Recepção: 08 Agosto 2022
Revised: 22 Agosto 2022
Aprovação: 25 Agosto 2022
Resumo: A diferença de partes e terceiros é estudada na Teoria Geral do Direito. A aplicação dessas ideias aos contratos remete à teoria do terceiro cúmplice (no inadimplemento contratual), que atrai a responsabilidade civil de quem abusa de posição jurídica que causa o inadimplemento ou a ruptura contratual.
Palavras-chave: Incolumidade da esfera jurídica, Terceiro cúmplice, Oponibilidade jurídica, Relatividade dos efeitos jurídicos.
Sommario: La differenza tra parti e terzi è studiata dalla Teoria Generale del Diritto. L’applicazione di queste idee ai contratti rimette alla teoria del terzo complice (nell’inadempimento), che attrae la responsabilità civile di chi abusa di posizione giuridica che causa l’inadempimento o la rottura contrattuale.
Parole: Incolumità della sfera giuridica, Terzo complice, Oponibilità giuridica, Relatività degli effetti giuridici.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A tendência gregária humana, natural ou não, reflete o perfil social humano. Apesar do criticável reducionismo, a sociedade é a união de diversos indivíduos, e o estágio atual – com referência na Antiguidade – demonstra que os seres humanos travam relações entre si e, também, com entidades ficcionais, as pessoas jurídicas e as entidades não personificadas. É sob a ótica de que tais relações são sociais por envolverem dois ou mais sujeitos que surge o fenômeno jurídico, a partir do famoso brocardo ubi societas, ibi ius. Se o Direito surge da e com a sociedade, seu específico objeto não é o todo, não se confunde, segundo Niklas Luhmann (2016, p. 11-49), com o ambiente (social), mas sim em disciplinar determinadas relações intersubjetivas.
Atendo-se, agora, ao fenômeno jurídico, importa destacar as visões de F. C. Pontes de Miranda (2012a, p. 19 e p. 59-67) e Giuseppe Lumia (1981, p. 35-38), que dissecam o Direito, mas o compreendem de forma total a partir da ideia de Direito como um ordenado de normas jurídicas voltadas a disciplinar certas relações intersubjetivas.
Sob a ótica da relação social tratada pelo Direito é que surgem três figuras, quais sejam: os figurantes, as partes ou polos da relação e os terceiros. A partir de tais sujeitos é que Vincenzo Roppo (2016, p. 613-614) leciona acerca da responsabilização civil pelo chamado “contato social”, que é o reconhecimento de que até as relações obrigacionais, que irradiam efeitos jurídicos para certos sujeitos (credor e devedor), estão situadas em um contexto mais amplo, em meio ao ambiente social e, consequentemente, podem afetar pessoas alheias às dos figurantes.
Em razão da ambientação das relações jurídicas na sociedade e, portanto, de que seus efeitos jurídicos podem afetar alguns, mas que o reflexo no mundo dos fatos pode afetar estranhos ao liame, é que surgem estudos no Direito sobre a figura do terceiro. Consoante exposição de Luciano de Camargo Penteado (2007) e Antonio Junqueira de Azevedo (in AZEVEDO, 2004, p. 137-147), o âmbito contratual é fértil para os delineamentos do terceiro e para a identificação de regimes jurídicos aplicáveis contra ou a favor deles.
É justamente do Direito Contratual que este artigo extrai a chamada “teoria do terceiro cúmplice”. Não obstante o campo fértil ser o dos contratos, em que vigora a relatividade eficacial, o desenvolvimento será feito em dois graus de abstração. Em maior intensidade, buscar-se-á a definição do terceiro sob a ótica da Teoria Geral do Direito (TGD), eis que não são apenas as relações contratuais que podem tangenciar terceiros, mas toda e qualquer relação jurídica. Ato contínuo, em menor intensidade, os traçados feitos no item inicial serão levados para o campo contratual, com o delineamento da teoria do terceiro cúmplice, que será analisada, em última instância, sob as perspectivas do que é e de qual é o regime jurídico de responsabilização civil aplicável.
