Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


Camões e Voltaire ou a epopeia na balança do tempo: Historicização e polemização literária (séculos XVIII e XIX)
Anuario de Letras Modernas, vol. 26, núm. 1, pp. 18-40, 2023
Universidad Nacional Autónoma de México

Artículo de investigación

Anuario de Letras Modernas
Universidad Nacional Autónoma de México, México
ISSN: 2683-3352
ISSN-e: 0186-0526
Periodicidade: Semestral
vol. 26, núm. 1, 2023

Recepção: 06 Fevereiro 2023

Aprovação: 06 Março 2023

Resumo: Numa altura em que se celebram os 450 anos da publicação de Os Lusíadas, pretende-se revisitar a épica camoniana e a sua presença assídua em debates intelectuais dos séculos xVIII exIx, paraalém doseucontributo para a afirmação da cultura de língua portuguesa. Para isso, analisaremos testemunhos em que a discussão em torno do(s) modelo(s) da épica se cruza com opiniões veiculadas por Voltaire ou com a apropriação de textos voltairianos por parte de comentadores. O Ensaio Sobre a Poesia Épica, que marca um período em que o autor começava a percorrer os domínios da filosofia e da história, mas sem abandonar a sua atuação como poeta, apresenta material riquíssimo. A primeira versão surgiu durante o exílio na Inglaterra, com o objetivo de preparar o caminho para a publicação de La Henriade. Seguem-se as polémicas, traduções não autorizadas e diferentes versões até que, em 1732, publica a sua própria versão (revista) em francês. Voltaire selecionou oito estudos de caso, enumerando e comparando virtudes e defeitos de cada um deles: Poemas Homéricos, Virgílio, Lucano, Tasso, Trissino, Ercilla, Camões e Milton. No caso de Camões, as críticas devem-se ao facto de misturar divindades clássicas com entidades religiosas e ao uso de ornato estilístico desnecessário. Quanto à Henriade, poema que contou com traduções para português logo a partir do séc. xVIII , sabe-se que infl nciou a perceção sobre o que (e como) deveria ser a poesia épica, pelo que não causa estranheza a sua inclusão nestes debates. Do corpus fazem parte textos de F. Xavier de Meneses, J. Agostinho de Macedo, William Julius Mickle, Tomás José de Aquino, J. A. Bezerra de Lima, Morgado de Mateus, entre outros.

Abstract: In the context of the 450th anniversary of the publication of Os Lusíadas, this article revisits the Camonian epic, its presence in the intellectual debates of the 18th and 19th centuries, and its contribution to the consolidation of Portuguese-speaking culture. For this purpose, we analyze testimonies in which the discussion around the model(s) of the epic intersects with opinions conveyed by Voltaire and the appropriation of Voltairian texts by commentators. The Essay on Epic Poetry, which marks a period when the author began to explore the domains of philosophy and history without abandoning his work as a poet, contains valuable material. The first version was published during Voltaire's exile in England to pave the way for the publication of La Henriade. Controversies followed due to the publication of unauthorized translations and different versions until 1732, when he published his own (revised) version in French. Voltaire selected eight case studies-Homeric Poems, Virgil, Lucan, Tasso, Trissino, Ercilla, Camões, and Milton-and listed and compared their virtues and defects. On the other hand, Camões was criticized for mixing classical deities with religious entities and using unnecessary stylistic ornament. As for the Henriade, a poem that had translations into Portuguese since the 18th century, it is well known that it influenced the perception of what (and how) epic poetry should be, so its inclusion in these debates is not surprising. The corpus includes texts by F. Xavier de Meneses, J. Agostinho de Macedo, William Julius Mickle, Tomás José de Aquino, J. A. Bezerra de Lima, Morgado de Mateus, among others.

Keywords: Luis de Camões, Voltaire , Epic Poetry, Portuguese Literature, Debates.

Palabras clave: Luís de Camões, Voltaire , Poesía , Poesía épica, Literatura portuguesa , Debates

CAMÕES E VOLTAIRE OU A EPOPEIA NA BALANÇA DO TEMPO: HISTORICIZAÇÃO E POLEMIZAÇÃO LITERÁRIA (SÉCULOS XVIII E XIX)

Celebrámos, em 2022, os 450 anos da publicação de Os Lusíadas, pelo que proponho aqui uma revisitação crítica da épica camoniana, da sua presença assídua em debates intelectuais dos séculos xVIII e xIx, para além do seu contributo para a afirmação da cultura de língua portuguesa. Para isso, analisarei testemunhos em que a discussão em torno do(s) modelo(s) da épica se cruza com opiniões veiculadas por Voltaire (1694-1778) ou com a apropriação de textos voltairianos por parte de comentadores portugueses e estrangeiros. Na verdade, a defesa e a crítica da épica camoniana ocuparam lugar de relevo nas disputas e polémicas travadas entre escritores e intelectuais da cena cultural luso-brasileira e europeia de Setecentos e Oitocentos. Nesse ambiente muitas vezes acirrado, cruzavamse tendências tão díspares quanto a censura a desvios ou falhas do texto camoniano face às regras da retórica e da poética clássicas ou a defesa apologética e com vigor nacionalista de um autor que ocupava cada vez mais o centro canónico da literatura portuguesa.

No período compreendido entre a segunda metade do século xVII e a segunda metade do século seguinte, surgiram vários ataques a Os Lusíadas, destacandose os de René Rapin, nas Réflexions sur la poétique d'Aristote, et sur les ouvrages des poetes anciens et modernes, de 1647, de Louis Moréri, no Grand dictionnaire historique, de 1674, e naturalmente de Voltaire, no Essai sur la poésie épique, de 1728, que será objeto de particular atenção neste estudo. O primeiro tradutor francês de Os Lusíadas, Duperron de Castera (1735), reagia aos argumentos de Voltaire (La Lusiade du Camoens: poeme heroique sur la decouverte des Indes Orientales (Camões, 1735) , mas uma segunda tradução, proposta por La Harpe e Vaquette d'Hermilly, em 1776, é ainda mais contundente nas farpas lançadas contra o poema camoniano, provocando a resposta de António de Araújo de Azevedo (1806), da Academia de Ciências de Lisboa, que publicou uma "Memória em defesa de Camões contra Monsieur de la Harpe".

