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Vozes dissonantes no documentário Dundo, memória colonial: embates de narrativas
Dissonant voices in the documentary Dundo, colonial memory: clashes of narratives
Intellèctus, vol. 22, núm. 1, pp. 458-480, 2023
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Artigos livres

Intellèctus
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
ISSN-e: 1676-7640
Periodicidade: Semestral
vol. 22, núm. 1, 2023

Recepção: 24 Setembro 2022

Aprovação: 27 Abril 2023


Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Compartilhamento Pela Mesma Licença.

Resumo: Este artigo visa analisar algumas das memórias acerca do período colonial português no documentário Dundo, memória colonial (2009), da documentarista portuguesa Diana Andringa. Nascida em 1947 no Dundo, Angola, então colônia portuguesa, ela se muda para Portugal com sua família aos onze anos de idade. O documentário aborda o seu retorno à sua terra natal cinquenta anos mais tarde, na companhia de sua filha. As lembranças de infância de Andringa divergem da realidade local, além de serem contrastadas por relatos de angolanos que viveram sob o jugo do regime colonial. A análise parte do pressuposto teórico de que todo filme é um objeto de estudo independente, portanto, que vai além das escolhas e intenções de seu realizador (FERRO, 1995), como pretendemos demonstrar neste artigo.

Palavras-chave: Cinema, Memória Colonial, Colonialismo.

Abstract: This article aims to analyze some of the memories about the Portuguese colonial period in the documentary Dundo, colonial memory (2009), by Portuguese documentary filmmaker Diana Andringa. Born in 1947 in Dundo, Angola, then a Portuguese colony, she moves to Portugal with her family at the age of eleven. The documentary addresses her return to her homeland fifty years later, in the company of her daughter. Andringa's childhood memories diverge from the local reality, in addition to being contrasted by accounts of Angolans who lived under the yoke of the colonial regime. The analysis starts from the theoretical assumption that every film is an independent object of study, therefore, going beyond the choices and intentions of its director (FERRO, 1995), as we intend to demonstrate in this article.

Keywords: Cinema, Colonial Memory, Colonialism.

O filme como objeto de estudo interdisciplinar

Todo filme é passível de ser analisado pelo historiador como qualquer outro objeto de estudo, seja um monumento da Antiguidade, seja um manuscrito medieval, seja uma correspondência oficial entre chefes de Estado. Afinal, como afirma Marc Ferro (1995: 202), “o que é um filme senão um acontecimento, uma anedota, uma ficção, informações censuradas [...], [material a partir do qual se] poderia fazer disso a nova história”. Porquanto, se “Por um lado o filme parece suscitar, ao nível da imagem, o factual; por outro, apresenta-se, em todos os sentidos do termo, como uma manipulação”.

Essa interessante dubiedade que o filme suscitou no passado – registro fiel da realidade captada pela câmera ou manipulação através de um amálgama de imagens e sons com montagem intencional – faz desse produto um elemento passível de estudo e análise constituídos de diversas camadas. Assim como acontece na literatura, segundo Ferro (1995: 204), o filme é uma obra autônoma que vai além das intenções de seus realizadores. Há sempre nele uma “parte inesperada, involuntária”, “lapsos de um criador, de uma ideologia, de uma sociedade”, que constituem “os níveis do filme”, cujas relações de concordâncias e discordâncias [...] ajudam a descobrir o latente por trás do aparente, o não-visível através do visível”.

Como afirma Eduardo Morettin (2003: 15), “um filme pode abrigar leituras opostas acerca de um determinado fato, fazendo desta tensão um dado intrínseco à sua própria estrutura interna”. Em outras palavras, o filme adquire uma certa independência como objeto de análise, podendo afastar-se das intenções ou pretensões de seu diretor ou roteirista. Cabe, então, ao pesquisador “identificar o seu fluxo e refluxo”, apreender o seu sentido, “refazer o caminho trilhado pela narrativa e reconhecer a área a ser percorrida a fim de compreender as opções que foram feitas e as que foram deixadas de lado no decorrer de seu trajeto” (MORETTIN, 2003: 38-39).

Ademais, Marcos Napolitano (2008: 245) lembra que a análise fílmica deve partir do próprio filme, isto é, “de sua significação interna, a partir da qual se insere determinada base ideológica de representação do passado”. Em suas palavras, “Trata-se de buscar os elementos narrativos que poderiam ser sintetizados na dupla pergunta: ‘o que um filme diz e como o diz?’”. Essas perguntas suscitadas – “o que” e “como” – antecedem o verbo “dizer”, ou seja, parte-se do

princípio de que o filme enuncia algo, isto é, ele é passível de ser ouvido e cabe ao pesquisador interpretar tais mensagens.

A respeito de documentários, Bill Nichols (2013) afirma que “A lógica que organiza um documentário sustenta um argumento, uma afirmação ou uma alegação fundamental sobre o mundo histórico” (NICHOLS, 2013: 55). Por mais que esse mundo histórico pareça ser objetivo ou real, é importante pontuar que, se comparado ao cinema de ficção,

o documentário ficaria associado a todo um ideário de simplicidade, despojamento, austeridade, tanto do ponto de vista da economia técnica, formal, quanto da autenticidade temática, elementos que supostamente sustentariam uma captação mais verídica, direta, da realidade, da vida como ela era e não como era imaginada. (TEIXEIRA, 2006: 256)

Aliás, Nichols (2013) explica que nos documentários “as situações estão relacionadas no tempo e no espaço em virtude [...] de suas ligações reais, históricas (NICHOLS, 2013: 56), diferentemente dos filmes de ficção, cuja “montagem em continuidade [...] opera para tornar invisíveis os cortes entre as tomadas” (NICHOLS, 2013: 55). Assim, a montagem utilizada em documentários é definida pelo teórico como “montagem de evidência”, cuja característica é aquela de organizar os cortes “dentro da cena de modo que se dê a impressão de um argumento único, convincente, sustentado por uma lógica” (NICHOLS, 2013: 58).