2. O TERCEIRO: EM BUSCA DE UMA DEFINIÇÃO
Constatou-se em guisa introdutória que a identificação das figuras subjetivas (partes e terceiros) envolve o conceito de relação jurídica. Aqui irradiam três acepções de relação. Tomado sem acompanhamentos, o vocábulo “relação” deriva do latim relatio . onis, que compreende ação que envolve retorno. Isso serve de ponto de partida para que Marcos Bernardes de Mello (2019, p. 193) e F. C. Pontes de Miranda (2012a, p. 199) definam “relação” como o modo de ser de um objeto em relação a outro.
Em um grau de maior detalhe, mas de abstração alta, existe a relação social, que consiste na forma como um agente social se comporta frente a outro agente social (PONTES DE MIRANDA, 2012a, p. 199).
Como última noção, está a relação jurídica, que não se confunde com seu fato jurídico constitutivo, ou seja, relação jurídica é consequência da incidência normativa sobre certo fato – não necessariamente um fato negocial, mas fato que seja jurídico, que tem como consequência (= plano da eficácia) o surgimento de posições jurídicas subjetivas, status e relações jurídicas (HAICAL, 2020, p. 48-53; PENTEADO, 2007, p. 201-211).
A TGD debruçou-se sobre a figura da relação jurídica e depreendeu alguns elementos1, cabendo destacar um deles: os sujeitos ou, melhor dizendo, os figurantes.
De acordo com Marcel Edvar Simões (2021, p. 17-21) e Manuel A. Domingues de Andrade (1987, p. 29-34), o ordenamento jurídico atribui a certas entidades a aptidão basilar para ostentarem posições jurídicas sub jetivas, definição que se amolda à de sujeito de direitos, cujas espécies são as pessoas, físicas ou jurídicas, que têm personalidade e, consequentemente, maior campo de posições jurídicas, e as entidades não personificadas, que têm uma esfera jurídica menor diante do fato de não terem personalidade. De forma mais precisa, os sujeitos de direito, figurantes ou não de uma relação, são centros de imputação jurídica.
É a partir da ideia de sujeito de direitos que se desenvolvem as ideias de figurantes e terceiros. Os primeiros são as partes, aqueles sujeitos que estão insertos ou no fato jurídico constitutivo (o negócio jurídico, p. ex.) ou em um dos polos da relação jurídica irradiada, enquanto os terceiros (tomados em um sentido amplo) são definidos por exclusão, isto é, são aqueles sujeitos de direitos que não constam nem no fato constitutivo nem em um dos polos da consequente relação (HAICAL, 2020, p. 52; PENTEADO, 2007, p. 43; ROPPO, 2016, p. 58).
A relevância da adoção metodológica entre figurantes e terceiros ganha exemplos. O primeiro envolve o Direito Processual Civil, lendo-se que não apenas a coisa julgada (art. 502 CPC/2015), mas também os efeitos da decisão de mérito afetam as partes, não prejudicando terceiros. E o caso de decisão condenatória que afeta bens sob posse ou domínio de quem não é parte em sentido processual viabiliza o manejo dos embargos de terceiro, com o intuito de proteger o bem efetivado ou potencialmente constrito (arts. 674 a 681 CPC/2015).
Sob a ótica da interação entre o Direito de Família e o Direito Contratual, Gustavo Haical (2020, p. 131) trata da autorização integrativa, citando como exemplo o teor do art. 1.647, I, do CCB/2002, que trata da necessidade do assentimento de um dos cônjuges para que o outro possa alienar ou gravar bens imóveis particulares. Um dos cônjuges é terceiro e tem a autorização integrativa como forma de controle prévio de interesses jurídicos próprios do autorizante (= cônjuge terceiro) ou do autorizado (= cônjuge figurante e titular do direito sobre imóvel a ser alienado ou gravado).