De Voltaire se pode com razão dizer que foi uma das fi uras mais admiradas e mais odiadas da cena cultural europeia dos séculos xVIII e xIx. No âmbito português (ou até, se quisermos, luso-brasileiro), pese embora a existência de contributos relevantes que têm aparecido nos últimos anos (De Brito, 1990; Rouanet, 2008; Marques, 2018; Magalhães, 2021a; 2021b), está ainda por fazer um levantamento sistemático e profundo da circulação e receção das obras de Voltaire, bem como da sua influência no plano literário e cultural. Essa influência podia assumir múltiplas formas -leitura crítica e atenta de opiniões veiculadas pelo autor francês; citação mais ou menos extensa; alusão pontual ou até mesmo plágio-, mas é preciso ter consciência de que citar Voltaire ou evocar traços do seu pensamento, não significava necessariamente um gesto de admiração ou de repulsa, pois nalguns casos estava apenas em causa a apropriação avulsa de elementos que circulavam na esfera cultural e não de uma discussão densa resultante de um conhecimento efetivo da obra. Queria também referir que este meu contributo integra-se numa pesquisa mais alargada, atualmente em curso, no âmbito do Projeto interdisciplinar Cartografar Voltaire em Portugal e na Literatura Portuguesa (sécs. xviii-xxi).1 O Ensaio Sobre a Poesia Épica, que marca um período em que Voltaire come-çava a percorrer os domínios da filosofia e da história, mas ainda não tinha abandonado totalmente a sua atuação como poeta, apresenta material riquíssimo. A primeira versão foi publicada em 1727, durante o exílio na Inglaterra, com o objetivo de promover o interesse pela publicação do seu poema épico, La Henriade.2 Seguiramse aspolémicas, proibições, traduções não autorizadas e diferentes versões até que o autor, em 1732, decidiu publicar a sua própria versão, ampliada e revista, em francês. Esta é mais extensa do que a inglesa, uma vez que passa de 39 para 52 páginas e contempla dez capítulos: uma introdução, um capítulo dedicado a cada um dos oito poetas épicos representantes das nações europeiasum grego (Poemas Homéricos), dois latinos (Virgílio e Lucano), dois italianos (Tasso e Trissino), um espanhol (Alonso de Ercilla), um português (Camões) e um inglês (Milton)e uma conclusão.

O contacto de Voltaire com a obra de Camões ocorreu muito provavelmente ainda na Inglaterra, onde o poema tinha boa aceitação desde a publicação da tradução de Sir Richard Fanshaw, em 1664. Isso explica o facto de o capítulo dedicado ao português, no ensaio inglês, apresentar erros de grafi que decorrem da matriz adotada pelas edições inglesas (para nomear o herói português utilizava a grafi Velasco de Gama e na primeira edição francesa do Ensaio mudou para Verasco; a grafi só foi corrigida entre 1742 e 1746). Além dos erros de grafi mencionados, o maior equívoco também se encontra neste capítulo do Ensaio em inglês: na biografi de Camões, afirma-se que este teria sido contemporâneo de Vasco da Gama e teria escrito Os Lusíadas a bordo do navio do célebre navegador português. Em todo o caso, uma leitura atenta mostra-nos que aquela escolha de obras da tradição épica ocidental é influenciada pelo propósito de preparar o caminho para La Henriade, tanto mais que faz questão de enumerar e comparar virtudes e defeitos de cada uma delas.

Ao passarmos em revista o panorama das traduções para língua portuguesa de La Henriade (1728), poema que narra as guerras civis e os episódios que levaram à ascensão de Henrique de Navarra (futuro Henrique IV) ao trono francês, verificamos a existência de várias propostas. Em 1789, foi publicada uma tradução feita pelo médico Tomás de Aquino Bello e Freitas, nascido em Minas Gerais e formado pela Universidade de Coimbra, com o título: Henriada de Voltaire poema épico composto na lingua franceza por Mr. de Voltaire, traduzida (em verso) na portugueza, e illustrado com algumas notas (Porto, Officina de António Alvares Ribeiro). Surgirá depois, em 1812, uma reedição no Rio de Janeiro, pela Imprensa Régia (mais recentemente, foi republicada com prefácio de Sergio Paulo Rouanet (2008). Apesar de não dispormos (ainda) de uma cartografi transversal, à escala luso-brasileira e europeia, de todas as implicações resultantes de opiniões veiculadas por Voltaire a propósito do poema de Camões, é possível reconstituir alguns núcleos mais relevantes, em articulação com o perfil dos respetivos contextos geográfico-culturais.

Logo a partir da primeira metade do século xVIII, começam a aparecer referências cada vez mais insistentes a Voltaire no âmbito da reflexão poetológica sobre o modelo da epopeia. Uma dessas primeiras (e mais relevantes) referências aparece pela mão de Francisco Xavier de Meneses, IV Conde de Ericeira, no poema Henriqueida (1741), um projeto que começou a tomar forma por volta de 1720, mas que esteve suspenso durante onze anos devido ao interesse do autor por "musas mais severas". Ora, se considerar o paratexto "Advertências preliminares ao poema heroico da Henriqueida", nomeadamente no setor em que se discute a natureza e o alcance da prática da imitação, depressa se percebe que La Henriade disputava já um lugar de eleição entre as obras canónicas da tradição épica ocidental. O exercício que o Conde da Ericeira leva a cabo manifesta algumas semelhanças com o que o próprio Voltaire propusera no Essai, pela alusão ao que de melhor (ou de pior) se podia imitar em cada caso:

Os Franceses, que melhor que muitas nações, deram os preceitos para o poema épico, confessam que ainda o não têm perfeito. Pode ser que se excetue desta regra M. de Voltaire na sua Henriade, ou Henriquiada, com quem o meu Poema se parece mais no título que na forma, não deixando de estimar, quanto merece, a sua sublime e natural poesia, que eu quisera imitar antes que outras ideias muito diferentes das do meu assunto. (De Meneses, 1741: s/p)

Para além da alusão ao ascendente cada vez maior da teorização literária francesa, o autor teve o cuidado de explicar que a similitude em termos de título entre as duas obras não significava proximidade conceptual e, se mostrava sensível à qualidade da elocução poética voltairiana, dificilmente poderia aceitar outras matrizes temático-ideológicas. O nome do escritor francês ainda aparecerá uma outra vez nesse enunciado paratextual a propósito da constituição da fábula, mas por aqui se vê que as teses sobre a confi uração da épica deixaram um lastro importante no debate que então se travava.

Sem sair do mesmo quadro cronológico, é justo destacar as reflexões de Francisco de Pina e de Melo sobre a epopeia em textos preambulares que acompanham dois poemas seus: o "Prolegómeno para a boa inteligência e conhecimento do Poema" ao Triunfo da Religião (1756) e "Da Epopeia", que antecede A Conquista de Goa (1759). De Pina e Melo não hesita em louvar Voltaire quando passa em revista os poetas franceses antigos e modernos (De Pina e Melo, 1756: VI), mas nem sempre concorda com ele, sobretudo quando critica a épica camoniana.3 Assim, ao discutir a questão das "ficções poéticas", nomeadamente a utilização de material mitológico, no "Prolegómeno. Primeira Parte", § XVIII , De Pina e Melo invoca o seu comentário:

A [ficção] do Gigante Adamastor nas Lusíadas é a mais portentosa e feliz que se tem visto em alguma epopeia. Os mesmos Franceses o confessam. Voltaire, falando desta ficção, diz assim: Doit reussir dans tous les temps, et chez toutes les Nations. E depois de traduzi-la acrescenta: Cela est grand en tout Pays, sans doute. Não se pode negar também que é em muita parte prodigiosa a da Ilha de Vénus, que serviu de exemplar ao Tasso para a Ilha da sua Armida. A do Concílio celeste, e marítimo, é igualmente brilhante. As personagens de Júpiter, Vénus, Marte, Neptuno e Baco, desempenham todos os primores da poesia. A França aceita com grande violência estas ficções. (De Pinae Melo, 1756: XXIII)

