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A questão palestina como questão colonial e práxis intelectual de Edward Said*
The question of palestine as a colonial question and Edward Said intelectual práxis
Intellèctus, vol. 19, núm. 2, pp. 347-371, 2020
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Artigos Livres

Intellèctus
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
ISSN-e: 1676-7640
Periodicidade: Semestral
vol. 19, núm. 2, 2020

Recepção: 29 Maio 2020

Aprovação: 31 Agosto 2020


Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Compartilhamento Pela Mesma Licença.

Resumo: A Questão Palestina é tema recorrente na produção intelectual de Edward Said, desde os anos 1960, quando iniciou sua trajetória acadêmica, até os últimos textos que publicou, pouco antes de sua morte, em 2003. Realizamos uma leitura sistemática de sua produção acerca do tema, acompanhando livros e artigos, escritos em diferentes momentos, nos quais Said justifica seu engajamento com a Questão e a urgência de inseri-la na agenda dos debates morais e políticos mais gerais, realizados nos espaços acadêmicos e públicos dos países europeus e, especialmente, dos EUA. Constatamos que, o ativismo saidiano com essa questão em especial pode ser pensado como reflexo de um ideal de si como intelectual (outro tema que perpassa sua produção), e não mera identificação étnico-nacional acrítica.

Palavras-chave: Intelectual, Questão Palestina, Edward Said.

Abstract: The Palestinian Question is a recurring theme in Edward Said's intellectual production, from the 1960s, when he started his academic career, until the last texts he published, shortly before his death, in 2003. We carried out a systematic reading of his production about the theme, accompanying books and articles that indicated how he justified, at different times, his involvement with the Question and the urgency of inserting it on the agenda of more general moral and political debates, held in the academic and public spaces of European countries and, especially, the USA. We found that the Saidian engagement in this issue can be thought of as a reflection of an ideal of oneself as an intellectual (another theme that runs through its production), and not merely an uncritical ethnic-national identification.

Keywords: Intellectual, Palestinian Question, Edward Said.

Iniciaremos com uma breve contextualização do conflito. A colonização do território palestino pelo movimento nacional judaico (sionismo) é um processo ininterrupto, iniciado ainda no final do século XIX. De lá para cá, diversos são os acontecimentos marcantes que permitem uma periodização desse movimento sui generis, que mescla aspectos dos nacionalismos e colonialismos europeus com uma resposta ao antissemitismo. Said sempre enfatizou essa especificidade do sionismo, que coloca dificuldades adicionais ao movimento de libertação palestino por representar a “vítima das vítimas” de outrora. Os governantes israelenses se valem, constantemente, de um discurso assentado na “compensação” pelas barbáries cometidas na Europa durante a Segunda Guerra, a fim de dissuadir críticas e legitimar suas políticas. Evocar as atrocidades nazistas serve para ofuscar o sofrimento humano gerado por suas próprias ações, igualmente assentadas em um referencial étnico-nacional exclusivista, sem muita margem de inclusão da alteridade não judaica.

O sionismo é um produto europeu, e esta filiação está inscrita na própria origem desse movimento internacional, fundado em fins do século XIX, na Suíça. Em 1917, em

plena Primeira Guerra Mundial, a Grã Bretanha, por meio de seu chanceler, Lorde

Balfour, reconheceu as ambições sionistas de constituir um “lar judaico” na Palestina,

incorporando essa declaração de compromisso na Constituição do posterior Mandato Britânico, atribuído pela Liga das Nações após o término do conflito e a conquista daquele território, até então controlado pelos turco-otomanos. Como em toda a tradição do colonialismo, a população local não foi consultada e o processo se deu a sua revelia, sufocando sua resistência, iniciada à medida que a imigração e as colônias sionistas se expandiam e expulsavam agricultores palestinos do campo, eclodindo surtos de violência anticolonial. A ascensão do nazismo e a disseminação do antissemitismo na Europa contribuíram para o aumento do fluxo de imigrantes judeus e para o acirramento das tensões. Com a Grã Bretanha combalida após a guerra, contestada por ambas as partes e sem perspectiva de uma solução duradoura, repassou à recém-fundada ONU a responsabilidade pelo futuro da Palestina. Após a constituição de uma comissão específica, a sugestão foi a partilha e criação de dois Estados, em 1947 (GATTAZ, 2003).

Essa decisão, consagrada na Resolução 181 da Assembleia Geral da ONU, embasou a fundação do Estado de Israel (autoproclamado no dia 15 de maio de 1948), o que levou à deflagração de um conflito com a população palestina local e os países árabes vizinhos. Para além da narrativa oficial israelense, tal processo deve ser

compreendido como uma guerra interna (pela homogeneização populacional e garantia de uma maioria judaica) e uma externa (para assegurar a independência do recém- fundado Estado judeu). A implicação foi tanto um impasse diplomático quanto uma limpeza étnica em grande escala, que resultou na expulsão e desapropriação de centenas de milhares de palestinos dos territórios demarcados para constituir Israel e daqueles que suas forças armadas conquistaram. Em pouco tempo, houve uma radical inversão demográfica e na propriedade fundiária desse recém-criado Estado étnico-nacional, que passou a contar com uma ampla maioria judaica, proprietária de mais de 90% das terras (contra menos de 10% antes da guerra). Os refugiados passaram a viver em campos situados em Gaza, na Cisjordânia e nos países vizinhos, tendo desde então seus direitos de retorno e indenização ou restituição negados, embora estejam assegurados pela Resolução 194 da Assembleia Geral, de 1949. A “transferência populacional” foi discutida desde os primórdios do sionismo, como meio para garantir uma maioria étnica e justificar um Estado judeu (CATTAN, s/d; PAPPE, 2006; MASALHA, 2008; SAID, 1992).

Com a Guerra dos Seis Dias, em 1967, o Estado israelense conquistou todo o território da Palestina histórica, incluindo em seus domínios também a Faixa de Gaza e a Cisjordânia e, assim, submetendo toda a população remanescente a sua soberania. Muitos se tornaram refugiados pela segunda vez, havendo um novo fluxo populacional para fora do território, menor que em 1948, porém não insignificante. Até hoje, não só se perpetua como é aprofundada a colonização desses territórios, não obstante os fracassados diálogos de paz tentados na década de 1990 e o “desengajamento” de Gaza, já no novo milênio, que configura um novo modelo de ocupação, à distância (LI, 2006). Em diversas de suas obras, Edward Said analisa criticamente e dá seu testemunho pessoal desses acontecimentos, destacando o impacto da fundação de Israel na vida dos palestinos, inclusive na de sua família, então residente em Jerusalém, ela própria desapropriada e tornada refugiada, dispersando-se pelos países vizinhos. Essas memórias são recorrentes em sua produção intelectual. Tendo Said escrito por quase meio século, é natural que sua perspectiva tenha mudado ao longo do tempo, ora enfatizando um aspecto ora outro do problema. Vale destacar as primeiras linhas do prefácio de sua obra mnemônica “Fora do Lugar”, escrita na primeira metade dos anos 1990, que testemunha a carga emotiva por trás de sua abordagem do tema. Nem que se esforçasse muito Said seria um observador “neutro”, mesmo porque o totem da

neutralidade científica caiu há décadas:

