Dossiê
Recepção: 15 Junho 2023
Aprovação: 22 Setembro 2023
Resumo: Esta pesquisa investiga o potencial pedagógico do Cinema Negro (Prudente, 2014, 2016, 2018a, 2018b, 2019a, 2019b, 2019c, 2019d, 2019e, 2019f, 2020, 2021) para o enriquecimento do debate sobre História da África e culturas africanas e afro-brasileiras. Buscamos analisar como a elaboração de um Catálogo Colaborativo do Cinema Negro, a implantação do Laboratório de Estudos do Cinema Negro e Práticas Antirracistas e sua inclusão no Projeto Político-Pedagógico de uma escola de Referência em Ensino Fundamental no estado de Pernambuco podem contribuir na implementação da Lei 10.639/2003, para uma educação das relações étnico-raciais. Realizamos uma pesquisa-ação (Thiollent, 2018), pela qual foi possível sensibilizar e mobilizar a comunidade escolar para a promoção do Cinema Negro na escola. Desse modo, os resultados desta pesquisa podem ser relevantes para instituições escolares que tenham interesse em transformar suas práticas através do Cinema Negro na promoção de uma escola antirracista e na efetivação da Lei 10.639/2003.
Palavras-chave: Lei 10, 639/2003, Educação, Projeto Político-Pedagógico, Antirracismo.
Abstract: This research investigates the pedagogical potential of Black Cinema (Prudente, 2014, 2016, 2018a, 2018b, 2019a, 2019b, 2019c, 2019d, 2019e, 2019f, 2020, 2021) for the enrichment of the debate on African History and African and Afro-Brazilian cultures. We seek to analyze how the elaboration of a Collaborative Catalogue of Black Cinema, the implementation of the Laboratory of Black Cinema Studies and Antiracist Practices and its inclusion in the Political-Pedagogical Project of a Reference Elementary School in the state of Pernambuco can contribute to the implementation of Law 10.639/2003, for an education of ethnic-racial relations. We conducted a research-action (Thiollent, 2018), through which it was possible to raise awareness and mobilize the school community for the promotion of Black Cinema at school. Thus, the results of this research may be relevant for school institutions that are interested in transforming their practices through Black Cinema, in the promotion of an antiracist school and in the effectiveness of Law 10.639/2003.
Keywords: Law 10, 639/2003, Education, Pedagogical Political Project, Antirracism.
1. Introdução
No cinema, pensar processos contracoloniais é, de fato, um ato revolucionário, considerando que o cinema sempre esteve ligado a uma hegemonia eurocêntrica burguesa. Aquilombar pensamentos e enfrentar preconceitos normatizados na sociedade não é tarefa fácil, mas é desafio agregador e social de todos os brasileiros.
Essa resistência cultural perpassa a representatividade, oferecendo-nos diversas possibilidades de enfrentar o racismo existente no audiovisual, através da apropriação do próprio audiovisual que conquista seu espaço pedagógico de memória, quando conta e reconta a história, a ação e a existência dos corpos negros brasileiros.
O Cinema Negro vem desvelar um país racista, que por muito tempo acreditou /acredita no “mito da democracia racial”, de Gilberto Freyre, segundo o qual as relações entre negros e brancos são harmônicas e o racismo é algo inexistente. Assim, “a população brasileira vive uma crise de identidade racial, sugerindo uma frágil consciência racial, mesmo sendo inegavelmente miscigenada, (que) se viu pelo ideal branco europeu.” (PRUDENTE, 2020, p.158).