De Pina e Melo tinha perfeita noção de que, para compreender a utilização do maravilhoso mitológico no poema camoniano, era necessário considerar a existência de um processo complexo de alegorização. No desenvolvimento desta linha de reflexão, ainda sublinhará o que considera ser uma incongruência do francês ao propor, no plano teorético, determinadas restrições ao uso do arsenal mitológico de modo a preservar o princípio da verosimilhança, quando nem sempre seguiu tais preceitos na elaboração de La Henriade. No "Prolegómeno. Segunda Parte", § XXVIII ("Do Herói") ao mesmo Triunfo da Religião. Poema épico-polémico (1756), declara:

Não há Nação política, e católica, que pertenda [sic] negar esta glória à Lusitânia. E ainda assim se resolveu a dizer Mr. Voltaire, no citado Ensaio da Épica, que os Portugueses foram descobrir os mares orientais, em primeiro lugar com o intento do comércio, e em segundo lugar com o do aumento da religião. Não sei se este conceito é por falta de conhecer a nossa História, ou por outra apreensão, menos desculpável. Eu me admirei de achar este pensamento nos escritos de um poeta daquele reino que por antonomásia se chama Cristianíssimo, mas fiquei menos admirado depois que o Pontífice reinante mandou pôr as obras de Voltaire no Índice Romano. (De Pina e Melo, 1756: XLII)

De Pina e Melo insurge-se aqui contra a tese de que, na base da expansão portuguesa no Oriente, estaria um propósito económico e não o desígnio de propagar a fé, como abundantemente apregoava a ideologia do Estado português do século xVI. Noutro ponto, retomará a crítica (certeira, pode dizer-se) aos lapsos cometidos por Voltaire em relação à biografi de Camões na versão original do Essai (uma vez que depois viriam a ser corrigidos). O autor português não resistiu até em articular algumas observações voltairianas sobre o fingimento poético ou o tratamento da verdade histórica com esses infelizes lapsos, para dizer o seguinte: "Porém, se Voltaire é inimigo das ficções poéticas, parece que o não é das ficções históricas, pois nos diz no seu referido Ensaio da Épica que o nosso Camões nascera em Espanha debaixo do reinado dos Reis Católicos, e quando reinava em Portugal João II" e que "o mesmo Camões fora grande amigo de Vasco da Gama" (De Pina e Melo, 1756: XXIV). Na verdade, de Pina e Melo conhecia bem os textos de Voltaire, nomeadamente os que se relacionavam com o campo da épica, mas não se cansava de exaltar os méritos de Camões, pois considerava que "este grande espírito levantou a Poesia ao auge que entre a incultura portuguesa se podia esperar de um impulso humano; deu-nos a mesma felicidade que teve a Grécia com Homero, e o Lácio com Virgílio, a Itália com Tasso" (De Pina e Melo, 1756: IV).

Em julho de 1766, proferia João António Bezerra de Lima o seu Discurso sobre o uso da crítica, no Real Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. O texto, que viria a ser publicado em 1778, procura discutir o alcance e o modo do exercício crítico no contexto iluminista. Ora, o Voltaire do Essai (ou Ensaio sobre a poesia épica) é não só citado, como elevado à condição de caso exemplar pelas suas observações, pois "ele sim critica o imortal Camões com severidade, mas também lhe não falta com singulares elogios" (De Lima, 1778: 19). Mas, vejamos em pormenor como justifica Bezerra de Lima esse seu bom acolhimento da leitura voltairiana:

Um dos lugares mais poéticos, que nos encantam em Camões, bem se sabe que é a morte da mísera e mesquinha, que, depois de ser morta, foi Rainha. Voltaire, que reconhecia as obrigações de um crítico perfeito, depois de proferir que este é o mais belo passo do nosso admirável Poeta, acrescenta ingenuamente que há poucos lugares em Virgílio mais ternos e melhor escritos. Outra beleza inimitável do Poeta português, e que é produção original do seu fecundíssimo engenho, ninguém ignora que é o episódio de Adamastor. O poeta e crítico francês o louva com tanta distinção que uma vez afirma com toda a segurança que aquela ficção será estimada e aplaudida em todos os tempos e por todas as nações; e em outra exclama admirado e transportado: Isto sem dúvida é grande. Enfim, ele nos faz com generosidade e bizarria a justiça de segurar que se prova ser a obra de Camões cheia de grandes belezas, pois que há duzentos anos faz as delícias de uma nação engenhosa e entendida. (De Lima, 1778: 19)

Tratase, sem dúvida, de uma das mais benignas e desapaixonadas apreciações que podemos encontrar no contexto luso-brasileiro a propósito do famoso ensaio sobre a épica, pois logo a seguir ainda acrescenta: "Esta sim que é crítica não só justa e generosa, mas também circunspecta e prudente" (De Lima, 1778: 20). É certo que Voltaire cometeu erros imperdoáveis na sua análise, que depois acabaria por corrigir, e não é menos verdade que recriminava Camões em vários pontos, mormente no que dizia respeito à coexistência entre o conteúdo cristão e o aparato mitológico pagão, mas não se pode negar que a crítica ao português é mais favorável do que a que se aplica a outros grandes poetas épicos do Ocidente. No fundo, Bezerra Lima afastava-se (com certa coragem, importa dizer) da corrente hegemónica que pretendia resguardar de toda a espécie de ataque ou de reparo um dos símbolos mais fortes da Nação e do Império. É preciso ter consciência, contudo, de que ler ou citar Voltaire podia ser um exercício, a vários títulos, perigoso. Na verdade, mesmo num contexto histórico-cultural que poderíamos considerar tendencialmente propício à circulação de obras do autor francês como era o do Portugal iluminista e mais recetivo ao espírito enciclopedista, se verifica a existência de fortes restrições e penalizações para quem ousasse ler, ou ter na sua posse, esse material. A consulta da Colecção de Editais da Real Mesa Censória, que surgiu em 1775 e que abrange obras que saíram a lume entre junho de 1768 e março desse ano, mostra-nos a preocupação por parte dos censores em proibir a impressão, a leitura ou a divulgação, no seu todo ou em parte, de obras voltairianas. É muito esclarecedor, a este propósito, o Parecer de António Pereira de Figueiredo relativo às obras de Voltaire, de 19 out. 1768 (en Braga, 1898), uma vez que o censor, pertencente à Congregação do Oratório, alerta para o efeito nocivo que a leitura de tais obras poderia ter, mas deixa no ar a ideia de que circulariam em número significativo através de canais clandestinos:

Para ninguém julgar precipitado o meu juízo, gastei mais de dous meses em ler, ponderar e examinar cada um dos tratados ou peças literárias deste Escritor. E o que desta aplicação e discussão tirei foi admirar-me de que estando as Obras de Mr. de Voltaire cheias de tanto veneno e de doutrinas tão perniciosas, […] seja ainda assim este Autor o que ordinariamente anda nas mãos da mocidade portuguesa, e o que forma o gosto e base dos seus primeiros estudos. (Braga, 1898: 71)

Noutro ponto, Pereira de Figueiredo ainda acrescenta, tendo por base o minucioso exame que levou a cabo dos livros de Voltaire (os "mais impios, mais capciosos, mais nocivos" que alguma vez encontrara) a partir da edição de Amsterdão, de 1764: "Ele é péssimo, ainda quando parece bom; ele difunde o veneno, ainda quando faz oração a Deus; ele inspira insensivelmente um desprezo de tudo o que é Religião e piedade, ainda quando quer persuadir que só a piedade e a Religião o obriga a manifestar os seus sentimentos; ele, enfim, é impio e blasfemo até quando se lamenta de o perseguirem por impio e blasfemo" (Braga, 1898: 71).

