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Waldir Onofre, ator e diretor negro do cinema brasileiro (*)
Práticas Educativas, Memórias e Oralidades, vol. 5, núm. 1, pp. 1-19, 2023
Universidade Estadual do Ceará

Dossiê

Práticas Educativas, Memórias e Oralidades
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
ISSN-e: 2675-519X
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 5, núm. 1, 2023

Resumo: O artigo mapeia a trajetória do ator e diretor negro Waldir Onofre (1934-2015), nascido em Itaguaí, Estado do Rio de Janeiro. Originário de família humilde, trabalhou desde criança: foi engraxate, chapista, serralheiro, ferreiro e técnico de rádio e televisão, ocupação que exerceu durante anos, inclusive quando já se dedicava às artes. Em 1953 começou a estudar interpretação e teve longa carreira como ator coadjuvante em cerca de 30 filmes, dirigiu um longa-metragem (As aventuras amorosas de um padeiro, 1975), que recebe análise mais detalhada no presente texto, 4 curtas-metragens e fez 3 assistências de direção. Trabalhou, dentre outros, com os diretores Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Paulo Thiago, Miguel Borges, Sérgio Rezende, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, Bruno Barreto e Sylvio Back.

Palavras-chave: Cinema brasileiro, Cinema negro, Waldir Onofre, Ator brasileiro negro, Diretor brasileiro negro.

Abstract: The article maps the trajectory of the black actor and director Waldir Onofre (1934-2015), born in Itaguaí, State of Rio de Janeiro. Coming from a humble family, he worked since he was a child: he was a shoeshine boy, chap driver, locksmith, blacksmith and radio and television technician, an occupation he held for years, even when he was already dedicated to the arts. In 1953 he began to study acting and had a long career as a supporting actor in around 30 films, he directed a feature film (As Aventuras Amoros de um Padeiro, 1975), which is analyzed in more detail in the present text, 4 short films and made 3 driving assists. He has worked, among others, with directors Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Paulo Thiago, Miguel Borges, Sérgio Rezende, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, Bruno Barreto and Sylvio Back.

Keywords: Brazilian cinema, Black cinema, Waldir Onofre, Black Brazilian actor, Black Brazilian director.

Introdução

Não é tão simples escrever sobre a trajetória do ator e diretor negro Waldyr Couto, conhecido artisticamente como Waldir Onofre (05.08.1934 - 07.01.2015), em razão da ausência de análises mais aprofundadas sobre a sua longa carreira, que abrange mais de quarenta anos. A fortuna crítica acerca de atores coadjuvantes e de cineastas negros no Brasil é bastante escassa. Nesse sentido, buscamos acessar o máximo de informações disponíveis acerca do artista, pesquisando em dicionários, enciclopédias, sites, artigos em periódicos acadêmicos, em livros e capítulos de livros de história do cinema brasileiro com a finalidade de delinear um mapeamento geral da trajetória desse profissional que atuou em cinema, teatro e televisão nas fronteiras nacionais. No que se refere à filmografia de Onofre, que alcançou o expressivo número de quarenta películas, envolvendo sua atuação como ator, assistente de direção e diretor, adotamos procedimento consagrado pelos historiadores de cinema, qual seja, o de datar os filmes quando de seu lançamento no circuito exibidor, comercial ou não. A pesquisa conduziu-nos ao site historiografiaaudiovisual.com.br/filmes/waldir-onofre, acessado em 25.03.2023, em que se informa que o produtor Tininho da Fonseca dirigiu o filme Waldir Onofre (1979, 30 minutos). Infelizmente, não localizamos a fita. Apenas obtivemos a informação de que o curta-metragem mostra o artista em seu dia a dia pelas ruas de Campo Grande, bairro periférico do Rio de Janeiro, onde morava. São exibidos trechos de alguns filmes em que participou como ator, fragmentos de Cinco Vezes Favela, Perpétuo Contra o Esquadrão da Morte, Jesuíno Brilhante e o Amuleto de Ogum.