O Cinema Negro, em sua dimensão pedagógica (PRUDENTE, 2014, 2016, 2018a, 2018b, 2019a, 2019b, 2019c, 2019d, 2019e, 2019f, 2020, 2021; PRUDENTE; OLIVEIRA, 2018), tem o objetivo de incluir, numa sociedade excludente, o respeito às minorias e a luta contínua por direitos e igualdades historicamente negados e/ou negligenciados. A imagem de afirmação positiva do negro vai sendo construída a partir do momento em que se denuncia o racismo estrutural e quando se anuncia a identidade positiva do negro. Nesse sentido, concordamos com Prudente (2020):
O cinema negro se tornou com isto cinema das minorias, tais como: negro, mulher, homossexual, deficiente e outros, que são objetos do tentame de fragmentação dos traços epistemológicos, feito pelos estereótipos impostos pelos meios de comunicação de massas, que foram dados pelo poder autoritário da imagem do homem branco europeu e sua euroheteronormatividade, que foi a razão da eurocolonização. Foi na dimensão pedagógica do cinema negro, que a minoria vulnerável ensinou na luta ontológica, como sociedade monocultural branca impregnada do processo anacrônico excludente, como ela é, e como deve ser tratada. Isto como elemento imperativo para sociedade excludente superar seu anacronismo, entrando no trilho da contemporaneidade inclusiva (Prudente, 2020, p.168).
Considerando o racismo existente na sociedade brasileira, o Cinema Negro oferece possibilidades para reconhecer e refletir sobre a multiculturalidade, a historicidade e a diversidade do povo brasileiro, rompendo antigos padrões e colocando o cinema como caminho de desenvolvimento social e econômico.
Assim, é necessário que o cinema seja vivenciado na escola, em sua integralidade e potencialidade, e não como um meio engessado e imposto para aprender conteúdos disciplinares. E, embora o cinema não tenha disciplina específica na escola, a Lei 13.006/2014 determina que “a exibição de filmes de produção nacional constituirá componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória por, no mínimo, 2 (duas) horas mensais” (Brasil, 2014), mas que ainda carece de um olhar mais amplo e sensível voltado para o cinema, superando a lógica perversa comercial que o domina.
Nesse contexto, a criação do Laboratório de Cinema Negro e Práticas Antirracistas (LECINE) pode contribuir para o desenvolvimento de ações voltadas para práticas inclusivas e antirracistas na escola, tais como: oficinas, cineclubes, seminários, encontros e rodas de conversa para a promoção da igualdade racial e valorização da cultura africana e afro-brasileira na Educação Básica. A partir da criação do LECINE, buscamos identificar as produções do Cinema Negro com potencial para enriquecer o debate sobre História da África e culturas africanas e afro-brasileiras em uma escola pública de Ensino Fundamental.
Nesta pesquisa, desenvolvemos o Catálogo Colaborativo do Cinema Negro, um material impresso e digital, que tem como objetivo oferecer ao professor, bem como ao estudante possibilidades de abordar a africanidade em sala de aula, garantindo a implementação da Lei 10.639/2003 para a construção de uma escola antirracista e anticolonialista, que supere os limites monoculturais.
Para fortalecer o compromisso político-pedagógico da escola com a equidade racial e práticas antirracistas, propomos a institucionalização do LECINE no Projeto Político-Pedagógico da instituição escolar.
2 Metodologia
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, de natureza aplicada. Quanto aos seus procedimentos metodológicos, é caracterizada como pesquisa-ação, considerando, neste estudo, as características sociais, políticas, históricas e culturais como elementos essenciais na formulação dos cenários que serão analisados.
Escolhemos a abordagem da pesquisa-ação, pela mobilização que ela pode provocar na comunidade escolar e, mais especialmente, no grupo focal escolhido, pois na pesquisa-ação, o pesquisador tem um papel ativo, juntamente com os demais participantes da pesquisa na implementação das ações, de modo cooperativo e participativo (THIOLLENT, 2018).
A escolha pela pesquisa qualitativa permite-nos investigar, por meio das normativas legais e dos temas transversais vivenciados no currículo da escola, a garantia da implementação da Lei 10.639/2003, o enfrentamento do preconceito racial e a promoção de uma escola antirracista, a partir do Cinema Negro.
