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Um estudo sobre a curricularização da Educação Matemática na UFRN (1978-2003)
Práticas Educativas, Memórias e Oralidades, vol. 4, núm. 1, pp. 1-18, 2022
Universidade Estadual do Ceará

Artigo

Práticas Educativas, Memórias e Oralidades
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
ISSN-e: 2675-519X
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 4, núm. 1, 2022

Resumo: Este trabalho tem como objetivo discutir o processo de consolidação do componente Ensino, do campo da Educação Matemática, na UFRN, por meio do estudo do processo de curricularização do referido campo, no curso de Licenciatura em Matemática dessa instituição, considerando o recorte temporal de 1978 a 2003. Quanto ao desenvolvimento das investigações, assumimos como aporte teórico os pressupostos da História Cultural, em particular, Burke (2005) e Le Goff (1990). Para tanto, o movimento analítico ocorreu mediante a articulação entre os documentos escritos (projetos de cursos, anais de eventos) e documentos orais (entrevistas). Após triangulação dos dados obtidos, entendemos que as discussões sobre o ensino de Matemática no âmbito dessa universidade, associadas a ocorrência de eventos acadêmicos de Educação Matemática no estado do RN, entre outros fatores, culminaram para a consolidação do Ensino na UFRN.

Palavras-chave: Educação Matemática, Currículo, Formação de Professores, História da Educação.

Abstract: This paper has the purpose to talk through the consolidation process of the Teaching component, in the field of Mathematics Education, at UFRN, all over the study of the curricularization process off that field, in the curriculum of the Licentiate Degree in Mathematics course at that academy, considering the time frame from 1978 to 2003. As for the development of the research, we took for granted as theoretical support the assumptions of Cultural History, in particular, Burke (2005) and Le Goff (1990). Therefore, the analytical movement took place through the articulation between written documents (course projects, annals of events) and oral documents (interviews). After triangulation of the data obtained, we acknowledge that the discussions on the teaching of Mathematics within this university, related with the occurrence of academic events in Mathematics Education in the state of RN, among other factors, led up to the consolidation of Teaching at UFRN.

Keywords: Mathematics Education, Curriculum, Teacher training, History of Education.

Um estudo sobre a curricularização da Educação Matemática na UFRN (1978 - 2003)

1 Para início de conversa

No Brasil, a Educação Matemática iniciou seu processo de institucionalização a partir dos anos finais da década de 1980 e, desde então, passou a ser vista como elemento estruturante na formação do professor de Matemática. Diante disso, o estudo da incorporação de espaços destinados à Educação Matemática na formação de professores de Matemática vem tomando lugar nas pesquisas em História da Educação Matemática no Brasil, a saber: grupos de pesquisa como o Grupo de História Oral e Educação Matemática (GHOEM), o Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática no Brasil (GHEMAT) e, em particular, o Grupo Potiguar de Estudos e Pesquisas em História da Educação Matemática (GPEP) no estado do Rio Grande do Norte (RN) mobilizam esforços para a construção de um repertório teórico acerca da compreensão dos movimentos de institucionalização da Educação Matemática no Brasil.

No RN, estudos gestados no interior do GPEP como os de Cardoso (2017) e Alves e Gutierre (2014) indicam acontecimentos que podem ser compreendidos como pertencentes a movimentos em prol da consolidação da Educação Matemática no RN, pois apontam indícios de crescimento, reconhecimento e valorização das discussões voltadas à Educação Matemática no estado.

Diante disso, compreendemos que tais estudos apresentam e analisam acontecimentos sobre o processo de institucionalização da Educação Matemática no RN. Entretanto, é importante pontuar que, ao seguirmos Bazi e Silveira (2007) e Alfonso-Goldfarb e Ferraz (2002), assumimos que o processo de institucionalização de um campo científico se dá a partir da consolidação dos quatro componentes fundamentais da ciência, a saber: ensino, pesquisa, divulgação e aplicação do conhecimento. Ainda, à luz desses autores, compreendemos que o processo de consolidação ocorre quando um campo apresenta organização e reconhecimento interno e externo. Portanto, julgamos, diante das discussões promovidas nas referidas pesquisas, que o movimento da incorporação da Educação Matemática nos currículos de formação de professores de Matemática, ou seja, o estudo de como se consolida o ensino, um dos quatro componentes anteriormente citados, pode apresentar contribuições importantes no que tange aos estudos sobre a institucionalização da Educação Matemática no RN.