Sendo assim, há que se ter em mente que, independentemente do gênero, todo e qualquer filme constitui manipulação da realidade – o que se mostra através da tela é sempre o produto de escolhas, que, não obstante o controle do realizador, também apresentam camadas latentes que extrapolam as intenções desse controle (FERRO: 1995). Ademais, Ismail Xavier (2003) também considera o ponto de vista dos espectadores. Para o acadêmico,

Toda leitura de imagem é produção de um ponto de vista: o do sujeito observador, não o da “objetividade” da imagem. A condição dos efeitos da imagem é essa. Em particular, o efeito da simulação apóia-se numa construção que inclui o ângulo do observador. O simulacro parece o que não é a partir de um ponto de vista; o sujeito está aí pressuposto. Portanto, o processo de simulação não é o da imagem em si, mas o da sua relação com o sujeito (XAVIER, 2003: 51).

Dessa forma, propomos neste artigo uma análise. do documentário Dundo, memória colonial (2009), da jornalista. e documentarista portuguesa Diana Andringa, à luz dos estudos de cinema e história. Entendemos que, por meio da análise dos elementos históricos presentes na película, é possível pôr em questão a própria perspectiva narrativa de Andringa. Afinal, nascida numa Angola sob o domínio português, suas memórias de infância estão intrinsicamente ligadas à elite branca local, em contraste com relatos de angolanos negros explorados por aquele sistema colonial segregacionista, bem como de antigos funcionários brancos de uma importante mineradora, gerando diferentes focos narrativos.

O objeto de estudo em questão aborda o retorno de sua realizadora, Diana Andringa, em companhia de sua filha Sofia, ao Dundo (província de Lunda-Norte, Angola), sua terra natal, após um hiato de cinco décadas decorridas desde a sua partida para Portugal em 1958, quando tinha 11 anos de idade, em suma, uma espécie de volta ao passado a fim de se encontrar consigo mesma. Logo, ela procura refazer os caminhos de sua história e confronta sua memória com a memória de outras pessoas que viveram naquele mesmo tempo e espaço. De acordo com Macedo, Cabecinhas e Abadia (2013), “ela levou sua filha consigo porque precisava de alguém com quem compartilhar as suas memórias e os resultados do confronto com as pessoas e os lugares de sua infância”. (MACEDO, CABECINHAS e ABADIA, 2013: 165, tradução nossa).

Entretanto, há que se considerar que a terra em que a realizadora nasceu e cresceu se encontrava sob o jugo do colonizador português. Isso quer dizer que as experiências vividas por ela, enquanto criança, foram muito diversas daquelas vividas pelas populações locais que trabalhavam nas minas da Diamang. ou serviam aos brancos sob o regime colonial português. É importante destacar que Andringa era filha de um engenheiro de minas, e, em artigo escrito para o portal Buala, ela alude ao “tempo em que [seu pai] era Director-Geral” (ANDRINGA, 2011: online) dessa empresa, logo, a família vivia numa condição de abastança, o que fez com que ela tivesse uma infância feliz e protegida dentro de um paraíso tropical cheio de privilégios para os

brancos em detrimento aos habitantes locais – um sistema de segregação racial que não podia ser amplamente compreendido por sua mente infantil naquela altura – algo que seria elaborado e ressignificado durante a sua vida de adulta. Ela resume sua infância da seguinte forma: “Era bom ser criança no Dundo, quando se era branca e filha de engenheiro” (ANDRINGA, 2009: 2m30s-2m34s).

Como jornalista em Portugal, Andringa trabalhará em vários veículos de imprensa, vindo inclusive a ser presa pela polícia política do Estado Novo, a PIDE, por enviar à Angola medicamentos, fotografias e textos destinados ao MPLA., bem como levar informações de/sobre presos políticos (ANDRINGA, 2020: online). Após a queda do regime ditatorial português em 25 de abril de 1974, ela passará a trabalhar no grupo RTP (Rádio e Televisão de Portugal) e, ao longo dos anos, virá a roteirizar e/ou dirigir vários documentários televisivos sobre figuras que se opuseram ao regime salazarista, como Aristides de Sousa Mendes e Humberto Delgado. Com sua saída da RTP, em 2001, Andringa se tornará uma documentarista independente, realizando, sobretudo, obras ligadas à questão colonial portuguesa em África..

Toda a narração em voz over de Dundo é feita pela própria Andringa e aborda tanto memórias de sua infância quanto questões da política da Diamang ou da administração portuguesa. Em várias ocasiões, a narração adquire uma postura contraditória, o que também é enfatizado pelos relatos das pessoas com quem ela conversa, fato que muitas vezes gera um embate de narrativas, conforme veremos mais à frente. Assim, podemos dizer que Dundopossui dois eixos narrativos centrais: a) as questões pessoais de Andringa com suas recordações ligadas à infância; b) a presença colonial portuguesa no Dundo e suas consequências, que estão entrelaçadas intrinsecamente com o primeiro eixo.

E, para tanto, os argumentos deste artigo são apresentados conforme a seguinte estrutura: a primeira parte, intitulada “Os eixos narrativos em Dundo”, tem como base estudos narratológicos e visa abordar as várias vozes presentes no documentário, concentradas em dois eixos centrais; a segunda, “Embates de narrativas”, discute como os relatos acerca das memórias de vários dos entrevistados presentes no documentário são antagônicos, a depender do grupo ao qual faziam parte; a terceira, “Ambivalências”, recebe o título a partir de uma das falas da

narradora acerca das contradições presentes tanto nos relatos dos angolanos em relação aos antigos colonizadores como em relação à própria realizadora, além de mostrar incongruências do próprio documentário. Passaremos, então, a analisar os eixos narrativos presentes no documentário.

Os eixos narrativos em Dundo

Referentemente aos estudos narratológicos, Christian Metz (1972: 30, itálicos do autor) explica que “Uma narração tem um início e um fim, o que ao mesmo tempo fixa os limites entre ela e o resto do mundo e a opõe ao mundo ‘real’”. Em outras palavras, seria impossível captar “o real”, quer em um filme, quer em qualquer outra narrativa, dado não caber nesses espaços limitados. Segundo o teórico francês, toda narração é uma sequência duas vezes temporal, ou seja, há o tempo do narrado (significado) e o tempo da narração (significante) (METZ, 1972: 31). Assim, distorções temporais se fazem presentes, isto é, vários anos da passagem de vida de uma personagem se resumem em poucas linhas ou planos, representando uma transposição do tempo e/ou espaço (METZ, 1972: 31-32). Em outras palavras, os limites de Dundo residem no fato da impossibilidade de abarcar onze anos de uma existência apenas no tempo de duração do filme, isto é, sessenta minutos.