Quanto ao desenho metodológico desta pesquisa, adotamos as seguintes etapas: exploratória, descritiva e propositiva. Na etapa exploratória, de abordagem documental, analisamos os documentos que orientam a Educação Básica brasileira no tocante à implementação da Lei 10.639/2003 na escola e sua relação com o Cinema Negro. Na etapa descritiva, apontamos a categoria conceitual de dimensão pedagógica do Cinema Negro, no contexto da educação para as relações étnico-raciais. A partir desses elementos, de abordagem aplicada, com fins propositivos, buscamos sensibilizar e mobilizar a comunidade escolar para a criação do Laboratório de Estudos do Cinema Negro e Práticas Antirracistas (LECINE), a partir da elaboração de um catálogo de filmes do Cinema Negro como recurso pedagógico no debate sobre História da África e culturas africanas, das relações étnico-raciais e para fomentar reflexões sobre o compromisso com práticas antirracistas no PPP da escola.
A pesquisa foi realizada em uma escola pública de Referência em Ensino Fundamental do estado de Pernambuco (EREF). Essa instituição é composta por 14 (quatorze) turmas do 6º ao 9° ano do Ensino Fundamental.
A pesquisa foi desenvolvida com 30 (trinta) participantes, entre estudantes, professores e equipe gestora. Em relação aos aspectos éticos da pesquisa, salientamos que ela conta com a aprovação do Comitê de Ética - Sistema CEP-CONEP, sob número do Parecer: 5.181.897.
3 Resultados e Discussão
3.1 Um Catálogo Colaborativo do Cinema Negro – recortes criativos, roteiros de possibilidades
Considerando as experiências subjetivas do cinema, a dimensão pedagógica do Cinema Negro (PRUDENTE, 2014, 2016, 2018a, 2018b, 2019a, 2019b, 2019c, 2019d, 2019e, 2019f, 2020, 2021; PRUDENTE; OLIVEIRA, 2018), as legislações vigentes sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e a exibição de filmes nacionais nas escolas, propomos e construímos um catálogo colaborativo de Cinema Negro.
Convidamos para a construção do catálogo diversas pessoas, dentre elas professores, estudantes, cineastas e pesquisadores do cinema que indicaram um filme de curta-metragem, com sugestão de atividade pedagógica e texto reflexivo dissertativo sobre o tema escolhido, de modo a contribuir, por meio do Cinema Negro, para a construção de uma sociedade antirracista.
Pensado e criado por muitas mãos, o objetivo do catálogo colaborativo de Cinema Negro é oferecer a estudantes, professores e demais atores que compõem a educação brasileira possibilidades fílmicas para trabalhar o Cinema Negro na escola, com indicação de filmes, textos reflexivos e atividades voltadas para a Educação Básica.
O catálogo colaborativo do Cinema Negro é composto por uma diversidade de obras do Cinema Negro, acessíveis de forma gratuita pela internet, realizadas por cineastas negros, ou que tratem da cultura africana e afro-brasileira de forma positiva, de modo que contribua significativamente para a efetivação de uma educação que enfrente o racismo e todas as suas formas de existência. Assim, buscamos trazer o Cinema Negro através da construção afirmativa, da imagem positiva do negro (PRUDENTE et al., 2011, 2014, 2019, 2020, 2021) na sociedade brasileira.
O catálogo possui a seguinte estrutura: título completo do filme, link para acesso ao filme, duração do filme indicado; classificação indicativa para o filme (faixa etária); sinopse; atividade proposta voltada para o Ensino Fundamental, podendo enviar a mesma atividade adaptada também para outras etapas da Educação Básica (opcional); texto reflexivo sobre o filme (impressões do colaborador); biografia do colaborador; foto e e-mail do colaborador, além de uma das sete exigências do Manifesto Dogma Feijoada, em que o filme tivesse sido dirigido por realizador negro brasileiro; tivesse um protagonista negro, uma temática relacionada com a cultura negra brasileira ou o roteiro privilegiasse o negro comum brasileiro (CARVALHO; DOMINGUES, 2018, p. 4).