Como último exemplo, este serve de introdução à teoria do terceiro cúmplice. Apesar de não constar expressamente no Código Civil brasileiro de 2002, vigora o princípio da eficácia (específica) relativa dos contratos, ou seja, o contrato é lei tão somente entre as partes contratantes, não afetando terceiros. Apesar dos efeitos jurídicos serem específicos (= relatividade), o contrato é um negócio inserido no ambiente social e, portanto, todas as suas fases ocorrem em meio a muitas outras interações intersubjetivas, as quais podem ser afetadas pelo negócio contratual. É sob essa ótica que, baseado na doutrina francesa, Antonio Junqueira de Azevedo (in AZEVEDO, 2004, p. 142) e Roberta Mauro Medina Maia (2013, p. 160-162) diferenciam a oponibilidade stricto sensu (= eficácia genérica de reconhecimento social) da relatividade (= eficácia específica e visada pelos figurantes). Isso quer dizer que o fato de o contrato ter efeitos específicos entre os contratantes não significa que possa a relação ser sabotada por terceiros.
3. O TERCEIRO CÚMPLICE
A teoria do terceiro cúmplice tem seu desenvolvimento no âmbito contratual e diz respeito a situações nas quais sujeitos alheios aos figurantes, ao próprio negócio e à sua consequente relação exerce atos que, de alguma forma, violam a continuidade contratual. Acerca dessa hipótese, constam dois brocardos romanos que fundaram a ideia de que nenhum contrato pode atingir o patrimônio alheio: res inter alios acta, neque nocet neque prodest (a coisa pactuada entre outros nem aproveita nem beneficia), e nemo alteri stipulare potest (ninguém pode estipular para terceiro).
Apesar das referências acima terem suas fundações no modelo do civil law, a figura do terceiro cúmplice no inadimplemento remete ao sistema do common law, trazendo Deepa Varadarajan (2001, p. 735-760) e Bianca Gardella Tedeschi (2008, p. 10-11), que tratam da tortius interference a partir de caso ocorrido na Inglaterra do século XIX. Trata-se do case Lumney vs. Gye (1853), no qual a cantora Iohanna Wagner foi contratada com cláusula de exclusividade por Benjamin Lumley para se apresentar por três meses no Her Majesty’s 7eatre. No entanto, a cantora foi induzida a romper o contrato por Frederick Gye, do Coventh Garden 7eatre, que prometeu remuneração superior àquela prevista no contrato com Lumley. Mesmo com uma decisão judicial de abstenção, a cantora, mais uma vez, foi induzida a cantar por Gye, o qual foi demandado por Lumley. No voto que capitaneou a decisão da corte – o voto de Lord Campbell –, constou que o caso envolveu delito econômico (economic tort), viabilizando que o lesado busque indenização contra terceiro que tenha interferido na execução contratual com outrem.
Algumas indagações surgem em relação ao terceiro sabotador: pode ele ser responsabilizado? Se sim, qual é o regime aplicável? Antes de ingressar nas respostas a tais perguntas, é necessário um escorço preliminar e mais amplo: o da incolumidade da esfera jurídica.
Marcos Bernardes de Mello (2019, p. 98-99) define a incolumidade da esfera jurídica como a norma-princípio segundo a qual a ninguém é viabilizada a interferência na esfera jurídica de alguém sem que haja permissão por parte de quem a titulariza, ou do ordenamento jurídico. Karl Larenz (1978, p. 46-47) explica que a atribuição da esfera jurídica envolve o reconhecimento de que o titular é um centro de imputação jurídica, o que parte da norma da dignidade humana, eis que as posições jurídicas são ins trumentos para a vida digna de quem as titulariza, e a injusta interferência em tal plêiade consiste, em última escala, na violação da própria dignidade. Conecta-se à norma-princípio da incolumidade da esfera jurídica a já citada distinção entre oponibilidade e relatividade. Novamente remetendo a Antonio Junqueira de Azevedo (in AZEVEDO, 2004, p. 142) e Rober ta Mauro Medina Maia (2013, p. 160-162), a oponibilidade stricto sensu consiste nos efeitos indiretos ou externos do ato, que irradia sua eficácia no sentido de reconhecer sua existência no meio social, enquanto a relatividade dos efeitos diz respeito aos chamados “efeitos diretos ou internos” do ato, que irradia sua eficácia específica e busca pelos envolvidos no ato. Aplicam- se tais premissas aos contratos pelo fato de que os seus efeitos específicos são circunscritos aos figurantes, enquanto os efeitos genéricos de respeito irradiam contra todos que sabem da existência daquela figura jurídica.