Fora do lugar é um registro de um mundo essencialmente perdido ou esquecido. Vários anos atrás recebi o que parecia ser um diagnóstico médico fatal, e isso me fez considerar importante deixar um relato subjetivo da vida que vivi no mundo árabe, onde nasci e passei meus anos de formação, e nos Estados Unidos, onde cursei o colégio e a universidade. Muitos dos lugares e das pessoas que aqui relembro não existem mais, embora eu me espante frequentemente com o tanto que carrego delas dentro de mim, muitas vezes em detalhes miúdos e assombrosamente concretos. Minha memória mostrou- se crucial para a faculdade de manter-me em funcionamento durante períodos desgastantes de doença, tratamento e angústia [...] Depois de terminar o manuscrito, fiz uma viagem a Jerusalém e em seguida ao Cairo em novembro de 1998 [...] Descobri mais uma vez que o que havia sido uma rede de cidades e lugarejos nos quais tinham vivido todos os membros de minha família era agora uma série de locais israelenses — Jerusalém, Haifa, Tiberias, Nazaré e Acre — onde a minoria palestina vive sob a autoridade de Israel [...] Em 1992, porém, tive a oportunidade, pela primeira vez desde nossa partida em 1947, de visitar a casa de propriedade da família onde eu nasci, no setor oeste de Jerusalém, bem como a casa em Nazaré onde minha mãe cresceu, a casa de meu tio em Safad e assim por diante. Todas tinham novos ocupantes agora, o que, por razões tremendamente inibidoras e indistintamente emocionais, tornou muito difícil para mim, a bem da verdade impossível, entrar nelas outra vez, mesmo para uma observação superficial (SAID, 1999a: 8-9).

Não foi a primeira vez que o intelectual abordou a condição palestina de uma perspectiva mais subjetiva, que nele está longe de ser linear e passível de redução a uma reivindicação identitária palestina rígida. Um esforço inicial mais sistemático foi, em meados dos anos 1980, na obra “After the Last Sky”, produzida em parceria com o fotógrafo Jean Mohr, cujos materiais iconográficos não só ilustram como dão também o tom da narrativa. O título é uma homenagem ao poema de Mahmoud Darwish, que associa a condição palestina à viagem de pássaros em busca de novas e definitivas paragens. Ambos se deparam com o mesmo dilema: “Para onde nós devemos ir após as últimas fronteiras, para onde os pássaros devem voar após o último céu?”. Nela, não se trata do acadêmico, mas de um Said literato, que busca traduzir no formato fragmentado do texto a condição de desterritorialização constante dos palestinos (esta que,

posteriormente, guiou a redação também de “Fora do lugar” e “Reflexões sobre o exílio”). Esse formato textual estilhaçado está indicado também no prefácio à edição de 1999:

Então, nós ainda somos um povo problemático, desapropriado, o mesmo povo sobre cujas vidas e condição interna eu refleti nesse livro, usando as incríveis fotografias de Jean Mohr [...] Olhando para “Após o último céu” da forma mais objetiva possível, eu constato que ela pode ser algo como um livro, uma fonte acerca da condição palestina, uma tentativa de abordar essa condição não do ponto de vista dos políticos, mas dos memorialistas e historiadores não oficias. É um livro sem conciliação possível, no qual as contradições e antinomias de nossas vidas e experiências permanecem como são, reunidas nem (eu espero) em conjuntos arranjados nem em ruminações sentimentais sobre o passado. Fragmentos, memórias, cenas interrompidas, detalhes íntimos (SAID, 1999: X-XI).

De fato, a narrativa vai se constituindo em uma sucessão aparentemente desordenada de passagens autobiográficas, biográficas (tanto de sujeitos comuns quanto de personalidades), análises breves e fotografias, evidenciando rupturas próprias da trajetória de vida da população palestina. Said assim demonstra tanto as condições subjetivas quanto objetivas de vida sob a ocupação israelense, comparando-as, em breves passagens, a outras experiências coloniais, como a da África do Sul sob o apartheid. As interrupções abruptas no texto, com seus fragmentos espaço-temporais arranjados quase que aleatoriamente, também refletem a política colonial sistemática de negação, desapropriação e expulsão, insensível e em detrimento dos locais, que para calá-los recorre, constantemente, à censura, fechamentos, punições coletivas, abusos, humilhações, demolições, prisões em massa, torturas, exílio e assassinatos (SAID, 1999: 20; 133).

Fato é que, as políticas etnonacionais israelenses em si, monitoradas por diferentes ONGs locais, internacionais e pela ONU, e analisadas criticamente por intelectuais, implicam em sistemáticas transgressões aos direitos básicos dos palestinos, que por sua vez tentam resistir de diferentes formas. Se em várias obras Said (1999: 142) define essa situação como “um sistema de praticamente apartheid” também enfatiza o silêncio difundindo entre intelectuais no “Ocidente”, conformados com o mito da “ocupação israelense ‘liberal’”. Desse modo, ao se calarem, trairiam a vocação universalista e libertária desse ofício.

Enfim, chegamos às questões para as quais buscamos respostas no presente artigo: Como Said interpreta e se posiciona em relação ao conflito na Palestina/Israel? Qual é o papel que atribui aos intelectuais? Isso permite compreendermos suas críticas ao silenciamento generalizado entre eles quando se trata de Palestina/Israel? Sua posição sofreu modificações significativas ao longo do tempo? Para responder a essas questões recorremos a uma leitura seriada e comparativa de seus textos (incluindo artigos midiáticos e entrevistas). Como se trata de compreender sua fundamentação teórica e política e as justificativas que dá para seu engajamento, valemo-nos tanto de reflexões objetivas e críticas quanto de impressões subjetivas suas, que revelam como articula e tenta conciliar referenciais variados e mesmo contraditórios, como nacionalismo, pós-colonialismo e humanismo universalista. A fim de iluminar como se deu a construção de seu pensamento e posicionamentos, assim como identificar nuances, tentamos nos ater a uma exposição mais ampla e cronologicamente linear possível de suas obras, o que nos forçou a uma exposição superficial da maioria. Em contrapartida, pela centralidade que tem em sua práxis, ao final, aprofundamos a

argumentação desenvolvida por Said em “Cultura e Imperialismo”. Inclusive, ali

encontramos os fundamentos teóricos de sua proposta de um Estado binacional,

democrático e laico na Palestina/Israel - associada ao programa original da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e ao movimento contra o apartheid, em contraposição ao processo de Oslo. Eis a síntese política possível, reencontrada em seus últimos anos, que concilia as diferentes referências e embasa as críticas e proposições saidianas.

A trajetória de Said e sua interpretação do confronto

Nascido em 1935, em Jerusalém, Said passou sua infância e adolescência ali, no Egito e no Líbano, antes de emigrar para estudar nos Estados Unidos, em 1951, onde viveu a maior parte de sua vida, como professor na Universidade de Columbia. Até concluir sua formação, obtendo as devidas titulações, em 1963, anualmente, viajou ao Oriente Médio para passar as férias e rever sua família, que lá permaneceu. Até então, era onde ele “continuava a se sentir em casa”, mas à medida que foi se integrando nos EUA suas viagens se tornaram mais espaçadas.