O catálogo foi disponibilizado nos formatos físico e virtual, para facilitar seu acesso através dos dispositivos móveis, como computador e smartphones. Os filmes indicados para o Catálogo foram: As gerações de côco de roda (BRASIL, 2018, 16’46’’, classificação livre), Desyrrê (BRASIL, 2018, 13’06’’, classificação livre), Cores & Botas (BRASIL, 2010, 13’00’’, classificação livre), Amor pelo cabelo (Estados Unidos, 2019, 5’55’’, classificação livre); Ana (BRASIL, 2017, 16’38’’, classificação livre); Quilombo da Caçandoca (BRASIL, 2016, 10’45’’, classificação livre); Dúdú e o lápis cor de pele (BRASIL, 2018, 19’03’’, classificação livre); Xadrez das Cores (BRASIL, 2004, 21’07’’, classificação livre); Noir blue (BRASIL, 2019, 27’00’’, classificação livre); Transições (BRASIL, 2021, 05’48’’, classificação livre).
O catálogo é um material para vivenciar o Cinema Negro em toda a sua dimensão pedagógica (PRUDENTE, 2014, 2016, 2018a, 2018b, 2019a, 2019b, 2019c, 2019d, 2019e, 2019f, 2020, 2021; PRUDENTE; OLIVEIRA, 2018) na escola e para além dela. Dessa forma, conta com as sugestões pedagógicas produzidas pelos colaboradores.
Com a criação do catálogo, podemos oferecer às escolas públicas brasileiras possibilidades para trabalhar o Cinema Negro, como Arte e memória, de forma que os envolvidos estejam esteticamente comprometidos com as questões do mundo que lhes afetam, ampliando seus conhecimentos e suas capacidades críticas. Nesse sentido, concordamos com Napolitano (2009):
O trabalho com o filme, visto como documento cultural em si, é mais adequado para projetos especiais com cinema, visando à ampliação da experiência cultural e estética dos alunos e de desenvolvimento de linguagem. Este é um dos importantes papéis que a escola pública pode ter, pois, muitas vezes, será a única chance de o aluno tomar contato com uma obra cinematográfica acompanhada de reflexão sistemática e de comentários, visando à ampliação do seu repertório cultural (Napolitano, 2020, p. 20).
Desse modo, o cinema tem que atravessar a escola, tocando e modificando os envolvidos, possibilitando questionamentos, problematizando a realidade, motivando a produção e a mudança. Em outros termos, “O cinema provoca o devir da escola, prevê uma ‘outra escola’, renovando-se pelo exercício que só a alteridade permite” (FRESQUET, 2020, p. 62).
Consideramos, pois, por meio da implementação da Lei 10.639/2003, a urgência na criação de estratégias e possibilidades que estejam diretamente alinhadas ao Projeto Político-Pedagógico da escola, e que possam contribuir nas instituições públicas educacionais, enquanto políticas curriculares, como um passo necessário para a promoção de uma educação mais ampla, diversa e igualitária, bem como para a construção de um país mais digno e justo para todos.
3.2 Projeto Político-Pedagógico, currículo escolar e LECINE: por uma escola antirracista
O Projeto Político-Pedagógico (PPP) é um importante instrumento que orienta o desenvolvimento do trabalho pedagógico escolar, promovendo autonomia e condições de apontar um caminho pedagógico coerente com as expectativas da comunidade em que a escola está inserida. Por isso, nenhuma escola é igual a outra. É pela maneira de enxergar e de se preparar para o mundo que as instituições reconhecem-se e refletem sobre suas possibilidades e desafios.
A Lei nº 9.394/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, trata da organização do projeto político-pedagógico da escola, salientando sua importância e seus impactos na formação dos alunos e nos processos democráticos na escola. Assim, a elaboração e a atualização do PPP têm que ser algo feito coletivamente, atendendo às demandas e anseios daqueles que compõem a escola e de toda a comunidade nela inserida. Para isso, é preciso romper com a hierarquização das decisões, para pensar as soluções viáveis como peças que podem e devem ser construídas no campo da coletividade, de forma horizontal e sistêmica.
