Artículo de Investigación
Recepción: 16 Septiembre 2022
Aprobación: 03 Marzo 2023
URL: http://portal.amelica.org/ameli/journal/670/6704128013/
DOI: https://doi.org/10.26620/uniminuto.mediaciones.19.30.2023.171-189
Cómo citar: Ferreira, J. & Montoya, R. (2023). Atrapachula: fronteira sul mexicana, ativismo migrante e narrativas midiática s. Mediaciones, 30(19), pp.171-189.
Resumen: El presente artículo es producto de un trabajo de campo, enmarcado dentro de una investigación cualitativa de mayor alcance, llevado a cabo en la ciudad de Tapachula, estado de Chiapas, México, durante los meses de septiembre y octubre del 2021, con el fin de observar e investigar —directa y etnográficamente— el activismo migrante conformado en caravanas. Para ello, se aborda el contexto en el que se produce y la forma en la que es representado por los medios de comunicación, de tal forma que se comprenda la construcción de significados y narrativas alrededor de este fenómeno social.
Palabras clave: caravana migrante, frontera sur, narrativas mediáticas, activismo migrante, discurso del Estado, Tapachula.
Resumo: Este artigo é produto de um trabalho de campo, enquadrado em uma pesquisa qualitativa mais ampla, realizada na cidade de Tapachula, estado de Chiapas, México, durante os meses de setembro e outubro do ano 2021, com o objetivo de observar —diretamente— e investigar —etnograficamente— o ativismo migrante constituído por caravanas. Da mesma forma, aborda-se o contexto em que ocorre e a forma como ele é representado na mídia, a fim de compreender a construção de significados e narrativas em torno desse fenômeno social.
Palavras-chave: caravana migrante, frontera sul, narrativas midiáticas, ativismo migrante, discurso de Estado, Tapachula.
Abstract: This article is the product of a fieldwork, framed within broader qualitative research, carried out in the city of Tapachula, state of Chiapas, Mexico, during the months of September and October in 2021, with the aim to observer —directly— and to research —ethnographically— the migrant activism that is made up of caravans. Likewise, the context in which it occurs and the way in which it is represented in the media are addressed, to understand the construction of meanings and narratives around this social phenomenon.
Keywords: migrant caravan, south border, medial narratives, migrant activism, state discourse, Tapachula.
Introdução
No Sul, México faz fronteira com Guatemala, geograficamente marcada pelo rio Suchiate. Conhecida como Soconusco, a região pertencente ao estado de Chiapas tem importância econômica e cultural, sendo espaço de trânsito, convivência e comércio entre população local mexicana e populações estrangeiras, sobretudo centro-americanas. A cidade mais importante da região, a poucos quilômetros da frontera, é Tapachula de Córdova y Ordoñez, historicamente caracterizada pela presença migrante, principalmente em condição de trânsito (Casillas, 2008; Aguirre, 2016; Velasco, 2016).
Atualmente a migração apresenta mudanças no perfil de seus atores e nas formas com que os governos desenham e executam políticas migratórias de Estado (Ramírez y Moreno, 2020; Wiesner, 2020). Nessa região mexicana é possível observar a complexidade do fenômeno migratório já que o México expulsa porções de sua própria população aos Estados Unidos, como também recebe transmigrantes, ademais de ser cenário de todos os conceitos migratórios que inevitavelmente se refletirão também nos meios de comunicação (Pfelger, 2019).
Em face dessas mudanças, a cidade passou a se converter em um lugar de espera e ser chamada de “cidade prisão”, uma vez que mesmo sendo uma migração massivamente de trânsito, em decorrência das políticas e burocracias estatais, muitas pessoas são contidas ali pela condição de indocumentação, baixo o pretexto da obrigatoriedade de realização de trâmites migratórios que lhes assegurem legalidade desde o ponto de vista do Estado mexicano.
Entre os anos 1980 e 2010 migrantes passavam por Tapachula fugindo de seus países, sobretudo centro-americanos, em decorrência de guerras civis e perseguições políticas, utilizando a cidade como ponto de parada e subida nos trens de carga, conhecidos como La Bestia, para adentrar o território mexicano e chegar aos Estados Unidos (Velasco, 2016). Essa presença migrante fomentou a criação de diversas organizações da sociedade civil para prestar solidariedade às pessoas com relação a necessidades básicas, permitindo-lhes seguir seus caminhos. A presença migrante era de alta rotatividade e baixa permanência temporal, sendo massiva. Atualmente, trata-se de uma migração que ademais de centro-americana, haitiana, cubana e sul-americana, especialmente venezuelana, chama a atenção pelo tempo de permanência mais extenso na cidade, bem como pelas condições em que se instala nesse território.
Isso se da tanto pelo contexto das crises econômicas, políticas e sociais de diversos países latino-americanos, como também pela construção da política migratória mexicana com relação à migração internacional, sendo destacável suas práticas de controle e punição a partir da visualização de postos de controle pelo país, presença estatal militarizada, detenções arbitrárias, deportações e/ou retornos involuntários, nesse caso específico a proibição para que as pessoas abandonem os limites da cidade, uma vez que tenham iniciado seus trâmites migratórios ali.
A situação da espera e impossibilidade de saída gerou um tipo de ativismo migrante que não é historicamente novo, cuja agência de sujeitos migrantes surge da condição de insatisfação ante à imobilidade e interrupção dos projetos migratórios de quem não tem como objetivo ficar em Tapachula ou mesmo no México.
O objetivo desse trabalho é analisar a resposta dada por pessoas migrantes na cidade de Tapachula em 2021 ante os mecanismos de contenção de sua mobilidade, considerando suas práticas como versões de ativismo político. Por outro lado, buscamos explicitar a forma como meios de comunicação mexicanos narraram as caravanas, evidenciando a existência de uma correspondência entre suas narrativas e o discurso oficial de Estado mexicano.