O trabalho do ator e diretor negro

Nascido em Itaguaí (que em tupi significa rio da enseada de pedra), na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, originário de família humilde, trabalhou como engraxate, chapista, serralheiro e ferreiro. Fez curso de técnico em rádio e televisão, aprendendo a consertar tais aparelhos, “ocupação à qual se dedicou durante anos, inclusive quando já atuava no teatro, no cinema e na TV” (AUTRAN, 2011, p. 425). Começou a estudar interpretação em 1953, em um curso de radioteatro com Berliet Júnior (1904-1973), nome artístico de José Assad. Berliet era considerado, para se utilizar uma linguagem da época, um “homem de sete instrumentos”: autor, ator, radioator, diretor, locutor, escritor, redator, radialista, roteirista, apresentador, produtor e professor de interpretação, trabalhara nas Rádios Mayrink Veiga, Philips, Nacional, Roquette Pinto e Clube do Brasil. Quando Waldir o conheceu, Berliet era produtor na Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, tendo aprendido com ele os primeiros passos de interpretação e impostação de voz (www.elencobrasileiro.com/2017/01/berliet-junior.html. Acessado em: 04.12.2023). Em 1956, Waldir ingressou no Conservatório Nacional de Teatro, lá permaneceu por quatro anos, até 1960, tendo estudado com João Bethencourt (1924-2006), diretor húngaro radicado no Brasil e estagiado com o ensaiador Jack Brown, discípulo de Constantin Stanislavski (1863-1938), conseguindo figurações em alguns filmes. Estreou profissionalmente no teatro em 1960, na montagem do drama estadunidense O Contato (Heffner, 2012, p. 524). Sua atuação chamou a atenção do diretor Miguel Borges (1937-2013), que o convidou para o curta “Zé da Cachorra”, episódio de Cinco vezes favela, encabeçando o elenco. Com Borges, fez também Canalha em crise; Perpétuo contra o Esquadrão da Morte; Maria Bonita, rainha do cangaço; O Barão Otelo no barato dos bilhões e O caso Cláudia. Ainda na década de 1960 atuou nas seguintes peças: Mister Sexy (1964), A juventude não é tudo (1965), de Eugene O’ Neill (1888-1953) e Dança lenta no local do crime (1969), de William Hanley (1931-2012). Acerca de Waldir Onofre, Hernani Heffner escreveu: “Coadjuvante bastante considerado pelo tipo físico, a expressividade facial e o talento interpretativo, filma seletivamente, quase sempre atuando nos papéis de vilão” (HEFFNER, 2012, p. 524). Em 1966 Onofre criou em Campo Grande, subúrbio do Rio de Janeiro, onde residiu durante quase toda a sua vida, no Ginásio Afonso Celso, uma escola de teatro. A clientela era constituída, de forma predominante, por jovens estudantes e moradores do bairro que, na época, contava com relativamente poucos equipamentos culturais. O Serviço de Divulgação da Embaixada dos Estados Unidos patrocinou uma excursão por 22 cidades brasileiras em que Onofre fazia leituras dramatizadas de peças de vanguarda norte-americanas. Após tal atividade, bastante intensa, Waldir montou, em 1968, a primeira peça de sua escolinha de teatro, Papai Noel e os dois ladrões, de autoria de seu ex-professor João Bethencourt (HEFFNER, 2012, p. 524-525). Em 1967, conforme mencionado em linhas anteriores, Onofre fez Perpétuo contra o Esquadrão da Morte, película em que tem seu papel de maior relevância, sendo também assistente de direção de Miguel Borges. Nesse filme, contracenou, dentre outros, com Milton Moraes, Eliézer Gomes, Roberto Bataglin, Rogério Fróes, com roteiro de Marcos Farias e Borges e tendo como produtores Luiz Carlos Barreto, Farias e Borges. Onofre interpreta o bandido “Cara de Cavalo”, famoso na crônica policial do Rio de Janeiro da década de 1960. No chamado ciclo de cangaço, “gênero sobre bandidos populares do nordeste do Brasil” (AUTRAN, 2011, p. 425), além de Maria Bonita, rainha do cangaço, Onofre atuou também em Jesuíno Brilhante, o cangaceiro (1972). Fez três filmes com Paulo Thiago (1945-2021): Os senhores da terra (1971), Sagarana, o duelo (1974), adaptação de obra de João Guimarães Rosa (1908-1967), com música de Tom Jobim e Dori Caymmi e Jorge, um brasileiro (1989), baseado no romance com o mesmo título, publicado em 1987, de Oswaldo França Júnior (1936-1989). Trabalhou com Leon Hirszman (1937-1987) em A falecida (1965), com elenco encabeçado por Fernanda Montenegro (1929), adaptado de peça de Nelson Rodrigues (1912-1980) e com Cacá Diegues (1940) em Ganga Zumba (1964) e Quilombo (1984). O primeiro filme é o retrato da vida do líder do Quilombo dos Palmares, Ganga Zumba (1638-1678), tendo música do maestro Moacir Santos (1926-2006) e interpretada por Nara Leão (1942-1989), com danças e rituais africanos realizados pelos Filhos