Além disso, toda narração é um discurso e todo discurso é sempre proferido por alguém, exigindo um sujeito da enunciação, chamado de “instância narradora” (METZ, 1972: 33-34). Enfim, o crítico cinematográfico lembra que:

Uma narração é um conjunto de acontecimentos; são esses acontecimentos que são ordenados em seqüência; são eles que o ato narrativo, para existir, começa por irrealizar; são eles enfim que fornecem ao sujeito-narrador seu necessário correlato: ele só se torna narrador porque os acontecimentos-narrados são narrados por ele. (METZ, 1972: 37-38, itálico do autor)

Partindo do pressuposto de Metz, Andringa atua como narradora primordial de seu documentário, cuja narrativa central versa sobre o seu retorno a sua terra natal após cinquenta anos. Contudo, gostaríamos de apontar a utilização de uma estratégia que evidencia contrastes, qual seja, a utilização de relatos de pessoas que compartilham com a realizadora um passado ligado ao Dundo, como antigos funcionários da Diamang ou trabalhadores que foram explorados

pelo regime colonial português. Assim, ao contarem suas histórias ou explicitarem seus pontos de vista, os vários entrevistados apresentam vozes enunciativas e visões de mundo dissonantes. É importante, contudo, considerar o controle e a intenção de sua realizadora por trás de tais relatos, seja por meio do roteiro, da narração ou da montagem – afastando qualquer ideia de imparcialidade do objeto analisado, – e sem ignorar o “latente por trás do aparente” (FERRO, 1995).

As cenas gravadas em Portugal compõem pouco menos de vinte por cento do documentário; nelas, vemos Andringa mostrando para a filha antigas fotos e documentos da época de sua infância, vemo-la consultando material de arquivo propagandístico produzido pela Diamang e, por último, participando do XXVI Encontro Diamang, um almoço anual promovido por ex-funcionários e seus familiares que visa rememorar a época em que trabalhavam para a mineradora. Os outros mais de oitenta por cento se passam no Dundo, onde mãe e filha visitam antigos locais ligados à infância da documentarista, como a casa onde viveu, o hospital onde nasceu, ou a piscina onde aprendeu a nadar. Entretanto, há um elemento que vai além de um simples resgate de um passado feliz e distante: os relatos de vários angolanos idosos que contam as suas memórias de como era viver sob o sistema colonial.

Dessa forma, retomamos a ideia dos dois eixos narrativos centrais, sendo o primeiro o autobiográfico, aquele referente à infância de Andringa, envolvendo parentes (em especial o pai), animais de estimação, documentos de identificação que atestam o seu nascimento no Dundo, além dos espaços onde viveu e percorreu. A realizadora constantemente fala sobre o amor à sua terra natal:

Nasci em Angola, costumo dizer que a minha pátria é o Dundo, na Lunda Norte – mas vim de Angola com 11 anos, a minha educação foi feita em Portugal e, embora gostasse de ver reconhecida a minha nacionalidade angolana, não me considero exilada, antes uma pessoa em que coexistem várias nacionalidades. (ANDRINGA, 2020: online)

O segundo eixo ouve as vozes das pessoas que viveram no mesmo tempo e/ou espaço que Andringa, servindo, muitas vezes, como elemento desarticulador de sua memória idealizada e bem-fadada. Aborda facetas do sistema colonial português, expondo suas crueldades através do racismo institucional, da imposição do trabalho forçado às populações locais, da perseguição e tortura a inimigos, bem como recorda que a realizadora, apesar de criança, gozava de privilégios

e se beneficiou desse sistema por ter feito parte da elite local. Assim, passamos à análise de algumas estratégias discursivas presentes em Dundo.

Embates de narrativas

Nas cenas do XXVI Encontro Diamang, ouve-se a voz over da jornalista a dizer que “mais de trinta anos passados sobre a independência de Angola e a nacionalização da Diamang, antigos funcionários da empresa e seus familiares continuam a reunir-se num almoço anual” (ANDRINGA, 2009: 07m51s-08m02s). Trata-se, sobretudo, de pessoas que deixaram o Dundo em meados dos anos 1970s, quase vinte anos após Andringa. A narração enfatiza que apesar das três décadas de término do domínio português, aquelas pessoas ainda se reúnem para rememorar a época em que viviam na Angola colonial. A documentarista dá a entender que aquela é a primeira vez em que participa do encontro, justificando sua presença apenas para “reaprender factos do meu próprio passado” (ANDRINGA, 2009: 08m04s-08m07s), criando tanto um distanciamento em relação àquela prática como uma velada reprovação atinente ao clima nostálgico do evento.

É interessante pontuar a ausência de negros nesse almoço, reproduzindo a lógica colonial de então, onde o acesso a certos espaços a eles era vetado, a não ser na condição de subservientes. De fato, a cor predominante no ambiente onde o almoço é servido é o branco, presente nas toalhas de mesa, nas louças, na camisa dos garçons, na cor do tecido da tenda que os protege do sol e que também constitui o pano de fundo, nos tons claros das roupas dos participantes, em suas peles e em seus cabelos grisalhos (Imagem 1).

Damos destaque a uma sequência de cenas obtidas nesse evento contendo relatos de oito participantes contando suas memórias sobre o Dundo, dentre elas: “sempre coisas boas, de alegria, de fraternidade, do que eu chamo verdadeiro comunismo na partilha de todas as coisas entre brancos” (ANDRINGA, 2009: 09m12s-09m25s, grifos nossos), “éramos todos filhos de Deus, enfim, éramos todos iguais” (ANDRINGA, 2009: 09m25s-09m27s) e “era tudo muito fácil, tudo muito bonito, tudo muito à nossa disposição” (ANDRINGA, 2009: 09m49s-09m54s). Embora sejam em sua maioria relatos positivos e saudosistas, há certo constrangimento por parte da primeira entrevistada ao reconhecer, no presente diegético, que os privilégios e a partilha se davam apenas “entre brancos”, excluindo as populações locais.