Primeiro, apresentamos a metodologia e marco teórico. Em seguida, se aborda de forma geral o contexto migratório mexicano, com ênfase na fronteira sul. Logo, se discute o ativismo migrante, buscando corroborar com teorias migratórias sobre as lutas políticas, através de análise empírica das caravanas surgidas em Tapachula entre agosto e outubro de 2021, e quais foram as respostas dadas pelo governo mexicano. Por fim, apresentaremos as narrativas midiáticas através de matérias jornalísticas a fim de evidenciar a conexão dessas com o discurso de Estado no que diz respeito à produção de uma imagem da pessoa migrante como alguém que necessita de intervenção e controle.
Metodologia e marco teórico
Os estudos migratórios apresentam extensa variedade de eixos, marcos teóricos, perfis e tipologias de classificação da migração, algumas delas: trânsito, circular, transmigração, migração indocumentada e refúgio. Também abarcam numerosas causas e consequências, origens históricas, vulnerabilidades, situações de violência, questões políticas e econômicas (Casillas, 2008; Aguirre, 2016; Varela Huerta, 2016; Velasco, 2016; Wiesner, 2020)
Uma das perspectivas teóricas é a chamada “autonomia das migrações” (Mezzadra, 2012; Rho, 2021), que se refere à relação/tensão entre migração contemporânea e capitalismo, os movimentos migrantes e as políticas migratórias. Dita tensão se reflete na conformação de novas subjetividades da força de trabalho frente ao capital, assim como em novas configurações das mobilidades globais e das fronteiras dos Estados nacionais. Busca-se colocar ênfase nas práticas e estratégias desenvolvidas por pessoas migrantes para construir suas mobilidades e reivindicar direitos frente ao ordenamento jurídico e geopolítico do século XXI. Para isso, valoriza a dimensão da experiência dos sujeitos nos contextos em que se mobilizam a fim de evidenciar a agência política para além de imaginários tradicionais que a vinculam apenas à uma luta por acesso a cidadania estatal (Rho, 2021).
Nesse sentido, o trabalho de campo qualitativo foi indispensável, metodologia que orientou toda a construção da investigação e desse artigo. Foi realizado em dois cenários e tempos diferentes. De um lado, de maneira presencial na cidade de Tapachula por um mês, se realizou observação participante, etnografia, entrevistas abertas e conversas informais com pessoas migrantes em seus diversos contextos de vida, trabalho e ócio, privilegiando o contato direto com as pessoas a fim de conhecer sua realidade e subjetividade no território (Becker, 1986; Geertz, 2003; Barcinski, 2014) com foco, onde nos encontrávamos.
A seleção de informantes se fez de maneira informal e espontânea, a partir do contato com as pessoas nas diversas situações vividas no centro da cidade, nos edifícios das instituições migratórias, nos albergues da sociedade civil. Foi possível observar uma população composta por homens e mulheres em idade adulta, ampla presença de crianças e adolescentes, e diversas nacionalidades como hondurenhos, cubanos, guatemaltecos, salvadorenhos, haitianos e venezuelanos, em sua grande maioria.
Por outro lado, se realizou acompanhamento de forma virtual do fenômeno migratório na região entre 2021 e 2022, trabalho que implicou a consulta de páginas de internet de vários meios de comunicação para revisão das notícias divulgadas relativas ao tema. Também a participação em um grupo de Facebook chamado “Migrantes en Tapachula (Trámites, Vistos, COMAR, Assesorias, Regularización” (sf) para acesso às publicações e divulgações feitas pelas próprias pessoas migrantes, inclusive relativas à convocação e informações sobre as caravanas de 2021.
O critério de consulta dos meios de comunicação foi: primeiro, acessar matérias sugeridas pelo buscador Google de acordo com sua própria seleção algorítmica ao acessar à aplicação no celular, realizando leitura apenas das matérias que tinham acesso gratuito sem exigir cadastro ou membresia. Segundo, também se adotou busca ativa no mesmo buscador a partir da palavra de entrada “caravana migrante”. Terceiro, igualmente foram selecionadas matérias que eram compartilhadas pelas próprias pessoas migrantes no grupo do Facebook acompanhado, a fim de obter as narrativas que são lidas e compartilhadas entre si pelas pessoas que estão migrando. Apresentamos aqui uma tabela na que sistematizamos as notícias analisadas e a quais meios de comunicação pertencem.
O caráter dinâmico do fenômeno demandou acompanhamento constante do material jornalístico, o que nos fez optar por uma seleção também de caráter territorial/geográfico que permitiu conhecimento de uma pluralidade de narrativas sobre as caravanas e a fronteira sul, envolvendo jornais lidos em todo território mexicano, de cobertura nacional e internacional, bem como meios locais de Chiapas/Tapachula com menor projeção, mas ricos em detalhes, pela sua proximidade com o fenômeno.
Para a análise das narrativas jornalísticas nos referenciamos em Michel Pêcheux (2008), quem considera existir uma tensão entre enunciado e descrição/interpretação dos fatos no interior de um discurso apresentado. Postula que a forma de se enunciar a realidade através das notícias já carrega consigo formulações tendenciosas de diversa natureza em um jogo oblíquo, presente em toda a estrutura textual do conteúdo usado para narrar acontecimentos. Além, de apresentarem fatos que aconteceram, transmitem visões morais e éticas com certo grau de opacidade consciente, objetivando, assim, gerar dúvidas, comunicar conclusões próprias, plantear especulações ou mesmo defender alguma prática ou ideia vinculada a ele.
Nesse sentido, é importante ressaltar que os meios de comunicação se enfocam, ao publicarem fatos ocorridos, não necessariamente em como sucederam e muito menos em escutar a pluralidade de vozes envolvida nos acontecimentos, mas sim através de um enquadramento ou frame que comprime unidades de referências que refletem atitudes e conhecimentos prévios (Pfelger, 2019, p. 649).