Vale ressaltar que, como defende Goodson (1997, p. 17), “[...] ao assumirmos o currículo como fonte para o estudo histórico, surge (sic) uma série de novos problemas, pois o currículo é um conceito ilusório e multifacetado”. Esse, portanto, é visto, nessa perspectiva como uma construção social e, por isso, muito mais que um aglomerado neutro de conteúdos. Além disso, ainda entendemos o currículo “[...] como campo de disputa, sob o prisma de Pierre Bourdieu” (LIMA; AZEVEDO, 2019). Assim, quando nos referimos à curricularização desejamos nos remeter aos movimentos políticos e sociais de incorporação da Educação Matemática no currículo escrito, ou seja, aqui, analisaremos a incorporação de componentes curriculares no currículo escrito do curso de Licenciatura em Matemática da UFRN.

Ademais, consideramos pertinente destacar nossa compreensão acerca do que vem a ser a Educação Matemática enquanto campo de pesquisa. Tentaremos, portanto, apontar alguns entendimentos nossos a esse respeito. Concebemos a Educação Matemática como um campo interdisciplinar que, conforme Bicudo (2013) “[...] se apresenta como área complexa de atuação, pois traz, de modo estrutural, em seu núcleo constitutivo, a Matemática e a Educação com suas especificidades”.

No que que se refere ao seu objeto de estudo, Bicudo (2016) nos diz que

o objeto da Educação Matemática é constituído pela junção da Educação com Matemática. Não se trata de uma soma ou de olhá-la de perspectivas da Educação, da Matemática ou de outras Ciências Humanas, mas de entendê-la como sendo já sempre constituída nessa junção interdisciplinar. Portanto, sua interdisciplinaridade não advém da reunião de disciplinas diversas, mas de sua própria constituição (BICUDO, 2016, p. 303).

Em particular, este artigo relata alguns acontecimentos que julgamos como pertencentes à referida curricularização da Educação Matemática nos cursos de formação de professores de Matemática da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), no período compreendido entre os anos de 1978 e 2003. Tal recorte temporal se justifica, por observarmos, no decorrer dessa jornada investigativa, que a professora Marlúcia Oliveira de Santana Varela teve uma participação crucial nos acontecimentos precursores da consolidação da Educação Matemática na UFRN. Desse modo, consideramos o seu ingresso no corpo docente da instituição, em 1978, um marco importante desse processo. Por outro lado, delimitamos 2003 como marco final do nosso recorte, por nesse ano ter entrado em vigor uma estrutura curricular, do curso de Licenciatura em Matemática da universidade, com forte presença da Educação Matemática, constatada por meio de diversas disciplinas obrigatórias da área contidas nessa estrutura.

Diante disso, este trabalho tem como objetivo apresentar uma narrativa a partir de indícios da curricularização da Educação Matemática na UFRN, por meio da triangulação de informações obtidas em análises das estruturas curriculares elaboradas e vigoradas nesse período e das entrevistas realizadas com professores que participaram ativamente desse processo de consolidação da Educação Matemática no âmbito da UFRN.

Ressaltamos que nosso olhar diante dos acontecimentos apresentados nesse estudo considerou que o movimento estabelecido em prol da mencionada curricularização não é pacífico, uma vez que envolve disputas internas e externas por poder e legitimidade.

Assim, considerando esses apontamentos, concordamos com Bourdieu (1983) que defende que os campos científicos são constituídos em meio a relações de poder. Nesse sentido, o autor afirma que o:

Universo da mais pura ciência é um campo como qualquer outro, com suas relações de força e monopólios, suas lutas, estratégias, interesses e lucros [...] descaracterizando a possibilidade de uma ciência neutra, interessada apenas no seu progresso (BOURDIEU, 1983, p. 123).

De fato, alguns estudos expõem as relações de força que compõem esses movimentos de legitimidade epistemológica e política nas áreas científicas, em particular, na Educação Matemática.

