Dossiê
Recepção: 26 Fevereiro 2023
Aprovação: 13 Maio 2023
Resumo: O artigo analisa a história do município de Paragominas no Pará entre os anos de 1960 e 1975 e apresenta diferentes visões de propriedade que se desenvolveram nele e em seu entorno e que envolvem, inicialmente, o modelo oligárquico de desenvolvimento rural de Juscelino Kubitschek, perpassando a visão de “espaço vazio” dos anos iniciais da ditadura militar até chegar ao modelo agricultura repressiva dos anos 1960 que conjuga violência, impunidade e conflitos agrários. As fontes analisadas foram a legislação de terras do Pará, cartas, anúncios e documentos do Fundo de Questões Fundiárias do Serviço Nacional de Informações. Ao longo do estudo de caso são abordadas questões como o processo de ocupação desordenada de terras e a visão da ditadura militar sobre casos de conflitos pela terra.
Palavras-chave: Paragominas, Ditadura militar, Conflitos agrários.
Abstract: The article analyzes the history of the municipality of Paragominas in Pará between the years 1960 and 1975 and presents different visions of property that were developed in it and in its surroundings and that involved, initially, the oligarchic model of rural development of Juscelino Kubitschek, passing through the vision of “empty space” from the early years of the military dictatorship until reaching the repressive agriculture model of the 1960s that combines violence, impunity and agrarian conflicts. The sources analyzed were the Pará land legislation, letters, advertisements and documents from the Fund for Land Issues of the National Information Service. Throughout the case study, issues such as the process of disorderly land occupation and the view of the military dictatorship on cases of conflicts over land are addressed.
Keywords: Paragominas, Military dictatorship, Land conflicts.
O “visionário” e o secretário: visões de propriedade no processo de fundação de Paragominas
Iniciamos a discussão tratada neste artigo a partir da trajetória de dois importantes sujeitos históricos presentes no contexto da criação do município de Paragominas, no Estado do Pará. O primeiro é o mineiro Célio Rezende Miranda, um agrimensor que chegou ao Pará ao final dos anos 1950, por ocasião da abertura da Rodovia Belém-Brasília. O segundo é o paraense Benedicto Monteiro, bacharel em ciências jurídicas e Secretário da Secretaria de Obras, Terras e Águas do Pará (Seota) no mesmo período em que o “visionário” Célio Rezende Miranda chegou à região de Paragominas.
A chegada do mineiro Célio Miranda a terras paraenses, durante os anos 1960, foi noticiada pela mídia, ganhando espaço no Jornal Folha de São Paulo (Figura 1).
O anúncio de Célio Miranda destacava que o Brasil precisava de exportações para garantir a balança de pagamentos do país. Para isso, convidava os leitores a construir esse mercado e produzir a carne mais barata do mundo nas fertilíssimas terras de Paragominas. Ele é registro inconteste do modelo oligárquico de desenvolvimento rural de Juscelino Kubitschek nos anos 1950, que teve como principal consequência a efetuação de um padrão desordenado de ocupação de terras em áreas de expansão rodoviária, história que nesse primeiro momento vamos contar a partir dos encontros e desencontros de nossos dois sujeitos.
Durante muitos anos, a descrição imobiliária de imóveis rurais no Brasil era precária, tornando frágeis as questões jurídicas envolvendo a posse da terra. Nessas situações, competia ao agrimensor gerenciar as informações espaciais, sobretudo de campos ou propriedades rurais. Célio Miranda foi agrimensor e desde meados dos anos 1950 estudou as terras do Pará. Além disso, o mineiro da cidade de Patrocínio tinha uma relação de proximidade com o presidente Juscelino Kubistchek, conforme podemos ver carta a seguir:
Da última vez que tive a honra de ser recebido por Vossa Excelência dei-lhe conhecimento do esforço patriótico que destemido brasileiro vinha desenvolvendo nas florestas amazônicas na região do Rio Capim, afluente do Guamá, Estado do Pará, às margens da BR-14-Brasília Belém, quilômetro 154, no sentido de fundação e construção de uma cidade. Tal empreendimento, tecnicamente programado e projetado, como Vossa Excelência poderá verificar pela inclusa exposição, vem encontrando dificuldades no que se refere ao terreno, já medido e ocupado. Célio Rezende Miranda é o bandeirante que está plantando PARAGOMINAS com esforço próprio depois de penetrar à dentro pela mataria abrindo picadas e construindo estradas de penetração (MIRANDA1, 1960 apud LEAL, 2000: 27-28).
Miranda, conforme podemos ver, autointitulava-se “bandeirante” e, como tal, levou a cabo o “esforço patriótico” de dominar a floresta amazônica, reforçando o discurso do espaço vazio que, em meados dos anos 1950, não era uma novidade nessa região. Desde Getúlio Vargas o desejo de dominar tais espaços já vinha sendo registrado em discursos e na literatura sobre a região.
Nos anos 1960, a novidade estava associada à abertura de estradas e, consequentemente, à disponibilidade de terras nas chamadas áreas de expansão rodoviária, foco de Célio Miranda. No entanto, o principal problema enfrentado para consecução do empreendimento por ele
projetado estava relacionado ao fato de o terreno, entre os rios Gurupi e Capim, já estar medido e ocupado. À época, competia aos estados a legislação de terras, tema que JK não quis enfrentar.
O modelo oligárquico de desenvolvimento rural de JK, que fazia parte da grande meta da integração nacional, composta por Brasília e pelo cruzeiro rodoviário, carregava em si um olhar político que não pretendia entrar em rota de colisão com os fortes interesses da oligarquia rural nacional (MOREIRA, 2013).