Imigração no sul mexicano e pandemia
O México conta com uma Lei de Migração desde 25 de maio de 2011, que versa e regula a entrada, saída, trânsito e permanência de pessoas estrangeiras no território. Como um notável avanço em matérias de direitos humanos no país, é uma lei que não criminaliza de antemão as pessoas migrantes consideradas como “indocumentadas” (Perales Garza, 2013), conquista das mobilizações de organizações não governamentais (ONGs) que sistematicamente denunciavam que a migração em trânsito pelo país se via constantemente afetada por violências extremas como sequestros, assassinatos, violações físicas, extorsões e tráfico de pessoas (Ascencio, 2002; Covarrubias, 2015; Aguirre, 2016; Yee Quintero y Cantalapiedra, 2016; Varela Huerta, 2016).
Em 2019, 26 de dezembro, o atual presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador (AMLO) realizou pronunciamento oficial junto ao secretário de Relações Exteriores, Marcelo Luis Ebrard Casaubó, apresentando o “Plano de Migração e Desenvolvimento”, que havia sido posto em marcha desde junho de 2019 com o objetivo de frear barreiras impostas pelo governo estadunidense às exportações mexicanas. Segundo declararam, o objetivo do plano era remediar uma crise desencadeada pelo elevado número de pessoas chegando à fronteira norte mexicana para solicitar refúgio aos Estados Unidos, sendo objetivo mexicano conter e manter esse fluxo dentro de seu território.
Ao apresentar resultados do plano, AMLO e Ebrard expuseram dados da Patrulha Fronteiriça estadunidense (United States Border Patrol) de redução do número de apreensões feitas na fronteira sul desse país: em maio de 2019 foram detidas 144.116 pessoas e em setembro de 2019 esse número caiu a 52.546. Ebrard também destacou que entre 18 de maio de 2019 e 25 de dezembro de 2019 a Guarda Nacional (GN) mexicana havia “resgatado” 59.843 pessoas na fronteira sul do México (López Obrador, 2019).
O artigo 52 da lei estabelece critérios para concessão de ‘visto por razões humanitárias” (Ley de Migración, 2011, p. 19), estipulando que pessoas interessadas solicitem reconhecimento de refúgio ante a Comissão de Ajuda a Refugiados (COMAR). Uma vez que esse órgão julgue procedente o pedido, é preciso solicitar o visto humanitário ao Instituto Nacional de Migração (INM), cujo caráter é temporário e deve ser renovado a cada ano. Uma pessoa que ingresse no país tem o prazo de 30 dias, a partir do ingresso, para iniciar seu trâmite migratório legal.
Ainda que a lei estabelece a liberdade de trânsito ao não criminalizar a indocumentação e reconhecer o direito de ir e vir, entre 2020 e 2021 na cidade de Tapachula as instituições COMAR e INM passaram a exigir que quem havia iniciado um trâmite ou tinha um agendamento deveria esperar as respostas de seus procedimentos burocráticos na cidade, o que se evidencia como incoerente com a lei de migração do país, inclusive porque muitas pessoas se viam obrigadas pelas autoridades a iniciarem seus procedimentos ali.
Os agendamentos aos serviços migratórios nesse período eram feitos online e foi possível constatar a existência de papelarias pela cidade que os ofereciam como serviço pago a quem não tivesse acesso à internet ou computadores. Nessa época os órgãos locais estavam saturados e as datas para iniciar trâmites podiam chegar até 2022. Em conversa com imigrantes pelo centro da cidade, muitos relatavam que realizaram os agendamentos antes mesmo de chegar ao México e por isso conseguiam para outros estados ou cidades, mas que se viam impossibilitados de saírem de Tapachula porque eram abordados pelas autoridades migratórias e obrigados a ficar na cidade para iniciar seus procedimentos ali.
É difícil precisar o número de pessoas esperando ou o tipo de espera: se envolvia iniciar o procedimento de regularização ou se já o haviam iniciado e esperavam um deferimento ou indeferimento de seus casos. Também é difícil precisar o tempo de espera dessas pessoas. O fluxo migratório ali é frenético e constante. O fato de que muitas ingressavam à México cruzando o rio Suchiate ou atravessando as selvas sem passar pelos postos de controle do INM também tornam mais turvas as estatísticas da migração na região (Martínez, Cobo y Narváez, 2015).
Para 2019, segundo dados do governo mexicano, foram apresentadas formalmente 27.033 solicitações de refúgio à COMAR, uma cifra considerada recorde para o México (Cfr. (IN)MOVILIDAD, 10 de julio de 2022). Já para o ano de 2021, em dados da COMAR divulgados pelo INM no início de 2022, somente em Chiapas foram feitas 135.441 solicitações, superando o período anterior. Conforme os dados do INM para 2021 com relação ao registro de ingresso de migrantes pela fronteira sul, foram 1.452.806 pessoas que passaram por algum posto de controle.
A Lei de Migração também estipula prazos máximos para resolução de casos junto à COMAR e ao INM (Ley de Migración, 2011, p. 35). No entanto, a partir de março de 2020 em decorrência da crise sanitária da Covid-19, todos os prazos oficiais foram suspensos, razão pela qual as pessoas deixaram de receber respostas ou mesmo ter qualquer expectativa com relação a quando teriam sua condição migratória regularizada (ou não) pelo Estado mexicano, ficando impossibilitadas de obter documentos migratórios oficiais que lhes permitiam seguir caminho. Em 2021, como se pôde constatar em visitas às sedes das instituições de Estado, ainda era possível ver cartazes fixados em portas fechadas ou restritas, informando que não havia agenda disponível para novos trâmites nem prazo de resposta a trâmites já iniciados.