Imagem 1: Diana Andringa (à esquerda) no XXVI Encontro Diamang em Portugal.

Fonte: Dundo, memória colonial (2009)

Nas cenas finais do referido evento, a narradora pondera: “Algumas das coisas que aqui oiço parecem-me irreais. Muito do que descrevem não coincide com a minha memória. É imperioso voltar ao Dundo. Saber se é certo aquilo que recordam” (ANDRINGA, 2009: 11m04s-11m17s, grifos nossos), construindo um distanciamento da visão idílica compartilhada pela maioria dos entrevistados e estabelecendo um fio narrativo que justifique o seu regresso à sua terra natal.

Uma vez no Dundo, há outro encontro de antigos funcionários da Diamang, desta vez promovido por Andringa, o que gera estranhamento pela ausência de mulheres. A eles é apresentado material fílmico de arquivo com trechos de propaganda da mineradora, bem como excertos das filmagens que a realizadora fez no almoço anual da Diamang – este expediente serve para estimular suas memórias, com o fim de falarem livremente acerca daquele tempo. Se no primeiro evento salta à vista a ausência de negros, na reunião proporcionada por Andringa não há brancos, constituindo dois ambientes racialmente divididos formado por pessoas que compartilham um passado comum (Imagem 2).

Seus olhos brilham ao assistirem uma apresentação de um coral, seus lábios balbuciam as palavras, sem, contudo, enunciá-las. Dois dos homens reconhecem um médico cujas imagens de arquivo são projetadas – haviam trabalhado com ele como instrumentistas e começam a contar como era o trabalho, onde o espectador percebe que já havia certas interdições “aos pretos”.


Imagem 2: Ex-funcionários da Diamang reunidos por Diana Andringa assistem a material de arquivo da mineradora.

Fonte: Dundo, memória colonial (2009)

Ao verem imagens de salas de aulas, outro homem começa a contar sobre as dificuldades que as crianças tinham para estudar, pois eram constrangidas a trabalhar desde pequenas. Em seguida, eclodem lembranças sobre censuras e violências: a proibição quanto à escuta de rádio e as surras que levavam quando eram descobertos cometendo esse “crime”. Então, falam sobre o toque de recolher que havia depois das 21h, e na eventualidade de serem pegos fora de casa depois desse horário, eram mandados para a cadeia “pra te civilizar um bocado” (ANDRINGA, 2009: 21m55s-21m56s). A livre circulação entre angolanos também era cerceada pelo governo colonial, exigindo o porte de salvo-condutos. Nas palavras do entrevistado:

Você para sair aqui e ir em Luanda, tinha que te dar documento na Direção Geral. Ou vais lá a trabalhar, ou vais lá como doente, ou vais visitar, vais visitar quem? Como é que você, como é que essa família também parou em Luanda? Você sem a família não pode ir em Luanda. Não pode. Então a Direção Geral, ela é quem dava [a permissão de deslocamento]. (ANDRINGA, 2009: 21m58s-22m15s)

Ao exibir duas reuniões de antigos funcionários da mesma empresa, uma de brancos em Portugal e a outra de negros no Dundo, Andringa faz uso de uma estratégia comparativa que evidencia discrepâncias entre as recordações dos dois grupos, sendo que o primeiro fala de lembranças majoritariamente positivas, ao passo que o segundo, embora inicialmente se mostre

saudosista, passa a relatar os desmandos cometidos pelo sistema colonial português e pela administração da companhia diamantífera.

É importante ressaltar que no almoço em Portugal a realizadora tem uma postura mais passiva e tímida, quase apagada, sendo que sua voz é praticamente ouvida apenas em over na narração. Porém, no encontro promovido no Dundo, ela se apresenta mais ativa, criando interações e fazendo perguntas, como vemos no trecho abaixo:

Antigo funcionário: Que não quer dizer que toda pessoa é mau, não. Havia outros portugueses que dava bem com os pretos. Havia os outros que tinha regime que não dava. Que não podia mesmo, não podia. Basta tocar uma coisinha assim, você estragou o trabalho, te dá logo na cara. Se você ir conversar com ele, de onde aqui no sítio, você vai encontrar branco. Vamos dizer que você não tem nada que discutir com branco.

Diana Andringa: E o branco não era castigado?

Antigo funcionário: Nada, ele tem sempre razão. Porque ele é branco. Ele tinha sempre razão. (ANDRINGA, 2009: 22m32s-22m59s, grifos nossos)

No caso em questão, a intervenção da realizadora funciona como um estímulo à fala do entrevistado, pois ela sabe que a administração, quer a colonial, quer a da mineradora, não castigava os brancos fisicamente. Porém, vale lembrar que, embora diga que algumas das coisas que ouvira dos participantes no XXVI Encontro Diamang lhes parecesse irreais, Andringa nunca chega a questioná-los, diferentemente do que ocorre com os angolanos no Dundo. Assim, a pergunta feita pela realizadora, além de constituir uma estratégia narrativa com o intuito de que a resposta realce as diferenças de tratamento dispensadas a brancos e a negros no tempo colonial, revela também que, ao não interpelar os brancos, as intervenções que ocorrem apenas no segundo grupo revelam uma repetição do antigo padrão, onde os brancos não eram contestados (nem castigados).

A realizadora mostra àqueles senhores um trecho das filmagens obtidas no almoço anual dos ex-funcionários da Diamang em Portugal, no qual uma mulher se expressa no idioma tchokwe, língua falada no nordeste da Angola, em cuja legenda em português lê-se: “Sou angolana. A minha terra é Angola. A minha língua é o Tchokwe. Já me esqueci um bocado dela, mas ainda consigo dizer isto” (ANDRINGA, 2009: 10m44s-10m58s). Os homens que assistem a esse excerto parecem se apegar mais à forma do que ao conteúdo: ao ouvirem aquelas palavras em sua língua materna, a reação deles é a menos provável, uma vez que sorriem e aplaudem,

talvez porque se vejam validados, reconhecidos, apesar daquela que enuncia as palavras pertencer ao grupo outrora opressor.