Em seus relatos autobiográficos Said (1999a: 10-13), frequentemente, recorre à condição de “exílio” (tema que teoriza) e afirma seu pertencimento a dois universos linguísticos e culturais distintos, o inglês e o árabe, o que inclusive está refletido em seu nome e sobrenome, vinculados respectivamente a essa dupla origem. Portanto, vivencia um permanente sentimento de estar “fora de lugar”, o que por si só dificultaria sua adesão a um engajamento nacionalista restrito e excludente, visão esta que critica em “Cultura e imperialismo” como desvio frequente nas lutas anticoloniais. Por outro lado, também afirma ser de uma geração profundamente influenciada pelo nacionalismo pan- árabe, originado do renascimento literário no final do século XIX (al-Nahda). Em suas memórias, destaca como marcos tanto a ruptura drástica ocasionada pela tragédia palestina de 1948 (Nakba), quanto o ano de 1967, quando, com o declínio do nacionalismo pan-arabista, após a Guerra dos Seis Dias, ele e alguns de seus amigos passaram a se engajar ativamente na Questão Palestina e em seu movimento nacional, então emergente de forma independente. “Eu comecei a pensar, escrever e viajar como alguém que se sentia diretamente envolvido no ‘renascimento da vida e da política palestina’”. Desde então, escreveu diversos textos sobre o tema e se empenhou ativamente nas discussões e decisões políticas do movimento, inclusive integrando o Conselho Nacional Palestino (CNP), entre 1977 e 1991 (SAID, 1995: XIII-XIV).

Assim que, sua trajetória biográfica e acadêmica é inseparável da Questão Palestina, vivenciada, comentada e teorizada por ele em diferentes momentos. A análise saidiana dela é, em seus aspectos teóricos mais gerais, muito tributária de seus estudos literários e estéticos, que fundamentam sua crítica sistemática ao colonialismo e orientalismo, constituindo relevante aporte à consolidação do campo dos estudos pós- coloniais, muito influenciado por Said. Por sua vez, a centralidade da condição colonial em suas reflexões é também indissociável da biografia saidiana, como um árabe exilado nos Estados Unidos, que vivenciou na pele a incompreensão e os estigmas decorrentes de visões orientalistas estereotipadas, o que aparece já em seus primeiros textos políticos, como “The Arab Portrayed”, publicado pela primeira vez em 1967, logo após a Guerra dos Seis Dias. Nele abordou, justamente, as representações mitificadoras dos árabes e os usos ideologizantes da cultura para legitimar Israel e o colonialismo como um todo, fruto do que chama de “bloqueio comunicativo com a opinião mundial liberal” derivado do controle exercido sobre os canais midiáticos pelas agências e grupos sionistas. Nessa crítica cultural e política, destaca como os árabes estão representados como uma “caricatura estúpida e ofensiva” na consciência, cinematografia e mídias

americanas. É a clássica visão colonialista do outro selvagem, nunca representado em sua subjetividade e nem historicizado, mas narrado como massa despersonalizada e sem valores humanos (SAID, 1970: 1-9; 1994: 16-17).

Assim que, associando experiências pessoais, análises conjunturais, referenciais literários e teóricos, o “jovem Said” vai teorizando a condição colonial e o caso palestino em especial. Desse modo, temas posteriormente aprofundados em suas obras clássicas, expressões de seu amadurecimento intelectual, já figuram em seus textos dos anos 1960 e 1970, especialmente, as representações coloniais, o sionismo como colonialismo e a resistência anticolonial como constituinte do movimento palestino, além da debilidade do “liberalismo” de intelectuais ocidentais, complacentes com os crimes cometidos por Israel em decorrência do tabu e sentimento de culpa oriundos das barbáries do antissemitismo na Europa. Contudo, é em “Orientalismo” (1978) e “A Questão da Palestina” (1979) que encontramos sua crítica já sistematizada da epistemologia e das narrativas coloniais e orientalistas, assim como do sionismo como caso específico, com Said articulando estudos literários comparados com abordagens

das ciências humanas e da linguística. Paralelamente, foi categorizando um tipo ideal de

intelectual e análise crítica, cujos retoques finais deu nos anos 1990, fechando seu

sistema de pensamento pós-colonial, aplicado à análise e tentativa de descolonização da Palestina.

Pensando propriamente no caso médio-oriental, desde seus primeiros textos, destaca as transgressões praticadas por Israel aos direitos fundamentais dos árabes- palestinos, iniciando com a limpeza étnica de 1948 (expressão esta emprestada da experiência na ex-Iugoslávia, dos anos 1990). Para fundamentar sua crítica ao colonialismo e nacionalismo excludente inerentes ao sionismo, Said recorre a testemunhos pessoais e familiares, bibliografia interdisciplinar, artigos midiáticos e análise de fontes e relatórios de ONGs e da ONU. A condição palestina, desde cedo, é associada àquela de outros povos colonizados, destacando as injustiças cometidas, fruto de sua invisibilização e destituição de direitos, ou mesmo de sua condição humana. Isso é feito já em “The Arab Portrayed”, onde denuncia a “desapropriação, o exílio, a dispersão, a privação de direitos (sob ocupação militar israelense)” (SAID, 1970; 1992: VII-XXXIII).

Desse modo, desde os primórdios, opondo-se também a interpretações grotescas do sionismo, que reproduziram elementos fantasmagóricos do antissemitismo europeu, Said (1970; 1992) fundamentou seu entendimento da Questão Palestina como mais uma

experiência do colonialismo europeu. Portanto, mais um elo da “corrente de sofrimento humano” que idealizou como objeto de denúncia dos intelectuais, e não tema exclusivo de movimentos étnico-nacionais. Em decorrência, desde muito cedo, ressaltou a natureza anticolonial do movimento palestino, associando-o à luta dos demais povos do “Terceiro Mundo” e, inclusive, destacando o fato de ter se tornado referência desse modo de resistência coletiva e esforço para recuperar a dignidade e (re)humanizar as vítimas coloniais, sendo elemento relevante de coesão e identidade palestina e de afirmação de uma ideologia não exclusivista, democrática, progressista, “um nacionalismo não sectário, secular, libertário e igualitário”, ou “a política da esperança”. Tal interpretação da luta palestina também pode ser associada ao ideal de si saidiano, como alguém que reivindica “princípios universais, e ser concreto e crítico ao mesmo tempo”, denunciando e desmistificando tanto desmandos das autoridades palestinas (inclusive o “aventurismo terrorista”) quanto os discursos dos poderes estabelecidos com suas ideologias deturpadoras da realidade (SAID, 1995: XIV-XX; 1999: 160). Esse local de fala típico do intelectual, tal qual idealizado, conceituado e assumido por Said, está explicito em seus textos, sendo apontado também por outros comentaristas de suas obras, a exemplo de autores reunidos na brochura escrita em

homenagem a seu falecimento, “Edward Said: trabalho intelectual e crítica social”.

Desse modo, não é nem um pouco arriscado afirmar que, embora sua trajetória biográfica e política esteja entrelaçada com a Questão Palestina, sua defesa dela não tem cunho étnico, mas humanista, crítico, decorrendo do necessário engajamento intelectual universalista e humanista idealizado por Said. Outros intelectuais, como Gurminder Bhambra, compactuam dessa percepção, de que a defesa dessa causa pelo intelectual palestino parte de uma denúncia mais geral das injustiças cometidas e não de um “sectarismo estreito”. Em diversas passagens, como em entrevista de 1991, Said (1995: 310) afirma que a causa palestina é transnacional, uma questão de princípios e justiça, tal qual a luta contra o apartheid na África do Sul, que muito o influenciou desse ano em diante, quando a visitou.