É pertinente destacarmos, ainda, que consideramos os pressupostos da História Cultural em nossas análises, em particular, Burke (2005) e Le Goff (1990). Assim, entendemos que as relações contextuais, políticas e sociais são indissociáveis no processo de investigação historiográfica. Desse modo, apresentaremos a seguir uma breve contextualização sociopolítica da época, bem como, relembraremos algumas concepções sobre o ensino de Matemática que estiveram em vigor naquele contexto.

No Brasil, sabemos que os anos que sucederam o famigerado golpe de abril de 1964 foram, sem dúvidas, difíceis e conturbados. Nesse ano, tivemos o início de um regime ditatorial em nosso país, o qual perdurou até o ano de 1985 e que refletiu nas mais diversas esferas sociais, incluindo a Educação.

Características como censura, controle e repressão são marcas de regimes ditatoriais e, portanto, estavam presentes na Educação da época. A esse respeito, Azevedo et al. (2012) e Fiorentini (1995) nos dizem que a década de 1970 foi marcada pela forte presença de um ensino tecnicista, caracterizado pela presença de um professor transmissor de conhecimento e de um aluno passivo que apenas ouvia e absorvia o que era ensinado. Nesse contexto, o ensino da Matemática era, de um modo geral, meramente expositivo e marcado pelo Movimento da Matemática Moderna. Portanto, era um ensino com enfoque na memorização de regras e propriedades. Assim, o currículo dos cursos que habilitavam pessoas a lecionarem Matemática na Educação Básica, era escasso de disciplinas que provocavam reflexões acerca do ensino da Matemática.

2 Sobre o caminho metodológico escolhido

Esta pesquisa possui característica bibliográfico-documental e assume os pressupostos metodológicos da pesquisa qualitativa que, conforme acepção de Garnica (2001, p. 42) “[...] é um meio fluido, vibrante, vivo e, portanto, impossível de prender-se por parâmetros fixos, similares à legislação, às normas, às ações formalmente pré-fixadas”. Ademais, em conformidade com Burke (2005), também compreendemos que a atividade historiográfica “carrega intrinsecamente a característica de uma ação interpretativa e que, por isso, está ancorada em ideologias e interesses de diferentes grupos sociais” (ANJOS, 2018, p. 18).

Inspirados nos estudos de Ginzburg (1989), nos esforçamos para analisar os acontecimentos à luz do paradigma indiciário, ou seja, lançamos nosso olhar sobre os detalhes e minúcias envoltas nos episódios relatados e documentos analisados. Assim, quando falamos em indícios, estamos nos referindo a nuances e sutilezas presentes nos eventos históricos narrados.

Evidentemente, diante desse exercício, o movimento analítico ocorreu mediante a articulação entre os documentos escritos (projetos de cursos, anais de eventos) e documentos orais (entrevistas), a qual, por meio de idas e vindas, promoveu um diálogo entre esses documentos. Desse modo, o percurso metodológico foi inspirado no método de Triangulação (BRISOLA; MARCONDES, 2012), ou seja, construído por entrelaçamento de metodologias diversas, o qual possibilitou uma leitura crítica dos eventos que perpassam os acontecimentos históricos que compõem os movimentos de criação e implementação dos componentes curriculares voltados à Educação Matemática nos cursos de formação de professores da referida área.

Nessa perspectiva, ao refletirmos sobre a entrevista da professora Marlúcia, por exemplo, observamos que ela falou sobre os anais do III Encontro Nacional de Educação Matemática, destacando-o como um marco importante na consolidação da Educação Matemática no RN. Partindo desse relato buscamos esses anais e encontramos informações interessantes relacionadas a decisões homologadas sobre o currículo dos cursos de Licenciatura em Matemática. Dessa forma, podemos pôr em diálogo essas informações com a curricularização da Educação Matemática na UFRN. Esse exercício foi realizado também com a entrevista do professor José Querginaldo Bezerra. Discutiremos essas entrevistas e outros acontecimentos na próxima seção.