A cena acima pretende evidenciar contradições por parte dos angolanos por meio de outra estratégia narrativa que exibe um contraste: num primeiro momento vê-se um grupo de homens negros rememorando os abusos cometidos contra eles pelos brancos sob o regime colonial; em seguida, aqueles que foram explorados assistem com alegria a uma fita em que uma mulher branca afirma, mesmo depois de décadas de independência, que a Angola (ainda) é a sua terra. A fala da mulher é problemática, pois, dada a conjuntura, tal afirmação remete não apenas a um sentimento parecido com o de Andringa, traduzido em amor à terra-natal baseado em memórias da infância, como também alude ao período de ocupação, quando os colonizadores reivindicavam aqueles territórios como sendo suas colônias ultramarinas, partes integrantes de Portugal.

Outro episódio em que a realizadora parece querer mostrar as contradições dos angolanos se dá quando ela visita um bairro que leva o nome de seu pai, o engenheiro de minas e Diretor Geral da Diamang, Gijsbert Paz Andringa: “Soube com surpresa que havia um bairro a que davam o nome do meu pai” (ANDRINGA, 2009: 41m05s-41m09s). De fato, causa estranheza constatar que ainda haja um bairro com esse nome na Angola independente, uma vez que remete a uma figura da elite europeia que se beneficiou por trabalhar para uma empresa que utilizava a exploração do trabalho forçado das populações locais para a obtenção de diamantes. Por mais que Andringa possa reconhecer intimamente o papel nocivo que seu pai representou para aqueles angolanos, Dundo não apresenta cenas nas quais ele seja criticado, pelo contrário, sua imagem é sempre preservada e defendida pela filha, traduzido num comportamento semelhante ao de uma criança que fala com orgulho e admiração de seu genitor, sem conseguir reconhecer ou enunciar suas falhas e defeitos.

A título de exemplo, analisamos uma passagem envolvendo uma velha fotografia onde supostamente apareceria o engenheiro Paz Andringa. A realizadora e Mateus Tico-Tico, um dos homens presentes no encontro organizado por ela, têm opiniões divergentes acerca da identificação daquela pessoa, assim, ela vai ao seu encontro a fim de desfazer o mal-entendido, já que ele acredita que o homem retratado seria o pai dela. É uma foto solene que foi tirada em frente a uma casa, e mostra dezenas de pessoas, todas brancas, em pé, estando os adultos no

centro e ao fundo, e as crianças em primeiro plano, entre a entrada da casa, os degraus e a soleira. A voz over da narradora explica que: “Neste regresso ao Dundo, a minha memória é constantemente desafiada” (ANDRINGA, 2009: 38m46s-38m50s, grifo nosso) – a escolha do verbo desafiar não é aleatória, pois o diálogo travado entre ambos indica que, como num duelo, a filha do engenheiro se sentiu instada a defender a imagem do pai, a fim de que não fosse confundido com a de outra pessoa.

Mateus Tico-Tico [apontando para as pessoas na foto]: Esse aqui é o Sr. Moreira Prado, esse aqui. Esse aqui é Gerônimo Simões.

Diana Andringa: E este?

Mateus Tico-Tico: Esse aqui é Paz Andringa!

Diana Andringa: Ah, pois é que não é! Este aqui não é o Paz Andringa. Mateus Tico-Tico: Quer ver...

Diana Andringa: Quer ver que não tem nada a ver com Paz Andringa? Olha e repara [ela lhe mostra uma foto de seu pai]. Olha e repara no Paz Andringa como é totalmente diferente. Este deve ser...

Mateus Tico-Tico: Não, não, não, não, não.

Diana Andringa: ... o mesmo senhor que está na fotografia. [...]

Diana Andringa: Tá a ver que aqui também olhou para ele e também disse que era o engenheiro Andringa e não é.

Mateus Tico-Tico: Não, coisa, eu não reparei bem.

Diana Andringa: Sabe por que as pessoas dizem que é o engenheiro Andringa? Porque alguém escreveu atrás que era o engenheiro Andringa, mas não é!

Mateus Tico-Tico: Mas eu é que escrevi porque eu o conheço muito bem. Diana Andringa: Pois o conhece tão bem...

Mateus Tico-Tico: Eu que escrevi.

Diana Andringa: ... que julgou que era este e depois viu que não era. (ANDRINGA, 2009: 39m12s-40m18s, grifos nossos)

A cena é interrompida quando Andringa se vê vencedora daquela “batalha”, ao convencer Mateus Tico-Tico de que o homem da foto não era seu pai, conforme julgara. Em suma, as memórias pessoais da realizadora, que remontam aos doces anos da infância representados pela figura paterna, colidem com sua biografia, como quando fora presa por defender a

independência angolana, retomando o conceito de “lapso” de Marc Ferro, isto é, algo inconsciente que escapa do controle do realizador. Ao fazer questão de corrigir a identificação daquele que o antigo funcionário julgava ser Paz Andringa, a documentarista dá ênfase à defesa da memória paterna, afastando-se do combate e da crítica ao sistema colonial. Em suma, ela, a “filha de engenheiro”, representante da elite local, mesmo após cinco décadas ainda admoesta, corrige, ensina e faz questão de mostrar a Mateus Tico-Tico que detém a verdade, reproduzindo o silenciamento que era imposto aos nativos angolanos vítimas do sistema colonial português. Ou seja, o eixo autobiográfico – afetivo e emocional – suplanta o eixo crítico e político, revelando uma contradição, desta vez, da realizadora.

Ainda a respeito do engenheiro de minas, Andringa levanta a hipótese de que, dada a passagem do tempo, muitos daqueles angolanos pudessem fingir lembrar-se dele com a intenção de agradá-la (ANDRINGA, 2009: 40m20s-40m32s). Ela apresenta um retrato de seu pai a outro senhor, que, cuidadosamente, pega a fotografia com ambas as mãos (Imagem 3), e, após certa hesitação, diz tratar-se de Paz Andringa. Enquanto sorri, o homem contempla a foto fixamente por vários segundos, mas, titubeante, não consegue dizer nada a respeito. A realizadora pergunta se o senhor o conhece, o interpelado responde afirmativamente, tenta dizer algo sobre aquele tempo, e diante da impossibilidade, acaba por beijar o retrato do europeu (Imagem 4).

