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Recepção: 06 Dezembro 2022
Aprovação: 18 Dezembro 2022
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a obra De exílio Provinciarum Transmarinarum Assistentiae Lusitanae Societatis Iesu, de autoria do padre jesuíta José Caeiro, considerando o contexto em que foi produzida e as suas principais ideias. Caeiro redigiu o manuscrito entre os anos de 1759 e 1777, em Roma, durante seu exílio ao lado de dezenas de outros religiosos da Companhia de Jesus, que anteriormente, viviam no reino de Portugal e nas regiões ultramarinas do império. Percebe-se, no desenvolvimento do texto, uma tentativa do religioso de construir um discurso de defesa dos jesuítas em relação às acusações sofridas durante a administração pombalina, no reinado de d. José I. Trata-se, portanto, de uma disputa de ideias e de versões.
Palavras-chave: José Caeiro, Companhia de Jesus, Expulsão dos jesuítas.
Abstract: The purpose of this article is to analyze the work De exílio Provinciarum Transmarinarum Assistentiae Lusitanae Societatis Iesu, authored by the Jesuit priest José Caeiro, considering the context in which it was produced and its main ideas. Caeiro wrote the manuscript between 1759 and 1777, in Rome, during his exile alongside dozens of other religious of the Society of Jesus, who previously lived in the kingdom of Portugal and in the overseas regions of the empire. One can see, in the development of the text, an attempt by the religious to construct a speech in defense of the Jesuits in relation to the accusations suffered during the Pombaline administration, in the reign of d. José I. It is, therefore, a dispute of ideas and versions.
Keywords: José Caeiro, Society of Jesus, expulsion of the Jesuits.
Introdução
O processo de perseguição à Companhia de Jesus e a sua posterior expulsão ocorrida na segunda metade do século XVIII no Império português e, posteriormente, em outras monarquias europeias e em seus espaços ultramarinos, desencadeou uma significativa produção intelectual entre seus inimigos. Analisando apenas o caso português, José Eduardo Franco identificou a elaboração de uma literatura antijesuítica definida por ele como:
Toda produção escrita, iconográfica, e outras, consignadas em documentação diversa no seu gênero, desde o romance aos tratados históricos, desde uma gravura a uma fórmula de fé, elaborada em ordem a atacar a Companhia de Jesus, e tendo, como tal, contribuído para consignar e propalar a imagem deformada desta instituição e dos seus membros (FRANCO, 2006: 27).
Exemplos dessa produção antijesuítica, de caráter oficial e destinada à destruição da ordem por meio de escritos, foram as elaboradas por Sebastião José de Carvalho e Melo e por seus apoiadores (MELO, 1757; CEPEDA, 1760; SILVA, 1767).. Por outro lado, membros da própria ordem realizaram a tarefa de escrever suas defesas em prisões ou em condições precárias de existência material ou ainda, durante o exílio em Roma (RICCI, 1758; KAULEN, 1758, ECKART, [1778], 1987).
Essas obras produzidas pelos inacianos, escritas quando vivenciavam as perseguições, prisões e exílios, ajudam os historiadores atuais, na medida em que, graças a elas, pode-se ter acesso a documentos sobre o desmoronamento da Companhia de Jesus que não foram produzidas pelas autoridades monárquicas. Além do que, por meio delas, tem-se a dimensão humana do que foi, para aqueles homens com idades variadas, tornar-se inimigo da coroa e, por isso, sofrer todos os tipos de exclusão religiosa, social, política e econômica. Esses fatores já demonstram que tais manuscritos não eram isentos. Muito pelo contrário. Eles trazem em si a visão de quem está sofrendo com o poder emanado de um grupo que os identificou como inimigos da coroa. São relatos variados sobre fatos que também eram narrados nas correspondências oficiais, mas que nos escritos jesuíticos ganham outros contornos e explicações. De qualquer forma, o que há em comum nessa produção é a presença de sentimentos repletos de mágoa, tristeza e desolação. Nesses escritos, a ordem inaciana é apresentada como a grande vítima. Ainda assim, ou por tudo isso, essas produções ajudam a
historiografia a compreender, a partir de pontos de vistas diferentes, o significativo impacto das políticas antijesuíticas josefinas na segunda metade dos setecentos.
Entre os anos de 1759 e 1777, José Caeiro, jesuíta que vivia em Lisboa no momento da expulsão, escreveu o manuscrito De Exílio Provinciarum Transmarinarum Assistentiae Lusitanae Societatis Jesv (ABL, 1936), e nele procurou defender seus companheiros de tudo o que estavam sendo acusados, ou seja, de que eram corruptos, violentos com diferentes membros da sociedade, mercadores, vingativos, arrogantes e uma série de outros adjetivos negativos.
Apesar de ter em seus quadros dezenas de homens habituados com a produção de textos religiosos, políticos, econômicos, científicos e outros, a Companhia de Jesus da Província Jesuítica de Portugal, incluindo os que viviam nos espaços ultramarinos, escreveram poucos textos sobre o contexto da expulsão (ARENAS, 2013:17-18; RODRIGUES, 2013, 2-3). Pode ser que o motivo para isso tenha sido a prisão de muitos nos calabouços e fortalezas do reino dificultando o acesso às informações e aos materiais necessários. Outra dificuldade encontrada foi a censura imposta a todos que fossem suspeitos de apoiarem os religiosos da Companhia de Jesus. O controle, tanto sobre os padres como em seus aliados, dificultou a circulação dos textos que tivessem o objetivo de desmentir as acusações sofridas. Parte desses manuscritos, e esse é o caso da obra analisada, ficou guardada nos arquivos da própria ordem e deve ter sido lida, no século XVIII, por poucos. .