de Gandhi, baseado em livro homônimo, publicado em 1962, de João Felício dos Santos (1911-1989). Quilombo, por sua vez, é uma coprodução brasileira e francesa cujo cunho histórico apoiou-se no mesmo livro de Felício e em Palmares, de Décio de Freitas (1922-2004), contando a história do escravo Zumbi. Waldir Onofre integrou os elencos de Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), que filmou o clássico escrito por Mário de Andrade (1893-1945) em 1928; de Toda nudez será castigada (1973), de Arnaldo Jabor (1940-2021), tendo por base a peça de Nelson Rodrigues, encenada pela primeira vez em 1965; dos policiais Sete homens vivos ou mortos (1969), de Leovegildo Cordeiro (1935-1983), O homem de papel - volúpia de um desejo (1976), de Carlos Coimbra (1927-2007) e Lili, a estrela do crime (1989), de Lui Farias (1958), adaptação do livro de Aguinaldo Silva (1944), A história de Lili carabina (1983); de Marcados para viver (1976), de Maria do Rosário (1949-2010), sobre as andanças de três marginais; do biográfico Leila Diniz (1987), de Luiz Carlos Lacerda (1945); do drama erórico A dama do lotação (1978), de Neville d’Almeida (1931), desenvolvido a partir de um conto de Nelson Rodrigues; de Sonhei com você (1989), de Ney Sant’ Ana (1954), musical com a dupla sertaneja José Rico e Milionário; de Lost Zweig (2002), drama de Sylvio Back (1937), baseado no livro de Alberto Dines (1932-2018), Morte no paraíso, a tragédia de Stefan Zweig (1981), acerca do escritor judeu austríaco que se suicidou em Petrópolis em 1942; de O que é isso, companheiro? (1997), de Bruno Barreto (1955), a partir do livro do mesmo título, escrito em 1979 por Fernando Gabeira (1941). Onofre trabalhou com o diretor Sérgio Rezende (1951) em três filmes, a saber: O homem da capa preta (1986), tendo como arrimo a pesquisa do historiador Israel Beloch (1942) (CATANI, 2022); Doida demais (1989), drama com roteiro de Jorge Durán e Rezende; e Mauá - o Imperador e o Rei (1999), que acompanha a infância, o enriquecimento e a falência de Irineu Evangelista de Sousa (1813-1889), empreendedor gaúcho, mais conhecido como Barão de Mauá. Na televisão, em especial, na TV Globo, atuou em quatro telenovelas, sendo duas delas escritas por Janete Clair (1925-1983) - Irmãos coragem (1970-1971) e O homem que deve morrer (1971-1972) -, uma por Gilberto Braga (1945-2021), Corpo a corpo (1984-1985) e outra por Dias Gomes (1922-1999), Mandala (1987-1988). Na própria Globo, na década de 1960, foi “um dos primeiros atores a fazer teleteatro, na adaptação da peça O Matador, de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), com direção de Sérgio Brito (1923-2011)” (MUSEU BRASILEIRO de RÁDIO e TELEVISÃO, s.d.). Entretanto, apesar de, em sua longa carreira como ator, abarcando mais de quatro décadas e tendo participado de dezenas de filmes, peças teatrais e telenovelas, trabalhando com distintos diretores, Waldir Onofre encontrou a melhor das acolhidas em Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), com quem atuou em O amuleto de Ogum (1975), em Memórias do cárcere (1984), drama biográfico adaptado do livro homônimo de Graciliano Ramos (1892-1953) e em A terceira margem do rio (1994), produção franco-brasileira baseada no conto do mesmo título do livro Primeiras estórias (1962), de Guimarães Rosa. É relevante destacar que em Memórias do cárcere e em A terceira margem do rio, Waldir exerceu a função de assistente de direção. No início da década de 1970, ele escreveu o roteiro de As aventuras amorosas de um padeiro, que viria a ser a sua única experiência como diretor em filme de longa-metragem. Após cerca de dois anos tentando, sem sucesso, filmar o roteiro, Onofre o mostrou a Nelson Pereira dos Santos, que aceitou produzir a película, uma comédia suburbana em que a ginga e a malícia dão o tom, sendo lançada em 1975 - nas linhas seguintes teceremos comentários detalhados acerca desse filme. Para Luiz Felipe Miranda, a década de 1970 foi “um tempo em que apareceram alguns diretores negros como Odilon Lopez, Waldir Onofre, Agenos Alves, Afrânio Vital e Antônio Pitanga, sendo Agenor o mais ativo deles…” (MIRANDA, 1990, p. 73). Onofre dirigiu outras 4 fitas de curta metragen: Cinema Brasileiro e sua comercialização (1979), “com depoimentos do produtor Luiz Carlos Barreto, do diretor Miguel Borges e do exibidor Roberto Darze” (AUTRAN, 2011, p. 425); dois outros em 1980 (Domingo da rapaziada e Clóvis, a alegria do carnaval) e, em 1982, Clóvis na Zona Oeste. Nos anos 1980, voltou-se “para a montagem de um projeto pioneiro, uma agência de figuração dedicada exclusivamente a atores negros” (HEFFNER, 2012, p. 525).