Talvez a documentarista não perceba que o fato de um homem negro que viveu sob o sistema colonial português, provando as agruras e crueldades impostas que lhe eram características, ao beijar o retrato de um homem branco que se encontrava ali no papel de colonizador, de explorador, mesmo que a serviço de uma empresa de capitais mistos, seja uma imagem controversa. O papel de subserviência que era exigido às populações locais pelos portugueses parece emergir na atitude daquele senhor ao ver a fotografia do engenheiro.

Perguntamo-nos os motivos de a documentarista incluir essas duas cenas em sua película, uma vez que nos parecem questionáveis referentemente aos problemas do colonialismo. Talvez, o fato de ter nascido dentro de um contexto colonial que a favorecia, pois filha da elite local – fato que a faz ter lembranças positivas da infância – tenha suplantado as críticas que faz à política da mineradora e da administração colonial. É importante ressaltar que, embora Dundo seja dedicado à memória de seus pais, Amarina Andringa e Gijsbert Paz

Andringa, a figura materna pouco aparece no documentário, sendo mencionada en passant em recordações da filha ou na apresentação de antigas fotografias, em contraste com a evocação das lembranças do pai, que era, de fato, quem exercia o poder de classe, de raça e de gênero naquela família/sociedade.


Imagem 3: Detalhe do retrato do engenheiro Paz Andringa, pai da realizadora, nas mãos de um senhor angolano.

Fonte: Dundo, memória colonial (2009)


Imagem 4: Senhor angolano beija o retrato de Paz Andringa.

Fonte: Dundo, memória colonial (2009)

Como já apontamos, os dois eixos narrativos parecem se mesclar no decorrer do filme, sendo que em muitas cenas o eixo autobiográfico prevalece, inviabilizando uma proposta de combate ao racismo ou crítica ao colonialismo, o que julgamos poder ser classificado como algo inconsciente da realizadora que vem à tona, isto é, um “lapso”.

Ambivalências

Em sua passagem pelo Dundo, a realizadora frequentemente apresenta contradições por parte dos angolanos. Ela levanta a hipótese de que a guerra civil após a independência do país pudesse ter “apagado as feridas do tempo colonial” (ANDRINGA, 2009: 23m56s-24m07s) por conta das memórias positivas que eles têm dos portugueses. Há várias passagens no documentário que reforçam tais incongruências, como quando os antigos funcionários da Diamang sorriem e aplaudem quando a mulher branca afirma, em tchokwe, que Angola é sua terra mesmo após terem recordado vários desmandos cometidos contra eles pelos portugueses, ou quando Andringa demonstra surpresa ao descobrir que há um bairro do Dundo que leva o nome de seu pai.

Porém, o documentário dá maior ênfase acerca desses paradoxos na cena em que a documentarista é apresentada por Mateus Tico-Tico a membros da Associação dos Reformados

da Lunda Norte. Ela é identificada como uma amiga, filha do engenheiro Paz Andringa, e assim como eles, filha da terra (ANDRINGA, 2009: 35m01s-35m14s), e, ato contínuo, afirma que é “patrícia” deles, ou seja, busca a única característica comum que os une: terem nascido no mesmo território.

Nesse ínterim, um dos aposentados diz à filha do engenheiro que com a independência de Angola houve a expulsão dos portugueses, “mas agora queremos que venham, que voltem aqui, para se juntarem conosco” (ANDRINGA, 2009: 35m27s-35m31s), afinal, a exploração das riquezas daquela terra não reverteu em benefícios para os angolanos. A solicitação apenas ocorre devido à presença de Andringa naquele local; aquele homem relembra à representante do antigo grupo opressor sobre a dívida não saldada que Portugal têm para com Angola e para com suas populações. Na altura da nacionalização da Diamang, em 1977, Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola, destacou que:

Ao longo dos seus 56 anos de existência, a Diamang, mantendo o controlo sobre a produção e a comercialização de uma das principais riquezas do povo – os diamantes –, nunca deu ao Povo Angolano a oportunidade para participar na gestão desta riqueza e para recolher os seus lucros. (NETO, 2017: online)

As imagens e os relatos dos entrevistados acerca do presente diegético no Dundo revelam, a todo momento, a carestia ali presente em contraste com a época em que tinham comida, educação e saúde gratuitas oferecidas pela Diamang, em troca de trabalho exploratório. Assim, o convite daquele idoso soa quase como um apelo, um pedido de reparação, revelando as feridas ainda abertas causadas pelo colonialismo.

Por mais que Dundo procure apresentar contradições por parte dos angolanos e que a instância narrativa busque criticar a administração da mineradora bem como as crueldades cometidas contra as populações locais, notamos várias incongruências, como na cena em que a realizadora faz questão de corrigir Mateus Tico-Tico ou quando questiona se a recordação acerca de Paz Andringa por parte de certos moradores do Dundo poderia ser forjada apenas para agradá-la, decidindo exibir a cena na qual o homem negro, pertencente ao então grupo oprimido, beija o retrato do homem branco, membro do outrora grupo opressor.

O escopo proposto pelo documentário parece preconizar que, apesar das crueldades inerentes ao colonialismo, os portugueses levaram saúde e alimentação àquelas populações, logo, dentro dessa lógica, apesar de terem sido explorados, havia certos benefícios. Tomemos como exemplo a entrevista feita a António Cunha, morador do bairro Engenheiro Paz Andringa, quando são feitas comparações em torno do passado colonial e do presente diegético: o entrevistado relembra que na época dos portugueses “tínhamos tudo no armazém, tínhamos tudo, e a hora chegava do armazém até nos dava crédito. Não tem dinheiro, mas eu chego lá e levo ainda a coisa boa e no fim do mês eles descontam” (ANDRINGA, 2009: 42m46s-42m56s).