Para melhor se compreender essa obra é necessário voltar no tempo e perceber como as políticas da governação josefina construíram uma nova imagem para a Companhia de Jesus baseada em ideias que a atrelavam ao atraso, aos desmandos e a quase todos os problemas pelos quais a sociedade portuguesa e a dos espaços ultramarinos passavam naquele momento.
A política josefina e a construção de uma nova imagem para a Companhia de Jesus
Maria Beatriz Nizza da Silva (2019), afirma que a Ilustração luso-brasileira foi mais tardia do que a ocorrida no restante das monarquias europeias e a diferencia dessas no tocante, dentre outros aspectos, aos envolvidos. Enquanto na França e Inglaterra os divulgadores das ideias
ilustradas eram filósofos e pensadores livres, em Portugal e em suas áreas ultramarinas, os principais agentes que tentavam propor mudanças com base na razão foram as próprias autoridades e seus auxiliares. Desse modo, as mudanças ocorreram de cima para baixo. Além disso, a ilustração luso-brasileira tinha um caráter pragmático. Como os idealizadores eram membros do governo, entenderam que políticas racionais elevariam o poder e a riqueza da coroa e, consequentemente do império ultramarino. Assim, desenvolveram uma série de medidas reformistas de caráter racional visando conhecer e controlar melhor os territórios e suas gentes. Pode-se dizer que houve uma incorporação seletiva das ideias da Ilustração em Portugal e tudo o que dizia respeito aos questionamentos sobre a legitimidade do poder real, do domínio sobre as áreas de conquistas e sobre o poder da igreja católica, foram eliminados, mantendo-se apenas algumas das ideias de reformas econômico-sociais voltadas para a modernização e o desenvolvimento de Portugal (SILVA, 2019: 313; 318).
É fato que as atitudes econômicas e políticas tomadas a partir da ascensão de D. José I ao trono e de seu secretário de Estado Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro conde de Oeiras e depois marquês de Pombal, tem forte relação com essas ideias e tiveram como objetivo tirar Portugal do atraso em que se encontrava com relação às demais potências europeias, principalmente, Inglaterra em termos econômicos, e França em questões culturais. Além do mais, queriam ainda, transformar Portugal em um reino moderno, com uma economia mais estável e livre de concepções consideradas à época, como atrasadas, para isso propunham o regalismo e a centralização do poder na figura do monarca (TORGAL, 1982; MAXWELL, 1996; MONTEIRO, 2006; HESPANHA, 2014; KANTOR, 2014; VILLALTA, 2015; SOUZA, 2015).
Nessa nova perspectiva, Pombal apoiou setores burgueses e da pequena nobreza e usou todos os métodos para enfraquecer o poder da igreja na sociedade. A Companhia de Jesus foi um de seus grandes alvos porque ela controlava o ensino e tinha forte influência na corte e nas Américas. Também detinha um grande poder com relação à população indígena e no controle sobre as terras produtivas. Dando prosseguimento a esta política de regalismo a autoridade régia, controlou a posse de bens das outras ordens religiosas, perseguiu grupos dentro da igreja, como por exemplo, os jacobeus e, em 1769 conseguiu subordinar a inquisição ao poder régio.
Entretanto, é oportuno lembrar que Pombal não atuou sozinho. Antonio Hespanha demonstrou que, na realidade, tratava-se de um líder apoiado numa “rede de influentes políticos” (HESPANHA, 2014:148). É relevante dizer que ele se alicerçou em um grupo de
intelectuais, inclusive, a membros da pequena nobreza que viam na sua política, uma chance de ascensão social. Com isso, elegeu seus principais opositores: a nobreza tradicional e os inacianos.
No início do século XVIII, a situação econômica da Companhia de Jesus, tanto em Portugal quanto em suas áreas ultramarinas, demonstrava poder e riquezas às sociedades locais. Naquele momento, ela era detentora de grandes estruturas rurais e urbanas, recebia aluguéis, arrendamentos, produzia e vendia artigos agrícolas, minerais e manufaturados e criava uma infinidade de animais. Era, nas Américas e África, possuidora de milhares de escravos, e além disso, controlava o trabalho da maior parte dos índios aldeados na América portuguesa (AMANTINO, 2018: 174).
Contudo, apesar ou por causa de todo esse poder econômico, a Companhia de Jesus viveu na segunda metade do setecentos uma conjuntura pouco favorável aos seus interesses. Diferentes categorias sociais, dentre elas se destacando os colonos e algumas autoridades metropolitanas ou locais, aumentaram muito as pressões sobre eles tentando minimizar seus poderes, identificados, agora, como elementos de perigo aos interesses da coroa. Tais alegações eram que os religiosos não pagavam tributos e lucravam em demasia com seus produtos, livres de qualquer taxação. Além do mais, ao controlarem a mão de obra indígena, impediam que muitas regiões pudessem desenvolver uma economia que fosse capaz de gerar renda para os colonos e, consequentemente, para o rei. Ainda que os projetos reais não buscassem a incorporação da mão de obra indígena como trabalhadores compulsórios, como queriam os colonos, as duas partes sabiam que o controle sobre os aldeamentos, o trabalho e a produção gerada por eles significariam não só a ocupação de novas terras como também a geração de riquezas em forma de tributos e produtos. As disputas ocorridas no momento da assinatura do Tratado de Madri também colocaram em lados opostos os jesuítas e as coroas ibéricas. À medida que avançava o século XVIII, aumentavam os conflitos e a suposta tentativa de assassinato real foi o estopim para a ordem de expulsão dos religiosos do império português, seguida alguns anos depois pelo espanhol. Suas fazendas, escravos e bens foram confiscados e, posteriormente, leiloados (AMANTINO, 2009).