Até seus escritos derradeiros, não houve uma mudança de princípios na crítica saidiana, apenas de ênfase. Em toda sua produção, reivindica que a universalidade da Questão Palestina deriva desse legado comum de injustiças do colonialismo contra o qual se insurgiram diferentes povos, sendo a Primeira Intifada um marco dessa resistência, “uma das grandes sublevações anticoloniais de nossos tempos”, ao lado dos protestos na África do Sul, dentre outros (SAID, 1995a: 11; 400; 320). Vale destacar

que essa percepção tem respaldo na própria ação político-diplomática da Organização para a Unidade Africana, que em resoluções dos anos 1970, especialmente de 1973 em diante, foi subindo o tom de suas críticas ao sionismo, aproximando-o do racismo, colonialismo e apartheid, até considerar a Questão Palestina, literalmente, uma “causa africana”. Seus documentos também revelam as interconexões do movimento palestino com demais movimentos de libertação da época, constituindo-se em importante referência e parceiro dessas lutas (SAHD, 2015). Said enaltece esse papel do movimento palestino como referência anticolonial em “A Questão da Palestina”. Mas, da Guerra do Golfo em diante, evidencia sua decepção, acompanhada de duras e sucessivas críticas ao que interpretou como desvio, amesquinhamento e “capitulação” das lideranças palestinas, especialmente Yasser Arafat, diante dos encontros, que culminaram nos Acordos de Oslo. Inclusive, encerrou, em 1991, sua participação direta no Conselho Nacional Palestino, o que o permitiu visitar, desde há muito tempo, localidades que ficaram dentro do território demarcado para Israel.

Entretanto, Said não passou por uma fase de silenciamento ou indiferença, o que

não seria condizente com a condição de intelectual, a que ele aprofundou em

“Representações dos intelectuais”, obra publicada em 1994. Seguiu atuante, tentando

reorganizar o movimento palestino, agora nos moldes do movimento antiapartheid, tomado então como referência. A luta deveria voltar a ser de baixo para cima, retomando o rumo perdido pelas velhas lideranças, que se equivocaram ao conduzir o movimento para a armadilha elaborada por Israel (Oslo) para manter o impasse e a colonização. A reorganização se daria pela base e em torno de uma campanha de desobediência civil, massiva e democrática, atrelada a outra internacional de informação, para incidir junto à opinião pública global, demonstrando a justeza moral da Causa Palestina. A Intifada seria o exemplo vivo da pertinência dessa via popular. Essa virada é perceptível na série de entrevistas que Said (1994: 42; 52-53) concedeu a David Barsamian, entre o final dos anos 1980 e o começo dos anos 1990, reunidas na obra “A caneta e a espada”. Em diálogo datado de 1991, retoma muitas questões já debatidas, agregando reflexões oriundas de sua visita à África do Sul, em 1991. As conexões anticoloniais são retomadas a partir da luta contra o apartheid, que deveria ser adotada como referencial na continuidade do processo palestino de libertação. Esses paralelos o ajudaram a compreender melhor a especificidade palestina diante do mundo árabe, ou “nosso próprio lugar na história”, como parte desse “grande movimento” anticolonial, o que seria um “feito histórico importante”. A OLP teria sido a única a

conseguir a ligação necessária com as demais lutas anticoloniais. Sua visita à África do Sul teria mostrado isso, com Said destacando “um sentido muito caloroso de associação entre os lutadores palestinos contra a ocupação israelense e a luta contra o apartheid”. Inclusive, para além das ruas e academia, essa percepção também teve em conversa com Mandela, que teria lhe dito que jamais abandonaria os palestinos por questão de princípios e pela ajuda que prestaram ao movimento antiapartheid e aos de libertação análogos.

Em outras entrevistas compiladas na mesma obra Said volta ao tema, destacando, a partir do exemplo sul-africano, a centralidade de narrar, iluminar e denunciar os fatos sob um prisma moral, mais especificamente dos valores caros à tradição humanista e iluminista “ocidental”, conjugados no liberalismo clássico que, embora seja o arcabouço de muitos, não é aplicado à Palestina pelo tabu representado pelo holocausto, associado a Israel como política reparatória, e pela condição palestina de “vítima das vítimas”. De forma contra hegemônica, Israel deve ser conectado à ocupação, à África do Sul do apartheid e a outras lutas anticoloniais, sendo a oposição a suas práticas uma questão de princípios, de direitos básicos. Da luta de Mandela, ficaria o exemplo a ser seguido de não abrir mão dos princípios fundamentais, universais e morais, associando à campanha de informação e propaganda outra de desobediência civil (SAID, 1994: 89; 103; 163).

Essas conexões Palestina-África do Sul nos levam ao ponto central desse artigo, o papel do intelectual em Said.

O intelectual em Said

As reflexões saidianas sobre a Questão Palestina, especialmente a partir dos anos 1990, devem ser conectadas ao conceito de intelectual que ele sistematiza. É fundamental compreender também essa teorização de Said, pois reflete seu “ideal de si” e ilumina melhor suas práticas e os propósitos destas. Seu entendimento do tema é muito influenciado pela definição sartriana e gramsciana. Respectivamente, o intelectual pensado como homem público atuante, com função social determinada, inserido em um conjunto de sistemas de relações sociais, representando interesses específicos e colaborando para a crítica do pensamento hegemônico, solidarizando-se com os

oprimidos (HATOUM, 2005). Do mesmo modo, a definição saidiana também recebe influência direta das reflexões de Walter Benjamin, Foucault e Bourdieu sobre discurso, autoridade, campo e poder(es). O intelectual

Em um curto artigo intitulado “Sobre a provocação e o assumir posições”, compilado na obra “Reflexões sobre o exílio e outros ensaios”, Said (2003: 248-251) versa sobre a função dos professores universitários que, como intelectuais, devem abordar questões mais amplas de justiça, indo além de suas disciplinas específicas, saindo “da academia para o mundo”, ofertando aos alunos saberes disciplinares junto com uma consciência crítica diante do que é tratado acriticamente, inclusive por muitos acadêmicos. Portanto, cultivando um “ceticismo saudável”, um senso de compromisso e “falando a verdade” aos “poderes”, os intelectuais devem decidir e assumir posições, solidarizando-se com o sofrimento humano. Devem estar presentes na esfera pública, publicando e discutindo, fazendo os contrapontos necessários, assumindo-se como oponentes dos consensos e ortodoxias fáceis, brandindo e amplificando a voz dos sujeitos oprimidos face às autoridades demasiado poderosas e seus discursos

hegemônicos. Devem, portanto, posicionar-se contra a consolidação do poder, a mídia

hegemônica e seus discursos legitimadores, compreendendo, interpretando,

questionando e apresentando-os ao público em sua nudez e crueza. Espécie de (contra)memória coletiva, que faz paralelos incômodos, questiona verdades definitivas e fragmentadas, reestabelecendo a causalidade dos fatos, que de outro modo seria coniventemente ignorada, permanecendo oculta. É perceptível a influência das reflexões gramscianas acerca da dominação por consenso e da contra-hegemonia necessária, com os intelectuais conjugando teoria e prática em sua práxis crítica e libertária.