De fato, a nostalgia colonial eclode em vários momentos do documentário, muitas vezes através de perguntas feitas pela própria realizadora acerca daquele tempo, funcionando como uma estratégia narrativa com o intuito, talvez inconsciente, de fazer com que os angolanos reconheçam que sob a administração portuguesa eles se encontravam bem fornecidos e havia mais recursos, em contraste com as carências existentes no presente. Ainda em conversa com António Cunha, Andringa deseja saber como os funcionários da Diamang eram assistidos em relação à saúde:

Diana Andringa: E o tratamento, o tratamento de saúde, como é que era [no tempo dos portugueses]?

António Cunha: Eu esse braço, foi, foi mordido, foi comido por um leão. O doutor, doutor Pedro Alves queria cortar o braço, mas chegou o doutor Santos David e disse ‘não, esse homem é trabalh[ador], o braço dele não tá bom, tá bom, o osso não foi, o leão não cortou o osso, mesmo que cortasse e o osso eu...’ e ele fez isto [mostrando o braço direito totalmente funcional].

Diana Andringa: E tá ótimo, mexe perfeitamente o braço.

António Cunha: É, não tem problema. Mas se fosse agora, cortavam. Sim, cortavam.

(ANDRINGA, 2009: 43m02s-43m34s, grifos nossos)

Escolher manter esse trecho em Dundo, o qual exalta a avançada medicina portuguesa do passado, capaz de curar um homem ferido por um leão, em detrimento da precária medicina angolana no presente diegético, parece enaltecer a superioridade portuguesa. Sobre esse tema, Fabiana Carelli explica que, em documentários realizados pelo Estado Novo sobre suas colônias, há uma “exposição exuberante das ações médicas coloniais como técnica, e dessa técnica como afirmação e exercício de um saber e de um poder” (CARELLI, 2020: 205, itálicos da autora).

Desse modo, consideramos que os mesmos encômios dispensados à superioridade da medicina portuguesa nos filmes de propaganda salazarista despontam também nesse excerto de um filme pós-colonial como Dundo, expondo uma contradição.

Mais uma vez, a comparação entre as vantagens que os angolanos tinham sob a administração portuguesa ou sob o comando da Diamang eclodem no documentário, o que dá azo a pensar que talvez algo latente esteja a extrapolar os propósitos por parte da instância narradora, uma vez que, apesar de tecer críticas, parece haver uma saudade colonial involuntária, ou, nas palavras de Ferro (1995), surge “o não-visível através do visível”.

Ou seja, as incoerências identificadas no documentário tanto por parte dos angolanos quanto por parte da própria realizadora são chamadas por ela de “ambivalência”. Em cenas que mostram um travelling das ruas da cidade ouve-se a voz over da narradora:

Ambivalência. A palavra persegue-me enquanto percorro o Dundo reencontrando as paisagens da minha infância. Ambivalência nas palavras dos antigos funcionários, desejando o regresso dos portugueses, sem por isso ignorar a perversidade do sistema colonial. Ambivalência em mim, entre o desgosto pela política da Diamang e o amor por esta terra desenvolvida sob a sua direção. Entre o desgosto pelo que, entretanto, desapareceu e a consciência de que este desaparecimento era inevitável. (ANDRINGA, 2009: 35m32s-36m01s)

A realizadora sabe que o período de bonança de sua infância estava fadado a findar, e com ele todo o “oásis de paz” que foi a administração da Diamang para os brancos, principalmente para os que ocupavam altos cargos. É curioso notar que, mesmo após ter deixado o Dundo há mais de cinquenta anos, Andringa ainda tenha pensamentos ambíguos em relação a si própria. Ela se apresenta como um ser cindido, tentando conciliar sentimentos contraditórios tais como o amor pela terra natal e o desprezo pela política da empresa para a qual seu pai trabalhava, em suma, procura preservar as felizes lembranças da infância apesar do colonialismo, cujas marcas pululam no presente em Dundo.

Ainda acerca de suas ambivalências, a documentarista reflete sobre suas responsabilidades dentro daquela dinâmica de então. Após ter ouvido relatos de maus-tratos, castigos e torturas sofridos pelos entrevistados, Andringa, em diálogo com sua filha, reconhece que os privilégios dos quais gozava na infância eram oriundos daquela forma de administração:

É aí que eu não consigo deixar de sentir – é a diferença de gerações – eu não consigo deixar de sentir culpa nisso. Dalguma forma, mesmo que não quisesse, fui participante nisso, era uma das meninas privilegiadas. O meu privilégio vinha de haver pessoas que faziam isso. Isso uma pessoa... passam cinquenta anos e fica na mesma. Tá aqui [aponta com a mão direita para si, faz um sinal de descontentamento com a cabeça e desvia o olhar da filha, olhando para as águas de um rio]. (ANDRINGA, 2009: 49m21s-49m42s, grifos nossos)

Andringa afirma que antes de regressar à sua terra natal “Sentia a necessidade de saber como é que as pessoas do Dundo olhavam para nós” (COELHO, 2009: online), explicitando um certo receio em relação àqueles que outrora foram explorados e expropriados pelos portugueses. Por mais que na juventude ela tenha lutado contra o Estado Novo e defendido a independência de Angola, foi preciso, na maturidade, regressar ao Dundo, para saber de fato que o lugar idealizado pelo olhar de criança não existe mais. Em seu lugar ficou a pobreza, a carência, as dificuldades e os traumas de uma população alijada do pleno direito à cidadania, bem como as marcas do colonialismo, da exploração da Diamang, e posteriormente, das sequelas causadas pela longa guerra civil.

À guisa de conclusão

Conforme mencionamos, o objeto fílmico não pode se restringir àquilo que se encontra na superfície, exigindo que o pesquisador leve em conta as partes submersas, isto é, os “lapsos” que o filme suscita, aquilo que é inesperado ou involuntário. Ademais, “cinema é manipulação e é essa sua natureza que deve ser levada em conta no trabalho historiográfico, com todas as implicações que isso representa”. (NAPOLITANO, 2008: 247, grifos do autor).

Por mais que a realizadora procure fazer críticas tanto à administração colonial portuguesa quanto à política da Diamang, uma vez que ambas promoviam práticas desumanas e violentas contra as populações locais, o fato de o seu pai ter pertencido à alta hierarquia daquela companhia coloca-a em xeque, pois ela tem consciência de que os privilégios gozados na infância eram oriundos da exploração do trabalho forçado dos angolanos, de toda crueldade, todo racismo, toda violência inerentes àquele sistema.