A lei de expulsão da Companhia de Jesus de Portugal e de suas regiões ultramarinas foi o estopim de um processo que já vinha se desenvolvendo há alguns anos. Dauril Alden argumenta que desde os anos do governo de Pedro II (1683-1706), a coroa havia começado a questionar o
poder temporal dos jesuítas e em alguns casos, a dar crédito às reclamações dos colonos em diferentes partes do império, principalmente nas regiões onde os jesuítas haviam conseguido desenvolver economias que acabavam por competir com a dos colonos, ou seja, na América, em partes da África, em Goa e também em diversos pontos de Portugal (ALDEN,1970: 39). A partir da subida ao poder de Sebastião de Carvalho e Melo e de suas tentativas de incrementar economicamente o governo a situação política dos inacianos foi piorando gradativamente, até que em 21 de setembro de 1757, os jesuítas, que tinham como função serem os confessores da família real portuguesa, foram obrigados a deixar o Paço.
José Eduardo Franco (2006), interpreta essas atitudes pombalinas contra os inacianos de “antijesuítica” e, segundo ele, tratava-se de uma sistemática campanha de destruição da imagem que a população ainda tinha desses religiosos como homens corretos e pios. Interessava, para os novos rumos do império, demonstrar exatamente o contrário (FRANCO, 2006; VOGEL, 2017). Menos de um mês depois, Francisco de Almada de Mendonça, embaixador português em Roma, recebeu ordens para solicitar ao Papa Bento XIV uma reforma e modificação da Companhia de Jesus com base nas reclamações sobre o proceder deles em Portugal e na América (Instrução...8/10/1757). Assim, em 1 de abril de 1758 o Papa Bento XIV decretou o Breve In Specula Supremae Dignitatis determinando a reforma da Companhia e indicando reformadores para todas as regiões onde eles viviam. Uma das incumbências dos reformadores era a de averiguar se os jesuítas praticavam ou não o comércio, para isso, era necessário o estabelecimento de devassas, a fim de ouvir a população sobre as denúncias. Ressalta-se que os padres da Companhia de Jesus não foram ouvidos em nenhum momento.
Em três de setembro de 1758, o rei D. José I sofreu um atentado e os jesuítas foram indicados como cúmplices de uma parte da nobreza que exercia oposição a Pombal. A partir daí, a situação deles ficou muito mais difícil. Vários religiosos foram presos, suas casas foram revistadas, houve a determinação real de sequestro de seus bens em Portugal e, exatamente um ano após a suposta tentativa de regicídio, a ordem foi expulsa com a afirmação de que eram “notórios rebeldes, traidores, adversários e agressores”. Foram tratados como “deploráveis corruptos, pela sua “ingerência nos negócios temporais” (Lei de 3 de setembro de 1759).
Sendo verídica ou não a riqueza da ordem, o fato é que Sebastião de Carvalho e Melo usou este e outros argumentos e criou justificativas para legitimar a expulsão e o confisco dos bens dos jesuítas. Verifica-se que a riqueza exacerbada dos inacianos, a concorrência tida como
desleal com os demais súditos e os prejuízos que causavam ao tesouro real, foram ideias presentes em todas as justificativas dadas por essa autoridade (COUTO, 1990; ALDEN, 1996; ALENCASTRO, 2000; ASSUNÇÃO, 2004; ZERON, 2011; ARENAS, 2013).
Nesse contexto, a reação à expulsão da Companhia de Jesus foi variada em diferentes partes do império português. As cartas enviadas aos governadores ou vice-reis informavam que os religiosos deveriam ficar presos em seus colégios, incomunicáveis e que seus bens seriam confiscados e posteriormente leiloados. A documentação era bastante clara: essas medidas aconteceriam à noite quando as cidades estivessem mais calmas. No caso do Rio de Janeiro, a ordem chegou na madrugada do dia de Finados e o governador, com receio de fazer qualquer coisa contra os religiosos em um momento em que a população estava exercendo sua religiosidade com fervor, preferiu esperar um dia para anunciar a novidade. Apesar, ou em função de todos esses cuidados, poucos foram os casos de pessoas que ousaram questionar as medidas reais. Houve um pequeno grupo em Minas Gerais que tentou se posicionar contra a ordem de expulsão, mas os participantes foram rapidamente identificados e presos (BN, carta do conde de Bobadela, 16 de fevereiro de 1761).
Em contrapartida, se houve alguma tentativa por parte da população do Rio de Janeiro para impedir a expulsão ou mesmo para ajudar os padres presos é algo que a documentação oficial não informa. Pelos relatórios das autoridades, repleto de elogios ao conde de Oeiras e repetidores das principais ideias que eram vinculadas oficialmente contrárias aos membros da Companhia de Jesus, o povo sentiu-se aliviado da opressão em que vivia debaixo do jugo dos jesuítas. Todavia, trata-se de uma documentação que não era nada imparcial e, percebe-se nela uma tentativa de não desagradar à política antijesuítica pombalina.
Muitas cartas trocadas entre as autoridades e o conde de Oeiras nesse momento fazem referências à questão jesuítica com comentários, atitudes ou informações que têm por objetivo aniquilar o poder dos jesuítas frente às sociedades onde atuavam. Compreende-se que destratar aqueles religiosos era conveniente para os homens ligados aos interesses monárquicos josefinos ou para os que queriam se aproximar das autoridades. Com isso, se percebe também o uso político da informação, ou melhor, da criação de uma informação negativa específica acerca de um determinado grupo. Os discursos procuraram construir uma imagem estereotipada e negativa destes padres porque era o que interessava naquele momento de secularização e de controle maior sobre os povos. A população em geral, longe dos bastidores da política, ficava
sabendo dos conteúdos das publicações contrárias aos padres, nas tabernas, nas igrejas e nas ruas. Nas devassas realizadas na cidade do Rio de Janeiro e em Campos dos Goytacazes entre os anos de 1760 e 1761, para se saber sobre o comportamento dos padres inacianos, há vários depoimentos que afirmavam saber das acusações por ouvir dizer ou por vivenciar as questões (AHU, Devassa do Rio de Janeiro e de Campos dos Goitacazes). Os celebradores de missas do clero secular ou do regular, propagavam, em seus púlpitos, por vontade própria, ou não, as acusações que recaíam sobre os jesuítas. Além disso, as pastorais dos bispos de cada uma das localidades do império ordenavam aos paroquianos que se afastassem deles, pois numa demonstração de que o julgamento já havia ocorrido, eram responsabilizados como mandantes da tentativa de assassinato real, dos descaminhos de riquezas, da prática de comércio e de desrespeito às leis do reino e de Deus (AHU, ofício do bispo do Rio de Janeiro).