Eis a teorização dos objetivos dos próprios textos saidianos, com ele, como intelectual, buscando apontar a causa primeira das opressões contra o povo árabe- palestino, no caso, o colonialismo com seus efeitos concretos e simbólicos, do qual deriva tanto a resistência quanto as formas atualizadas de reação e manutenção do poder. Assim, em sua abordagem da Questão Palestina como intelectual, Said é quem resgata o que foi, deliberadamente, esquecido ou ignorado a serviço da conveniência dos discursos de poder emanados de diferentes instituições, inclusive de narrativas acadêmicas silenciadas pelos tabus que o sionismo representa. Para Said (1996), a principal questão que os intelectuais devem enfrentar é o “sofrimento humano” mais amplo, e para isso devem se distanciar, preservar sua independência e marginalidade em relação aos centros de poder e saber, de modo a poder “falar a verdade” contra as

narrativas convenientemente formatadas para distorcer os fatos e legitimar as opressões. É isso que ele pretende em sua leitura a contrapelo dos materiais atinentes à Palestina. Como intelectual, está presente nos espaços e debates públicos, lembrando as pessoas dos princípios e das questões morais que devem fundamentar as posições, insistindo nessa dimensão estrutural da Questão Palestina. Inspirado em Benjamin, aponta que os intelectuais, ao invés de celebrarem os “agentes triunfalistas” (como o Estado ou a pátria), devem se esforçar para aliviar o fardo carregado pelos segmentos oprimidos, denunciando o cortejo triunfante dos dominadores com suas “verdades” manipuladas.

É perceptível no conceito saidiano de intelectual tanto uma concepção de saber e poder ligada a narrativas hegemônicas (onde percebemos a influência foucaultiana) quanto a contraposição entre as verdades sufocadas dos oprimidos e as falsificações e ocultamento dos fatos e da conexão entre eles pelos opressores. Portanto, Said não relativiza a verdade das opressões ao igualá-la como simples discurso às narrativas hegemônicas ou da dominação. Trata-se, tal qual a contra-hegemonia gramsciana e o papel do materialismo e marxismo em Benjamin, do desvelo ou da escrita a contrapelo, portanto, de uma leitura crítica e necessária, afirmando verdades silenciadas pelos discursos de poder, que justificam opressões. Assim, o intelectual saidiano é libertário, autônomo diante dos centros de poder e verdade e fala a partir do lugar próprio da crítica identificada com os oprimidos, não sendo mero articulador de outro discurso de poder mitificador. Isso fica explícito em “Cultura e imperialismo”, mais especificamente, nas críticas que faz tanto aos colonizadores quanto aos nativismos e nacionalismos de Estado desenvolvidos por elites nativas em nome dos colonizados, que hegemonizaram lutas anticoloniais e seus desdobramentos, a exemplo da Argélia, limitando seu programa à mera independência nacional e reproduzindo hierarquias e opressões. Em contrapartida, amparado em Frantz Fanon, Said (1995a: 33; 37; 43) define e defende os movimentos anticoloniais de libertação que, ao partirem de alinhamentos independentes, universalistas, humanistas e híbridos ou multiculturais, superariam a mera substituição de velhas autoridades por novas e desafiariam noções identitárias “fundamentalmente estáticas”. Eis o próprio local limiar e autônomo que Said ocupa no interior do plural movimento palestino de libertação, não vinculado a nenhuma corrente e em relação desconfortável e crítica em relação a seus centros.

Conforme o intelectual, nacionalismo estreito e libertação seriam duas perspectivas incompatíveis, originando duas historiografias, uma mitificadora e outra complexa, de contraponto, em movimento e condizente com “a realidade da experiência

histórica”. Como aprofundaremos mais adiante, ao lado de definição saidiana de exílio e de intelectual, as críticas apresentadas em “Cultura e imperialismo” constituem a base teórica de suas proposições plurais e includentes assim como da denúncia à posição oficial palestina assumida em Oslo. Quanto à condição de exilado, igualmente reivindicada e teorizada por Said e relacionada às demandas libertárias (e não exclusivistas), trata-se de um pertencimento a ambos os lados da divisão imperial, uma posição limiar, híbrida, que permite uma compreensão melhor dos fatos e uma posição integradora e universal.

Em outras palavras, em Said, a contraposição se dá entre posições libertárias e mitificadoras, entre hegemonia (seja mantida pelos colonizadores seja pelas elites nacionalistas que os sucederam) e contra-hegemonia. Esta deve ser, necessariamente, autocrítica, portanto, não geradora de mais um centro ou discurso de poder, como poderíamos desdobrar da perspectiva foucaultiana. Neste particular, Said é mais tributário dos marxismos, especialmente, Benjamin e Gramsci, com a verdade dos oprimidos contraposta à ideologia ou falsificação dos opressores, sendo meio de

libertação ou superação das relações de dominação, inclusive entre saber e poder, tanto

imperiais quanto anticoloniais chauvinistas. O apelo, portanto, é pelo posicionamento

intelectual, crítico e universalista na análise das experiências humanas, superando subjetivismos e também teorias essencialistas, totalizadoras e doutrinárias, que erigem barreiras e lados, justificando ignorância e demagogia e dificultando a produção de um conhecimento objetivo. Afinal, os intelectuais devem afrontar o status quo, romper estereótipos e categorias redutoras que limitam o pensamento e a comunicação humana, portando-se como outsiders, de forma independente em suas intervenções públicas que enunciam as verdades da miséria humana e da opressão. A contra-hegemonia deve conduzir à libertação, à verdade, e não a uma nova hegemonia como “ideologização” das relações humanas.

Mais uma vez, remetemos à própria produção saidiana, mais especificamente, em como, paralelamente a suas críticas ao racismo e colonialismo sionista, não deixa de se posicionar, de forma dura e contundente, também contra a linha adotada por Arafat e pela OLP dos anos 1990 em diante, que pode ser entendida como mais uma manifestação de “nacionalismos defensivos, reativos” contraposta ao (bi)nacionalismo ou multiculturalismo como “alternativa paciente e possibilidade francamente exploratória” para a resolução do conflito e garantia de reconhecimento e integração. Assim, denunciou Israel, mas também a Autoridade Palestina, o que o colocou em

posição desconfortável e conflitiva, sendo suas obras, inclusive, censuradas em países árabes e nos próprios territórios palestinos. Tampouco poupou os demais governantes árabes e as políticas dos EUA e das demais (ex)potências coloniais, assim como criticou tanto as táticas terroristas quanto os usos e abusos dessa palavra para mitificar e esvaziar o sentido libertário da luta palestina. Said (1996) alerta os intelectuais a se precaverem da autocensura, que pode desfigurar sua atuação pública, o que denuncia no ambiente acadêmico em geral, supostamente identificado com os valores caros à tradição progressista, desde que não associados a tabus, como a Questão Palestina.