Sobre a oponibilidade e relatividade, que ficaram sintetizadas na chamada “tutela externa do crédito”, na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal houve o desenvolvimento do enunciado nº 21, que tratou do art. 421 do Código Civil de 2002: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito”.
Outro fundamento surge para reforçar a ideia de oponibilidade acima. Trata-se da função social do contrato, que consta de forma implícita como preceito constitucional (principalmente, arts. 5º, XXIII, e 170, III), e explicitamente no Código Civil brasileiro (art. 421). Tal norma-princípio tem como ideia cerne a relevância do contrato para a sociedade, que o considera não apenas um fenômeno jurídico, mas um instrumento de mudanças no plano fático, um meio inserto e que existe na ordem social (AZEVEDO; in AZEVEDO, 2004, p. 141-142; PENTEADO, 2007, p. 261-270).
Além do reconhecimento do Direito como algo na sociedade, noutra oportunidade, com base nas ideias de Enzo Roppo (2009, p. 10-15), chegou-se a uma definição de função social do contrato relacionada à necessidade de que as operações econômicas não devem atentar contra os interes ses sociais juridicamente tutelados, isto é, que a circulação ou acumulação de patrimônio não se coloque em posição antagônica ao interesse social, podendo ser socialmente inúteis ou atender tão somente o interesse dos contratantes (PÁDUA, 2020; ROPPO, 2009, p. 36-40).
Um último fundamento citado como componente do núcleo da vedação ao terceiro cúmplice no inadimplemento é a boa-fé. Karl Larenz (1978, p. 58) delineia a boa-fé como um preceito ético-jurídico essencial ao convívio social, porquanto a sociedade só é em razão da coesão pautada na confiança que os indivíduos têm de que suas expectativas sejam respeitadas, aqui inclusas as de que os contratos nos quais figuram sejam respeitados.
Em suma, a incolumidade, a função social contratual e a boa-fé adotam rumos convergentes no sentido de desenvolverem fundamentação voltada à proibição a que terceiros sabotem contratos e suas consequentes relações contratuais, visto que tais categorias jurídicas são, também, categorias sociais, dotadas de existência na sociedade e, portanto, havendo expectativa de que o negócio e seu liame rumem naturalmente para o adimplemento.
É diante da necessidade de resguardar a esfera jurídica, mesmo em relação às posições jurídicas de cunho relativo (obrigacionais, familiares etc.), que surge a teoria do terceiro cúmplice, que tem como hipótese a responsabilização civil do terceiro cúmplice no inadimplemento contratual (AZEVEDO; in AZEVEDO, 2004, p. 145; PENTEADO, 2007, p. 121).
Se há responsabilização, será então em qual das suas duas grandes modalidades? Aplica-se o regime negocial (= responsabilidade civil negocial, mais conhecida como “contratual”) ou o regime aquiliano (= responsabilidade civil extranegocial, mais conhecida como “extracontratual”)?
Mais uma vez, a metodologia adotada para a distinção entre figurantes e não figurantes da relação importa. Segundo Mário Júlio Brito de Almeida Costa (1999, p. 467), F. C. Pontes de Miranda (2012c, p. 271 e ss.) e Sérgio Cavalieri Filho (2012, p. 16), a responsabilidade civil negocial envolve a imputação de dever derivado indenizatório por cometimento de ilícito civil relativo, enquanto a responsabilidade civil extranegocial diz respeito à imputação de dever de indenizar em razão de ilícito absoluto.