Uma outra área muito frutuosa diz respeito ao impacto que a tradução para inglês d' Os Lusíadas que William Julius Mickle publicou em 1776, sob o título The Lusiad; or, The Discovery of India. An Epic Poem, translated from the Original Portuguese of Luis de Camões teve na mobilização de reações contra as ideias de Voltaire. A tradução mickliana ocupa um lugar de destaque entre as versões até hoje publicadas nessa língua, assim como no panorama tradutológico mais geral do poema camoniano. Para esse prestígio, que pode ser comprovado pelo bom acolhimento que teve ao longo dos séculos xVIII e xIx, com várias edições em Inglaterra e nos Estados Unidos, contribuiu a qualidade da proposta (muito superior a uma outra anterior, de Richard Fanshaw) e o facto de incluir uma quantidade significativa de enunciados paratextuais, com destaque para a "Dissertation on the Lusiad". Mickle tende a sublinhar tudo quanto aparece associado à expansão, nomeadamente o descobrimento do caminho marítimo para a Índia e o incremento comercial que dele resultou, em detrimento de outros momentos da História de Portugal que Camões valorizara. O próprio título da tradução -The Lusiad; or, The Discovery of Indiadá conta, desde logo, de um efeito de redução do âmbito do poema épico, pois este não se resume a um acontecimento histórico específico.

Vejamos, então, um dos passos mais importantes da "Dissertation on the Lusiad, and Observations upon Epic Poetry", paratexto que se estende ao longo de várias páginas da citada edição (1778: CC-CCXXIX):

Voltaire, when he was in England, previous to the publication of his Henriade, published in English an Essay on the Epic Poetry of the European Nations. In this he highly praised and severely attacked the Lusiad. Yet this criticism, though most superficial and erroneous, has been generally esteemed throughout Europe, as the true character of that Poem. The great objections upon which he condemns it, are, an absurd mixture of Christian and Pagan mythology, and a want of unity in the action and conduct. For the mixture of mythology, a defence shall be offered, and the wild exaggerations of Voltaire exposed. And an examen of the conduct of the Lusiad will clearly evince that the Eneid itself is not more perfect in that connection, which is requisite to form One whole, according to the strictest rules of Epic Unity. (Mickle, 1778: CC-CCI)

O fragmento apresentado não faz jus, de modo algum, à pertinência e à profundidade do comentário de Mickle, pelo que seria necessário uma análise mais demorada que a extensão deste artigo não permite, mas convém salientar que o trabalho do estudioso e tradutor escocês constitui uma peça decisiva para a compreensão da densa rede de diálogos e cruzamentos que ajudaram a (re)confi urar a imagem interna e externa (leia-se: europeia) de Camões. O Padre Tomás José de Aquino (de quem falarei já a seguir) faz abundante menção de factos e argumentos utilizados por Mickle com vista a rebater as críticas de Voltaire, mas trata-se apenas de um dos muitos casos em que se percebe o lastro dessa famosa edição. O levantamento e estudo desse material (das citações pontuais até à presença em metatextos mais complexos, como acontece com comentários, ensaios de crítica literária ou manuais de história literária) é decisivo para se alcançar um conhecimento mais denso do processo de canonização de Camões como poeta épico maior da tradição ocidental.

A edição das Obras de Luis de Camões, Principe dos Poetas de Hespanha, preparada por Tomás José de Aquino em 1779 (reeditada depois em 1783 e em 1815) deu origem a uma intensa polémica, em que intervieram o Padre José Clemente, da Congregação do Oratório, e D. José Valério, futuro Bispo de Portalegre.4 Mas, o que aqui mais interessa considerar é o "Discurso preliminar, apologético e crítico" (1779), enunciado paratextual que contém informações relevantes para a compreensão da polémica provocada pelo Essai de Voltaire. Aquino justifica a veemência com que rebate os argumentos e a atitude crítica do francês à luz de um critério de base etnocêntrica, pois o poeta representaria em plenitude a língua e a literatura que davam forma ao espírito autêntico da Nação e, como tal, não deveria ser questionado. Depois de reconhecer a existência, no contexto português, de outras vozes críticas que já tinham recriminado Camões, avança: "O zelo nos faz pugnar pela verdade, e (não obstante reconhecermos nossas poucas forças, que não fazemos vulto na República literária, e que somos o mínimo dos Portugueses), nos obriga a sair a campo a defender o nosso Poeta das atrozes calúnias com que a falsidade e a ignorância deste Estrangeiro pretendeu ultrajá-lo" (1815: LXXXI).

O responsável pela edição d'Os Lusíadas é pródigo na utilização de epítetos e fórmulas de caracterização agrestes ao longo do seu texto -"o insolente e petulante Voltaire" (1815: LXII); "o charlatanismo do grande Voltaire" (1815: LXXXIII); "este façanhoso Erudito dos nossos tempos" (1815: LXXXIII) mas a crítica mais veemente é a que aparece formulada neste setor:

Foi Mr. de Voltaire um homem sumamente soberbo, cheio de vaidade, e que mal enfarinhado ou, para melhor dizer, com uma leve tintura das matérias e das faculdades, orgulhosamente pretendeu no seu tempo passar pelo maior Crítico, e por um dos homens mais eruditos da Europa. Mas, sem sairmos da Poética, conhecemos a suma ignorância com que atrevidamente falava nas cousas. (1815: LXXXII)

Tomás José de Aquino cita a opinião que Joseph Baretti manifestara, num texto intitulado Frusta Letteraria, sobre Voltaire a partir do comentário que um outro italiano, Cocchi, por sua vez fizera na "Lettera sul poema del Signor di Voltaire intitolato in francese La Henriade". Vejamos o que diz o crítico italiano a propósito de Camões: "E potrei anche dire che Voltaire pizzica di matto quando parla di Milton, d'Ercilla, e di Camoens; e che a questo Camoens, poeta epico portoghese, suppose sfrontatamente un passo che non ha nella sua Lusiade, per deprimere con una buggiarda asserzione un poeta inglese chiamato Derham" (Baretti, 1839: 191). Noutra ocasião, recrimina o escasso (ou nulo) conhecimento dos idiomas português e espanhol, que acaba por gerar leituras inconsistentes: "La poca fedeltà di Voltaire nel tradurre un passo tratto dall'Araucana d'Ercilla, e l'Invocazione alle Ninfe del Tago da esso fatta di propria invenzione, e quindi supposta a Camoens, mi sono […] convincentissime prove ch'egli intende lo spagnuolo e il portoghese quanto gli elefanti del gran Mogollo" (Baretti, 1839: 201).