Em resumo, ao passo que reivindica para si o papel público dos intelectuais o teoriza, ecoando e potencializando as vozes silenciadas, buscando assim “melhorar a sorte dos desafortunados e oprimidos”. Justifica assim seus próprios posicionamentos. Em entrevista cedida em 1991, afirma que, ao se engajarem em um movimento político, os intelectuais só têm um caminho: identificar-se não com o poder, mas com questões “envolvendo justiça, princípios, verdade, convicção”, e é isso que, insistentemente, aponta nos paralelos que traça entre o movimento palestino e o sul-africano, destacando a virtude de Mandela e do CNA em não se desviarem de seus princípios morais universais (SAID, 1995: 317). O alinhamento deve se basear na denúncia das opressões, na análise e reflexão correspondentes a posicionamentos consolidados e duradouros, e não em percepções convenientes da melhor verdade conforme cada situação, evitando- se oportunismo e internalização das normas do poder. Aplicando tal lógica à Palestina, a “principal tarefa intelectual [... seria] confrontar a consciência israelense com as sérias demandas políticas e humanas dos palestinos: o que requer atenção moral, intelectual e cultural do tipo mais profundo”. A abordagem crítica deve ser feita de forma complexa e intelectualmente honesta e independente, analisando-se a experiência palestina e a judaica-israelense, reconhecendo as opressões sofridas, o que não se consegue estando dentro dos establishments políticos (SAID, 2001: 119-124; 270-272).

Assim que, em sua abordagem da situação palestina Said destaca, sempre, a infração de direitos básicos, pautando-se sua luta pelo reconhecimento, afirmação e garantia dos direitos humanos como meio de esperança e possibilidade de reconciliação e paz duradouras, em contrapartida à discriminação inerente ao colonialismo sionista e ao Estado israelense, segregando judeus e não judeus. Mas, igualmente, rechaça um nacionalismo palestino estreito e táticas terroristas, fazendo sua defesa como parte de seu engajamento intelectual, humanista e universalista. Contrapõe Mandela e o Congresso Nacional Africano a Arafat e ao Conselho Nacional Palestino, que foram

mudando de posição, abandonando, gradativamente, princípios fundamentais, como a igualdade plena. Passaram da defesa inicial de um Estado democrático secular em todo o território para um Estado em qualquer parte da Palestina aceitando, posteriormente, a ideia de autonomia e, finalmente, autonomia limitada em colaboração, tornando-se algo equivalente aos chefes dos bantustões (SAID, 1994: 166-167). Mesmo com reservas, Said, ainda membro do CNP, aprovou a decisão histórica de 1988 desse órgão, que reconheceu Israel e as resoluções da ONU, portanto, a ideia da partilha, anunciando a criação do Estado Palestino. Foi o limite de sua colaboração, autocriticada na sequência, por sentir que os rumos estavam se desviando muito dos ideais iniciais da OLP - autodeterminação e igualdade em uma Palestina compartilhada, democrática e secular.

Até seus últimos textos, Said fez questão de, reiteradamente, aludir ao exemplo sul-africano, reivindicando a retomada dos valores universalistas e libertários também fundantes do movimento palestino. Em entrevista de 1993, apontou como horizonte a “generosa integração, ao invés de uma empresa separatista”, fundada nos princípios democráticos, seculares e multinacionais, admitindo-se a realidade pluriétnica do

território, finalizando as disputas com a reprodução de algo semelhante aos comitês de

verdade e reconciliação, criados na transição do apartheid à democracia

(VISWANATHAN, 2002: 201-202). Em artigo de 1998, intitulado “Como se soletra Apartheid? O-S-L-O”, reforçou esse posicionamento destacando, agora, como única visão política que cabe defender a de um “Estado secular binacional”. O mesmo tema figura em texto compilado na obra “The end of the Peace Process”, na qual Said (2001: 359) reafirma que, “Nossa batalha é por democracia ou direitos iguais, por uma comunidade de nações secular ou Estado no qual todos seus membros sejam cidadãos iguais”, fundado em um noção laica de cidadania e pertencimento. Assim, ao reivindicar a filiação da Causa Palestina a um referencial ético universalista e humanista coloca sua defesa como parte de um necessário engajamento intelectual, para além de mera identificação étnica-nacional.

Said e o paradoxo do nacionalismo

Como já dito, é em “Cultura e imperialismo” que Said teoriza essas tensões, sobreposições e contradições entre nacionalismo, libertação e colonialismo, que cabe agora aprofundar. Se o primeiro foi o principal antagonista, ou meio privilegiado de

expressão e mobilização de boa parte dos movimentos anticoloniais garantidores das independências nacionais, também representou uma limitação, ou mesmo deturpação, dos objetivos libertários mais amplos. Em muitas realidades de ex-colônias, o nacionalismo foi acomodado ao discurso oficial, instrumentalizado pelos governos e reduzido a identidades rígidas e reificadas. Suas reivindicações de “regeneração radical da cultura nacional”, como utopias românticas fundadas na afirmação do primado da “comunidade imaginada”, foram fragilizadas pelas realidades políticas, tornando-se os “nacionalismos de Estado” pretexto para minimizar ou ocultar desmandos e não enfrentar contradições (desigualdade econômica, injustiça social e governos autoritários, discriminatórios, xenófobos ou fundamentalistas). Elites, “ditadores e tiranos” nacionalistas, à frente de Estados já independentes, apenas ocuparam o lugar de poder dos antigos governantes coloniais, não rompendo, mas reproduzido a essência maniqueísta de sua ontologia e epistemologia, assim como estruturas de dominação, descambando em “patologias do poder” justificadas pelo “consenso nacionalista”. Desse modo, se essa ideologia se constituiu em relevante “força de libertação” na etapa da “resistência primária” (voltada à recuperação do território geográfico), “na resistência secundária” ou ideológica (cuja pauta é a reconstituição da comunidade) muitos movimentos dessa natureza descambaram em “ideologias pouco generosas”, traindo o “ideal liberacionista” em favor de “independências nacionalistas” (SAID, 1995a: 54; 209-210).

Said reproduz as críticas de Partha Chatterjee às imagens reificadas e eternizadas da nação e de seus passados idealizados, geradores de coesão e mobilização, entendendo-as não como essências, mas narrações, assim como a cultura em seu potencial de gerar identificações mais restritas ou universalistas. Tentando compreender a “tragédia parcial da resistência”, que levou muitos a se desencantarem com os nacionalismos do Terceiro Mundo, remete à sua complexa tarefa de ter que “recuperar formas já estabelecidas ou pelo menos influenciadas ou permeadas pela cultura do império”, sobrepondo “territórios”. As diferentes vertentes anticoloniais refletiriam a própria complexidade da descolonização, descrita por Said (1995a: 219) como uma “complexíssima batalha sobre o rumo de diferentes destinos políticos, diferentes histórias e geografias, e está repleta de obras de imaginação, erudição e contraerudição”, com temporalidades e espacialidades distintas. O “paradoxo do nacionalismo”, ou sua “ambígua fecundidade”, adviria do fato de muito deste pensamento depender da realidade do poder colonial, seja para se opor a ele totalmente seja para afirmar uma

consciência patriótica, levando a uma elitização da intelligentsia. Assim, se os nacionalismos serviram às independências e afirmaram ou “recuperaram” uma identidade antes incompleta e abafada, também marcaram “o ponto culminante da dinâmica da dependência”, reproduzindo hierarquias e dominações e se afastando das bases populares, oprimindo-as e inculcando uma nova autoridade. Transformaram forças vitais e contestatórias de expressão em doutrinas, substituindo “mitos imperialistas por outros igualmente dogmáticos”. Ademais, podem limitar o horizonte cultural ao pressupor uma história rígida, insuperável e inconciliável para colonizadores e colonizados, mantendo distinções hierárquicas absolutas e uma “autocomplacência emocional de celebrar a própria identidade”. Da nacionalidade ao nativismo, passando pelo nacionalismo, há uma progressão no grau de coerção, originando patologias de poder.