Construiu Brasília e o gigantesco cruzeiro rodoviário, sem disciplinar a ocupação, posse e formação de propriedades rurais nas frentes de expansão da sociedade nacional. Na prática, isso viabilizou o controle e o domínio da elite rural sobre os novos territórios ocupados, gerando, por um lado, um fortalecimento numérico, econômico, social e político da oligarquia rural e, por outro lado, uma enorme exclusão social de homens e mulheres pobres que habitavam o interior. (MOREIRA, 2013: 185)
O argumento de Moreira (2013) fica evidente, para o caso do Pará, sobre a história da fundação da cidade de Paragominas, vai ao encontro da análise de outros pesquisadores.
Célio Miranda sempre ouvira falar das imensas riquezas paraenses, de suas matas inexploradas, do clima propício à agropecuária. Então, em 1958, fez sua primeira viagem ao Pará, sobrevoando as áreas, buscando aquela que fosse a mais adequada para realizar seu intento. Vários pontos foram estudados, baseados em mapas e aerofotogrametados. Enfim, decidiu-se por aquele entre os rios Gurupi e Capim. Porém, para fazer a colonização, era preciso agregar uma população nesse local, o que só seria possível, com a criação de uma cidade.
Em setembro de 1958, Célio Miranda foi ao encontro do presidente Juscelino, porque para implantar seu projeto, necessitaria a autorização do mesmo. Mostrando grande interesse pelos planos do corajoso mineiro, Juscelino concluiu que, assim, evitaria a invasão das terras por estrangeiros ou aventureiros inescrupulosos, bem como povoaria a região. (LEAL, 2000: 26)
A questão que estava posta e que ficou registrada em outros trechos da carta de Célio Miranda diz respeito ao fato de que a doação do terreno onde foi fundada Paragominas estava sendo obliterada pelo governo do estado, que se negava a doar terras às margens da BR-14.Isso somente poderia ser resolvido pelo próprio presidente em entendimento com o governador do estado do Pará. A questão foi mediada pelo presidente JK no despacho da carta enviada por Célio Miranda, que foi encaminhada ao governador do estado com o seguinte pedido: “Peço entrar em entendimento com o governo do Pará e resolver o assunto favoravelmente. Juscelino Kubitscheck” (MIRANDA, 1960 apud LEAL, 2000: 27-28). É nesse contexto que foi dado início a história de Paragominas, bem como a um tumultuado processo de ocupação de terras naquela região.
Cabe destacar que o despacho do presidente deu carta branca para que o mineiro colocasse em prática o processo de ocupação da região, permitindo a ele agir (em determinadas situações) à revelia da lei. Schwade (2019) ao analisar a formação da propriedade capitalista no Amazonas, ressalta que o processo de abertura de rodovias na região amazônica implicou um quadro crônico de violência.
Embora nós tenhamos buscado distinguir as rodovias quanto a sua efetiva instalação ou simples planejamento, a situação jurídica das terras situadas nas margens das rodovias construídas era a mesma das terras situadas nas margens das rodovias meramente projetadas. (...) a construção de rodovias implicava sempre em transformações territoriais importantes. Onde elas não foram efetivamente construídas, permaneceram preservados os territórios indígenas existentes; já nas rodovias instaladas, houve extermínio de povos indígenas e a expansão do domínio capitalista, com nova ocupação do território. (SCHWADE, 2019: 38)
Do outro lado dessa querela esteve o bacharel em ciências jurídicas e Secretário de Obras, Terras e Águas do Pará, Benedicto Monteiro. Foi ele quem percebeu que nas áreas de expansão rodoviária a ocupação estava ocorrendo de forma desordenada. Suas ações, enquanto secretário, fazem-nos refletir sobre como as questões levantadas por Moreira (2013) e Schwade (2019) foram geridas pelo governo do Pará entre o governo de JK e o golpe civil-militar de 1964.
É importante salientar que a atuação do secretário, dentro do contexto apresentado entre os anos 1950/1960, foi baseada em grande parte na Lei 913/1954, que dispõe sobre a colonização e aquisição de terras devolutas do Estado e a extração de seus produtos nativos e dá providências correlatas. Essa lei modificou em partes o Decreto 1.044/1933, que vigorou por 33 anos no estado do Pará e foi considerado o regulamento de terras do estado. Um trecho da lei precisa ser citado, pois versa sobre uma importante questão, qual seja, o direito à concessão gratuita de terras em vigor naquela época. Tinham direito segundo a lei:
art. 13 Quem tenha morada habitual em terra devoluta do Estado terá preferência para sua aquisição, na forma desta lei, até vinte e cinco hectares.
art. 14 A área referida ao artigo anterior poderá ser aumentada até o máximo de cem hectares, se o seu ocupante provar que é chefe de família, apto para o trabalho, que vive da exploração da terra e que tem, pelo menos, 10 hectares cultivados.
art. 15. O Processo de aquisição iniciar-se-á por requerimento dirigido ao Secretário de Obras, Terras e Viação, através de Coletoria local, acompanhada dos documentos que provem as exigências a que se referem os artigos 13 e 14.
art. 16. Serão observados os trâmites e os prazos do artigo 27.
Os prazos e os trâmites previstos no Art. 27 dessa legislação faziam o processo durar cerca de um ano até que fossem realizadas as assinaturas com despacho favorável do governador. De acordo com a legislação estadual, não podiam os “bandeirantes do progresso”, representados por Célio Miranda, pôr em curso um projeto de ocupação de terras à revelia da lei em vigor. Todavia, o que lhes garantiu essa movimentação foi o despacho favorável do presidente da República, atestando a tese de Moreira (2013) sobre o modelo oligárquico de desenvolvimento rural de JK.
Martins (2012) afirma que a disseminação da propriedade privada em áreas de fronteira na Amazônia se fez de forma ilegítima e ilegal. Por dentro das instituições, formas ambíguas de direito foram estabelecidas e privilegiaram o avanço do grande capital, promovendo injustiças, violações e privações no campo jurídico. Títulos falsos de propriedade da terra ganharam vida nos cartórios e, por meio do uso da força e da violência, a grilagem se tornou um fato. Sendo assim, é preciso desconstruir a versão fetichizada do pioneirismo e o que de fato ela esconde.