Esse processo converteu Tapachula em lugar de residência obrigatória e não mais espaço de trânsito. Era uma questão jurídico-burocrática, vinculada não só à pandemia, mas sim ao próprio Plano de Migração e Desenvolvimento, o que foi gerando crescente frustração entre as pessoas migrantes que se sentiam presas ali.
Junto à condição de incerteza, se incrementaram as medidas repressivas executadas pelo INM e GN, denunciadas principalmente no grupo de Facebook, onde se publicava sobre práticas chamadas “redadas” que consistiam em operações em hotéis, praças, ônibus e casas alugadas para deter migrantes considerados “indocumentados”, algo que ocorria não só em Tapachula como em cidades ou estados vizinhos, casos em que as pessoas eram devolvidas à cidade ou à fronteira com a Guatemala, segundo relatavam pessoas migrantes. Esse tipo de prática era justificada pelo governo devido à falta de documentação regular.
Há nesse lugar uma gama de organismos relacionados ao processo migratório: COMAR, INM, Estação Migratória Século XXI (um centro de detenção), ACNUR, albergues e distintas organizações da sociedade civil. Isso se justifica pela importância histórica da região com relação à migração de trânsito que, no entanto, nunca havia sido grande palco de disputas e tensões entre migrantes e autoridades estatais uma vez que era apenas ponto de apoio e descanso. Dessa forma, tampouco era um espaço conhecido pela produção de ativismo e reivindicação migrante que não a construção de redes de solidariedade para mitigar a vulnerabilidade da migração de passagem, algo que começou a mudar entre 2018 e 2019.
Atrapachula e caravanas como direito à mobilidade
Segundo conversas informais com residentes da cidade – taxistas, comerciantes, trabalhadores humanitários e um jornalista local, a presença imigrante atual pode ser percebida no aquecimento do setor imobiliário, aumento e diversificação do comércio local. Incrementou-se a venda de rua de diferentes mercadorias como roupas, calçados, acessórios eletrônicos, serviços de cabeleireiro e barbearia e, à sua vez, diversificou-se o setor alimentício. A concentração de pessoas e comércio ocorre na região central – Parque Hidalgo e Bicentenário – ao redor da Paróquia e dos mercados. Outras regiões como edifícios do INM, COMAR e ACNUR também são pontos de concentração, fila e espera.
Os locais de encontro passaram a servir para compartilhar histórias e sentimentos de angústia e insatisfação com relação à gestão migratória para que as pessoas pudessem intercambiar informações e experiências. Isso propiciou a formação de alianças que buscavam possibilidades alternativas para continuar migrando. Algumas manifestações espontâneas passaram a ocorrer em pontos da cidade e serviam para que as pessoas migrantes expressassem seu descontento publicamente exigindo respostas das autoridades mexicanas. Ainda que indocumentadas e não reconhecidas legalmente pelo Estado como cidadãs, cotidianamente reivindicavam o direito ao livre trânsito, afirmando-se assim como sujeitos políticos pelo simples fato de serem seres humanos (Rho, 2021).
As migrações coletivas, pessoas caminhando conjuntamente em forma de caravana, são uma das formas de lutas históricas na América Central, onde o trânsito massivo é comum (Varela, 2016; Wiesner, 2020). Em outubro de 2020, uma caravana partiu de Honduras e foi detida pela coalizão dos governos mexicano, hondurenho, salvadorenho e guatemalteco, utilizando-se do exército para impedir que pessoas migrantes avançassem. Essa coalizão também decidiu suspender a livre circulação de pessoas na região, permitida anteriormente entre os países, sob o pretexto de que se tratava de uma medida sanitária em resposta à pandemia (Cfr. (IN)MOVILIDAD, 10 de julio de 2022).
A produção de ativismo migrante em forma de caravanas evidencia a agência política das pessoas migrantes para além de uma reivindicação de acesso à cidadania estatal (Rho, 2021). Desde a perspectiva de autonomia das migrações se reconhece uma multiplicidade de performances e demandas existentes por detrás da atuação política dessa população. Elas são gestadas em seus cotidianos, da insatisfação, da imobilidade e do cansaço. A forma consciente de demandar determinados direitos nesse contexto transforma pessoas migrantes em cidadãos mediante o próprio ato de reclamar e cumprir obrigações (Rho, 2021, p. 3).
Ao não se obter respostas satisfatórias diante da incerteza, a coletividade migrante – auto-organizada pela condição de precariedade da espera – optou por tentar se mover em caravana, como já feito anteriormente (Cantalapiedra y Quintera, 2016; Varela Huerta, 2016, 2019; Ramírez, Moreno y Gutiérrez, 2021). Essa estratégia dificulta a atuação das autoridades migratórias, ao mesmo tempo em que capta a atenção da opinião pública sobre a questão migratória ao tornar visível a multidão de pessoas que migram, dando-lhe massa corporal, rostos e histórias de vida. As caravanas “involucran el agenciamiento político que se produce cuando los sujetos victimados, los migrantes, se identifican entre sí por esa condición y se organizan para defenderse de las leyes que los extranjerizan permanentemente” (Varela, 2016, p.33)[1]
As pessoas assumem conjunta e conscientemente os riscos do trânsito baixo o estigma da indocumentação, caracterizados pela alta racialização e aspectos identitários, coletivizando os objetivos de cada migrante em objetivos da caravana. Procura-se diminuir os riscos de migrar com baixos recursos materiais e jurídico-legais, apoiando-se na exigência da garantia de direitos humanos. A grande massa de gente em movimento é o fator que mais chama a atenção dos meios de comunicação que narram as caravanas.
As caravanas de 2021 não foram inéditas (Aguirre, 2016; Varela Huerta, 2016; Wiesner, 2020) mas carregam aspectos histórico-políticos próprios. Se configuraram como forma de luta política contestaria porque reclamam e materializam um direito básico. Não possuíram direção única e os papéis de liderança constantemente se modificavam. Foram convocadas no modo “boca a boca”, nas conversas, nos espaços etnografados do centro da cidade e através de chamados no grupo do Facebook. A ela se somaram e se retiraram pessoas cotidianamente ao passo em que avançava.