Fundamentando seu raciocínio também no que define como “brilhante análise de Fanon”, assim como em vários outros teóricos, lideranças políticas e literatos, Said se aprofunda nessa difícil relação entre nacionalismo e libertação, ainda que partilhem de

objetivos comuns na luta contra o imperialismo. Demarca bem essas fronteiras ao

diferenciar movimentos nacionalistas restritos de movimentos libertários. O programa

dos segundos não seria alcançado de repente, mas processualmente, a partir da disposição e esforços para acabar com as opressões, portanto, é aberto e disposto a múltiplos enfrentamentos, sem concessões, constituindo “corrente intelectual coerente”, que nega “as lisonjas a curto prazo dos lemas separatistas e triunfalistas em favor das realidades humanas mais abrangentes e mais generosas da comunidade entre culturas, povos e sociedades”. Caminha na contramão dos exclusivismos e da reprodução de “velhas ortodoxias e injustiças”, apresentando “novas e imaginativas reconcepções da sociedade e da cultura”, a exemplo dos movimentos feministas, pelos direitos humanos e democracia. São libertários e, necessariamente, autocríticos. Inclusive, Said (1995a: 215-219) se vale da ideia fanoniana do partido oficial e do lateral ou clandestino, com o primeiro publicamente objetivando a “independência nacional”, mas restrito a essa agenda mínima e disposto a compor com o inimigo, o qual emula, podendo facilmente expressar os “bem reais” perigos do chauvinismo e da xenofobia, já que “a consciência nacionalista pode levar com facilidade à rigidez estática”. Já a fração ilegal se pauta pela libertação, que por seu programa e método radical (no sentido de ir às raízes das opressões) é perseguida, banida e reprimida, encenando “sua existência numa contranarrativa, uma narrativa clandestina”, que ataca os “pontos fracos” daquela oficial

do nacionalismo e do sistema que engendra. Esse fracionamento, de fato, se verifica em diversas lutas anticoloniais, sendo obra de movimentos de libertação a superação integral da dominação colonial, com sua ontologia maniqueísta, epistemologia “única” e violência intrínseca e difusa que conforma também a cultura e as subjetividades (o que é sempre adiado pelos nacionalismos “nativistas e radicais”, “estreitos”, “mesquinhos”, “rancorosos”).

É central nessa distinção a relação com a alteridade. Os regimes criados pelas elites nacionalistas no pós-independência tendem a (re)produzir as estruturas de opressão e as narrativas simplistas e excludentes, traduzindo as hierarquias coloniais em novos termos, valendo-se de perspectivas nativistas essencialistas, equivalentes às perspectivas coloniais, apenas invertendo a adjetivação das partes sem acabar com sua lógica dicotômica, tendo em seu cerne a representação do outro como mal absoluto a ser expurgado no retorno para a pureza originária, omitindo ou justificando assim deturpações e limitações práticas e programáticas. “Aceitar o nativismo é aceitar as consequências do imperialismo, como as divisões que impõe, trocando o mundo histórico ou secular por essências metafísicas”, com “o nacionalismo ortodoxo” seguindo a “mesma trilha aberta pelo imperialismo”. Para Said, Fanon teria sido o primeiro a perceber isso e apresentar como contrapartida as lutas libertárias, que elevam as reivindicações a outro patamar, promovendo uma insurreição contra a lógica de redução maniqueísta, a geografia segregadora e a epistemologia e ontologia desumanizadoras. Essa síntese buscada requereria uma “cultura teórica pós-nacionalista inteiramente nova”, tendente à hibridização, ao cruzamento das referências locais com aquelas trazidos pelos ex-colonizadores, impactando no próprio tecido social metropolitano ao mobilizar suas parcelas críticas contra a continuidade da opressão, afirmando a comunidade das histórias (e não sua exclusão mútua) em um novo universal, embora as narrativas não estejam em perfeita correspondência e sejam feitas a partir de discursos culturais, programas, retóricas e imagens distintas. Como no senso comum gramsciano, os elementos progressistas da própria cultura colonial são libertados e voltados contra ela, desmantelando-a na criação de uma “nova era” ou “síntese estruturada” que “olha para além de ambos no rumo da libertação”, que afirma um verdadeiro “humanismo”, despido de seu “individualismo narcisista, separatismo e egoísmo colonialista do império, que justificava o domínio do homem branco”, encerrando-o definitivamente. Trata-se, em suma, de uma “cultura de oposição e resistência que em seus melhores aspectos [...] sugere uma alternativa teórica e um

método prático para reconceber a experiência humana em termos não imperialistas” resistindo “aos caminhos narrativos já batidos e controlados” e que, se começa nas colônias, logo se alastra, superando por meio da cultura as divisões dicotômicas (SAID, 1995a: 264-276; 281). Eis algo próximo, senão os fundamentos mesmo do que, posteriormente, foi teorizado como “ecologia dos saberes” (SANTOS; MENESES, 2010), demonstrando tanto a filiação teórica pós-colonial que caracteriza a produção intelectual saidiana quanto sua importância na consolidação desse pensamento e nos esforços para superar a “colonialidade”, como as lógicas cognitivas do imperialismo mantidas pelas elites nacionalistas produtoras de “patologias do poder”.

Portanto, a resistência vai muito além de mera reação ao imperialismo, sendo um movimento transpessoal e transnacional, uma concepção de humanidade e libertação mais integradora, um modo alternativo de conceber a história ou revolução epistemológica, baseada no rompimento da barreira entre as culturas, em um esforço consciente para adentrar no discurso ocidental, fundir-se a ele, transformando-o ao fazê- lo reconhecer histórias marginalizadas, esquecidas ou suprimidas. Trata-se da

“possibilidade de uma visão mais generosa e pluralista do mundo”, não entendido como

constituído “a partir de essências em conflito”, que possibilita um universalismo nem

limitado nem coercitivo e a superação de oposições básicas, como entre europeus e não europeus. Quando o colonizado enxerga em sua história um aspecto da história de todos os subjugados, aprendendo assim “a complexa verdade de sua própria situação social e histórica”, pode reconhecer e fortalecer movimentos de resistência e descolonização afins bem como, superada a dominação, conviver com o opressor de outrora em um novo patamar de igualdade. Propõe então soluções criativas, capazes de superar as divisões imperialistas, ao invés da conformidade ou mesquinhez de saídas nacionalistas estreitas. Não se trata de um abandono da nacionalidade, mas de um “pensar a identidade local como algo que não esgota a identidade do indivíduo ou do povo, e portanto não ansiar por se restringir a sua própria esfera, com seus rituais de pertença e chauvinismo intrínseco”. Seguindo Fanon, Said defende esse salto da “consciência nacional para a consciência política e social” (ou passagem do “anti-imperialismo nacionalista” para a “resistência anti-imperialista libertária”), indo das necessidades fundadas na consciência identitária ou nacionalista particularista (limitada à independência) para novas coletividades gerais (um “novo sistema de relações móveis, processo infindável de ‘descoberta e encorajamento’”), levando à “autolibertação nacional” e ao universalismo, estabelecendo-se laços laterais de povos separados pelo

imperialismo e dessacralizando e desmistificando as hierarquias e referências herdadas (SAID, 1995a: 214; 219-222; 228-234).