O PPP e a gestão democrática estão ligados na construção de uma educação de qualidade, quando, na construção do documento, a escola é capaz de refletir sobre seus objetivos educativos, elencar tarefas e assumir responsabilidades. Segundo Veiga (2004, p. 22), “ao construir um projeto político-pedagógico próprio e providenciar meios e condições operacionais para efetivá-lo, a instituição educativa legitima-se, tornando válida uma prática social coletiva, fruto de reflexões, debates e consistências de propósitos”.
Para ampliar esse debate em torno do PPP e sua relação com a Lei 10.639/2003, destacamos o estudo realizado por Santos et al. (2023), que buscou identificar e mensurar, a partir de diversos projetos político-pedagógicos, as evidências da implementação de práticas educativas antirracistas em escolas públicas de Ensino Fundamental na cidade de São Paulo. A referida pesquisa foi instrumentalizada por uma “Matriz de Avaliação de PPP”, observando "declaração de princípios e valores", "compromisso com a equidade racial", “corresponsabilização”, "ambiente escolar", “gestão democrática" (SANTOS et al., 2023).
Ensino Fundamental na cidade de São Paulo. A referida pesquisa foi instrumentalizada por uma “Matriz de Avaliação de PPP”, observando "declaração de princípios e valores", "compromisso com a equidade racial", “corresponsabilização”, "ambiente escolar", “gestão democrática" (SANTOS et al., 2023).
Diante do percentual alto de escolas (60%) nas quais o PPP apresentava-se inadequado aos parâmetros aplicados na análise, eles apontaram:
Parece-nos plausível, (…) a hipótese de que a declaração de princípios e valores gerais, de forma a explicitar uma ideia mais abstrata de compromisso com a igualdade de oportunidades ou com a valorização da diversidade é uma tarefa de complexidade menor quando comparada à enunciação e explicito de práticas, comportamentos ou procedimentos de rotina da escola responsivos a esses princípios e valores. Inclusive porque, muitas vezes, a enunciação desses princípios e valores mais abstratos está relacionada ao conhecimento e apropriação, por parte da escola, de discursos presentes em documentos institucionais/normativos (SANTOS et al. 2023, p.708).
E concluem que as evidências do trabalho de combate ao racismo na escola, disponíveis nos Projetos Político-Pedagógicos, são frágeis e insuficientes, pois demonstram pouco compromisso com metas objetivas voltadas para a equidade racial (SANTOS et al. 2023)
a etapa exploratória, ao analisarmos o PPP da escola lócus desta pesquisa, constatamos que a sua atual versão é de 2019 e, além de traçar como marco operacional a missão de "colaborar para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, na qual todos os sujeitos sejam respeitados em seus direitos e conscientes de seus deveres” (PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO, 2019, p. 7), apresenta, no capítulo que trata do atendimento aos direitos, história e cultura afro-brasileira e indígena, a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena, estabelecida pela Lei n° 11.645/2008 como parte integrante do sistema de ensino. E complementa:
Os conteúdos relativos à História e Cultura Afro-brasileira e Indígena são objetos de estudo e reflexão no âmbito educacional da EREF, proporcionando uma formação do homem cidadão, discutindo assuntos atuais que dizem respeito à formação de valores como o reconhecimento e acolhimento das diferenças étnico-culturais, evitando todas e quaisquer atitudes discriminatórias e preconceituosas. A temática História e Cultura Afro-brasileira e Indígena é vivenciada nas disciplinas curriculares, tais como Português, História, Geografia, Literatura, Artes, Música, Filosofia, Sociologia, Ensino Religioso e, também, através da interdisciplinaridade com vivência de projetos nas outras disciplinas que compõem a grade curricular da escola (PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO, 2019, p. 26).
Isso representa um avanço importante, considerando que o Projeto Político-Pedagógico deve ser fruto de uma construção coletiva, para orientar a gestão e as práticas pedagógicas da escola no exercício da gestão democrática, pautada na autonomia, na transparência, na pluralidade e na participação da comunidade escolar.