A primeira caravana originária de Tapachula foi em agosto de 2021, composta por centenas de pessoas. Nesse momento o cenário não foi promissor, uma vez que o governo mexicano atuou de forma violenta, e entre os dias 29 e 31 de agosto os agentes do INM e da GN protagonizaram repressão intensa para desarticular a caravana, que fracassou em seu objetivo de partida. Essa derrota não diminuiu a indignação com relação aos trâmites migratórios, baixa oferta de trabalho em Tapachula e salários mal pagos. Em conversas informais também se argumentava que não havia sentido em obrigar alguém a esperar em Tapachula por haver iniciado seu processo, uma vez que tanto a COMAR como o INM são instituições de Estado presentes em todo o território nacional.
Algumas pessoas começaram a questionar-se sobre a validade jurídica do “confinamento”, encontrando como tática complementar a judicialização de sua demanda. Assim, apresentavam um amparo ao juizado federal de Tapachula que julgou diversos casos como procedentes, indicando reconhecimento ao direito ao livre trânsito à migrantes. Essas informações eram divulgadas verbalmente nos parques e praças centrais e contava com apoio (e rechaço) de organizações da sociedade civil, passando a revigorar os projetos migratórios, já que em tese garantiria legalidade de trânsito mesmo sem um status legal migratório.
Entre outubro e setembro de 2021 se organizou a segunda caravana que partiria em outubro com maior presença de pessoas migrantes, amparada ainda pelo recurso jurídico-político. Essa última denunciava até então que Tapachula havia se transformado em uma cidade que atrapa, isto é, prende as pessoas nela, através de um jogo com seu nome: Atrapachula, ideia que era reproduzida entre pessoas migrantes e moradores locais da cidade
Narrativas midiáticas e discurso estatal
Em 5 de abril de 2021, o jornal El País anunciou uma “onda” de pessoas que chegavam ao México para usá-lo como porta de entrada aos Estados Unidos (Zerega, 2021). A palavra onda usada caracterizando o aumento da imigração gera a sensação de algo incontrolável caracterizado por uma força em demasia, colocando ênfase na presença massiva e gerando sensação de uma chegada invasiva e abrupta, legitimando a ideia do governo com relação à necessidade de uma resposta que seja contingente, evocando a demanda por controle.
Sem dúvida, o tema da migração nos meios de comunicação vem permitindo um framing para assegurar uma audiência mais ampla bem como “aquilo que se vende melhor” ainda que isso signifique construir situações catastróficas nas quais pessoas migrantes sejam vistas como uma ameaça em distintas escalas, desde à integridade de alguma comunidade até à segurança do Estado-nação (Pfelger, 2019,p. 650).
Pablo Ceriani Cernadas (2016), no seu artigo “El lenguaje como herramienta de la política migratoria” analisa palavras e conceitos empregados em textos políticos e midiáticos sobre migração, denunciando o uso do que chama de eufemismos para ocultar a realidade violenta de diversas práticas e políticas migratórias. Identifica quais adjetivos são empregados para caracterizar e descrever as políticas públicas, presença migrante e medidas burocráticas nas narrativas, evidenciando os ocultamentos e posições políticas e morais implícitas.
No pronunciamento de governo de 2019, Ebrard destacou que as autoridades mexicanas “resgatavam” migrantes em trânsito (López Obrador, 2019), ocultando que tal medida era executada de forma violenta e seu objetivo era a contenção dessas pessoas no México. O uso do termo “resgatar” suaviza o que eram as operações de redadas. Resgates são anunciados como bons resultados do Plano de Migração e Desenvolvimento, diferente do que era dito pelas pessoas migrantes que denunciavam a precarização da sua espera e impossibilidade de trânsito quando eram “resgatadas”.
O artigo “La desesperación migrante choca contra el dique de Tapachula” (Reina, 2021), comparou o movimento migrante a uma massa de água em um ataque que era então represado, repercutindo diretamente discursos de AMLO de que o México seguiria detendo a migração irregular ou indocumentada. Uma vez mais a metáfora da água para falar da migração é aplicada em chave de desumanização de um movimento que é feito de corpos humanos, cujas dores e sentimentos acabam invalidados em um discurso estatal que os vê como uma ameaça.
No dia 14 de setembro, o jornal Aristegui Notícias informou sobre os processos de amparo para sair de Tapachula, destacando o caráter massivo da estratégia e a origem da migração em África, Caribe e América. O jornal Al Punto con Jorge Ramos publicou no Facebook no dia 22 de outubro a matéria sobre os amparos onde o jornalista em campo, Moisés Castro, conclui a transmissão semeando a dúvida se o INM e a GN permitiram aos e às migrantes avançar, afirmando que a essa nova caravana a nomearam marcha para a liberdade, a dignidade e a paz. Em 23 de outubro de 2021, a página local de Tapachula de Facebook Las Noticias con Julio Navarro Cárdenas publicou um vídeo do momento exato da saída da segunda caravana, também destacando o caráter massivo e semeando dúvidas sobre possíveis entre migrantes, GN e INM, que esperavam na ponte que marca a saída da cidade.
Todas essas matérias trataram de colocar maior ênfase em dois aspectos que fazem parte da construção da imagem identitária da caravana: o grande contingente de pessoas migrantes, fomentando a lógica de necessidade e de contenção; já que em grande número, elas podem causar certos distúrbios à normalidade de funcionamento das cidades; e a nacionalidade dessas pessoas, lembrando que se tratam de pessoas estrangeiras provenientes de países, muitas vezes, entendidos como conflituosos, de “Terceiro Mundo” ou violentos, sendo assim pessoas de fora da nação que se configuram como uma ameaça.