É interessante ressaltar que desde o primeiro momento o governo do Pará não ficou inerte a essa movimentação. uma das ações tomadas pelo governo ocorreu, por exemplo, através do Decreto 3.341/1961, que paralisou os processos de compra e venda de terras de áreas às margens da BR-14, justificando que tais seriam destinadas para estudos da Seota para um plano piloto de ocupação. Em suas memórias sobre esse processo, o Ex-Secretário da Seota afirmou que:
Verificando que a maioria desses títulos incidiam sobre áreas do sul do Pará e sobre áreas marginais à Belém-Brasília que ligava, por terra, o Pará ao sistema rodoviário já existente no Brasil, o autor mandou arquivar todos os processos cujos títulos incidiam nas áreas marginais à referente estrada e elaborou o decreto que foi publicado no Diário Oficial n. 10.513 de 13/01/1961 (...) se trata da primeira medida contra a devastação da floresta amazônica. (MONTEIRO, 1980: 47)
As memórias Benedicto Monteiro vão de encontro a questões debatidas por Alfredo Wagner de Almeida (1989) em O Estado, os conflitos agrários e a violência na Amazônia (1965-1989), quando afirma que “os conflitos agrários na região amazônica passaram a ser formalmente reconhecidos como questão relevante para intervenção governamental na segunda metade da década de 1970-80” (ALMEIDA, 1989: 133). Enquanto isso, antes de 1975, o que se via era o avanço descontrolado de ações repressivas que ameaçavam sobremaneira o sistema de
apossamento historicamente existente, dando lugar a outros modos de ocupação, conforme destacaremos a seguir.
Visões de propriedade em áreas de expansão rodoviária no Pará às vésperas e logo após o golpe civil-militar de 1964
No início dos anos 1960 o Governo do Pará não viu com bons olhos o que aconteceu em Paragominas. Para o secretário Benedicto Monteiro, a atuação de Célio Miranda na vila de Paragominas foi um exemplo do processo de ocupação desordenada de terras no estado. A discussão que estava posta para o governo e que envolveu a chegada de migrantes, era a questão do devido processo legal, da preservação da natureza e fato de que o processo de ocupação de terras no Pará deveria se fazer a partir de um estudo rigoroso das áreas, em especial aquelas localizadas às margens de rodovias.
Nesse mesmo período, a SEOTA, responsável pelas políticas de terras no Pará, começou a ganhar relevância política dentro do governo. Esse fato despertou preocupação em Benedicto Monteiro, já que o órgão possuía uma dinâmica técnica de titulação de áreas até o final dos anos 1950 e essa conjuntura passou a mudar com a abertura de colônias, vilas e roças em beiras de estrada. Para o secretário, a movimentação de migrantes fez surgir outras elites agrárias no Pará, com sujeitos advindos de outras regiões do país e essa movimentação se refletiu na dinâmica da ocupação de cargos políticos no Governo do Estado e na própria Assembleia Legislativa. Monteiro:
[...] sentiu nesses debates realizados com autoridades e as pessoas interessadas nas compras das terras, que se essa venda não fosse liberada naquelas oportunidades, qualquer Secretário eventual do Governo o faria. E a executaria, apoiado na lei e no regulamento em vigor, como, aliás, foi feito pelo Secretário que substituiu o autor [ele próprio], atendendo, essa nova fase do processo fundiário, precipitado e tumultuado pela implantação das rodovias. (MONTEIRO, 1980: 50-51 – acréscimos feitos por nós)
Enquanto secretário, Monteiro chegou a tomar medidas paliativas visando o controle da precipitação na ocupação de terras no Pará. Suas ações buscaram resguardar, por exemplo, os
precários direitos dos posseiros que viviam na região e que apesar de não possuírem o título definitivo da terra, já as ocupavam mesmo sem possuir amparo legal de suas posses.
Em 1960 Benedicto Monteiro se elege deputado estadual. Sua atuação política mirou a defesa dos direitos dos pequenos proprietários e posseiros e a defesa de uma nova política de terras para o Pará. Lutou contra a atuação de compradores de terras que se beneficiaram do baixo custo no valor da aquisição e que sabiam das expectativas de avanço do capital sobre a região. Para o deputado, a intenção desses compradores era clara: reverter de forma legal ou ilegal as pequenas posses e transformá-las, posteriormente, em latifúndios.
Em 05 de julho de 1961, o deputado estadual Benedicto Monteiro apresentou um projeto de lei à Comissão de Justiça e de Obras, Terras e Viação da Assembleia Legislativa do Estado do Pará visando a regularização do processo de alienação de terras devolutas do Estado. Nos “considerando” do PL, Monteiro destacou que era dever da ALEPA processar e julgar os processos de venda e compra de terras no Estado. O problema era que apesar desta prerrogativa, a Casa havia julgado apenas 158 processos enviados pelo Poder Executivo naquele ano, restando mais de 600 processos em trâmite, além dos milhares de outros em andamento na SEOTA e que ainda deveriam circular pelo Poder Legislativo.
Caso o PL houvesse sido aprovado, ficaria o Poder Executivo autorizado, por meio da Seota, a alienar terras devolutas do Estado. Esse processo, de acordo com o PL, definiu que as dimensões das propriedades não podiam ser superiores a 3.600 hectares. Além da questão da dimensão, o PL definia que fossem comprovadas que tais áreas não eram de indústria extrativa, o que, na proposta do deputado, permitiria a preservação das relações econômicas historicamente estabelecidas no Estado.
Em 1962 Benedicto Monteiro apresentou um novo PL por meio do Processo 470/62. Por meio dessa proposta, o deputado pleiteou a paralisação de todos os processos de compra de terras e buscou regulamentar os Art. 13º e 14º da Lei n. 913/1954. Nesta nova tentativa Benedicto Monteiro tentou convencer os demais deputados de que, embora o Decreto 1.044/33 editado na interventoria de Magalhães Barata, que regulamentou a política de terras do Estado, fosse adequada à época, ela foi sendo gradativamente adaptada a novas realidades.. No que se referia à regulamentação dos Arts. 13º e 14º da Lei n. 913/54, se aprovado o PL, seriam
regulamentados os processos de expedição sumária e gratuita nos locais de posse por funcionário da SEOTA. De acordo com os incisos do Art. 2º do PL:
§1º - Os títulos de posse serão sujeitos à legitimação e serão assinados pelo Secretário de Obras e pelo Chefe do Serviço de Terras.