O PPP da escola sinaliza que a história afro-brasileira e indígena são vivenciadas nas diversas disciplinas curriculares, cumprindo a legislação vigente e cumprindo os objetivos do Plano Nacional de Implementação da Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, que orientam que todos os sistemas de ensino busquem “enfrentar as diferentes formas de preconceito racial, racismo e discriminação racial para garantir o direito de aprender a equidade educacional, a fim de promover uma sociedade justa e solidária” (Brasil, 2009, p. 19).
Constatamos que, em termos de implementação e consolidação da Lei 10.639/2003, o PPP em análise, explicita o seu compromisso ético-político. No entanto, não traz, de maneira específica, quais ações serão sistematizadas ao longo do processo formativo, para que não se resumam às comemorações do mês da consciência negra.
Sendo o currículo o resultado de uma seleção embasada por diversas teorias, que recorrem e diferem-se “nas discussões sobre a natureza humana, sobre a natureza da aprendizagem ou sobre a natureza do conhecimento, da cultura e da sociedade”, quando “selecionar é uma operação de poder” (SILVA, 2014, p. 16), sua função no PPP caracteriza-se em escolhas políticas que justificam os motivos de estudar “isso” ao invés de “aquilo”, ou mesmo refletir, por que algumas pautas são mais priorizadas que outras, dentro do exercício contínuo do ensino.
Portanto, devemos pensar o currículo a partir daquilo que somos, considerando que o conhecimento ultrapassa nossos caminhos e nossas subjetividades, transformando-nos. Os currículos são instrumentos de transformação, de conservação e de renovação dos conhecimentos escolhidos historicamente para formar uma sociedade através da educação. Portanto, através de suas teorias pós-críticas sobre identidade, alteridade, diferença e subjetividade, entre outros, também convidam essa mesma escola a re-pensar antigas atitudes e romper práticas que, de alguma forma, dividem, excluem ou segregam diferentes grupos, abrindo espaço para discussões urgentes a respeito de igualdade racial, da sexualidade, da desigualdade social e da consciência ambiental.
Com a criação da Lei nº 10.639/2003 e da Lei nº 11.645/2008, a LDB foi alterada e o estudo da História e cultura afro-brasileira e indígena tornaram-se obrigatórios na Educação Básica brasileira, um marco importante, haja vista que os conteúdos referentes às leis devem ser ministrados em todo o currículo escolar e, de forma especial, em educação artística, literatura e história (BRASIL, 2008). A implementação da Lei nº 10.639/2003 e da Lei nº 11.645/2008 é muito importante para a construção de uma escola antirracista. Em outros termos,
A inserção de elementos referentes às culturas indígenas e afrodescendentes, por exemplo, nos currículos escolares brasileiros tem um sentido político relevante, já que oferece aos docentes e discentes a oportunidade de, por um lado, de pensar a realidade social brasileira e partir de sua diversidade cultural, e por outro, de realizar uma revisão crítica dos conteúdos até então considerados oficiais (Pereira, 2007, p. 51).
Assim, defendemos a inserção do LECINE no PPP da escola, caracterizado como espaço democrático e autônomo de enfrentamento contínuo ao racismo na escola; acolhimento; escuta qualificada e reflexão sobre a trajetória positiva do negro na sociedade, através do cinema.
Logo, é possível observar a relevância do LECINE como ação colaborativa no que tange ao atendimento dos direitos dos estudantes e professores, bem como o compromisso assumido pela instituição no tocante à formação multicultural e integral dos cidadãos.
Ter a possibilidade de vivenciar o Cinema Negro na escola é uma oportunidade de produzir coletivamente, de inventar democraticamente, de sonhar sem ser sozinho, experimentando de forma lúdica as diversas formas de narrar histórias, estabelecendo pontes pedagógicas e unindo-as interdisciplinarmente. Nessa direção, essa experiência revela-nos que:
A potência da zona de fronteira entre o cinema e a educação é pedagógica, estética e politicamente fértil para aprofundar o conhecimento de si e do mundo. Quando isto acontece no espaço escolar, a possibilidade de desestabilizar certezas e questionar valores se torna uma experiência de ver e rever o mundo e o que temos aprendido nele (FRESQUET, 2020, p. 123).