O bispo do Rio de Janeiro, o beneditino D. Antonio do Desterro, afirmou ao conde de Oeiras que sempre soube, com base na observação dos costumes, usos e comportamentos dos inacianos, que eles produziriam “temerários e violentos absurdos”, mas que nunca havia imaginado que eles atingiriam um nível tão elevado de “entranhas... tão pessimamente corruptas” que fossem capazes de atentar contra a vida do monarca. Para o bispo, a Companhia de Jesus havia se tornado um “monstro tão horroroso, infame e sacrílego”, um “pestífero veneno”. Agradecia a Deus, ao monarca e ao conde de Oeiras terem colocado um freio às pretensões daqueles religiosos..
Por outro lado, utilizando os relatos dos padres expulsos do império português é possível ter acesso a outras formas de narrativas sobre essas questões. Entretanto, também nesse caso é necessário tomar muito cuidado, uma vez que essa produção não é isenta de visões e ideias que visavam amenizar os conflitos ou defender a ordem.
A obra do jesuíta Anselmo Eckart, “História da perseguição da Companhia de Jesus em Portugal”, escrita após ter saído da prisão de São Julião da Barra em 1778, é um exemplo desse tipo de produção. O texto foi elaborado pelo autor dividindo os acontecimentos e as sucessivas prisões dos companheiros, por anos, dando ao texto um sentido cronológico. A obra se inicia da seguinte forma:
Tendo-me pedido alguns amigos, insignes benfeitores da Companhia de Jesus, que descrevesse a trágica história dos Jesuítas de Portugal, por tantos anos exilados e cativos, atrevo-me a fazê-lo um pouco mais desenvolvidamente. E, confiado na benevolência do leitor, acrescentarei algumas divagações para melhor inteligência dos factos recentes ou mais antigos, sobretudo daqueles que dizem respeito a toda a Companhia, quer em Portugal, quer noutras partes do mundo. (ECKART, 1987:15)
cativos, atrevo-me a fazê-lo um pouco mais desenvolvidamente. E, confiado na benevolência do leitor, acrescentarei algumas divagações para melhor inteligência dos factos recentes ou mais antigos, sobretudo daqueles que dizem respeito a toda a Companhia, quer em Portugal, quer noutras partes do mundo. (ECKART, 1987:15)
Outro exemplo dessa produção, desta vez, realizada na prisão é o texto do jesuíta João Daniel, “Tesouro Descoberto no rio máximo Amazonas”, em que são relatadas as riquezas naturais e informações sobre as populações indígenas e não indígenas da região. O manuscrito foi elaborado a partir de sua experiência de 18 anos como missionário na região (DANIEL, 1830). Também na prisão, foi escrito o texto do jesuíta Lorenzo Kaulen (1758), relatando os 18 anos que esteve preso em São Julião da Barra com outros religiosos.
A obra de José Caeiro se insere nesse contexto e deve ser lida e compreendida levando em conta o momento vivido pelo religioso, tanto em Portugal, quanto no exílio, em Roma.
José Caeiro e sua obra
José Caeiro nasceu em Évora, no dia 14 de abril de 1712 e com 14 anos entrou para a Companhia de Jesus. Sua vida dentro da ordem foi pautada pelos estudos. Ele cursou humanidades, filosofia e teologia na universidade de Évora, onde se tornou, posteriormente, professor de humanidades. Lecionou também em Coimbra e Beja e no colégio de Santo Antão, em Lisboa, onde ensinou filosofia. Além disso, era predicador. da casa professa de São Roque. Caeiro estava com 47 anos, quando veio a ordem de expulsão dos inacianos e esse homem, que passou a vida entre os seus, teve que abandonar Portugal. Viveu mais 41 anos em Roma e, no dia 10 de novembro de 1791 faleceu com 79 anos (CARVALHO, 2001: 596).
No momento em que seus companheiros foram presos em 1758 no colégio de Lisboa, ele estava fora nas proximidades da cidade, e só foi capturado cerca de dois meses depois. Parece que utilizou esse tempo para conseguir documentação que o permitisse demonstrar a situação vivenciada pela ordem em Portugal (CARVALHO, 2001: 597). Essa coleção teria sido a base para a elaboração de seu manuscrito. Finalmente, em 17 de setembro de 1759, foi exilado junto com outros 132 religiosos para a Itália (OLIVEIRA, 1983:316).
Já no exílio na Itália, Caeiro escreveu dois conjuntos de textos. O primeiro foi De Exilio provinciae Lusitanae S.J., tratando sobre a expulsão em Portugal (CAEIRO, 1991). O segundo manuscrito foi a obra De Exílio Provinciarum Transmarinarum Assistentiae Lusitanae Societatis Iesu, por meio da qual é possível que se conheça, ainda que de um ponto de vista específico, um pouco do cotidiano dos jesuítas que estavam nos espaços ultramarinos portugueses e que viveram os anos anteriores à expulsão. Ambas, completam a análise desse religioso acerca desse momento da história da Companhia de Jesus, quando pela primeira vez, ela foi sistematicamente, criticada e atacada por uma política real, ainda que cristã.