§2º - Cada título será em duas vias, contendo o nome do posseiro, local onde está situado, número de hectares e possível confrontação.
A proposta garantiria ainda o acesso ao financiamento por meio do título de posse e do rito jurídico de posse. O rito seria constituído pelo requerimento com firma reconhecida, parecer do funcionário da SEOTA, atestado de posse, atestado de moradia habitual e das benfeitorias existentes. Ambas as propostas aqui apresentadas pelo Deputado Benedicto Monteiro foram arquivadas com base no Art. 85, do Regimento Interno da ALEPA, em 08 de outubro de 1964.
A atuação de Benedicto Monteiro na defesa dos posseiros, da indústria extrativa e das áreas de produtos coletáveis é instigante e até certo ponto questionável. É interessante notar que ao mesmo tempo em que ele defendeu os posseiros e as áreas, ele também não omitiu o fato de o Pará haver se tornado um estado que atraiu migrantes em busca de terras em decorrência do processo de abertura da rodovia Belém-Brasília. Para ele, ambas as questões precisavam ser resolvidas no plano político, pois o processo que se iniciou em Paragominas avançou em direção ao sul do Pará através de frentes de expansão que seguiram a rota do sudoeste e noroeste do Maranhão, aprofundando os problemas agrários e fundiários no Pará.
Na visão do deputado, o advento da integração rodoviária trouxe à tona um problema que até aquele momento não era amplamente discutido no poder legislativo do Estado, que era a questão da propriedade da terra no Pará. Ao assumir que não havia uma compilação das leis agrárias, nem tampouco a devida regulação do processo fundiário, durante a década de 1950 - quando foi secretário -, Monteiro deixou patente o fato de que nos anos 1960 era quase impossível definir a real situação fundiária do Pará. Acontece que a década de 1960 conjugou uma série de fatores que vão de encontro aos problemas decorrentes dessa situação, quais sejam, a fragilidade da política de terras do estado diante da existência de posseiros que há anos possuíam moradia habitual e benfeitorias, mas sem os títulos de posse e o crescimento da atuação de agentes de compra e venda de terras nas áreas de expansão rodoviária.
No plano político duas visões de propriedade se desenvolveram na década de 1960. A primeira foi de uma elite agrária e fundiária que se instalou no interior do Poder Legislativo com interesses claros na preservação das grandes propriedades.. A segunda, dos pequenos proprietários e posseiros que contaram com a atuação de poucos deputados progressistas, como Benedicto Monteiro, os quais tiveram suas trajetórias políticas interrompidas pelo golpe civil-militar de 1964.
Após o golpe, Benedicto Monteiro teve seu mandato cassado, foi preso, torturado e teve seus projetos de lei arquivados. Dentro de uma conjuntura política de ditadura militar ganhou espaço, nas áreas discutidas nesse artigo, a atuação de agentes como o mineiro Célio Rezende.
O “visionário” seguiu divulgando as terras de Paragominas através de desenhos que versavam sobre a região. Neles ficava evidente o projeto de venda de terras para migrantes, baseado na legislação sancionada no contexto de ditadura militar, e tinha como fim um projeto de desenvolvimento baseado na devastação da floresta nativa para a implementação da agroindústria, pecuária e indústria madeireira. O primeiro desenho foi denominado de Esquema P e ilustra como poderiam ser feitos os processos de compra e venda de propriedades em Paragominas.
O processo de compra de venda era dividido em áreas urbanas e rurais. Nele foram definidas áreas de ocupação distintas e ao mesmo tempo integradas. Por exemplo, um
comprador que adquirisse um lote, dentro de uma “superquadra” urbana, medindo 14x44 metros por CR$ 20.000,00., “ganhava” 2 hectares demarcados e legalizados de terras na zona rural, garantindo assim uma casa, na zona urbana, e uma “chácara”, na zona rural.
Na documentação levantada por Rabello (2000) outros quatro desenhos mostram planos de Célio Miranda para a região (Figura 3).
No primeiro desenho, foi ressaltada a potencialidade madeireira da região com espécies de lei como mogno, freijó, acapu, pau Brasil e pau amarelo, ficando indicada a abertura de pelo
menos 5 serrarias particulares e áreas para a produção de cacau, arroz e cana. O segundo demonstrava a distância entre Paragominas e as capitais Belém, São Luís e Brasília, além de cidades no interior do Pará.. O terceiro desenho, intitulado “Paragominas irradiará o progresso da zona selvagem do interior do Pará”, demonstrou que os planos obedeciam a legislação vigente. O quarto desenho deixou explícito o fluxo de caminhões pela rodovia no ano de 1960, que seria de pelo menos 800 veículos, além da previsão da integração aérea e fluvial da região.
Dos quatro desenhos, é importante destacar que o conteúdo descrito em Paragominas irradiará o progresso da zona selvagem do interior do Pará”. Nesse plano foram definidos dois núcleos coloniais, o Núcleo Colonial do Capim e o Núcleo Colonial do Gurupi. É interessante notar que o plano propunha a fixação do homem à terra e os meios para o seu desenvolvimento socioeconômico, oferecendo em especial condições de irrigação para ambos os núcleos e atendendo ao disposto no Capítulo VII da Lei n. 3.641/66, que tratava especificamente das formas de colonização. O desenho deixou claro que os “lotes doados ou vendidos nas margens da estrada deveriam ser de no mínimo 50 alqueires e competiria ao colono realizar a imediata colonização da área da qual poderia derrubar 50% da mata nativa para plantações. Tais requisitos atendiam a duas formas específicas de distribuição de terras públicas previstas na Lei
n. 3.641/66, que eram a doação gratuita, ou onerosa (Título II, Capítulos I e II, Arts. 11 ao 18) e a venda (Título II, Capítulo III, Arts. 19 ao 30), atestando o fato de que a legislação de terras implementada pela ditadura militar surtiu efeito e atendeu aos interesses da elite agrária que, no Pará, apoiou o golpe civil-militar de 1964.