Dentro dessa relação pedagógica entre cinema e educação, vivenciamos ações com os estudantes, professores e a comunidade escolar, tendo como eixo o Cinema Negro para a construção de uma escola antirracista e em promoção da paz.
4 Considerações finais
Dentre as principais conquistas na Educação, destacamos a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da História da África e culturas africanas e afro-brasileiras na Educação Básica, em instituições públicas e privadas brasileiras, em todo o currículo escolar, especialmente nas áreas de Educação artística, Literatura e História brasileira.
Todavia, pudemos constatar que, mesmo após vinte anos da Lei 10.639/2003 e sua implementação nas escolas, ainda carecemos de ações para consolidar uma educação das relações étnico-raciais, assim como práticas efetivas para a construção de uma escola antirracista.
Nesse sentido, o objetivo desta pesquisa foi investigar a contribuição do Cinema Negro para a construção de uma escola antirracista em uma escola da rede estadual de Pernambuco, considerando o Cinema Negro como uma poderosa estratégia para resgatar a imagem positiva do povo negro (PRUDENTE et al, 2011, 2014, 2019, 2020, 2021).
Por isso, defendemos a relação escola e Cinema Negro, como possibilidade para decolonização da educação brasileira.
Acreditamos no Cinema como Arte, memória, conhecimento e criação, instrumento formativo, subjetivo e estético, que, por seu potencial fluído, consegue-se conectar com diferentes linguagens. Nessa perspectiva, o catálogo colaborativo do Cinema Negro e a inclusão do LECINE no PPP da escola foram dois passos importantes para a consolidação do ensino de História e cultura afro-brasileira e africana, atendendo às leis 10.639/2003 e 11.645/2008.
O Cinema Negro na escola não deve ser minimizado, como forma a atender ilustrativamente às exigências de alguma disciplina curricular, mas deve ser promovido a partir do seu potencial estético e a sua dimensão pedagógica, na construção da imagem positiva do negro (PRUDENTE, 2014, 2016, 2018a, 2018b, 2019a, 2019b, 2019c, 2019d, 2019e, 2019f, 2020, 2021; PRUDENTE; OLIVEIRA, 2018).
O LECINE nasceu como uma alternativa pedagógica e um caminho democrático que institucionaliza, no PPP da escola, o compromisso da comunidade escolar para com uma educação das relações étnico-raciais, o enfrentamento ao racismo e a construção da paz; que a escola possa construir a sua identidade social no exercício político de suas práticas, vencendo o modelo burocrático nas relações e tornando-se mais plural e inclusiva, orientada pelos valores humanos. Por isso, com a criação do LECINE, esperamos ter contribuído para um espaço político, ético e estético de construção, reflexão e escurecimento do conhecimento, de forma que a cultura e a história do povo negro possa ser pauta garantida dentro da escola, e que se torne, cada vez mais, “coisa de cinema”.
Por fim, desejamos que essa investigação possa contribuir para o desenvolvimento de outros caminhos para a efetiva implementação da Lei 10.639/2003 no sistema educacional brasileiro, de forma colaborativa e democrática.
Devemos pensar que um Cinema Negro tem muito a contribuir para as mudanças das estruturas sociais hegemônicas que alicerçam esse país, presente no seio da escola e por meio das vozes que ecoam na sala de aula, buscando, a partir dessa união indissociável entre arte, cinema e educação, a plena implementação da Lei 10.639/2003 na construção de uma escola antirracista.
Portanto, que possamos pensar e construir outras narrativas, outros enquadramentos e outras possibilidades de efetivar a escola das relações étnico-raciais para a construção da paz, por meio do Cinema Negro.
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