De Exílio Provinciarum Transmarinarum Assistentiae Lusitanae Societatis Iesu, relata em detalhes os processos de expulsão de seus irmãos na Província do Brasil., na Vice Província do Maranhão. e na Vice Província de Goa.. De acordo com o padre jesuíta Luiz Gonzaga Cabral, que doou em 1935, o manuscrito para a Academia Brasileira de Letras, com a finalidade de que o texto fosse publicado, Caeiro recorreu para a realização de sua monumental obra de relatos escritos que afluíam para a Itália e de informações orais prestadas por seus companheiros de infortúnio (ABL, 1936:12).. Cabral informa em sua introdução ao texto principal que:
Com efeito, Caeiro não é só contemporâneo do factos narrados, é um historiador que antecedeu, por isso mesmo, todos os documentos escritos, mas recebeu diretamente das testemunhas oculares a documentação oral, com a excepcionalíssima vantagem de poder averiguar a certeza dos testemunhos pela multiplicidade dos narradores, pois se tratava de sucessos da máxima publicidade, cujos transmissores vinham chegando em levas sucessivas ao local do seu exílio, a Itália (ABL, 1936: 11).
Essa informação nos leva a pensar que, embora o manuscrito forneça datas, nomes e lugares que podem ser confirmados por meio de variados documentos, o texto está repleto de memórias e de representações que as diferentes pessoas fizeram da história vivida, ou seja, trata-se de uma reconstrução baseada na capacidade de memória de cada um que contribuiu com as informações e, mais ainda, do que essas pessoas selecionaram para contar ou do que Caeiro escolheu para registrar (TODOROV, 2000). Essa variedade de informantes explica
também como foi que Caeiro teve acesso a detalhes dos processos de expulsão dos inacianos de lugares tão díspares.
O manuscrito foi originalmente, escrito em latim e o texto era corrido, sem espaços ou capítulos e dividida em três partes. A versão publicada mais conhecida foi a edição da Academia Brasileira de Letras feita em 1936 com tradução do padre jesuíta Manuel Narciso Martins e possui 942 páginas (ABL, 1936). O padre, ao traduzir, separou o texto por capítulos e criou uma espécie de síntese no início de cada um. Do lado esquerdo da edição, há o texto em latim e do outro lado, a tradução em português. A publicação manteve a divisão em três partes: A primeira trata sobre o desterro dos jesuítas da Província do Brasil e divide-se em 18 capítulos; a segunda versa sobre a expulsão dos jesuítas da Vice Província do Maranhão e está organizada em 21 partes. O último bloco trata especificamente sobre a perseguição aos jesuítas na Província de Goa e foi dividido em 18 capítulos. Embora a obra tenha um mesmo objetivo, qual seja, o de demonstrar que a Companhia de Jesus estava sendo atacada por inimigos com informações falsas e que ela era, na realidade, a vítima dos anseios de Pombal, constata-se que a estruturação interna dos argumentos varia entre as partes.
O primeiro bloco de textos trata sobre a Província do Brasil e o autor optou por contar os dissabores e injustiças sofridos por seus companheiros a partir do critério da separação por capitanias. O manuscrito inicia-se com os relatos sobre os acontecimentos na Bahia e para essa capitania ele dedica seis capítulos. A próxima região foi Pernambuco, com quatro, seguido do Rio de Janeiro, com cinco e depois, Espírito Santo, São Paulo e Paranaguá, cada um com apenas um. Fica evidente nessa separação interna entre as capitanias, uma noção de relevância de cada colégio para o projeto missionário da Companhia de Jesus. O último tópico desta parte encerra a narrativa com a viagem dos padres aprisionados para Portugal e de lá, para a Itália. De certa maneira, o autor utilizou a lógica interna desse texto destinado à Província do Brasil para servir de fio condutor para os demais.
Caeiro começa seu texto, nesta primeira parte, mostrando o ponto de vista inaciano a respeito da política antijesuítica pombalina. Na realidade, Pombal é tratado como tendo sido o grande culpado por todos os problemas enfrentados pela Companhia de Jesus e por ter criado e espalhado ideias falsas somente com o objetivo de ter acesso a uma suposta riqueza jesuítica, que Caeiro afirma não ter existido. A partir desta ideia geral, a qual está presente nas três partes
que compõem a obra, Caeiro passa a demonstrar as variadas políticas e atitudes que o secretário de estado tomou ao longo, da segunda metade do século XVIII, visando acabar com a ordem.
No bojo dessa discussão, Caeiro analisa o breve papal sobre a reforma da Companhia de Jesus e sobre o envio de reformadores para todas as regiões do império. O Cardeal Saldanha, patriarca de Lisboa, foi designado pelo Papa para ser o responsável pela reforma e este indicou bispos em cada uma das localidades ultramarinas portuguesas. Segundo Caeiro, o prelado da Bahia ficou responsável pelas averiguações na região e exigiu que os jesuítas apresentassem os livros de receitas e despesas, mas neles não encontrou nada sobre o comércio. Ordenou aos reitores e procuradores “por cartas juradas atestassem que nem antes nem então, algum deles exercerá o dito comércio”. Os jesuítas assinaram porque:
Realmente o açúcar e outros frutos que das suas fazendas colhiam eram despachados para Lisboa; e de lá depois de pagos os transportes a maior parte se vendia; e com o preço de sua venda se compravam as coisas, que eram precisas e se enviavam para o Brasil, onde se repartiam pelas diversas casas da Companhia e se gastavam nos usos a que se destinavam (ABL, 1936:41).