Entoando cantos de liberdade, homens, mulheres, crianças, bebês e idosos avançavam abrindo a barreira estatal-humana. No vídeo mencionado é possível ver o momento em que o grupo de frente chega até os agentes bélicos de Estado. Embora haja tensão, rapidamente se abre o caminho e os migrantes avançam. No minuto 3:40 da filmagem, o jornalista destaca a atitude como extraordinária, já que se pôde passar com relativa facilidade baixo cantos de “no somos delincuentes” e “sólo queremos pasar y seguir nuestros caminos”. Dessa forma, a caravana desenha-se como uma força incontrolável e as imagens explicitam isso.
Em 25 de outubro, a Agência EFE divulgou uma notícia sobre o pronunciamento de Marcelo Ebrard, quem assegurava que o governo atuaria com “prudência”, argumentando que o México não estava autorizando o ingresso de estrangeiros pela fronteira sul, construindo assim a imagem de que as pessoas em caravana estavam ali irregular e ilegalmente. O discurso de Ebrard afirmou ainda que as pessoas foram enganadas e iludidas ao juntar-se à caravana porque lhes foi dito que os Estados Unidos lhes deixaria entrar (Agência EFE, 2021). Esse discurso gera desconfiança ante às pessoas migrantes, pois ao estigmatizá-las de ilegais e desinformadas, deslegitima sua capacidade de agência e consciência política e produz um entendimento de atuação por má fé, já que elas ingressaram ao país mesmo sem a autorização dele.
Essa parece ser a estratégia do Estado para desvirtuar o significado da luta política da caravana, replicada pela narrativa dos meios de comunicação que contribuíam para reforçar o estereótipo da pessoa migrante como facilmente enganada ou mal-intencionada. A construção conduz a que se justifique a atuação do Estado diante do movimento: se há gente que não deveria estar no país, elas devem ser controladas pelas autoridades, servindo de respaldo à atuação da GN, cuja função ventilada é proteger o território.
A narrativa jornalística dominante colocou ênfase nas respostas de governo aos atos irregulares e de desobediência. A agência migrante é reduzida a produzir conflitos e distúrbios da ordem, e prioriza-se os discursos de agentes institucionais. Palau-Sampio (2019) conclui que o jornalismo dominante sobre migração tem como tendência focar-se nos estereótipos negativos que associam imigrantes à instabilidade e outros problemas sociais: “(…) cuando se elaboran los reportajes acerca de la migración, los medios mexicanos dan prioridad a los asuntos de seguridad (…) y crimen sobre los migrantes mismos, quien surge de esta realidad es alguien a quien se le deshumaniza (…)” (Palau-Sampio, 2019, p. 98).
O avanço da caravana era retratado constantemente como uma invasão. No dia 1 de novembro o jornal La Jornada afirmava que a GN havia confirmado que na noite de 31 de outubro enquanto alguns migrantes conseguiram avançar por meio de caronas em caminhões, as autoridades abriram fogo contra uma caminhonete em “legítima defesa”. Essa ação resultou em uma pessoa migrante morta e outras três feridas. O jornal apresenta exclusivamente a justificativa da GN de que se tratava de um veículo que tentou evadir de um posto de controle na cidade de Huixtla, despertando desconfiança, a perseguição e os disparos.
Destaca-se o ato como crime, justificando assim a medida repressiva adotada, exemplificando como o jornalismo privilegia informações e pronunciamentos de fontes policiais ou governamentais, que em sua maioria desumaniza e perpetua estereótipos sobre migrantes (Palau-Sampio, 2019, p. 101). É possível notar, na opacidade, como se culpabiliza as pessoas por quererem preservar-se das longas caminhadas e cansaço dos pés ao optarem por pedir carona, e o eufemismo da linguagem faz com que a condição de indocumentação ao viajar em carros e caminhões seja argumento suficiente para utilizar armas de fogo mortais como medida para impedir uma pessoa de transitar pelo país.
Em 31 de outubro o jornal El Informador publicou que o governo mexicano seguia tratando de denunciar a manipulação de pessoas “vulneráveis”, reforçando assim o estereotipo de vítimas ingênuas ou pessoas má intencionadas. Também se destaca que o INM havia proposto um acordo para dissolução do movimento: regularizar mulheres grávidas, menores de idade e pessoas com alguma incapacidade física. A opinião dos ativistas apresentada no texto era sucinta: asseguravam que era uma armadilha para separar as famílias.
A narrativa constrói a imagem de que a vulnerabilidade é uma condição “natural” das pessoas migrantes, e não fruto de práticas de gestão estatal, geradas por políticas sociais e migratórias. As pessoas migrantes são caracterizadas como agentes de distúrbio, seja pelo seu trânsito qualificado como “ilegal” desde a fronteira sul, seja por não aceitarem os acordos propostos ao manter-se uma posição de intransigência. Essa construção gera a sensação de que a sensatez não é uma marca do movimento e que o Estado buscava oferecer acordos enquanto o outro lado é que se recusava a negociar. Afinal, O que mais querem essas pessoas?
Nesse sentido, vale a pena recordar que muitas vezes, no tratamento da informação veiculada, se elabora uma cultura do medo com incorporação de significados de xenofobia e racismo para ilustrar um fragmento da realidade ante à impossibilidade de comunicar um testemunho presencial (Martínez Ferro, 2017, p. 89).
Os meios de comunicação de massa analisados não buscaram tratar do tema migratório da caravana a partir de suas causas mais profundas e estruturais, optando por abordagens mais imediatas e fragmentadas, retratando a migração de forma espetacular e trágica (Palau-Sampio, 2019), enfocando-se prioritariamente na violência que se produz desde e pelas pessoas migrantes.