Um dos resultados desse processo de abertura de uma estrada de terra, ou vicinal, que interligou o nordeste paraense, em Paragominas, ao município de Marabá no sul do Pará, conhecida como PA-70, ou rodovia da castanha.. A PA-70, mais especificamente o município de Abel Figueiredo, localizado ao longo dessa rodovia de integração local, foi objeto da pesquisa Histórias e Memórias de Abel Figueiredo., que apresentou as peculiaridades da ocupação da estrada e de sua importância no contexto de abertura de rodovias no Pará.
Entre as poucas referências encontradas acerca da antiga PA-70 está a citação feita em Brasil, Santos e Teixeira (2002)., quando analisaram as dinâmicas populacionais na Amazônia entre 1940 e 2000. Segundo os autores:
Com a abertura do ramal da Belém-Brasília até Marabá observou-se um grande impacto demográfico na região que compreende os municípios de Conceição do Araguaia, Santana do Araguaia, São João do Araguaia, Jacundá, Itupiranga e Marabá. A atividade extrativa da castanha, que passou a ser exercida após o declínio da borracha nessa área, foi favorecida pela chegada da comercialização, e levou à mudança do tipo de migrante que se dirigiu a essa área. Os novos fluxos contavam, agora, não apenas com nordestinos, mas também com mineiros, paulistas, paranaenses e goianos (BRASIL, et. all. 2002: 85).
Os autores analisam os fluxos migratórios decorrentes da abertura da rodovia Belém-Brasília. Para eles, no momento inicial de construção e inauguração da rodovia, havia pouco ou nenhum incentivo oferecido pelo governo. Desse modo, na década de 1950 foram mais espontâneos e intraestaduais do que propriamente interestaduais. Esse contexto mudou entre as décadas de 1960 e 1970, quando foi implementada uma vasta malha viária federal no Estado do Pará, somando-se à Belém-Brasília as rodovias Transamazônica e a Santarém-Cuiabá.
No plano rodoviário estadual, a integração do sul e sudeste do Pará ocorreu a partir da construção das PA-70 (hoje BR-222) e PA-150 (hoje BR-155). Essas rodovias foram responsáveis pela viabilização de um grande eixo de ligação no sentido norte-sul e no sentido Leste-Oeste no estado do Pará. Para Uhl e Almeida (1996), os primeiros colonos que ocuparam essa região foram antigos ribeirinhos provenientes de São Miguel do Guamá, que partiram para lá em busca de terras para a agricultura nos anos de 1940.
As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pelas migrações interestaduais incentivadas pelo Governo Federal. A primeira geração desses migrantes teve origem nos Estados de Goiás e Minas Gerais a altura de Paragominas. Outras entradas de migrantes aconteceram ao longo do ramal da PA-70, local para onde se dirigiram maranhenses, cearenses, baianos, mineiros, capixabas e paulistas.
O desenvolvimento dessa “civilização da estrada” é de fundamental importância para a compreensão das visões de propriedade que se estabeleceram no Pará. Quando analisamos a documentação que registra as visões de propriedade em áreas de expansão rodoviária no Pará às vésperas e logo após o golpe civil-militar de 1964, percebemos a existência de um trânsito
intenso de migrantes entre as regiões do nordeste, sul e sudeste paraense. Tal dinâmica demonstra como o governo do estado tentou ser o mediador de conflitos no início dos anos 1960, entretanto, a partir da ditadura militar uma nova conjuntura de ocupação da terra e de luta pela terra ganhou forma nessas regiões.
Finalizamos a segunda unidade desse artigo enfatizando as observações de Almeida (1989) quando afirmou haver um descompasso patente entre o avanço dos conflitos e o caráter irregular e desigual da intervenção governamental na região amazônica. Almeida critica o fato de que a subjugação, por meio da violência, a posseiros e peões foi vista como um “fato necessário” e peculiar aos processos econômicos e as próprias estruturas políticas que se processavam no interior da fronteira. Para ele:
O princípio da subjugação dos camponeses por atos coercitivos e por modalidades diversas de banditismo e pistolagem mostra-se historicamente coexistindo à consolidação dessa grande propriedade territorial fundada no acesso aos meios de produção pela destruição dos sistemas de apossamento preexistentes e na adoção de mecanismos de imobilização, como a peonagem da dívida, que configuram modalidades de repressão da força de trabalho. (ALMEIDA, 1989: 126-127)
A partir do contexto analisado por Almeida (1989), percebemos que o que estava posto para a Amazônia era uma forma de agricultura repressiva, articulada com a ação geral do Estado. Esse modelo, ao mesmo tempo que impôs medidas rígidas destinadas ao controle de posseiros e índios, ofereceu vantagens, incentivos fiscais e extensas áreas de terras para que grupos empresariais se estabelecessem no Pará.
As observações de Almeida (1989) corroboram com as documentações analisadas nesta unidade, demonstrando que visões de propriedade que presumiram a generalização da violência como engrenagens de um sistema de monopólio da terra, engessaram a atuação do governo do Pará antes de golpe civil-militar de 1964 e, posteriormente ao golpe, permitiu a viabilização de um discurso gestado no interior da ditadura que criminalizou a luta de posseiros e dos movimentos sociais de luta pela terra, conforme observaremos na unidade a seguir.