A mesma coisa aconteceu em Pernambuco, no Rio de Janeiro e em Goa. Nesta última localidade, o procurador dos jesuítas era o padre octogenário Manuel de Figueiredo. Luís Botelho, o desembargador responsável pelo sequestro dos bens, invadiu seu quarto exigindo a entrega dos papéis de receitas e despesas e também os livros das sociedades e negócios comerciais. O padre respondeu que “tais livros eram próprios só de comerciantes e que ele era procurador de uma Província de religiosos e não de uma sociedade de homens de negócios”. O desembargador retrucou respondendo que ele [o religioso] “não era tão boçal que ignorasse os negócios dos jesuítas”. Tirou o padre do quarto e começou a procurar o livro de contas. O jesuíta ao sair do recinto estava abraçado com um estojo de couro e Botelho arrancou de suas mãos achando que era o livro de contas, mas havia somente seu breviário e um papel com “as faltas de sua vida que ali apontara para renovar a memória delas”. Botelho leu tudo, mas o padre tomou o papel de suas mãos e rasgou em pedacinhos (ABL, 1936:659).
De acordo com Caeiro, ninguém nunca conseguiu provar que os jesuítas praticavam comércio nem no Brasil e nem em qualquer outra localidade, mas mesmo assim, tiveram seus bens sequestrados, foram presos, humilhados, passaram por todas as provações e foram enviados para as prisões em Portugal e alguns foram exilados na Itália. O autor, evidentemente, defendeu em toda a obra a inocência dos jesuítas. A seu modo de ver, a justificativa dada por
Sebastião de Carvalho e Melo para a perseguição aos inacianos era completamente fora de propósito. A tal imensa riqueza que o ministro denunciava nunca havia passado de mentiras inventadas pelos inimigos da ordem. Para Caeiro, Carvalho e Melo imaginava que tendo acesso a ela, Pombal iria “satisfazer sua cobiça” e acudir a pobreza do “erário que ele depauperava com os seus projetos e dilapidações”. Em função disso, divulgou muitos libelos denunciando o poder econômico deles no ultramar, mas nunca conseguiram provar ou achar coisa alguma (ABL, 1936:27). Com relação à suposta participação deles na tentativa de regicídio, Caeiro afirma a impossibilidade de ter participação dos jesuítas do ultramar na tal conspiração para atentar contra o rei, uma vez que as distâncias não permitiriam a troca de cartas para a combinação. Além disso, ele lembra que os jesuítas já estavam sofrendo ataques mesmo antes da tentativa de assassinato real (ABL, 1936:629).
Um outro ponto bastante discutido no manuscrito, é a questão das demissórias. De acordo com a lei de expulsão de 1759, os que ainda não haviam professado o quarto voto, poderiam solicitar suas saídas da Companhia de Jesus aos bispos locais, bastava uma carta de próprio punho. A documentação produzida pelas autoridades josefinas é enfática em destacar que aqueles que pediram as demissórias fizeram com alívio e muitos eram movidos pelo medo de serem desterrados. Por outro lado, o relato do padre José Caeiro aponta para o lado humano de uma decisão tão séria naquele momento de tantas incertezas. Ainda que sabendo que se trata de um texto laudatório da experiência jesuítica na América e em Goa e de tentativa em mostrar o quanto os inacianos foram culpabilizados e humilhados pela política pombalina, é possível identificar em seus relatos os sentimentos conflitantes, o medo e a dor dos que, sem saber o que se passaria em suas vidas, preferiram abandonar as fileiras da ordem. Há vários exemplos de indivíduos, espalhados por diferentes colégios, os quais demonstram como as demissórias foram recebidas pelos membros da Companhia de Jesus situados em posições hierárquicas variadas. Além do mais, havia ainda, a pressão dos próprios familiares dos estudantes ou dos que ainda não haviam feito seus votos, para que não abandonassem a família e permanecessem nas regiões e, para isso, só aceitando a demissória. Além disso, alguns familiares expressaram o receio de serem perseguidos nas localidades em que viviam por terem alguns de seus membros decidido acompanhar a Companhia de Jesus. Caeiro assim se expressou sobre essa possibilidade:
Também aos cidadãos e principalmente aos parentes se concedeu faculdade, que pouco antes por decreto do rei lhes fora retirada, de poderem falar com os jovens, a fim de que os movessem a tomar por melhor caminho. E este assalto
vinha a ser mais apto para os fazer render, porque os pais tinham para si e a cada passo repetiam, que a pertinácia dos seus filhos redundaria em mal e dano seu, por imaginarem, o que não era de todo improvável, que a ruína dos jesuítas também, a modo de contágio, abrangeria até aos mais chegados a eles (ABL, 1936:247).
Nessa perspectiva, Caeiro relata também outra questão, pois, havia entre os religiosos a crença de que apenas o superior da ordem poderia relaxar os votos já prestados e que as demissórias feitas pelos bispos não tinham nenhuma validade, não somente pelo que diziam as suas próprias constituições, mas porque segundo afirmavam, o papa não teria dado poder para o cardeal Saldanha e para todos os bispos escolhidos por ele para fazerem a reforma, de fornecerem as demissórias. Dentre vários exemplos, Caeiro explicava que “os votos pelos jesuítas feitos após o biênio, indubitavelmente os constituíam em um estado de vida religiosa e por sua natureza perpétuo”. Sendo que ao realizar os votos, mesmo os não solenes, o religioso afirmava que “prometo entrar na mesma Companhia para perpetuamente viver nela, entendendo tudo segundo as Constituições da mesma Companhia”. Logo, se alguém aceitasse a demissória do bispo e passasse para outra ordem ou para a vida mundana, estaria cometendo um “nefando sacrilégio”. Essas cartas demissórias dadas pelos bispos não tinham, portanto, nenhum valor canônico, segundo o padre José Caeiro (ABL, 1936:247).