Gostaríamos de salientar, ainda, que decidimos entrevistar os professores Querginaldo e Marlúcia por estes terem sido mencionados pelo professor John Andrew Fossa, em entrevista cedida a Oliveira e Anjos (2020), como personagens importantes no processo de constituição da Educação Matemática na UFRN

Comecei a me interessar pela Educação Matemática, quando fui convidado a participar de um curso de especialização. O professor Claudemir era o primeiro Coordenador. o Professor Sebastião e o Professor Querginaldo estavam envolvidos, mais algumas pessoas, – não gosto de mencionar pessoas nominalmente, porque sempre esqueço de algumas! (OLIVEIRA; ANJOS, 2020, p. 177).

Mas lembro-me de que há, na vida do Departamento de Matemática, muitas pessoas interessantes que se preocupavam com o ensino da Matemática. Já mencionei o Claudemir e o Sebastião. Outra seria a Marlúcia (OLIVEIRA; ANJOS, 2020, p. 181).

Já sobre as entrevistas, ressaltamos que, em aspectos gerais, seguimos as sugestões de Silva (2006), que apontam para necessidade da produção de roteiro que possibilitem por parte dos entrevistados o relato das suas memórias.

3 Triangulando e discutindo indícios e evidências

Nesta seção exporemos, discutiremos e triangularemos (1) informações dos documentos escritos que tivemos acesso com (2) parte do conteúdo das entrevistas realizadas com os professores que estiveram envolvidos em acontecimentos que entendemos ser fundantes de um movimento de consolidação da Educação Matemática, quanto ao componente Ensino, no âmbito da UFRN.

Um dos personagens que entrevistamos foi o professor José Querginaldo Bezerra, que ingressou na UFRN no ano de 1986 e que atua no Departamento de Matemática (DMAT) dessa instituição e nos cursos de Matemática, em particular, a licenciatura, até os dias atuais. Outra entrevistada foi a professora Marlúcia Oliveira de Santana Varela que atuou no DMAT da UFRN no período de 1978 até início dos anos 2000, bem como, no curso de Licenciatura em Matemática dessa universidade.

A professora Marlúcia cursou Matemática na UFRN nos anos iniciais da década de 1970 e nos contou que nessa época havia uma nítida segregação entre os componentes de Educação e de Matemática, não havia um diálogo ou interseção entre essas áreas.

As disciplinas eram separadas, o departamento de matemática dava as suas disciplinas de matemática e o departamento de educação, quem dava as disciplinas da área de educação. Era uma coisa totalmente estanque (VARELA, entrevista cedida, 27/05/2021).

Portanto, não havia Educação Matemática na perspectiva de Bicudo (2013; 2016), anteriormente apresentada.

Por outro lado, ainda de acordo com a entrevistada, no final dessa década, iniciou-se uma preocupação por parte de alguns docentes dessa instituição quanto à discussão sobre o ensino da Matemática. A própria Marlúcia nos revelou que, ainda nessa época, estava lecionando tanto na Universidade Federal do Rio Grande do Norte quanto na rede pública do RN, portanto, estava vivenciando na prática o ensino de Matemática. Ao longo dessa vivência começou a emergir um sentimento de preocupação com a questão do “como ensinar” e da significação dos conceitos matemáticos. Nesse sentido, ela nos apontou alguns nomes de professores que vieram à sua memória no momento da entrevista e que também estavam imbuídos por esse sentimento, a saber: Antônio Pinheiro de Araújo e João Faustino Ferreira Neto. Ambos os professores eram lotados no Departamento de Educação da UFRN. Esses professores mediaram as discussões sobre o ensino da Matemática com os licenciandos desse curso e perceberam que as dúvidas desses alunos demandavam do professor uma formação mais específica, isto é, na área de Matemática.

Esse cenário fomentou posteriormente, em conjunto com outros acontecimentos, uma mudança de postura diante das disciplinas ofertadas no curso de Licenciatura em Matemática da UFRN, uma vez que professores do DMAT foram cedidos ao Departamento de Educação para lecionar disciplinas nas quais eram discutidas questões referentes ao ensino de Matemática.

Quando eu trabalhei era como que fosse cedido à educação, o código era da educação, certo? Fazia parte do nosso currículo de matemática, não sei como se organizou isso depois, mas fazia parte do nosso currículo pagar aquelas disciplinas lá no departamento de educação (VARELA, entrevista cedida, 27/05/2021).