As memórias positivas que Andringa tem de sua infância, bem como o amor que nutre pelo Dundo, só se tornaram possíveis devido à sua condição de “filha de engenheiro” dentro daquela conjuntura colonial. Dessa forma, o documentário apresenta outra contradição – ou, nas

palavras da documentarista, “ambivalência” – que consiste na impossibilidade dela, enquanto realizadora/filha, criticar a figura do “colonizador”/pai. Com efeito, a imagem do engenheiro apresentada em Dundo é sempre preservada, defendida, venerada, ao passo que os angolanos continuam sendo objetos de desconfiança, de questionamentos e de corrigendas por parte de uma representante da antiga elite branca.

A respeito das feridas abertas deixadas por Portugal no nordeste de Angola, Dundo, memória colonial, cujo título figura no singular, sugere, a princípio, querer abordar apenas uma memória individual, qual seja, de sua realizadora. Porém, com o desenrolar dos acontecimentos, dois eixos narrativos se fazem presentes, isto é, o eixo autobiográfico e o eixo crítico às políticas da Diamang e da administração colonial.

Por ter pertencido a um grupo privilegiado dentro daquele contexto, a documentarista se apresenta como um ser dividido, como vimos ao longo de nossas reflexões – seus sentimentos oscilam: ora ela se identifica como angolana, diz ser patrícia daqueles senhores, sendo reconhecida por eles como “filha da terra”; ora ela assume a identidade de portuguesa, atribuindo a si, ainda que indiretamente, participação nos desmandos pretéritos causados àquela terra e àquelas populações; ora reproduz, talvez inconscientemente, a imposição de sua voz sobre os entrevistados na Lunda, herdeiros de mais de quatro séculos de violência colonial. O documentário termina com a voz over de Andringa dizendo se sentir pronta a regressar a Portugal depois de enfrentar o seu passado:

O Dundo é a minha única pátria, a mais antiga das minhas memórias. Aqui fui feliz, como são todas as crianças felizes. Aqui aprendi, pequena ainda, o racismo e o colonialismo. Durante muito tempo, o Dundo permaneceu em mim como uma ferida oculta. Agora como o confrontei com a minha memória, posso regressar. (ANDRINGA, 2009: 59m11s-59m31s, grifos nossos)

As palavras que encerram o documentário continuam ambivalentes e revelam uma dicotomia: “ferida oculta” x “ferida aberta”. A narradora exterioriza que sua “ferida oculta” pertence ao passado, uma vez que ela confrontou suas memórias e está pronta a voltar para casa

– logo, sua ferida foi “curada”. Já a “ferida aberta”, aquela gerada pelo colonialismo, continua presente no Dundo, em Angola, e nas demais antigas colônias portuguesas em África, clamando por suturação, isto é, pela reparação histórica que ainda se encontra por fazer.

Referências Bibliográficas

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ANDRINGA, Diana (2020). Dundo, memória colonial. In: OLIVEIRA, Márcia e PASSOS, Joana. Uma presa é uma presa, é uma presa…. Disponível em: http://ceh.ilch.uminho.pt/womanart/?cat=1. Acesso em: 07 jan. 2023.

CARELLI, Fabiana Buitor (2020). Doença e colonialismo: imagens do mesmo e do outro. In: CARELLI, Fabiana. Pode o subalterno pensar?: Literatura, narrativa e saúde em português. Curitiba, PR: CRV, pp. 165-212.

COELHO, Alexandra Prado (2009). Que país andam os portugueses a filmar. Disponível em: https://www.publico.pt/2009/10/17/culturaipsilon/noticia/que-pais-andam-os-portug ueses-a-filmar-243110. Acesso em: 24 jan. 2023.

FERRO, Marc (1995[1974]). O filme: uma contra-análise da sociedade? Trad. Terezinha Marinho. In: LE GOFF, Jacques & NORA Pierre (Orgs.). História: Novos Objetos. 4 ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, pp. 199-215.

MACEDO, Isabel, CABECINHAS, Rosa e ABADIA, Lília Rolim (2013). Audiovisual post-colonial narratives: dealing with the past in Dundo, Colonial Memory. In CABECINHAS Rosa e ABADIA Lília Rolim (Orgs.). Narratives and social memory: theoretical and methodological approaches. Braga: CECS Universidade do Minho, pp. 159-174.

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NAPOLITANO, Marcos (2008[2005]). Fontes audiovisuais: a história depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2008, pp. 235-289.

NETO, Agostinho (2017). In: OLIVEIRA, Maria José. Diamang. 100 anos da maior empresa do império português: racismo, abusos e trabalhos forçados. Disponível em: https://observador.pt/especiais/diamang-100-anos-da-maior-empresa-imperio-portugu es-racismo-abusos-e-trabalhos-forcados/. Acesso em: 06 fev. 2023.

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Documento audiovisual

ANDRINGA, Diana (dir.) (2009). Dundo, memória colonial (Portugal). LX filmes. 60 min.

Notas

1 Gostaríamos de pontuar que este artigo não pretende fazer uma análise exaustiva do documentário, visto que a presente pesquisa ainda se encontra em andamento.
2 Diana Andringa prefere ser reconhecida como jornalista: “não me considero uma realizadora: sou uma jornalista que faz documentários” (ANDRINGA: 2020: online).
3 No original: she took her daughter with her because she needed someone with whom to share their memories and the results of the confrontation with the people and places of her childhood.
4 Companhia de Diamantes da Angola, empresa de capitais mistos com sede em Lisboa que operou de 1917 a 1988, sendo nacionalizada em 1979 após a independência de Angola em 1975.
5 Movimento Popular de Libertação de Angola.
6 Com destaque para os documentários: As duas faces da guerra (2007), em parceria com o cineasta guineense Flora Gomes; Dundo, memória colonial (2009), objeto de estudo de nossa pesquisa; e Tarrafal, memórias do campo da morte lenta (2010), cujo tema central é o campo de concentração em Cabo Verde criado pelo Estado Novo.


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