No panorama cultural do século xVIII, uma fi ura se destaca como assíduo leitor de Voltaire e profundo admirador do seu pensamento, bem como das doutrinas iluministas francesas: Francisco Dias Gomes. A sua produção poética está longe de lhe garantir um lugar no Parnaso português da época, mas os seus trabalhos de crítica e historiografi surpreendem pelo rigor e pela densidade da análise. Foi graças a Francisco de Borja Garção Stockler, mas sob o patrocínio da Academia Real das Ciências, que as suas Obras Poéticas vieram a público, postumamente, em 1799 e entre os textos que integram essa edição conta-se a Elegia X, "na morte de Mr. de Voltaire", escrita por volta de 1778. Trata-se de um poema com 133 tercetos que confi uram, no seu todo, uma biobibliografi do autor francês e que surge acompanhado de um aparato crítico constituído por 78 longas notas que visam explicitar o sentido dos versos a leitores menos familiarizados com tal autor e obra. Como seria de esperar, o poema La Henriade surge referido num dos tercetos -"O transunto imortal, sublime e belo / Do grande Henrique, herói, claro e famoso / Imitaram com desvelo" (Gomes, 1799: 123)mas o que vale mais a pena notar é a apreciação que consta da respetiva nota ao texto poético:

A Henriquiada é sem contradição alguma o maior monumento de Poesia Francesa. Constantissimamente assentavam todos os sábios de França que era impossível darlhes um poema épico na sua língua; tanto assim que, indo Mr. de Voltaire consultar sobre a Henriquiada a Mr. Malezieux, homem de grande imaginação e imensa literatura, este lhe disse: "Vós empreendereis uma obra que não é para a nossa nação; os Franceses não têm cabeça épica; e quando vós escreverdes tão bem como Racine e Boileau, far-vos-ão muito favor se vos lerem". Quando o engenho se descobre, quando o engenho persuade o conhecimento interior do homem, ele voa, ele se eleva e, apesar de tudo, consegue os seus fins. Assim aconteceu ao grande Voltaire na composição da Henriquiada, poema imortal, epopeia a mais bem conduzida, e se me perguntassem o que sinto dela, relativamente às que lhe precederam, dissera que a Henriquiada é a epopeia mais digna de ser lida, que ela sobre todas é a que mais instrui e deleita, inda mesmo apesar da idolatria que se consagra aos Épicos de Grécia e Roma. (Gomes, 1799: 147, nota 14)

Dias Gomes conhecia certamente muito bem La Henriade, porque são várias as citações dispersas pela edição das Obras Poéticas que o confirmam, pelo que é de considerar a apreciação muito elogiosa que deixa registada nessa mesma nota, em particular no que respeita à utilização do maravilhoso mitológico: "O maravilhoso deste Poema é o mais racional e filosófico de todos quantos poemas lhe precederam; basta dizer que a Henriquiada é admirável pela invenção, pela narração, pela arte de ligar os acontecimentos e de os preparar por um modo natural; pelos costumes, pelos afetos, pelas descrições, pela harmonia e por outras muitas circunstâncias" (Gomes, 1799: 147, nota 14).

Sabe-se que a fundação da Academia Real das Ciências de Lisboa, em 1779, constituiu um facto de enorme relevância no contexto cultural português, dando origem a uma série de trabalhos de síntese e de reflexão crítica. Ora, do vol. IV de Memórias de Literatura Portuguesa faz parte um ensaio de notável qualidade, intitulado "Análise e combinações filosóficas sobre a elocução e estilo de Sá de Miranda, Ferreira, Bernardes, Caminha e Camões, segundo o espírito do Programa da Academia Real das Ciências, publicado em 17 de Janeiro de 1790", do mesmo Francisco Dias Gomes. Este texto, de extensão considerável (Gomes, 1793: 26-305), foi mesmo premiado em sessão pública da Academia realizada em maio de 1792. O corpus é constituído pelos cinco poetas referidos, mas a análise é muito desenvolvida e até com certo grau de sofisticação em termos de identificação de traços específicos da escrita de cada um deles. Diz ter seguido, nesta sua abordagem crítica, a lição de Aristóteles, Cícero, Quintiliano, Longino, Locke, Condillac, du Marsais e do Voltaire do comentário às obras de Pierre Corneille, uma vez que aí estariam representadas "as regras do gosto na sua maior elevação" (Gomes, 1793: 27).

Animado pelo propósito de reformar o género épico, alterando o que considerava ser erróneo ou mesmo "ridículo", José Agostinho de Macedo publica em 1811 um poema intitulado Gama, precedido de uma ode pindárica que visa claramente atingir a epopeia camoniana. Poucos anos depois, em 1814, surge uma refundição desse mesmo poema, sob o título de O Oriente, com uma extensão textual mais alargada, passando de dez para doze cantos, e com melhoria de alguns aspetos formais. Ora, essa nova versão vem acompanhada de um "Discurso preliminar" (De Macedo, 1814: 37-100) que mais não é do que um libelo acusatório contra Camões, querendo provar a sua condição de mero imitador de modelos clássicos como Virgílio e a sua Eneida. Com a publicação dos dois volumes da Censura das Lusíadas (1820), em que o novo cantor do Gama discute longamente o labor camoniano, sobe de tom a polémica em torno dessa estratégia de (re)conceptualização do género épico e das tentativas de aplicação prática através dos poemas referidos.

Não se pode dizer que Macedo tivesse colhido boa impressão da leitura da Henriade, porque lhe aponta vários defeitos, como se pode constatar por reflexões contidas em textos seus, nomeadamente no Solilóquio iii do Motim literário:

Teimaram em ter [os Franceses] uma epopeia e apareceu depois de muitas que assim se chamaram, e não eram (e também a tal o não é), a Henriade; mas seja o que for, não quero decidir, temo que o autor ressuscite e que se ajunte à tropa de seus servis adoradores, e quem não teria medo dele, em cuja língua, com perdão da língua das mulheres, existiu o moto contínuo? Mas venha ou não Voltaire do outro mundo, ou grunham cá neste os seus apaixonados, a Henriade é um esqueleto histórico com uma chocalhada de rimas intolerável. (De Macedo, 1841: 38)

Para legitimar o tom e a acutilância das suas observações críticas, invoca com frequência dois dos mais acirrados comentadores da Henriade: Fréron e La Beaumelle. É o que acontece no referido Solilóquio III, mas também no tomo I da Censura das Lusíadas, quando caracteriza a épica voltairiana como "uma congérie de inépcias, erros e incoerências" e considera que não seria possível "atribuir a fama deste poema senão à força de um partido poderosíssimo" (De Macedo, 1820: 253-254) ou quando admite explicitamente, no final do tomo I da Censura: "O que eu faço a Camões fizeram antes em França Fréron e Beaumelle à célebre Henriada de Voltaire" (De Macedo, 1820: 295). Com alguma mágoa, ainda acrescentará: "só houve um homem mais coberto de ignomínia que Fréron; este homem sou eu, porque intentei emendar Camões" (De Macedo, 1820: 255). Na verdade, a diatribe anti-voltairiana é transversal a boa parte dos escritos de Macedo, mas o Ensaio sobre a épica servir-lhe-á para reforçar a crítica a certas opções técnico-compositivas de Camões. São vários os aspetos da épica camoniana que, em seu entender, deveriam ser emendados -inadequação do tema do "descobrimento da Índia" para servir de base à ação do poema; insuficiência de Vasco da Gama como grande herói; o repúdio da imitação; confi uração abrangente da proposição; estilo "glacial e perfeitamente prosaico"mas um dos mais relevantes (e com longo lastro polémico na historiografi literária portuguesa e europeia) dizia respeito ao maravilhoso pagão. É precisamente essa uma das matérias -nas palavras de Macedo: o "decantado, porém absurdo maquinismo das Lusíadas" (De Macedo, 1820: 30)que leva o comentador português a invocar a lição voltairiana, nestes termos:

