segundo Rebouças, esse estado de miséria e nudez é usado injustamente como pretexto e argumento, pelos escravocratas, para seus “sofismas de inferioridade de raça e de incapacidade de evoluir para a civilização cristã igualitária.” (MATTOS, Cartas da África, 2022 (1891-1893): 163-164) No mesmo texto, a solução apontada para o problema é, mais uma vez, o acesso a um “pedaço de terra para permitir-lhe evoluir para a prosperidade e para a família. Negar isso é maldade diabólica; é perversidade satânica; é rebelar-se contra Deus e contra a humanidade.” (MATTOS, Cartas da África, 2022 (1891-1893): 166-167)

André Rebouças não só acreditava como trabalhava pelo que considerava a evolução dos africanos, capazes, a seu ver, de atingir o mesmo estágio de desenvolvimento dos brancos, desde que tivessem acesso às mesmas condições, sobretudo à pequena propriedade de terras, na qual trabalhariam para si mesmos, produzindo suas riquezas e escapando da exploração e do domínio de terceiros. Em seu diário de 1889, ainda no Brasil, registrava sua coleção de recortes de vários artigos de jornais que tratavam do “Progresso da Raça Africana nos Estados Unidos.” (REBOUÇAS, Diário, 26 fev. 1889: v.19, fl.57) No diagnóstico, citado no parágrafo anterior, o modelo estadunidense aparecia como referência para a distribuição de terras, algo constante em seus escritos desde seus artigos dos anos 1870.

É importante destacar que os argumentos econômicos, que estruturaram tanto a composição de Agricultura Nacional (1883) quanto a campanha abolicionista de Rebouças nos anos 1880, em favor da instauração de uma Democracia Rural, não foram substituídos pelo seu tolstoísmo. Ao contrário, o que observamos em seus escritos desde os anos finais da década de 1880 até quase o fim de seus anos de exílio é uma tentativa de somar a seus estudos econômicos, já consolidados desde os anos 1870, uma nova percepção das questões sociais, a partir da leitura de Tolstoi, em um desejo de estudar a sociedade e a desigualdade social com novas ferramentas científicas.

A síntese desses esforços foi preparada por André Rebouças, de 1885 a 1893, em um grande conjunto de escritos intitulados “Enciclopédia Socionômica”, infelizmente desaparecidos. Em todo caso, pelo conjunto dos textos aqui apresentados, percebemos o seguinte movimento em sua produção intelectual: somar argumentos econômicos com os princípios tolstoicos de

uma nova ciência voltada para a desigualdade social. De acordo com a historiadora Hebe Mattos, Rebouças buscava associar seu anseio profundo por justiça à consolidação teórica de “um sentimento quase místico e ao mesmo tempo cientificista”, em uma religiosidade eminentemente laica como a de Tolstoi. (MATTOS, 2022:330).

Depois de meses percorrendo o continente africano, Rebouças decepcionou-se também com a segregação, a violência e o racismo impostos pelo colonialismo europeu naquele território, marcado pela busca do lucro e pela exploração do trabalho. (MATTOS, 2022, p. 205-207) Bastante frustrado, ele resolveu voltar à Europa e abrigar-se em Portugal, na Ilha da Madeira, onde passou os últimos cinco anos de sua vida revisitando a memória de seus projetos fracassados, mas ainda defendendo a expansão das pequenas propriedades rurais e sustentando suas críticas ao monopólio territorial no Brasil e na África.

Considerações finais

André Rebouças sustentava a tese de que a abolição da escravidão por si só não poderia garantir a superação do atraso no país. Em sua proposta, era fundamental a estruturação da Democracia Rural por meio das seguintes mudanças que deveriam proporcionar a extinção dos latifúndios e a expansão das pequenas propriedades: a criação do imposto territorial, loteamento e parcelamento das terras devolutas, colonização nos eixos ferroviários, implantação de centrais agrícolas, criação dos bancos territoriais (sob forma de cooperativas) cujos lucros deveriam ser aplicados em técnicas avançadas de plantio, colheita e beneficiamento, educação técnica para os trabalhadores, imigrantes e ex-escravizados. De acordo com o autor, somente a aplicação desse conjunto de medidas poderia extinguir os velhos latifúndios, bem como seus poderes e efeitos nocivos sobre a sociedade, a política e a economia do país.

Os escritos de Rebouças nos desafiam a responder, em profundidade, as razões do fracasso de seus projetos. Os motivos levantados podem ser muitos. Para cada um deles, cabem muitas teses, teorias e diferentes interpretações a respeito das relações entre colonização, escravidão, racismo, autoritarismo, mandonismo, estrutura agrária, religião, forças armadas, elites políticas e econômicas, Estado e sociedade. Talvez, uma explicação possível, entre outras, seja o caráter ingênuo e utópico da proposta (JUCÁ, 2001: 101-103) que previa uma espécie de tutela racional

e humanitária de uma elite moderna, afinada com os padrões de desenvolvimento capitalista dos Estados Unidos e de países europeus. (MACHADO, 1994: 53).