Essa distinção dos movimentos de resistência é descrita como tão relevante quanto aquela entre colonizados e colonizadores. Logo, o combate saidiano, assim como o fanoniano, é duplo: contra o imperialismo e contra o nacionalismo ortodoxo a partir de uma “contranarrativa de grande força desconstrutiva”, complexidade e anti- identitária, que é processo unindo “o europeu e o nativo numa nova comunidade não antagônica de consciência e anti-imperialismo”. Portanto, em “Cultura e imperialismo”, encontramos os fundamentos teóricos das críticas e do posicionamento libertário e pós- colonial reivindicado por Said. Assim, logo autocriticado e superado o apoio circunstancial e pragmático que deu à decisão de 1988 do CNP, que levou ao programa restrito de coexistência de dois Estados étnicos exclusivistas referendado em Oslo, ele retomou seu programa máximo, o binacionalismo como meio de reconciliação e integração. Inspirou-se no universalismo e humanismo do movimento antiapartheid (explicitamente sua referência dos anos 1990 em diante), reivindicando sua consonância com a proposta originária da OLP de um Estado democrático, laico e multicultural. Oslo e seu produto, a Autoridade Palestina (AP), foram então denunciados como capitulação e estreitamento dos horizontes ou “patologia do poder”, traindo o cosmopolitismo inerente à luta palestina e contra o apartheid. O binacionalismo foi a fórmula vislumbrada por Said para superar tanto os paradoxos do nacionalismo palestino estreito quanto do colonialismo e racismo sionistas, em consonância com o papel crítico e contra-hegemônico atribuído aos intelectuais e a si próprio como um. Se os fundamentos teóricos da crítica saidiana ao sionismo se encontram em Orientalismo e em “A Questão Palestina”, em “Cultura e imperialismo” estão aqueles de suas críticas e propostas feitas em entrevistas e textos dos anos 1990, que tem como alvo tanto o colonizador quanto parte do movimento nacional palestino, que a seu ver se descarrilhou da luta libertária.

Conclusão

Desde seus primeiros escritos, nos anos 1960, ao passo que Said abordou a Questão Palestina também refletiu, criticamente, sobre o papel da academia e dos

intelectuais, opondo-se ao silêncio conveniente de muitos em relação aos crimes praticados por Israel. Como professor acadêmico e palestino erradicado nos EUA viveu e respondeu assim a essa dupla pressão: a compreensão e inclusão da alteridade em contextos seculares e multiculturais e a defesa da legitimidade da Causa Palestina como uma questão moral e dever intelectual de denunciar opressões. A definição que foi formulando sobre o papel dos intelectuais serviu de fundamento, enquadramento e teorização de sua própria praxis (SAID, 1996; 2001: 283), resistindo às constantes investidas para deslegitimar sua atuação e produção no universo acadêmico e junto à opinião pública. No livro específico dedicado ao tema (“Representações do intelectual”), acabou por resgatar muitas considerações já feitas e, posteriormente, retomadas em “Humanismo e crítica democrática”. Conforme Said (2007: 163-165- 172), o intelectual tem um “local provisório”, no caso, “o domínio de uma arte exigente, resistente, intransigente, na qual, lamentavelmente, ninguém pode se refugiar, nem buscar soluções”, compreendendo e apresentando a dificuldade de situações, como a própria Questão Palestina, “a vítima das vítimas” de outrora.

Inclusive, o reconhecimento mútuo e sincero dessa experiência compartilhada de

opressão traria a esperança da reconciliação, ao invés das visões estreitas, exclusivistas

e negacionistas da presença e da história do outro. Said combate tanto a negação do holocausto quanto da tragédia palestina de 1948, o que lhe valeu outras tantas censuras entre setores bestializados por tais discursos. Diga-se de passagem, ele foi muito criticado por defender, já muito cedo e de forma melhor acabada em “A Questão Palestina”, a coexistência multicultural necessária na Palestina/Israel. Sendo assim, podemos afirmar com segurança que, sua defesa dessa causa vai muito além de sua pertença étnico-nacional, pois é assumida como obrigação intelectual, com Said assim se (auto)definindo e reivindicando seus valores éticos e políticos críticos e libertários. Alvo que foi de constantes pressões e ameaças, eis também o seu escudo. Afinal o conflito é uma questão humana e humanitária, de direitos violados e negados, o que o torna objeto legítimo e necessário de engajamento intelectual e crítica ao poder e às opressões. Desse modo, seu profundo envolvimento com a questão ao invés de negar, reafirma o posicionamento cosmopolita e humanista assumido e expresso em sua batalha acadêmica, desempenhada de modo independente e fundamentada. Inclusive, a nosso ver, talvez tenha exagerado em suas críticas à suposta traição de Arafat e de outros, adjetivando de modo simplista escolhas extremamente complexas. Crítica intelectual e política não necessariamente coincidem, pela segunda ter que considerar e

lidar, de forma mais direta e eficaz, com as contradições próprias da realidade, apresentando saídas possíveis, para além daquelas tidas como ideais.

Embora tenha teorizado o papel dos intelectuais somente no final de sua trajetória, ao longo dela Said já abordou o tema de passagem em diferentes textos, apresentando seus principais fundamentos, que são aqueles inerentes a seus posicionamentos e em relação aos quais buscou manter coerência. Assim, a Palestina é descrita como questão moral, um dever intelectual, mas também conectada a sua condição pessoal de exilado, um sujeito “fora do lugar”, pertencente a dois mundos e que buscou, constantemente, compreender também esse lugar limiar vivido em sua própria trajetória, tema também teorizado, em “Reflexões sobre o exílio” (SAID, 2003). Mais uma coincidência entre a trajetória palestina pós-1948 e a judaica na Europa pré- 1945, que o levou, inclusive, a chamar os palestinos de “judeus do mundo árabe”, ambos estigmatizados e violentados, física e simbolicamente, por sua condição de alteridade perante discursos nacionalistas estreitos, fragilizando a integração ou emancipação prometida desde o iluminismo. Mas, para os palestinos a barbárie se perpetua, acrescida do fator colonial. Logo, não há desencontro entre a autodefinição saidiana como intelectual e seu ativismo político-humanitário. Com sua postura crítica, conecta pontos que de outro modo permaneceriam intocados e fala verdades aos e sobre os poderes, servindo de (contra)memória diante das narrativas distorcidas e fragmentadas. Said identifica-se e denuncia a miséria humana, tal qual vivida pelos palestinos hoje e pelos judeus outrora. Essa ousadia intelectual e política de enfrentar as opressões, sejam elas quais forem, leva-nos a pensar que, se estivesse vivo nesse final da segunda década do século XXI, seguramente, estaria teorizando e denunciando o neofascismo, tema colocado na ordem do dia para quem defende o gênero humano.

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Notas

* Pesquisa com financiamento parcial do CNPq.


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