As aventuras amorosas de um padeiro: um filme eivado de malandragem e picardia

Waldir Onofre começou as filmagens de seu primeiro e único longa-metragem em 1974, aos quarenta anos de idade, após já ter trabalhado em teatro, televisão e feito uma dezena e meia de filmes. E, conforme já foi escrito no presente texto, a fita só saiu do papel depois de Nelson Pereira dos Santos gostar do argumento e do roteiro, de autoria do próprio Waldir e decidir produzir a obra, em parceria com a Embrafilme. Não há uma fortuna crítica exaustiva sobre o filme, embora tenhamos localizado algumas fontes muito bem escritas que nos ajudam em nossa argumentação. Entretanto, nesse caminhar, não nos valeremos dos textos de Stam (2008) e de Lapera (2009) que, apesar de relevantes, centram-se fundamentalmente nas dimensões étnicas e raciais da cultura brasileira - o cinema em particular. O livro de Robert Stam, por exemplo,

[...] analisa o cinema brasileiro no que tange a questões étnicas e raciais. Cumpre observar que o foco da obra é a problemática multicultural do universo do filme de ficção brasileiro. Numa perspectiva multidisciplinar, discute, entre outros temas, como foram construídas as imagens do negro e do índio no cinema brasileiro (NERY, 2010, p. 211).