Realmente, o jesuíta estava correto em uma questão. O breve papal não dava poderes para nenhum bispo relaxar os votos feitos na Companhia de Jesus. No entanto, o que estava sustentando o poder dos bispos para fazerem as demissórias era um documento real e não religioso. Era a lei de expulsão que previa esta possibilidade. Naquele cenário de conflitos, os documentos acabaram se sobrepondo uns aos outros e algo que deveria ser resolvido pelos canais religiosos acabou sendo definido por uma determinação real (ABL,1936:235). Pode-se inferir também, que havia uma luta de poderes entre a monarquia e o papado. O rei claramente reafirmava sua autoridade, ignorando não apenas as constituições jesuíticas, o que seria simples de se entender naquele contexto, mas também todas as bulas e resoluções anteriores do papado. É importante ressaltar que a monarquia uniu o poder concedido pelo papa para fazer a reforma com seus interesses e criou, por meio da lei da expulsão, uma fissura no corpo da Companhia de Jesus.
Outro fio condutor na obra do jesuíta, é o comportamento das autoridades civis e eclesiásticas frente a eles nos momentos em que eram informados sobre o sequestro e prisão.
Segundo seu relato, muitos perceberam o golpe, no qual os inacianos eram vítimas, e procuraram ajudá-los na medida do possível, como por exemplo, o bispo da Bahia e alguns religiosos em Goa, que minimizaram seus sofrimentos sempre que possível. Todavia, muitos aproveitaram a oportunidade para prejudicá-los ainda mais. Nesse ponto, é possível perceber nas análises de Caeiro os antigos conflitos existentes entre os inacianos e outras ordens religiosas ou mesmo com o clero regular. Um exemplo dessa situação é a relação dos jesuítas com os beneditinos do Rio de Janeiro. Apesar do bispo ser um beneditino, Caeiro informa que antes de iniciado o processo de destruição da imagem da Companhia de Jesus, o prelado frequentava o colégio e ouvia conselhos desses religiosos, principalmente do superior, mas assim que chegaram cartas de Lisboa informando as determinações reais, o bispo voltou-se contra os antigos aliados. Caeiro relata então, que o bispo não era a pessoa mais abonada e que ele usava o paço episcopal para a realização assídua de “vendas de alfaias sagradas” (MOTT, 2018:136).10 Logo, não seria ele um bom exemplo de retidão e que ele trouxera
Ainda a público o lixo e as imundices que aos libelos carvalianos fora recolher. E, como se não fossem bastantes aquelas imundices, que grandemente o deveriam fazer estomagar, ainda satisfez as suas ânsias de caluniador, eructando do seu interior bem pouco limpo e por conta própria outras fezes, que não foram macular a inocência dos jesuítas, mas a dignidade própria de sua pessoa (ABL, 1936:203).
Na realidade, a documentação produzida pelo bispo D. Antonio do Desterro, demonstra que ele foi um aliado importante na capitania do Rio de Janeiro para que as ordens contrárias à Companhia de Jesus fossem levadas a contento.
Outro tema que aparece com constância na obra, é a questão financeira. Segundo Caeiro, o desespero para encontrar tais riquezas era tão grande que, tanto no Rio de Janeiro quanto em Goa, destruíram partes dos colégios em busca de tesouros enterrados nas paredes ou nos pisos (ABL, 1936:691). Inclusive, procuraram dinheiro nos colégios e tudo encontrado foi confiscado. Inventariou-se os escravos, terras, ferramentas, produções agrícolas, bem como os animais que foram vendidos por preços irrisórios. Na concepção do autor, tratava-se de uma política desesperada de Pombal para compor o erário régio, desfalcado de muito dinheiro por causa de
suas atitudes. Contudo, para o padre, nada foi pior do que a profanação do túmulo de São Francisco Xavier ocorrida em Goa (ABL,1936:811-813).
A segunda parte da obra abarca, praticamente, os mesmos acontecimentos descritos acima, mas os coloca no contexto da região do Grão-Pará e Maranhão. Vale lembrar que os índios aparecem nesse momento, com maior vigor e como uma das causas de tantos dissabores que os inacianos tiveram com a população e com as autoridades locais. O primeiro capítulo narra brevemente o início do trabalho missionário na região, a relação dos inacianos com o bispo e o trabalho catequético. Entende-se, ao longo dos textos, que a chegada de Francisco Xavier Mendonça Furtado como governador da capitania, desequilibrou o jogo de forças na região e teve início então, os grandes problemas para a ordem. Discorre ainda, sobre as pressões sofridas, as calúnias e acusações, sobre a expulsão de alguns padres específicos, sobre o desmonte dos aldeamentos, o sequestro de seus bens, a reforma e culmina com a expulsão de 1759, o desterro para Lisboa e, depois para a Itália.
Na terceira e última parte, ao analisar a Vice Província de Goa, Caeiro utilizou a mesma metodologia do segundo bloco, ou seja, registrou como todas as perseguições foram recebidas nas localidades que a compunham. No corpo do texto, apresenta referências a colégios específicos, porém sua análise tem, na maior parte das vezes, um caráter mais geral.
Apesar de Caeiro ter separado sua análise por regiões geográficas e que estavam ligadas à divisão entre as Províncias ou Vice Províncias, pode-se identificar que há algumas ideias que estão presentes nas diferentes partes da obra. A primeira é, conforme já indicada, a forte relação entre os problemas enfrentados pelos padres e a ordem de reforma decretada pelo papa,
principalmente após a chegada em cada uma das regiões, de autoridades escolhidas por Pombal para levar adiante a política antijesuítica. O segundo fio condutor de Caeiro, remete à expulsão da ordem do império luso e todos os seus desdobramentos, nos espaços ultramarinos e, depois, nas prisões em Lisboa e no exílio. Caeiro faz questão de demonstrar que, em qualquer dos recortes geográficos, a população perdeu com a retirada dos padres. Os colonos perderam as escolas para seus filhos. Os indígenas ficaram desamparados nos aldeamentos e entregues à cobiça dos colonos por suas terras. Por conseguinte, as populações em todos os cantos do império ficaram sem seus guias espirituais e muitos permaneceram no paganismo impedindo o crescimento da religião católica.