É verdade que Voltaire não entendia português para ajuizar das belezas e perfeição do estilo das Lusíadas, mas Voltaire entendia mui bem francês para ler as traduções, onde, se não passam as palavras, passam as coisas e o maquinismo das Lusíadas em qualquer língua não se pode chamar uma infidelidade de tradução, porque a substância existe, ainda que desaparecesse o acidente das palavras. A fábula das Lusíadas é a mesma em todas as línguas. (De Macedo, 1820: 32-33)

Neste caso, Macedo recupera uma velha questão relativa à apreciação voltairiana ao poema de Camões: a de que algumas imperfeições em termos de leitura e compreensão do texto por parte do francês ficariam a dever-se à falta de qualidade da tradução, fosse a primeira tradução para a língua inglesa, de Fanshaw, fosse a de Duperron de Castera para a francesa. Segundo ele, por estar em causa uma matéria transversal que dizia respeito à unidade e coerência poético-estruturais d'Os Lusíadas e, portanto, não dependente das escolhas do/s tradutor/es, o entendimento de Voltaire seria exatamente esse, como aliás confirma pela transcrição de um segmento do Ensaio. O poeta e estudioso português corrobora assim a crítica severa à utilização do maravilhoso pagão e às suas repercussões ao nível da construção narrativa e da textura ideológica do discurso épico camoniano.

Referindo-se, no Tomo II da Censura das Lusíadas (1820), ao prémio concedido aos nautas portugueses e à interpretação do maravilhoso da ilha camoniana, declara:

Até aqui, ainda que nós não vamos bem com estas indecentíssimas imagens, tão impróprias de boa moral, como da boa poesia, não iriam os marinheiros mal, e é neste Ponto onde diz Voltaire que lhe parece este passo das Lusíadas mais próprio de um alcoice de Amsterdão que de uma epopeia. Isto pertence à censura dos costumes, eu limito-me à censura da poesia. (De Macedo, 1820: 203)

Em diversas ocasiões, faz questão de sublinhar o seu repúdio pelo "resfolguedo [dos nautas] com as Nereidas" (De Macedo, 1820: 226), mas ao tratar em particular do conteúdo de dois versos da oitava 87 do Canto IX -"Ela nos paços logra seus amores, / As outras pelas sombras, entre as flores"mais evidente se torna o eco do famoso comentário voltairiano: "Se as palavras se dizem para se entenderem e querem dizer o que soam, não se declarara em termos menos ambíguos o exercício de um alcoice; que isto quer dizer a frase com que Voltaire qualifica as funções desta Ilha, como já advertimos: 'Um musico .i.e. alcoice) de Amsterdão'" (De Macedo, 1820: 226). Em suma, Vénus e as ninfas, apoiantes dos heróis portugueses, representariam o triunfo da luxúria, do amor pecaminoso, pelo que a sua presença num poema de autor católico carecia de sentido.

Ainda assim, numa outra obra sua, A Senhora Maria ou a Nova Impertinência (1810), José Agostinho de Macedo não hesita em apontar inconsistências várias a Voltaire:

Voltaire sabe os nomes e as posições das terras, onde as cousas acontecem. Fala ele de papo a respeito de Camões e dos Lusíadas e diz estas palavras bem dignas de atenção: "Ao princípio do Poema, o poeta constitui o seu herói na foz do Ganges". Há parvoiçada como esta? Há mentira mais solene? Pois Vasco da Gama pôs nunca o seu pé no Ganges em três vezes que foi à Índia! Eis aqui como Voltaire mente, como Voltaire lê e como Voltaire sabe! É um embrulhador. (De Macedo, 1810: 14)

Pela importância de que se reveste a nível da história dos Estudos Camonianos, opto por concluir este percurso crítico com a célebre edição d'Os Lusíadas preparada pelo Morgado de Mateus, D. José Maria de Souza-Botelho, que saiu a público em Paris, na Oficina Tipográfica de Firmin Didot, no ano de 1817. Trata-se de uma edição monumental, ilustrada com doze gravuras elaboradas por artistas notáveis e da qual foi feita uma tiragem de apenas 210 exemplares, a pensar num público muito selecionado. Pode ser considerada como a "primeira edição crítica d'Os Lusíadas" na medida em que houve o cuidado de cotejar as variantes textuais do poema na tradição impressa e por assentar numa matriz linguística mais consistente, em termos ortográficos e de pontuação. O que mais impressiona, a meu ver, no trabalho levado a cabo pelo editor é a sua capacidade de propor um novo olhar sobre Camões e a sua obra que não se circunscrevia, como quase sempre até aí tinha acontecido, ao exame da observância de regras retórico-poéticas, mas avançava no sentido da exaltação do génio do autor e da sua capacidade de representar o ímpeto patriótico português.

Podia não ter o Morgado de Mateus como sua primeira preocupação a matéria que animara tantas polémicas poetológicas, mas não as desconhecia, pelo que também o Essai de Voltaire é citado e comentado na sua extensa "Vida de Luís de Camões". Começa por relembrar os preceitos básicos da epopeia que Aristóteles enunciara ou que os comentadores lhe atribuíam: "uma narração em verso das ações heroicas de grandes varões ou personagens"; a ação que "deve ser uma, grande e completa"; o estilo "majestoso, sério, animado e cheio de entusiasmo; acrescentando que "na composição deve a razão dirigir o poeta, a imaginação ornála" (Souza-Botelho, 1819: LXIX). Logo depois, expõe a sua posição:

Estas são as regras principais admitidas pelos críticos de todas as nações, porque são ditadas pela sã razão. Outras regras dependentes dos diversos costumes e gostos, tanto relativamente à máquina do maravilhoso, ou à intervenção das potências sobrenaturais, como pelo que diz respeito à natureza dos episódios, ou à escolha dos sujeitos e ações, têm sido diversamente disputados, e não podem considerar-se regras gerais (Voltaire, sur la poésie épique). O nosso Poeta se conformou sem dúvida aos preceitos os mais essenciais; e só aqueles que o não leram com atenção, e no original, podem culpá-lo de ter faltado às leis da arte. Por certo não se negará que ele satisfizera à primeira de todas, o reunir o utile dulci. (Souza-Botelho, 1819: LXIX -LXX)

O Morgado de Mateus tem o cuidado de alertar para o perigo de se pretender estabelecer (melhor: impor) regras universais e de natureza transtemporal para todas as dimensões de uma obra épica, reforçando em alternativa a ideia de que a prática literária de um determinado poeta deve também ser lida à luz das circunstâncias histórico-culturais que delimitam cada comunidade cultural.