Inicialmente, iremos transcrever o resumo (ou a sinopse) do filme, a partir de um dos materiais de divulgação - um folheto impresso e colorido, que localizei em nossos arquivos. Paulo César Pereio, o padeiro, tem uma rosa vermelha na boca e carrega uma cesta de pão, repleta de ilustrações dos principais personagens da película. Uma faixa preta contém a seguinte inscrição, em letras garrafais: “ADULTÉRIO À SUBURBANA”. No verso do folheto pode-se ler, em fontes meio miúdas: Ritinha (Maria do Rosário) é uma jovem humilde, virgem e que vive no subúrbio do Rio de Janeiro. Ela se casa com um homem mais velho, o conservador Mário (Ivan Setta). Meses depois, Ritinha percebe o quão entediante é sua vida de casada, sobretudo nas questões do sexo. É quando ela conhece Marques (Paulo César Pereio), que se não passa de um estúpido padeiro português pelo menos faz a jovem realizar suas fantasias na cama. E ele acaba tirando fotos dos dois transando. Mais tarde Ritinha conhece Saul (Haroldo de Oliveira), artista negro de quem se torna amante. Mas Marques, tomado pelo ciúme, revela as fotos ao marido dela, criando uma enorme confusão. Sátira popularesca explorando assuntos como infidelidade conjugal, preconceito racial e desejo de ascensão social. Pelo estilo de redação do folheto, que informa ainda que o filme ganhou o Kikito de Ouro no Festival de Gramado de 1976, acredito que tenha sido produzido por algum cineclube, sendo parte de ciclos ou de sessões especiais. Waldir, em um depoimento no final dos anos 1990, diz que o “mercado de trabalho para ator negro, aqui no Brasil, é praticamente nenhum” e que “o visual é o visual ariano”, no cinema, na televisão e na propaganda. Quem quiser fazer um filme, como ele, tem que “escrever, dirigir, interpretar, correr atrás de dinheiro” (CULTNE CINEMA). Nessa mesma fonte, a atriz Zezé Motta (1944) afirma que Onofre é um batalhador incansável, que luta sem cessar para “fomentar a cultura da Zona Oeste”, enaltece As aventuras…, “uma obra prima”, acrescentando que a trajetória do cineasta é bastante sofrida. “Ele teve muitos projetos guardados, que não conseguiu realizar por falta de apoio, de patrocínio, e por ser discriminado mesmo. Não vamos ficar fazendo rodeios!” (CULTNE CINEMA). O filme foi rodado em 1974, sendo Waldir chamado ironicamente, por muitos vizinhos do bairro em que sempre viveu, de “Fellini de Campo Grande”. As aventuras amorosas de um padeiro, escreve um dos críticos que analisa a fita, “era para ser um filme popular sobre a classe média” (MELO, s.d.), em que a jovem Rita oscila entre três homens: Mário, branco, o marido; o padeiro português, Marques e o artista marginal negro, Saul. “Um triângulo amoroso que é uma síntese étnica do Brasil” (MELO, s.d.). Mário é a representação máxima da classe média conservadora e reacionária, vivendo a vida “a partir de preconceitos e lugares-comuns”. Vai com um amigo ao bar popular do bairro em que mora e ao se deparar com a balbúrdia e os frequentadores habituais, diz ao amigo: “o ambiente aqui é assim mesmo: só pensam em sacanagem. Estou até pensando em me mudar para Ipanema”. Não se pode esquecer que o filme passa-se em meados dos anos 1970, em plena ditadura militar e, ainda, a mulher se casar virgem era um valor cultivado por segmentos de classe mais conservadores. Mário, por exemplo, já casado, recusa-se a ir a um motel com Rita, que tentava “apimentar” um pouco a insípida vida sexual do casal (“motel jamais!”, diz durante uma viagem). O chefe de família, em outro momento, recusa-se a fazer gastos extras, pois estava economizando para comprar uma televisão a cores. O casamento vai mal, Rita não sente mais desejo por Mário. Comenta isso com as amigas, que sugerem que ela se envolva com um ou mais amantes. Elas encantam-se observando os operários, negros e brancos, que trabalham em uma construção, com Rita embarcando na ideia de hipersexualização dos homens negros - entre eles está o próprio Waldir Onofre, que acaba participando de cenas oníricas de Rita: ele está de capacete e roupão e, em vez de falar, grunhe. Aceita a corte que lhe faz Marques, o padeiro português. Segundo Melo, a figura do padeiro “...é a própria caricatura do explorador, ou melhor, do ‘conquistador’, nos dois sentidos. A interpretação de Pereio reforça um sotaque português arrevesado, falso, cheio de cacofonias e expressões estrangeiras”. Os amigos do padeiro são malandros, bêbados e desocupados e, em dado momento, quando tentam brigar com um pretendente de Rita, o luso esbraveja: “vocês brasileiros nem lutar capoeira sabem!”. É sobre Rita que irão recair as principais questões do filme, “em especial temas na época polêmicos, como o aborto e o adultério” (MELO, s.d.); ou seja, ela é personagem central de toda a trama, e não o padeiro do título da obra, nem Mário ou até mesmo Saul, que se torna o amante negro de Rita - todos são personagens secundários do enredo. Luís Alberto Rocha Melo levanta dimensão relevante, ao escrever que em As aventuras…, o negro e a mulher surgem como forças correspondentes. E não é à toa que o plano final é a imagem de Rita possuída pela Pomba-Gira. Neste particular, o filme de Onofre tenta uma síntese bastante clara do cinema de Nelson Pereira (em especial O amuleto de Ogum (1975). Não deixa de ser curioso, aliás, o fato de Nelson Pereira dos Santos ser o produtor de As aventuras… Se O amuleto de Ogum é uma espécie de contra-plano de Rio, 40 graus (1955), no que diz respeito à relação do cineasta com a ‘realidade popular’, As aventuras amorosas de um padeiro equivaleria a O grande momento (1958, direção: Roberto