O olhar da espionagem sobre a luta pela terra: o caso da Companhia Agropastoril Água Azul (Fazenda Capaz)
Em 1966, dois anos após o golpe civil-militar de 1964, pouca coisa havia mudado em relação à visão que se tinha sobre a região amazônica desde a década de 1940. Naquele ano, no lançamento dos trabalhos da Operação Amazônia, o presidente Humberto Castelo Branco afirmou que não era a primeira vez que ele teve o privilégio de visitar a Amazônia. Em seu discurso, afirmou que embora a região possuísse riquezas em potencial, essas pareciam ainda competir com o mistério que as envolvia desde o início da colonização..
A visão maniqueísta sobre a Amazônia exerceu um apelo discursivo especial durante a ditadura militar, muito embora a prática revelasse um outro cenário. Havia de um lado o reforço de uma suposta batalha entre o homem e essa natureza misteriosa e de outro a prática política de um modelo de agricultura repressivo e baseado na violência, conforme bem asseverou Almeida (1989).
O desfecho deste artigo falará sobre o caso do conflito ocorrido em Paragominas nas dependências da Companhia Agropastoril Água Azul (Fazenda Capaz). O conflito resultou na morte do empresário norte-americano John Davis e seus filhos Bruce e Mallory. Posseiros envolvidos no conflito também foram mortos e o caso da morte do empresário ganhou repercussão internacional ao ser noticiado como uma emboscada promovida por posseiros em 04/07/1976, na altura do Km 56 da PA-70 (hoje BR-222), segundo Pereira (2013).
Durante o conflito agentes da espionagem ligados ao Serviço Nacional de Informações (SNI), estiveram na região de Paragominas e registraram detalhes sobre a situação e os sujeitos envolvidos no conflito da Fazenda Capaz. A análise dessa documentação em específico nos permite exercitar o que chamei em minha tese de doutorado10 de “olhar por dentro”, que implica compreender o funcionamento do serviço de espionagem sob a chave do conceito de comunidade de informações11.
Ao longo deste artigo demonstramos como o Pará ofereceu um dos exemplos mais trágicos de um projeto de ocupação desordenada desde o final dos anos 1950. No contexto da
ditadura militar, esse projeto ganhou forma e acentuou o cenário de violência no campo. A base de sustentação desse projeto, segundo as fontes produzidas pela espionagem, esteve associada à apropriação ilegal de terras e à impunidade no campo.
Foi devido à atuação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que hoje sabemos que o alto escalão dos governos militares teve posse de informações privilegiadas sobre o que ocorreu no interior do Pará. Tal foi o caso dos documentos produzidos no âmbito do SNI e que compõe o “Fundo de Questões Fundiárias” do órgão, onde estão registrados documentos relativos a “Operações Fraudulentas de Terras no Pará”12. Esses documentos abarcam, entre diversos outros, o Inquérito Policial n 13/68 – Delegacia Regional de Polícia Federal/Pará – e pelo Processo n. 3285, da Justiça Federal – 2 Região/Pará.
“Operações Fraudulentas de Terras” foi o nome dado pela espionagem aos processos supramencionados. Essa documentação teve início com o Ofício n 211/68, encaminhado a partir do Gabinete do Governador Alacid da Silva Nunes ao Delegado da Polícia Federal no Pará, Coronel Raul da Silva Moreira. Esse ofício tornou oficial as investigações sobre a expedição de títulos falsos de terras devolutas do estado em áreas de expansão rodoviária no Pará.
Naquele contexto, havia uma profunda preocupação do governo com os fatos que se desenrolavam na região do nordeste do estado. Essa preocupação foi compartilhada intimamente com o engenheiro agrônomo Walmir Hugo dos Santos, secretário estadual de agricultura e responsável pelo Departamento de Terras do estado do Pará. Walmir dos Santos, de acordo com a documentação da espionagem, foi a pessoa que leu, ainda nos anos 1960, o cenário que culminou, na década seguinte, em conflitos agrários e fundiários, avanço do latifúndio, impunidade, corrupção e de toda sorte de operações ilegais de terras. Tais questões foram inclusive alvo da atuação do Congresso Nacional, que nos anos 1960 instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar a venda de terras para estrangeiros13 no Brasil.
A história registrada pela espionagem sobre o caso da Fazenda Capaz circulou no interior dos gabinetes militares através dos autos do Anexo B da INFAO 0027/19/ABE/7514. Nessa documentação estava contido um relatório descritivo sobre a cidade de Paragominas desde a
sua fundação até meados da década de 1970. A documentação atestava o fato de que Paragominas foi conhecida como “Cidade sem lei” ou “Paragobala”15 como ainda hoje é popularmente conhecida, o que decorria do alto índice de crimes, desordens e homicídios que ocorriam na cidade. O cenário de criminalidade conviveu, em 1975, com uma cidade estar em franco processo de desenvolvimento baseado, em grande parte, na pecuária e na produção de leite, que abastecia o mercado regional e a capital.
Em meados dos anos 1970, Paragominas foi administrada por Antonio Damaso Nogueira, filiado à Aliança Renovadora Nacional (Arena). O político foi descrito pela espionagem como “apagado”, assim como a maioria dos prefeitos do interior do estado. Sobre esse tema, cabe ainda ressaltar que, segundo a documentação, foi durante essa gestão que diversos lavradores oriundos da Bahia, Minas Gerais, Goiás e Maranhão, chegaram em busca da suposta facilidade para a obtenção de terras no município.
A espionagem estava convencida de que foi a retórica do “espaço vazio” que mobilizou esses trabalhadores, mas ela também registrou o que ocorreu com esses sujeitos quando chegavam aos interiores. “Tipos sociais”16 foi o nome dado pelos agentes para descrever os lugares que esses trabalhadores ocuparam a partir das suas chegadas. Segundo a documentação, poderiam migrantes vir a se tornar posseiros invasores, peões, pistoleiros profissionais, gatos e uma série de outros agentes observados pela espionagem.