Diante disso, podemos observar que apesar do currículo do referido curso permanecer o mesmo e essas disciplinas continuarem sendo ofertadas pelo Departamento de Educação, na prática, estava ocorrendo uma mudança significativa, já que passava a ocorrer um diálogo entre Matemática e Educação, bem como, um aprimoramento do entendimento que se tinha sobre essas disciplinas. Podemos dizer ainda, que esse acontecimento revela indícios de uma organização interna em prol da consolidação.

É fundamental pontuarmos que considerando isoladamente as entrevistas realizadas, a cooperação entre docentes da Matemática e da Educação e a cooperação entre professores acadêmicos e da Educação Básica temos uma impressão ingênua de que todos os fatores estavam contribuindo para que houvesse um desenvolvimento da área da Educação Matemática. No entanto, como já colocamos precedentemente os movimentos de mudança nos campos científicos não ocorrem de forma pacífica (BOURDIEU, 1983), ponderando ainda que a visão de ensino durante esse período era tecnicista, presumimos que muitos docentes não consideravam essas discussões sobre o ensino de Matemática relevantes para o aprimoramento do curso de Licenciatura em Matemática.

A mudança de postura de alguns docentes, no entanto, foi impulsionada inicialmente pela ocorrência de eventos acadêmicos que passaram a acontecer naquele momento e que tinham o objetivo de discutir o ensino de Matemática. Nesses eventos, estiveram envolvidos também, alguns docentes do DMAT, tais como, a própria professora Marlúcia, o professor Querginaldo e o professor Manuel Claudemir Silva Caldas, bem como, mais tarde, o professor John Andrew Fossa, conforme dito pela entrevistada

Então, assim, já tinha grupo de professores do estado [interessados nessas discussões sobre o ensino de Matemática], por quê? O que é que fomentava isso? Os eventos que eram promovidos. E a gente ia [para esses eventos]. A gente foi ao sul do Brasil, alguns professores da universidade também... o professor Claudemir, o professor Querginaldo, na época davam atenção a isso também. Depois chegou o professor John Fossa (VARELA, entrevista cedida, 27/05/2021).

Essas pontuações da professora Marlúcia convergem com o que o professor Querginaldo nos disse em entrevista:

Assim que concluí o curso fui contratado pela UFPB, onde trabalhei por 8 anos, retornando para a UFRN em 1986. Concluí o mestrado em matemática na UnB, em 1981, numa área chamada Análise Harmônica, com poucos pesquisadores no Brasil e no mundo. Daí para a frente me dediquei às questões do ensino de matemática, embora não tenha feito doutorado nesta área, apesar de frequentes motivações de colegas do DMAT (BEZERRA, entrevista cedida, 25/05/2021, grifos nossos).

Assim, é possível observar indícios de que essa emergente preocupação com o ensino de Matemática desencadeou a ocorrência de eventos acadêmicos e/ou científicos que contaram com a participação de professores tanto da universidade quanto do estado que estavam interessados no assunto:

É... começaram os Encontros... Encontro de Matemática... Encontro de Ensino de Matemática... Conferência de Educação Matemática... Eu tava até procurando agora rapidamente aqui um livro, que aqui em Natal sediou uma grande Reunião de Educação Matemática, que eu até fui uma das que ajudei bastante (VARELA, entrevista cedida, 27/05/2021).

O livro da reunião a que a professora se referia é os Anais do III Encontro Nacional de Educação Matemática (III ENEM), atualmente o maior evento da área no âmbito brasileiro. A referida edição ocorreu entre os dias 22 e 27 de julho do ano de 1990 na Universidade Federal do Rio Grande Norte e contou, dentre docentes externos e discentes, com o apoio de docentes da instituição na comissão organizadora, atuando nas seguintes subdivisões:


Quadro 01 - Docentes da UFRN que atuaram na comissão organizadora do III ENEM.

Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados dos Anais do III ENEM. É possível notar, portanto, que o evento contou com a participação de um número expressivo de docentes que provavelmente estavam interessados por questões relativas ao ensino de Matemática. Além disso, tal evento foi um marco na Educação Matemática do estado, uma vez que nele houve compartilhamento de informações e experiências sobre o ensino de Matemática, bem como, compartilhamento dos resultados das pesquisas da área que estavam sendo executadas no país naquele momento. Ainda na entrevista, a professora Marlúcia Varela nos relatou que vieram pesquisadores de diversos estados do Brasil “[...] contribuindo, dando palestra, conferências, fazendo reuniões e entrosamentos” (VARELA, entrevista cedida, 27/05/2021). Diante disso, podemos dizer que houve grande contribuição para as discussões que ocorriam em âmbito local e que essas discussões impactaram no currículo escrito, pois conforme consta nos anais deste evento, em seu décimo capítulo intitulado “Deliberações do III ENEM”

A Assembléia Geral da Sociedade Brasileira de Educação Matemática, reunida no dia 27 de julho de 1990 no Auditório da Reitoria da UFRN, em Natal, RN, decide, por unanimidade, homologar as seguintes deliberações dos Grupos de Trabalho reunidos durante o III ENEM (ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 1990, p. 255).

Dentre essas deliberações, numa seção intitulada “Sobre as licenciaturas”, consta o seguinte:

L3 - Que se incorpore aos currículos da Licenciatura em Matemática:

a. conhecimento aprofundado da realidade do ensino atual situando-o no contexto social;

b. disciplinas da área de Educação Matemática, contemplando conhecimento crítico de propostas alternativas e novas metodologias de ensino e dos objetivos do ensino da Matemática; (ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 1990, p. 255, grifos nossos).

Nessa perspectiva, é possível notar que o acontecimento do III Encontro Nacional de Educação Matemática, em solo potiguar, contribuiu para o amadurecimento das discussões acerca do ensino de Matemática, que posteriormente evoluiu para Educação Matemática.

Além dos episódios históricos supracitados, destacamos, ainda, os intercâmbios realizados pelo professor José Querginaldo durante o processo de implantação do Laboratório de Ensino da Matemática (LEM) da UFRN:

Contribuí para a criação da Oficina de Matemática e fui o responsável por sua expansão e instalação na sala que se encontra até hoje. Promovi o intercâmbio com vários laboratórios do país, trazendo especialistas ou visitando outras instituições. Além das visitas que fiz aos laboratórios da UFPB, UFPE e USP, destaco a PUC/RS, onde fiz um treinamento de uma semana (BEZERRA, entrevista cedida, 25/05/2021, grifos nossos).

A esse respeito, é possível observar que atividades de intercâmbio e divulgação de conhecimento em Educação Matemática são realizadas por meio do LEM, pelo menos, desde 1988

Em 1988, o Laboratório de Ensino de Matemática participou, conjuntamente com o laboratório de Ensino e Pesquisa da Aprendizagem Científica (LEPAC) da Universidade Federal da Paraíba, da Reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada em Natal, com uma exposição interativa de grande sucesso. Desde 1997, o Laboratório de Ensino de Matemática participa da Feira de Ciência e Tecnologia (CIENTEC) promovendo a exposição de diversos materiais de uso pedagógico (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE, 2013, p. 8).

Desse modo, podemos dizer que por volta da década de 1990 já havia um movimento incisivo no sentido de uma consolidação da área. O movimento de consolidação do componente Ensino ocorre em paralelo e integrado aos outros componentes, em particular, o desenvolvimento da Pesquisa impacta fortemente os acontecimentos no que tange ao ensino.

Além disso, consideramos relevante ressaltar que dentro do nosso recorte temporal, tivemos acesso a três currículos do curso de Licenciatura em Matemática da UFRN datados dos anos de 1981, 1998 e 2003. Analisando tais estruturas curriculares, quanto às disciplinas referentes à Educação Matemática, é notório que no ano de 1998 houve um aumento no número de componentes curriculares da Educação Matemática em relação à estrutura precedente. A esse fato, podemos estabelecer relação com os acontecimentos retratados anteriormente, bem como, com dois eventos apontados por Cardoso (2017), a saber: o desenvolvimento de estudos relacionados ao ensino da Matemática e a entrada do professor doutor John Andrew Fossa na UFRN.