Santos) na carreira de Nelson produtor. Afinal, o filme de Onofre integra-se perfeitamente ao ideário de Nelson à época, já que se trata de uma obra de intenção popular que renega a visão sociologizante, do intelectual que vê a realidade ‘de baixo para cima (MELO, s.d.). O português tenta manter a relação com Rita oferecendo o que pensa que pode agradá-la como, por exemplo, “uma grapette", transas na casa de campo, passeios no carrão do ano, frequências a bar na zona sul etc. Numa das idas à casa de campo um dos amigos de Marques fotografa o casal fazendo sexo, o que vai ocasionar um grande imbróglio. Isso porque, logo em seguida, Rita conhece Saul, pintor e artista negro marginal, que passa a ser seu novo amante. Ele vai cantando as mulheres, vendendo seus quadros para gringos e turistas e vale-se da batida fórmula “se colar, colou” para sobreviver. Fisga a jovem com facilidade, o que desperta a ira de Marques, que faz chegar até Mário, o marido de Rita, as "fotos da traição”. A cena da exposição das fotos no bar “...é um exemplo de altar do machismo na sociedade patriarcal” (LIMA JÚNIOR, s.d.) Mário fica arrasado, começa a beber desesperadamente, rejeitando qualquer aproximação com Rita. Quando ela revela que está grávida e que pretende fazer o aborto, ele rejeita essa possibilidade, declarando que quer ficar com a criança, mas sem Rita. Ela se desespera, procura Saul e levanta a possibilidade de ele ser o pai da criança. Ele diz ser isso impossível, pois é estéril, mas ao mesmo tempo, também rejeita que ela faça o aborto. Declara que entende ser essa a razão (a esterilidade) que, para ele, suas obras são incompletas. O filme abre aí dois campos de discussão; a frustração de Saul em relação à sua não-integração na sociedade (pois trata-se de um artista negro à margem da produção cultural estabelecida) e sua posição conservadora em relação ao aborto desejado por Rita (MELO, s.d.). Rita mais uma vez tenta reconciliar-se com Mário, que a rejeita novamente. Mas como ainda estavam casados, e não havia, na época, o divórcio no Brasil, o português Marques e Mário unem-se para que a separação formal ocorra, sendo necessário um flagrante. Daí surgem as expressões e canções que se valem de pesadas populares pejorativas, entre elas “o corno” - que chega até a ser tratado de forma benevolente pelo povo do bairro periférico em que a ação desenvolve-se. A partir dessa aliança entre os traídos é que o filme toma um novo rumo, escancarando ainda mais sua vocação popular, com a confirmação do adultério, com tudo se misturando, o povo correndo pelas ruas ao som de um sambão da pesada, gritando: “Vamos ver o adultério!” O corno caindo de bêbado para afogar as mágoas, a umbanda dando o tom, o suposto crime virando festa, o caos absoluto. Todos rindo da desgraça. O filme, à sua maneira, realiza uma ácida crítica aos costumes moralistas do Brasil, que é um país anárquico na superfície, mas, na realidade, é machista, homofóbico e racista. O machismo coletivo dá-se de maneira bizarra, com vários homens correndo ao redor do advogado, do policial e de uma multidão que deseja ver e celebrar o flagrante de adultério. Um dos homens berra que vai ter “cachaça e comida de graça!”. No meio da balbúrdia, a turba cruza com um enterro, levando mais de um crítico a ponderar que o samba simboliza o adultério, o prazer, a vida, enquanto o enterro representa a morte (LIMA JÚNIOR, s.d; MELO, s.d..). O filme começa na igreja, com o casamento de Mário e Rita, e termina em uma sessão de umbanda à beira da praia, “mostrando que entre negros e portugueses, liberais e conservadores, singularidades e clichês, nada nos escapa, tudo é Brasil” (LOBO, s.d.). Através de Saul, a religião negra surge como recurso final salvador. O santo baixa, os atabaques soam e todos os personagens (figurantes, inclusive) são tomados pelos orixás. Rita incorpora subitamente uma Pomba Gira e gargalha diante do transe geral. Recurso narrativo fantasioso, absurdo, mas carregado de ironia” (MELO, s.d.). A fotografia de Hélio Silva é bem arejada e moderna, a montagem de Raimundo Higino é eficiente e o trio principal do elenco, com Paulo César Pereio, Maria do Rosário e Haroldo de Oliveira, dá plenamente conta do que se espera de profissionais competentes da representação artística. Luís Alberto Rocha Melo conclui seu comentário sobre As aventuras amorosas de um padeiro ressaltando que o filme dialoga com a pornochanchada, discutindo racismo, preconceito e imaginário conservador da classe média e, também, da classe baixa, além das relações de poder e feminismo. Ao mesmo tempo, recusa a sofisticação intelectual e reforça a intenção popular na construção das personagens. Às vezes parece buscar o naturalismo televisivo, mas subitamente algum truque narrativo desmonta tal convicção. Mescla documentário e ficção sem se preocupar em atribuir qualquer ‘verdade’ ou ‘falsidade’ a um ou a outro. Lidando diretamente com clichês e armadilhas de gênero, a obra é um filme em constante fuga, que segue uma das lógicas do sincretismo religioso: misturar para escapulir (MELO, s.d.). Infelizmente, não custa lamentar, Waldir Onofre dirigiu apenas esse longa-metragem. Defensor dos direitos do povo negro e das causas antidiscriminatórias, o cineasta se permitiu, no finalzinho de As aventuras amorosas de um padeiro, quando toda a confusão está armada, com fofoca, macumba, adultério, enterro e bloco de carnaval amalgamando-se, colocar na fala do português colonizador a total incompreensão, de fundo racista ainda por cima, do que está a observar: “Macumba numa hora dessas! Isso é coisa de negrada!”