Um fato chama a atenção quando miramos as documentações da espionagem sobre o caso da Fazenda Capaz, todos os lavradores, posseiros e trabalhadores rurais envolvidos no conflito são classificados pelos agentes como “invasores” e a movimentação toda é registrada como “invasão de terras”. Sobre essa questão Pereira (2013), que analisa um repertório mais amplo de fontes em sua pesquisa, afirma que não é difícil encontrar nos inquéritos policiais ou nos processos que apuram os crimes no campo um discurso estigmatizado e preconceituoso em relação à luta dos posseiros. Segundo ele:
Foi neste contexto que os principais jornais paraenses passaram a divulgar os discursos dos grandes proprietários de terra, associando as lutas dos posseiros às ações guerrilheiras ou subversivas no campo, no final da década de 1970 e durante os anos de
1980.35 No dia 18 de junho de 1985, por exemplo, o jornal O Liberal, da capital do estado, divulgou informações que um grupo de fazendeiros, do sul e sudeste do Pará, havia encaminhado uma carta ao Ministro da Agricultura solicitando providências para conter os posseiros e barrar o projeto de reforma agrária. “(...) Se providências urgentes não forem tomadas e o governo insistir em manter seu projeto de reforma agrária muito sangue vai correr na região” garantiam os fazendeiros. (PEREIRA, 2013: 112)
O que a espionagem oficial chamou de invasões de terras era na verdade a luta de trabalhadores rurais pela posse da terra. Como sabemos, a ditadura militar não somente atuou do lado dos latifundiários, como também advogou a favor deles ao empurrar oficialmente para a marginalidade e a subversão os que lutavam pela terra e seus representantes. Esse foi o caso do vigário local de Paragominas, o padre Giusepe Fontanella, arrolado na documentação pelos espiões com o nome Joseph Fontenella.
Segundo a espionagem, o vigário local exerceu forte influência na região, sendo liderança em Paragominas, Vila Rondon e outras localidades ao longo da rodovia PA-70. Ainda segundo a documentação, foi sob a liderança do vigário que mais de 2.000 lavradores “invadiram” as terras de propriedade da Fazenda Capaz 17. Esse caso também foi registrado pela espionagem no volume II de “Conflitos Relativos à posse da terra no Pará”, onde mais uma vez lideranças locais e posseiros são tratados como invasores de uma propriedade. A questão que estava posta é que essa propriedade não atendia a função social da terra e possuía fragilidade jurídica sobre a legitimidade de sua posse, o que também foi registrado nos relatórios da espionagem.
Nesse segundo documento, os agentes atribuem a situação conflituosa à abertura da rodovia PA-70, que cortava a suposta propriedade de John Davis. A espionagem data o ano de 1973 como o início das “invasões” pois, segundo eles, é nesse momento que o empresário inicia a sua movimentação em busca do resguardo do seu direito de propriedade em todas as instâncias.
A situação do estrangeiro e de suas propriedades foi questionada nas investigações da CPI no Congresso Nacional e na Justiça Federal no Pará. Naquele contexto, o missionário e empresário se viu diante de um impasse, afinal grande parte dos cerca de 100.000 hectares de terras que ele afirmava possuir eram improdutivos. Ao não atender a função social da terra, a situação ocasionou de um lado grande pressão por parte dos órgãos responsáveis pela política
de terras e de outro a movimentação de posseiros que ocupavam as terras, alegando que elas não atendiam o previsto na legislação.
A espionagem capturou a pressão sofrida pelo empresário ao registrar nos relatórios que ele chegou a tentar vender suas terras à Swift do Brasil e ao Frigorifico Anglo. Entre os anos de 1973 e 1974, segundo os agentes, ele negociou suas propriedades com a empresa norte-americana Agro-Business Council, de Nova York, no entanto, queria fechar a negociação passando uma imagem de que suas terras estavam livres de problemas.
No âmbito do governo do Pará, em 1975 o governo do estado ainda não sabia ao certo quais eram as suas terras devolutas. Essa situação culminou com o avanço descomunal de operações irregulares de terras, conhecidas como “grilagem”, termo que muitas vezes causou estranheza àqueles que desconheciam a realidade de tal prática. John Davis se aproveitou desse processo para ir incorporando a sua propriedade pequenas posses e, em cerca de 10 anos, ele alegou possuir aproximadamente 100.000 hectares de terras18. Além de latifundiário, o empresário também foi possuidor de grande prestígio, poder político, econômico e de coerção na região.
Sabemos que não competia à espionagem corrigir os caminhos tortuosos que atravessou a política de ocupação de terras no Pará. Essa tarefa caberia ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Secretaria de Agricultura (Sagri) e ao Instituto de Terras do Pará (Iterpa), importando para esse artigo demonstrar que havia um olhar de dentro da ditadura sendo produzido pelos agentes do SNI.
Sob o olhar da espionagem foram registrados, por exemplo, a fragilidade dos documentos de propriedade apresentados por John Davis. Para eles, a documentação era resultado da desorganização da política de titulação de terras no Pará e, sobretudo, da atuação de falsários, grileiros e outros sujeitos que agiam na ilegalidade dentro dos órgãos responsáveis por essa política. A espionagem chega a sugerir prudência na relação do governo com os posseiros, que, segundo eles, não poderiam ser enquadrados na simples condição de “comunistas”, “esquerdistas” ou “subversivos” no caso da “invasão de terras” da fazenda Capaz19.
Embora se reportem ao fato como “invasão de terras”, haja vista serem parte do governo ditatorial, os agentes deixaram claro em seus relatórios que qualquer tomada de decisão em relação aos conflitos na região de Paragominas teria alto custo político. A leitura feita pelos agentes se baseou no fato de que o governo incentivou a vinda de fluxos migratórios para ocupar os “espaços vazios”, nos anos 1960, entretanto, nos anos 1960 o foco da ditadura militar se reverteu em favor dos interesses de grandes proprietários de terras e empresários que se beneficiaram dos mais diversos tipos de incentivos através da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e do Banco da Amazônia (BASA).