Em jeito de conclusão, pode dizer-se que os textos aqui analisados integram um conjunto mais vasto de materiais que se organizam em torno de dois eixos principais: por um lado, a contra-argumentação face às críticas e apreciações de Voltaire e, por outro, o desagravo e a defesa de Camões e do seu poema épico. Sabe-se que a questão da unidade e integridade da ação, entendida à luz dos preceitos aristotélicos, é problemática num poema épico como o camoniano, mas tudo leva a crer que o autor não estaria preocupado em compor episódios respeitando esse sentido de unidade. Objetivamente, o debate europeu em torno dessas matérias é posterior à publicação do poema, uma vez que a Poética aristotélica se torna objeto de intensa valorização a partir do Barroco e em concomitância com a divulgação do paradigma épico tassiano, pelo que Voltaire, à semelhança de tantos outros estudiosos e comentadores dos séculos xVII a xIx, haveria de contribuir para a consolidação dessa tentativa de 'correção' do poema pelas normas teórico-poéticas do tempo neoclássico.

Muito se tem escrito, ao longo de séculos de crítica e historiografi literárias, sobre a presença e sobre as repercussões do maravilhoso mitológico a nível da construção e da textura ideológica do poema épico camoniano. A inclusão desse conteúdo pagão no seio de uma obra produzida por autor cristão e que ambicionava exaltar a dilatação da fé não escapou ao crivo da crítica voltairiana. Na verdade, uma parte importante das objeções devem-se sobretudo ao facto de Camões misturar divindades clássicas com entidades religiosas e de recorrer a ornamentações desnecessárias, que agradariam somente ao "gosto português".

O debate em torno do peso da verdade histórica e do valor artístico do poema remontava já ao tempo da sua publicação, como se pode ver pelos comentários de Manuel Correia, mas com o passar do tempo acabaria por ganhar maior densidade. Aos olhos de Voltaire, a opção pela verdade factual em detrimento da falsidade do mito, que deveria servir para reforçar a credibilidade em termos cívicos e didáticos do poema, não se compaginava com uma presença tão massiva do maravilhoso. Mas, o que podia ter de incongruente essa ação dos deuses no âmbito de um poema composto por "verdades puras" era superado através de uma estratégia em que a ficção mitológica assumia a condição de artifício literário que não punha em causa a verdade da ação narrada. Por outro lado, ainda que Camões tivesse o cuidado de fornecer a chave alegórica do maravilhoso da Ilha dos Amores, a forma específica como aparecia representada no texto acabaria por suscitar várias reações da parte do francês e de toda uma série de comentadores que seguiram a sua linha hermenêutica de denúncia do conteúdo erótico ou de prevalência do amor pecaminoso.

Ainda assim, Voltaire manifestou clarividência suficiente para perceber a grandeza do poema, como se comprova por várias afirmações suas. O tom mais elogioso, comparativamente ao que acontece com outros poemas da tradição épica ocidental analisados no Essai sur la poésie épique, trazia consigo um outro objetivo bem claro: se os portugueses, que ainda não contavam com uma literatura de prestígio no contexto das nações europeias, tinham sido capazes de proporcionar ao mundo, pela pena de Camões, uma epopeia digna de nota, assim também os franceses poderiam ambicionar alcançar esse patamar de criação (no caso, através de um poema épico do próprio Voltaire: La Henriade).

Em debates e polémicas que se prolongaram ao longo dos séculos xVIII e xIx, participaram vários intervenientes de formação intelectual muito diversa que não só discutiram questões teóricas relativas ao género da epopeia, como as opções específicas do poeta português, pelo que todo esse material permite configurar um capítulo relevante da história dos Estudos Camonianos.

Referências bibliográficas

BARETTI, Giuseppe. (1839). Frusta Letteraria di Aristarco Scannabue. En Opera di Giuseppe Baretti (Tomo I). Tipografia Governativa della Volpe al Sassi.

BRAGA, Teófilo. (1898). Historia da Universidade de Coimbra nas suas relações com a instrucção publica portugueza (Tomo III). Por ordem e na Typographia da Academia Real das Sciencias.

CAMÕES, Luís Vaz (1735). La Lusiade de Camoens: poeme heroique sur la decouverte des Indes Orientales. Huart.

CAMÕES, Luís Vaz. (1815). Obras do Grande Luis de Camões. Principe dos Poetas de Hespanha. Tomo I. Terceira Edição, da que, na Oficina Luisiana, se fez em Lisboa, nos anos de 1779 e 1780. Na Oficina de P. Didot Senior. E acha-se em Lisboa, em casa de Viúva Bertrand e Filhos.

CLEMENTE, José. (1783). Carta de hum amigo a outro, na qual se forma juízo da Edição novíssima do Poema da Lusíada do Grande Luiz de Camões, que sahio á luz no anno de 1779. Of. Patr. de Francisco Luiz Ameno.

CLEMENTE, José. (1784). Juizo do juizo imparcial do moderno anonymo, o qual em vão pretendem defender os erros da edição novissima do poema da Lusiada do grande Luis de Camões. Of. de Francisco Luiz Ameno.

DA CRUZ, José Valério. (1784). Camões defendido, e o editor da edição de 1779, e o censor deste julgados sem paixão em huma carta dada á luz por Patricio Aletophilo Misalazão. Na Regia Officina Typographica.

DA SILVA, Inocêncio Francisco. (1862). Diccionario Bibliographico Portuguez (Tomo

DE AQUINO, Tomás José (Ed.). (1779). Obras de Luis de Camões, Principe dos Poetas de Hespanha. Nova Edição, A mais completa e emendada de quantas se tem feito até o presente. Tudo por diligencia e industria de Luis Francisco Xavier Coelho. Officina Luisiana.

DE AQUINO, Tomás José. (1779). "Discurso preliminar, apologético e crítico". En Obras de Luis de Camões, Principe dos Poetas de Hespanha. Nova Edição, A mais completa e emendada de quantas se tem feito até o presente. Tudo por diligencia e industria de Luis Francisco Xavier Coelho. Officina Luisiana.

DE AQUINO, Tomás José. (1784). Discurso Critico, em que se defende a nova edição da Lusiada do Grande Luiz de Camões, feita no anno de 1779, das acusações que contra ella publicou o Author da Carta de hum Amigo a outro, etc. Officina de Simão Thaddeo Ferreira.

DE AQUINO, Tomás José. (1785). Carta em resposta a um amigo, na qual se mostra que pela figura synalepha, assim como na latina se podem elidir os dithongos na versificação vulgar. Officina de Simão Thaddeo Ferreira.

DE AZEVEDO, António de Araújo. (1806). "Memória em defesa de Camões contra Monsieur de La Harpe". Em Memórias de Literatura Portuguesa, publicadas pela Academia Real das Ciências de Lisboa (Tomo VII). (pp. 5-16). Na Oficina Academia.

DE BRITO, António Ferreira. (1990). "Voltairofobia e voltairofilia na cultura portuguesa dos séculos xVIII e xIx: os tempos e os modos". Intercâmbio, 9-40, Universidade do Porto: Faculdade de Letras. http:/ hdl.handle.net/10216/9257.