Nas primeiras semanas de novembro, a caravana seguia avançando por rumos diferentes. No estado de Veracruz, o jornal Excelsior, em 17 de novembro, afirmou que “el estado se amuralla por caravana migrante” (Aguirre, 2021), gerando sensação de necessidade de uma contenção bélica e sólida à migração ameaçante. A partir do sentido figurado de “murar-se” se produz uma visão opaca sobre o que significa essa prática: a presença massiva de agentes militarizados da GN e do INM compondo uma barreira humano-bélica pronta para o confronto (Aguirre, 2021).
Apresentam-se linhas editoriais que, de certa forma, responsabilizam as pessoas migrantes pela sua escolha ao mesmo tempo em que as criminalizam por terem entrado no país, utilizando-se frequentemente de termos como indocumentados, irregulares, clandestinos e vulneráveis. Outro aspecto comum é a generalização por nacionalidade, fazendo necessário repensar como o racismo contemporâneo se articula na produção de discursos através de signos e nomenclaturas para justificar ações de repressão ou mesmo violação de direitos em nome de uma ordem legal, burocrática e de segurança nacional.
O uso de determinados adjetivos tem razões políticas, já que a ideia de se portar papéis, documentos que comprovem identidade, data e lugar de nascimento ou de que nação a pessoa é cidadã não reflete em absoluto sua condição de humanidade independente de fronteiras e Estados. Durante o período de trabalho de campo feito em Tapachula, foi possível perceber que havia muita gente portando passaportes e cédulas de identidade dos países onde viviam, demonstrando assim que ser “sem papel” ou “indocumentado” é uma construção jurídico-política de Estado, produzindo bases para a discriminação e vulnerabilidade de determinadas pessoas e nacionalidades.
Dialogando com o trabalho de Laurie McIntosh (2015), se visualiza que os mecanismos que estão por detrás da atuação política migratória mexicana tem raízes em concepções racistas do mundo. A autora fala de um espaço de visibilidade-invisível onde as pessoas são marcadas oficialmente por sua “diferença insuperável”, tais como a nacionalidade ou a raça, caindo assim dentro de um abismo de diferença cultural que as converte em incompreensíveis.
Expressa ademais uma visão turva de quem opera a migração, assim como dos meios de comunicação que antes de ver a migrantes como pessoas, as vê como outras coisas: indocumentadas, irregulares, haitianas, hondurenhas, centro-americanas, transformando diferenças e especificidades humanas em objeto de desconfiança sobre quem é o outro que chega. Essa posição alimenta tensões e conflitos com relação a questões culturais e identitárias presentes nos processos migratórios, impactando na inserção das pessoas migrantes nas cidades e territórios.
Um exemplo está na matéria veiculada pelo jornal El Sol de México de 10 de outubro de 2021, cujo título foi: “Haitianos pagan más de 20 mil pesos para casarse con mexicanas” (González, 2021), denunciando suposto esquema de pessoas de nacionalidade haitiana para obter cidadania mexicana através de casamentos por conveniência. Os haitianos são generalizados pela sua nacionalidade, e o texto também evidencia enfaticamente a condição migratória irregular que possuem no país.
Apesar de que o casamento pode ser uma estratégia de regularização migratória, o observável da matéria é como opera o racismo e xenofobia, nessa denúncia de uma nacionalidade específica, criando um estigma sobre todos os homens haitianos. É um discurso que generaliza, gerando desconfiança com relação a essa migração específica, articulando o racismo através de outra roupagem linguística que opera através de uma opacidade da nacionalidade. Varela Huerta (2016) em reflexão sobre caravanas migrantes havia chamado atenção com relação ao fator racial que categoriza à pessoas de forma hierárquica, criando-lhes a necessidade, dentro da condição de migração, de articular ações que buscam conter e eventualmente “erradicar los efectos que el racismo institucional y el racismo social tienen en las vidas cotidianas de estos migrantes” (Varela Huerta, 2016, p. 33).
Nessa linha, Olivia Gall (2018) nos oferece importante reflexão sobre o México e suas raízes culturais, destacando que ainda que nunca tenha sido um país de imigração expressiva, muitas de suas políticas migratórias e de colonização foram marcadas por concepções racistas de mundo, onde pessoas de pele preta ou indígenas figuravam como sujeitos indesejáveis para a formação da nação. As concepções ideológicas presentes na sociedade mexicana não escapam ao predomínio de uma visão racista que é herança do período de colonização europeia que conformou diversos estados nacionais na América.
Recuperando elementos históricos relativos à formação da ideia de mestiçagem no México, assim como políticas de branqueamento da nação, a autora argumenta que esse tipo de pensamento segue escondido por detrás da violência que na contemporaneidade enfrentam, cotidianamente, pessoas migrantes, sobretudo se são de ascendência indígena e negras. Gall afirma que a partir de 2016, quando começa uma nova chegada massiva de imigrantes negros no país, começaram a surgir uma série de tensões que torna explícito a visão racista presente no Estado mexicano.
No dia 23 de novembro de 2021, Noticias Milenio através de seu canal no YouTube informou que a caravana, que se encontrava em sua maioria na cidade de Mapastepec, Chiapas, se dissolveu após aceitar acordo com o INM em que as pessoas se entregariam às autoridades em troca de receber vistos humanitários e serem transportadas a outras cidades e estados para seguir com a gestão de seus casos. A matéria, uma vez mais, reforça o fato de que se tratava de pessoas “indocumentadas” vivendo e transitando pelo país até então.
Conclusões finais
Os meios de comunicação cumprem funções importantes no que diz respeito a divulgar sobre a migração (Wiesner, 2020), mas é preciso reconhecer que não apenas informam, como também narram desde duas perspectivas e linhas editoriais, fazendo suposições sobre o futuro, semeando dúvidas ou ecoando concepções políticas entre linhas daquilo que reportam. Com relação às caravanas, movimentos políticos que tendem a possuir ao menos algum tipo de reivindicação, não tem sido diferente.