Ainda considerando as indicações de Cardoso (2017), o professor Fossa obteve o título de doutor em Educação Matemática no ano de 1994. No ano seguinte, 1995, passou a integrar o corpo docente do Programa de Pós-graduação em Educação da UFRN (PPGEd/UFRN) e, portanto, a orientar e desenvolver pesquisas em Educação Matemática. É importante lembrar que ele esteve envolvido no processo de criação da Linha de Pesquisa Educação Matemática no referido Programa, conforme aponta Cardoso (2017). De acordo com a autora, até o ano de 1996 só havia uma vaga (ocupada pelo professor Fossa) para docente com formação em Educação Matemática, no entanto, ele convenceu o DMAT a abrir outra. Assim, entra no ano seguinte, a professora Bernadete Barbosa Morey.

Dessa forma, podemos conjecturar que esse aumento no número de componentes na estrutura curricular vigente a partir do ano de 1998 também está relacionado com a entrada dos professores mencionados e com o aumento das pesquisas em Educação Matemática nesta instituição no período de 1995 a 1998, impulsionadas pela criação da Linha de Pesquisa em Educação Matemática. Posteriormente, pode ser observado o fortalecimento gradativo dessa organização com a entrada da professora Arlete de Jesus Brito no ano de 1999, assim como, com o surgimento de outros grupos de pesquisa em Educação Matemática, criados a partir de 2002, como aponta Cardoso (2017).

Diante do exposto e analisado nessa seção, podemos constatar que a área da Educação Matemática, quanto ao componente Ensino, passou a ter um fortalecimento no âmbito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte na década de 1990 e esse processo se deu, principalmente, por intermédio de acontecimentos como a ocorrência de eventos acadêmicos no estado do RN, destacando aqui o III ENEM, articulada com a mobilização de discussões sobre o ensino de Matemática entre docentes da Matemática e da Educação, dessa instituição, assim como, a criação do LEM da UFRN. Além disso, é notório que esses movimentos ocorreram vinculados ao fortalecimento dos componentes Pesquisa e Divulgação do conhecimento da área de Educação Matemática na universidade, uma vez que o desenvolvimento desses componentes científicos ocorre de forma concomitante e integrada. Assim, entendemos que o conjunto desses acontecimentos históricos provocou mudanças na estrutura curricular do curso de Licenciatura em Matemática dessa instituição, o que pode ser notado a partir de 1998.

4 Considerações finais

Tínhamos o objetivo de investigar como se deu a curricularização da Educação Matemática na UFRN no período compreendido entre os anos de 1978 e 2003. Após triangulação dos dados obtidos em entrevistas com informações presentes em fontes primárias, podemos concluir que o processo de consolidação da Educação Matemática na UFRN se insere em um contexto complexo, uma vez que muitos fatores atuaram nesse movimento de consolidação. Evidentemente, esse trabalho não tem a intenção de tratar de todos eles, por isso, lembramos que em nossas análises nos voltamos aos acontecimentos que envolvem a consolidação do componente Ensino, da Educação Matemática, na UFRN, sob o qual o nosso estudo apontou alguns acontecimentos que indicam a emergência do sentimento de preocupação por parte de professores tanto do Departamento de Educação quanto do DMAT como precursor desse movimento na universidade. Tal sentimento impulsionou algumas discussões sobre o ensino de Matemática no estado e, certamente, não surgiram subitamente e desconexos de um contexto mais amplo. Salientamos, novamente, o contexto tecnicista e a disseminação da Matemática Moderna pelo país na época.

Além disso, a ocorrência de eventos da área, sobretudo, o III ENEM, podem ter ajudado a aprimorar o conhecimento que se tinha na área, à época, uma vez que com a finalização do Encontro, houve uma reunião de formalização da inserção de componentes curriculares voltados à Educação Matemática nos currículos dos cursos de Licenciatura em Matemática.

Portanto, podemos dizer que a consolidação do componente Ensino do campo da Educação Matemática no Rio Grande do Norte foi impulsionada pelo movimento que estava ocorrendo nacionalmente e que sua curricularização na UFRN teve como precursor eventos históricos de naturezas diversas, mas que, em conjunto, culminaram num movimento de consolidação interna. Assim, na UFRN, constatamos que o componente Ensino do campo da Educação Matemática encontra-se consolidado.

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