DE CASTERA, Duperron. (1735). "Vie du Camoens". Em La Lusiade du Camoens: poeme heroique sur la decouverte des Indes Orientales (M. Duperron de Castera, Trad.) (pp. XIX-LXIX). Huart.

DE LIMA, João António Bezerra. (1778). Discurso sobre o uso da critica, recitado no ultimo de Julho de 1766 no Real Collegio das Artes da Universidade de Coimbra. Real Officina da Universidade.

DE MACEDO, José Agostinho. (1810). A Senhora Maria ou a Nova Impertinência. Impressão Régia.

DE MACEDO, José Agostinho. (1811). Reflexões críticas sobre o episódio de Adamastor no Canto V dos Lusíadas em forma de carta. Impressão Régia.

DE MACEDO, José Agostinho. (1814). "Discurso preliminar". Em José Macedo Agostinho O Oriente (Vol. 1). (pp. 37-100). Impressão Régia.

DE MACEDO, José Agostinho. (1841 [1811]). Motim Literário em forma de solilóquios (3ra ed). (Antônio Maria Couto, Org., António José da Rocha, Typ.). (pp. 37100). Lisboa.

DE MACEDO, José Agostinho. (1820). Censura d'Os Lusíadas. Impressão Régia.

DE MENESES, Francisco Xavier. (1741). Henriqueida, Poema heroico com advertencias preliminares das regras da poesia epica, argumentos, e notas, composto pelo Illustrissimo e Excellentissimo Conde da Ericeira D. Francisco Xavier de Menezes. Officina de Antonio Isidoro da Fonseca.

DE PINA E MELO, Francisco. (1756). Triumpho da Religiaõ. Poema Epico-Polemico, que à Santidade do Papa Benedicto XIV dedica Francisco de Pina e de Mello, Moço Fidalgo da Casa de Sua Magestade, e Academico da Academia Real da História Portugueza. Officina de Antonio Simoens Ferreyra.

DE PINA E MELO, Francisco. (1759). A Conquista de Goa, por Ajfonso de Albuquerque, com a qual se fundou o Imperio Lusitano na Asia: Poema Épico, que à Magestade do Magnànimo, Augusto e Poderoso Monarca Joseph I. Rei de Portugal, e dos Algarves. Real Collegio das Artes da Companhia de Jesus.

FANSHAW, Richard (Trad.).(1655). The Lusiad. Or, Portugals Historicall Poem. Written In The Portingall [sic] (Luis de Camoens, Aut.). Printed for Humphrey Moseley at the Prince's Arms in St. Pauls Churchyard.

GOMES, Francisco Dias. (1793). "Analyse, e Combinações filosoficas sobre a elocuçaõ e estylo de Sá de Miranda, Ferreira, Bernardes, Caminha, e Camões, segundo o espirito do Programma da Academia Real das Sciencias, publicado em 17 de Janeiro de 1790". En Memorias de Litteratura Portugueza (Vol. 4). Academia Real das Ciências.

GOMES, Francisco Dias. (1799). Obras Poeticas. Typographia da Acad. R. das Sciencias.

MAGALHÃES, Pablo Iglesias. (2021a). "O manuscrito da Henriada: a trajetória do Poema de Voltaire traduzido na Vila Rica dos Inconfidentes (1788-2016)". Revista de História, 1(180), 1-36. https:/ doi.org/10.11606/issn.2316-9141. rh.2021.172877.

MAGALHÃES, Pablo Iglesias. (2021b)."Umcódiceperdidode Joséde Santa Rita Durão. A tradução portuguesa do Ensaio Sobre a Poesia Épica, de Voltaire (Lisboa, 1783)". Varia História, 37(75). https:/ doi.org/10.1590/0104-87752021000300007.

MARQUES, Caio Carneiro. (2018). Voltaire: ensaio sobre a poesia épica um estudo e uma tradução. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Universidade Federal do Paraná

MICKLE, William Julius. (1778). "Dissertation on the Lusiad, and Observations upon Epic Poetry". Em The Lusiad, or, The discovery of India. (pp. CC-CCXXIX). Jackson and Lister.

MICKLE, William Julius (Trad.). (1776). The Lusiad, or, The discovery of India. An Epic Poem, translated from the Original of Luis de Camões. Jackson and Lister.

MICKLE, William Julius (Trad.). (1778). The Lusiad, or, the Discovery of India. An Epic Poem, translated from the Original of Luis de Camões (2da ed.). Jackson and Lister.

RAPIN, René. (1647). Réflexions sur la poétique d'Aristote, et sur les ouvrages des poetes anciens et modernes. François Muguer

ROUANET, Sérgio Paulo. (2008). "A Henriada no Brasil". Em Henriada. (Thomaz de Aquino Bello de Freitas, Trad.). Nova Fronteira.

SOUZA-BOTELHO, José Maria. (1819). "Vida de Luís de Camões". Em Os Lusíadas, poema épico de Luís de Camões. (pp. XLVII-CX). Firmin Didot.

VOLTAIRE. (1727). An Essay upon the Civil Wars of France, Extracted from curious Manuscripts, and also upon the Epick Poetry of the European Nations from Homer down to Milton, by Mr. de Voltaire. S. Jallasson.

VOLTAIRE. (1728). Essay sur la poesie épique, traduit de l'anglois de M. de Voltaire, par M.***. Chaubert / La Haye, G. M. de Merville.

VOLTAIRE. (1789). Henriada de Voltaire poema épico composto na lingua franceza por Mr. de Voltaire, traduzida (em verso) na portugueza, e illustrado com algumas notas. Officina de António Alvares Ribeiro.

Notas

1 O Projeto (https://cartografarvoltaire.uc.pt/projeto/), coordenado por Marta Teixeira Anacleto e integrado no Centro de Literatura Portuguesa (CLP), tem por missão "estabelecer e analisar o corpus das traduções portuguesas das obras de Voltaire -ficção narrativa e dramática, épica, ensaios filosóficos e políticosdesde o final do século xVIII até à contemporaneidade" e prevê a criação e posterior disponibilização de uma base de dados digital, a produção de uma antologia digital comentada e de um volume de estudos críticos.
2 O Ensaio, originalmente publicado com o título Essay Upon the Epick Poetry of the European Nations, passou a ser lido e comentado não só na Inglaterra, onde teve mais três reedições entre 1728 e 1731, mas também na França, onde percorreu uma trajetória mais conturbada e polémica.
3 O nome de Voltaire aparece citado com alguma frequência no primeiro dos enunciados paratextuais acima referidos (De Pina e Melo, 1756: VI, XII, XIII, XXIII, XXVI, XXVII, XXVIII, XXXIV e XLII)
4 Ainda que o material suscitado pela polémica tenha sido já objeto de pormenorizada referência por parte de Inocêncio Francisco da Silva (1862), no seu Diccionario bibliographico portuguez (349-350), parece-me relevante destacar aqui o núcleo fundamental: Clemente (1783, 1784), De Aquino (1784, 1785) y Da Cruz (1784).


Buscar:
Ir a la Página
IR
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
Visor de artigos científicos gerado a partir de XML JATS4R