Ao tratar do movimento como “invasão” ou ação descontrolada e massiva e chamar atenção com ênfase na irregularidade dessa migração, fazem ecoar desde suas visões editoriais o discurso oficial de Estado, jogando com elementos de segurança e identidade nacional em oposição a algo (ou alguém) que vindo de fora deve ser controlado e monitorado. Dessa maneira, esse discurso midiático muitas vezes justifica e legitima atuações e mecanismos que atualmente compõem a política migratória como detenção e expulsão de pessoas através da construção de narrativas que aplicam eufemismos (Cernadas, 2016) para descrever as ações de Estado.
Com isso, se torna opaca a realidade violenta desses mecanismos que na prática são formas de privação de liberdade e violação de direitos das pessoas migrantes, como a violência institucional física, verbal, emocional, a insalubridade dos centros de detenção e a falta de garantia de acesso à informação e devidos processos legais, algo que qualquer pessoa em sã consciência repudiaria se vivesse a mesma realidade. Ainda que a narrativa informe sobre fatos que passaram ou estão passando, gera dúvidas nas pessoas que estão sendo informadas (Pêcheux, 2008) que podem considerar as ações estatais como justificáveis em nome de combater práticas ilegais das pessoas migrantes.
Enquanto um movimento de reivindicação política e diferente da caravana de agosto de 2021, duramente reprimida e violentada pelas forças policiais do Estado, muitas das pessoas que compuseram a caravana de outubro tiveram êxito em seus objetivos de sair de Tapachula, obter um visto humanitário ou mesmo chegar aos Estados Unidos, contradizendo o discurso de Ebrard de que esse país não deixaria as pessoas migrantes entrarem. O fato de que com a segunda caravana o governo tenha agido com certa prudência com relação às medidas repressivas tomadas, pode ser entendido graças a pressões feitas por migrantes em sua agência individual como também por organizações da sociedade civil que acompanham o tema e denunciam as violações de direitos humanos protagonizadas pelo Estado.
Os meios de comunicação não apenas dão voz quase exclusiva aos agentes de Estado como também ecoam sua caracterização e visão do fenômeno migratório no território mexicano. Porém, o fato da segunda caravana de 2021 ter tido êxito em sair de Tapachula, com um número bem mais elevado de migrantes, e obtido um acordo em seus termos com o Estado demonstra que migrantes são sujeitos políticos conscientes capazes de traçar estratégias de luta, resilientes em suas atuações e impassíveis em sua caminhada.
O cansaço, o calor e as doenças que enfrentaram no caminho, somados à hostilidade de grande parte dos agentes migratórios, demonstram que a vulnerabilidade não é um aspecto intrínseco à uma natureza humana migrante, mas sim produto do contexto social e político que influenciam na elaboração de políticas migratórias e práticas com relação à migração, ou que levam a que as pessoas migrem. A vulnerabilidade é assim resultado exclusivo de como atuam os estados nacionais e seus agentes com relação ao tema da migração.
O México segue sendo um país “tapão” da migração (Varela Huerta, 2019) atuando em consonância com o que exige seu vizinho os Estados Unidos. A ideia transmitida na conferência presidencial de êxito e boa política “ordenada e regular” se traduz na realidade em uma contenção violenta das pessoas migrantes em território mexicano para assim mantê-las longe do país vizinho. Pratica-se uma política migratória que categoriza e hierarquiza nacionalidades, produzindo a indocumentação e o aprisionamento em estações migratórias e em cidades específicas através de procedimentos burocráticos, sendo operada sob forte estigmatização de determinadas populações migrantes, expressando um pensamento discriminatório.
Enquanto as políticas migratórias tiverem princípios ideológicos racistas e vinculados à ideia de segurança nacional e presença estrangeira como possível ameaça à soberania do Estado nacional, não será possível desde esse mesmo Estado plantear soluções humanas à questão migratória. Se a ideia de controle/contenção de fluxo se mantém, é possível dizer que a gestão da migração seguirá produzindo, talvez através de outros adjetivos e vocabulários, pessoas suscetíveis a serem excluídas e tratadas diferente devido à sua condição migratória e/ou nacionalidade, baixo uma segregação através da tipificação de pessoas humanas migrantes, gerando vulnerabilidade e exclusão social.
Por outro lado, a migração em massa bem como as estratégias migrantes tais como os construídos em caravanas seguirão ocorrendo por diversas razões e, dessa maneira, a reivindicação de direitos humanos tais como dignidade e liberdade de trânsito seguirá sendo apresentada através de diferentes formas de luta e mobilidade. Nesse sentido é possível visualizar contextos de conflito e tensões contínuas em todo território mexicano.
Como tentamos demonstrar, a formação de caravanas é uma entre tantas possibilidades que encontram as pessoas migrantes para resistir, reivindicar e se defender. Desde a perspectiva da autonomia buscamos destacar a potência criativa de gerar respostas que essas pessoas encontram, mesmo em condições de adversidade em que se lhes é negada a cidadania como elemento básico de sua constituição humana. Por essa razão, defendemos a importância e necessidade em se continuar observando e aprendendo com migrantes em seus diferentes contextos, demonstrando que a agência e subjetividade humana está mais além da tipificação jurídico-legal de qualquer Estado nacional e expressa através de relações contraditórias de criação, luta e exigências em um mundo onde há urgência em salvaguardar a vida em contraposição às políticas de morte e sofrimento impostas por Estados, governos e pelo capitalismo contemporâneo.
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Notas
Información adicional
Cómo citar: Ferreira, J. &
Montoya, R. (2023). Atrapachula: fronteira sul
mexicana, ativismo migrante e narrativas midiática s. Mediaciones, 30(19), pp.171-189.
Declaración: Este artículo presenta
los resultados de la investigación denominada: “Territorio y Ciudadania en
las migraciones internacionales en Brasil y México”. Los autores
declaran no tener conflicto de interés.