Considerações finais

Falar de Waldir Onofre é falar de alguém que lutou incessantemente para sobreviver de seu ofício, de sua atividade artística, em um país que possuía - e ainda possui - um mercado praticamente blindado ao ator e ao diretor negro, em que “o visual ariano”, conforme salientou, assegura a quase totalidade das oportunidades. Waldir lutou como pôde com as armas que tinha: porte físico vigoroso, boa impostação de voz, talento e perseverança. Entretanto, foi um eterno coadjuvante em sua longa filmografia e dirigiu um único longa-metragem, As aventuras amorosas de um padeiro (1975), em que o bom humor, a picardia, a vida num subúrbio carioca e as marcas do subdesenvolvimento dão o tom. Nosso propósito no presente trabalho foi procurar recuperar sua trajetória com as relativamente parcas fontes de informações disponíveis. Em vários momentos, talvez carregando um pouco nas tintas, sentimo-nos como o personagem ficcional do professor Hermógenes Goldstein, no romance Evaluador, de autoria do crítico literário argentino Noé Jitrik, que dizia: “a investigação é assim, a realidade escapa por todas as partes: três partes de conjeturas e uma quarta de desencanto” (JITRIK, 2002, p. 79).

Referências

AUTRAN, Arthur. Onofre, Waldyr. In: CASARES RODICIO, Emilio (Coord.). Diccionario del Cine Iberoamericano: España, Portugal y América. Madrid: SGAE y Editorial Fundación Autor, 2011, t. 6, p. 425.

BERLIET JÚNIOR. Site Elenco brasileiro. Disponível:www.elencobrasileiro.com/2017/01/berliet-junior.html. Acessado em: 04.12.2023.

CATANI, Afrânio. Capa preta e lurdinha - Tenório Cavalcanti e o povo da baixada, no site A Terra É Redonda. Disponível: https://aterraeredonda.com.br/capa-preta-e-lurdinha-tenorio-cavalcanti-e-o-povo-da-baixada, em 25.08.2022. Acessado em: 08.06.2023.

CULTNE CINEMA - Tributo a Waldir Onofre (1934/2015). YouTube. Disponível: youtube.com/watch?v=2cexfsjy708 (19:58 min.). Acessado em: 05. 06. 2023.

HEFFNER, Hernani. Onofre, Waldyr. In: RAMOS, Fernão Pessoa; MIRANDA, Luiz Felipe (Orgs.). Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: Editora Senac São Paulo/Edições SESC São Paulo, 3a. ed. [ampl. e atualiz.], 2012, p. 524-525.

JITRIK, Noé. Evaluador. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 2002.

LAPERA, Pedro Vinicius Asterito. Etnicidade e campo cinematográfico: Waldir Onofre e o cinema brasilero dos anos 70. In: 13o. Encontro SOCINE: Programação Completa. São Paulo: ECA/USP, outubro de 2009, p. 35.

MIRANDA, Luiz Felipe Alves. Dicionário de Cineastas Brasileiros. São Paulo: Art Editora, 1990.

RAMOS, Fernão Pessoa; SCHVARZMAN, Sheila (Org.). Nova História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Editora SESC/SP, 2018.

STAM, Roberto. Multiculturalismo tropical - uma comparativa da raça na cultura história e no cinema brasileiros. São Paulo: Edusp, 2008.



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