Conclusão
Na segunda metade do século XVIII, a situação não estava nada favorável aos interesses da Companhia de Jesus e diversos tipos de informações circulavam no império, destruindo as imagens positivas do trabalho desses religiosos que, até então, haviam sido o braço direito dos reis portugueses no ultramar. O mundo das ideias e os anseios políticos e sociais eram outros. A Ilustração já havia indicado outras possibilidades de entendimento do mundo e da sociedade e os padres jesuítas pareciam, nesse contexto, atrasados e, mais do que tudo, um empecilho para o avanço. Os novos rumos tomados pela política regalista de D. José não tinha mais espaço para a intervenção e participação ativa de religiosos no poder. Diante disto, era necessário separar e definir espaços e o regalismo era uma das grandes discussões no reino e em seu império.
Na construção conflituosa dessa nova maneira de perceber a sociedade e a política, o governo josefino, principalmente na figura de seu secretário de Estado, desencadeou e propagou intensa produção de uma literatura antijesuítica com a função principal de destruir a imagem da Companhia de Jesus perante as diversas sociedades locais. Ao mesmo tempo, tomou atitudes políticas contra esses religiosos, demonstrando o afastamento da coroa e as mudanças que estavam sendo implementadas. O golpe decisivo foi a ordem de expulsão deles do império luso em 1759 e o confisco de seus bens. Foram acusados de serem os mandantes da tentativa de regicídio e de atuarem como negociantes, competindo deslealmente com os súditos e com a própria monarquia e de não mais se dedicarem à evangelização dos povos. Poucos foram os que
tentaram defender os padres. Por outro lado, a possibilidade de atrair ao tesouro real uma significativa “riqueza” e de colocar no mercado importante reserva de terras agradou a variados tipos de pessoas, tanto no reino quanto nos espaços ultramarinos.
A campanha antijesuítica e sua literatura estiveram na base de todos esses movimentos contrários aos padres da Companhia de Jesus e circularam livremente em diferentes espaços imperiais. Entretanto, os padres tentaram, na medida do que era possível naquele momento, defender o trabalho de tantos anos escrevendo manuscritos nas prisões ou no exílio em Roma, mostrando que estavam enredados em uma grande conspiração da política pombalina para destruir o poder da ordem.
Todos esses conflitos de interesses, disputas de poder e controle de terras e pessoas, aparecem nas entrelinhas no relato de José Caeiro, e para ele, a Companhia de Jesus era a grande vítima de todo o processo. Sob este foco, perpassa a obra o sentimento de um jesuíta sobre o desmonte havido no projeto da Companhia de Jesus. Para o religioso, eles foram vítimas de calúnias, de inveja e da cobiça das autoridades inimigas da igreja e o principal perseguidor foi, sem dúvida, Pombal, para quem os inacianos eram “monstros disformes”. Interessava ao político, de acordo com Caeiro, usurpar o que ele acreditava existir: uma imensa riqueza escondida pelos inacianos em seus colégios e propriedades. Contudo, em várias passagens, quer na América portuguesa, quer em Goa, o religioso fez questão de salientar que tal riqueza nunca teria existido e todos os possíveis lucros obtidos com os produtos dos colégios eram transformados em objetos litúrgicos, na conservação e ampliação de suas igrejas, na alimentação e sustentação dos indígenas dos aldeamentos e na manutenção dos próprios religiosos, encarregados de manter a conversão e os colégios. Coube ao padre, naquele momento, tentar desconstruir as imagens negativas, mostrando as perseguições que sofreram na Província Jesuítica do Brasil, na Vice Província do Maranhão e na de Goa.
O manuscrito de Caeiro deve ser entendido no bojo de uma série de outras produções realizadas por padres inacianos naquele contexto de perseguições. De uma certa maneira, era a manutenção de uma tradição jesuítica que existia desde as origens de ordem, no século XVI, quando seus religiosos eram instados a elaborar textos de exaltação de suas atividades em diferentes partes do mundo. Pode-se pensar que tais relatos eram formas de divulgação e incentivo para que outros se juntassem a eles na empreitada. Na segunda metade do século XVIII, com as mudanças que estavam sendo implementadas, era essencial divulgar outras
versões dos fatos, desmentindo as acusações e demonstrando para a sociedade, a importância dos padres inacianos nas variadas localidades e o quanto estavam sendo injustiçados.
Provavelmente, por causa do controle exercido sobre os religiosos, aprisionados ou não, poucas pessoas devem ter tido acesso ao manuscrito de Caeiro ou a outros. Durante muitos anos, essas obras ficaram guardadas nos arquivos da Companhia de Jesus ou mesmo nos arquivos pombalinos, na Torre do Tombo. Na disputa pelo controle sobre as diferentes versões acerca da Companhia de Jesus, venceu a que tinha a seu favor a máquina de produzir relatos negativos sobre eles e o controle sobre seus movimentos e contatos, ou seja, venceu a vontade política, baseada em novas concepções sociais e de pactos de governação. Hoje, cabe ao historiador, munido de metodologias e teorias, construir uma narrativa onde as abordagens antijesuíticas e as de defesa da ordem façam sentido e não buscar um algoz e uma vítima. Todos foram homens de seu tempo e, de uma maneira ou de outra, pagaram caro por suas escolhas.
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Notas