Para Hébette (2004), o processo de ocupação da região e de oferta de incentivos fiscais e financeiros estava eivada de contradições. O projeto fortaleceu a lógica do grande latifúndio e dos benefícios a grandes empresários, o que não foi percebido, da mesma forma, pelos migrantes que acabaram se tornando posseiros nos estados da região. Verificava-se, de fato, que os latifúndios cresciam e se concentravam nas mãos dos que tinham de sobra terra inexplorada (HÉBETE, 2004: 333-334).
O conflito da Fazenda Capaz teve como desfecho a morte de John Davis, seus filhos e uma porção de posseiros que lutavam pela posse da terra. O caso ganhou repercussão internacional. Para a ditadura militar, a situação poderia ter sido matizada caso o regime houvesse levado em consideração os relatórios da espionagem.
No plano internacional, a morte do americano mobilizou a atuação do Consulado Americano. Segundo Pereira (2013), pesou o fato de que a situação aconteceu no bicentenário da independência dos Estados Unidos, levando Fontanella a ser enquadrado pela Lei de Segurança Nacional, sendo expulso do Brasil em dezembro daquele ano. Os posseiros, fortemente reprimidos e presos, vieram a ser liberados apenas após ação movida pelos advogados Gabriel Sales Pimenta, de Marabá, e Ruy Barata, de Belém.
Do conflito da Fazenda Capaz nasceu, em 08 de agosto de 1977, a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH). A entidade nasceu naquele contexto com objetivo de lutar contra o regime ditatorial e garantir o direito de defesa dos posseiros presos. Na construção dessa sociedade de direitos humanos diversos setores da sociedade civil, políticos e religiosos se aglutinaram buscando proteção e organização, além de também a utilizar como instrumento de combate ao regime castrense.
Naquele momento a entidade teve apenas uma vertente, a luta pela liberdade de presos políticos e combater o regime ditatorial. Com o fim do período ditatorial a entidade passou a lutar contra as sequelas da ditadura, combatendo a violência institucional que estava relacionada aos crimes praticados pelas polícias e órgãos de segurança pública e posteriormente passou a intermediar conflitos agrários ao lado de organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Cabe destacar, por fim, que ao estreitar seu foco de atuação no combate à violência institucional e às demandas que envolviam conflitos agrários e defesa dos índios Tembés, a SPDDH se afirmou na luta contra a violação aos Direitos Humanos nas suas mais diversas frentes.
Considerações finais
Ao longo deste artigo discutimos o que chamo de “olhar por dentro”, oferecendo uma nova possibilidade de leitura, sobre a movimentação no interior dos governos nacional e paraense, entre as décadas de 1960 e 1970, como eles perceberam a movimentação em direção a áreas de expansão rodoviária na região de Paragominas no Pará e como ocorreu o processo de acúmulo de capital a partir da apropriação do Estado e de seu patrimônio (as terras, neste caso). Durante esse período, o que se viu na região amazônica foi o desenvolvimento extensivo do capitalismo (IANNI, 1986), sentido no extrativismo, na agricultura, na pecuária, assim como na política de demarcação e titulação de terras devolutas, tribais e ocupadas.
Foi nos anos de 1960-1978, entretanto, que se acentuaram as transformações econômicas e sociais na Amazônia. Em 1960, inaugurou-se a rodovia Belém-Brasília. Depois, em especial a partir de 1966, remodelaram-se ou criaram-se agências federais, definindo novos objetivos e meios de atuação pública e privada na região. Foram tantas e tais as decisões, agências e atuações do Estado na Amazônia, que é possível afirmar que foi nos anos 1960-1978 que a Amazônia rearticulou-se sob nova forma, com o sistema econômico e político nacional e internacional. (IANNI, 1986: 60)
Optamos nesse trabalho pela análise de fontes que nos permitissem compreender as visões de propriedade implementadas na Amazônia, sobretudo, durante os governos de Juscelino Kubitschek, Castelo Branco, Costa e Silva e Emílio Médici. Para isso, analisamos um repertório de documentos produzidos no interior da espionagem oficial da ditadura militar que
atestam a movimentação desses governos no sentido de deslegitimação e criminalização dos movimentos sociais. Tal opção de análise de fontes caminha ao lado de trabalhos que se dedicam a analisar a vasta documentação da CPT e da SPDDH e oferece possibilidades de outros olhares sobre as visões de propriedade e a história da luta pela terra. Ao chamar, nos anos 1960, de invasores e subversivos aqueles que lutavam pela posse da terra que a própria ditadura militar ofereceu dentro da política de “terras sem homens para homens sem-terra”, por exemplo, observamos que tais governos mostravam que tinham lado, bem como atuavam como advogados e juízes dos representantes do grande capital que avançou na Amazônia.
Os modos como a região amazônica foi integrada ao sistema nacional pela via rodoviária é um tema sobre o qual a historiografia brasileira precisa adentrar, haja vista a lógica de devastação que segue empurrando em direção a essa região uma visão de propriedade e de ocupação do território que preda a biodiversidade amazônica e que mata as populações tradicionais, povos indígenas e todos aqueles que se posicionam contra esse sistema. É essa mesma visão baseada no acúmulo de capital a partir da apropriação do Estado e de seu patrimônio que irá legitimar a atuação da ditadura militar em torno de projetos que visaram a expansão mineradora na Amazônia Brasileira e que eleva o nível dos conflitos a um patamar catastrófico no entorno de estradas de ferro.
Finalizamos este artigo chamando a atenção para um possível paralelo entre o tema abordado aqui e uma questão do nosso tempo. Se nos anos 1960 a abertura de rodovias possibilitou o contexto abordado nessa pesquisa, atualmente o processo de expansão ferroviária nos coloca diante do avanço do capital que degrada a natureza, que amplifica os conflitos e a violência e que corrói as relações sociais ao violar direitos humanos, através da exploração sexual de crianças e adolescentes, e busca criar meios para cortar territórios indígenas, como é o caso do povo indígena Gavião, que resistem ao avanço das chamadas “faixa de domínio” em suas terras.
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