Ora, nossas oligarquias, embora se espelhassem em modelos do hemisfério norte, sempre tiveram enorme resistência em harmonizar interesses de mentalidades antiga ou arcaica com mentalidades moderna ou industrial. João Fragoso e Manolo Florentino demonstram que nossas elites coloniais se consolidaram a partir do fortalecimento de suas atividades ligadas ao mercado interno, em uma relativa autonomia em relação à economia internacional. Imbuídas de um forte ideal aristocratizante, não investiram seus capitais mercantis em atividades de modernização econômica que levassem a mudanças nas estruturas políticas e sociais, nem à expansão das pequenas propriedades. Ao contrário, os grandes comerciantes investiam seus capitais no senhorio de homens e terras, reiterando e reproduzindo uma economia agrária de base escravista, hierárquica e excludente. Em seus investimentos, souberam transformar com maestria o “arcaísmo em projeto”, favorecendo um tipo de desigualdade social baseada na alta concentração de riqueza e impedindo a formação de grupos intermediários. (FRAGOSO, FLORENTINO, 2001: 223-237)

Após frustrar-se em sua intensa militância pela abolição do latifúndio, Rebouças desistiu de tentar convencer a aristocracia agrária das vantagens econômicas da expansão da pequena propriedade. A partir de seu encontro com o pensamento de Tolstoi, ele passou a investir em uma perspectiva religiosa de crença na conversão dessas elites a uma compreensão cristã de reforma social, em moldes liberais. Nesse projeto, ele buscava integrar as ideias do escritor russo a uma defesa difusa e abstrata dos princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade, capazes de proporcionar a evolução da família humana com base em uma nova ciência., também amparada em princípios tolstoicos altruístas, humanitários, solidários e democráticos. (REBOUÇAS, Revista de Engenharia, n. 257, 14 maio 1891: 449-450)

Ao concluir esse percurso, é possível afirmar que André Rebouças construiu uma visão de propriedade rural como espaço fundamental de estruturação da sociedade, que deveria ser redimensionado em favor da correção de injustiças sociais. A seu ver, a forma de distribuição do território deveria seguir o critério da capacidade de cultivo dos pequenos núcleos das famílias rurais. A adoção ou não desse critério era um elemento central de definição do atraso ou do progresso do país. Para Rebouças, os latifúndios eram expressões da ganância e do apego às

riquezas produzidas pela exploração do trabalho alheio, responsáveis pela produção da miséria e da desigualdade social. Por outro lado, as pequenas propriedades aparecem em seus escritos como um caminho promissor de progresso, civilização e construção de uma sociedade liberal, capitalista e ao mesmo tempo fundada em princípios cristãos humanitários, democráticos e altruístas, capazes de garantir a experiência das liberdades e interesses individuais em comunidades solidárias, autogovernativas, amparadas em virtudes públicas.

Como sabemos, a grande concentração fundiária se arrastou pela República e chegou aos nossos dias, alimentando um problema que continua atual: o acesso à terra. Mas, conforme o autor mesmo previu na epígrafe que abre esse artigo: “a herança aí fica”. (REBOUÇAS, Registro de Correspondência, 19 jun. 1891) Nesse sentido, ainda hoje, o patrimônio intelectual de André Rebouças merece ser revisitado e atualizado por outros “apóstolos”, conforme suas palavras. Seus projetos, interpretados por Nabuco como um “sonho profético”, até o momento não se concretizaram, mas permanecem como esperança, nos assombrando como um desafio, denunciado sistematicamente pelas ideias do “maior inimigo dos fazendeiros” que continuam a clamar aos homens e aos céus por mudanças na terra.

Fontes

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REBOUÇAS, André Diários. 1889. Volume 19. Acervo da Fundação Joaquim Nabuco (Recife) e Arquivo Central da Universidade Federal de Juiz de Fora).

REBOUÇAS, André (1891) Registro de Correspondências. Volume 2. (Fundação Joaquim Nabuco, Recife).

REBOUÇAS, André (1891-1892) Registro de Correspondências. Volume 4. (Fundação Joaquim Nabuco, Recife).

REBOUÇAS, André (1880, 1885) Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro. (Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro)

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Notas

1 Este texto é fruto de uma pesquisa que conta com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
2 Decepcionado com a queda da monarquia em 15 de novembro de 1889, André Rebouças resolveu exilar-se do Brasil. Viveu em Portugal, na França e, após uma viagem pela África, passou a residir na Ilha da Madeira até sua morte em 1898.
3 Este artigo não estabelece uma aproximação teórica e interpretativa com a obra de Jessé de Souza, o que escaparia aos objetivos propostos. Mas a leitura da crítica de André Rebouças à luz dos textos desse sociólogo é algo que merece aprofundamento em outros estudos, sobretudo em análises como aquela apresentada em “A Elite do Atraso” (2019), entre outros trabalhos. Pesquisas históricas em torno das tentativas de solução e superação desse cenário, com apostas em novos enredos como as de André Rebouças e de tantos outros, são também bastante necessárias.
4 Os originais do diário de 1887 encontram-se no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro). Uma cópia microfilmada dos mesmos faz parte do Acervo da Fundação Joaquim Nabuco (Recife) e do Arquivo Central da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais.
5 Esse esforço epistemológico de Rebouças reivindicava também como fundamento a noção de cosmo moral de Pitágoras, assunto que merece ser abordado em outro estudo.


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