Ilícito civil relativo e absoluto está na doutrina de F. C. Pontes de Miranda (2012b, p. 287-289), para quem a primeira categoria surge do não atendimento do que consta em uma relação jurídica relativa (negocial, familiar etc.), enquanto a segunda espécie envolve o não atendimento do que consta em relação jurídica absoluta (direitos da personalidade, reais etc.). Aplicando-se tais ideias ao caso do terceiro cúmplice no inadimplemento, é possível depreender que a tese prevalecente é de que ele não é figurante e sequer tangencia o negócio para nele ingressar (ou em sua relação), e sim um sujeito externo que viola um dever geral de respeito daquele fato jurídico e sua consequente relação jurídica, pelo fato de estarem situados em ambiente social.
É pelo fato de que o terceiro cúmplice está alheio ao negócio e ao seu consequente liame que o regime jurídico de responsabilização a ser aplicado é o extranegocial (AZEVEDO; in AZEVEDO, 2004, p. 145). Aqui, surge a dúvida se a responsabilização será objetiva ou subjetiva.
Nos julgados abaixo, há menção à intenção de prejudicar e à culpa por parte de quem cometeu o ilícito civil. Ocorre que permeia entre os campos doutrinário e jurisprudencial a ideia de que a oponibilidade exige prévia ciência de determinada relação jurídica pelo terceiro, o que leva à consideração de que o terceiro cúmplice exerce abusivamente poder jurídico (AZEVEDO; in AZEVEDO, 2004, p. 143; PENTEADO, 2007, p.
121-122). Segundo o CCB/2002, “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (art. 187). Se o terceiro exerce poder jurídico de forma abusiva ao, direta ou indiretamente, induzir que a parte contratante incumpra o contrato, invoca-se a teoria do abuso de posição jurídica ativa, mais conhecida como “teoria do abuso de direito”.
Com aprofundada dedicação ao tema, António M. da R. Menezes Cordeiro (2017, p. 879-885) expõe que a ideia de abuso de poder jurídico diz respeito não propriamente à posição jurídica, e sim ao seu exercício, que resulta na irradiação de efeitos nocivos, tanto ao Direito quanto à sociedade. É a partir dessa compreensão que Judith Martins-Costa (2015, p. 610-613) fala em antijuridicidade no modo de exercício, porquanto seria uma contradição dizer que a contrariedade ao Direito está no próprio poder jurídico. É a partir dessas ideias de que o exercício nocivo é nuclear na teoria do abuso de direito que se chega à análise do suporte fático constante no art. 187 CCB/2002: por não tratar de culpa lato sensu, tal qual o art. 186, o que atrai a responsabilização civil objetiva (DIAS, 1973, p. 539).
Orientação da responsabilidade civil objetiva pelo abuso de posição jurídica ativa consta no Enunciado 37 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo finalístico”.
A tese da objetivação da responsabilização pelo abuso de interesse jurídico predominante é tratada por José de Aguiar Dias (1973, p. 539), que entende que há superação da vinculação inicialmente dada entre a teoria em comento e a culpa, o que foi superado diante da abordagem do exercício em si como resultante do abuso, sem se aprofundar na ideia de intencionalidade ou descuido. Logo, adota-se o posicionamento de que o terceiro cúmplice no inadimplemento (= sujeito alheio, mas ciente da relação jurídica contratual) responde objetivamente pelo induzimento a que uma das partes descumpra o negócio.
No âmbito judicial, o STJ (REsp n. 1.316.149/SP) apreciou caso no qual famoso cantor foi estimulado a romper contrato com certa agência publicitária atrelada a uma cervejaria de grande nome para migrar para concorrente publicitária. No mérito, destacou o ministro Paulo de Tarso Sanseverino que a boa-fé impõe limites ao exercício de posições jurídicas, o que não acontecera no caso, vez que a demandada excedeu “os limites impostos pelo seu fim social e econômico e pela boa-fé e probidade que se exige não só dos contratantes entre si, mas de toda a coletividade, com relação aos contratos celebrados entre terceiros”.
Outro julgado que chegou ao STJ (REsp n. 468.062/SP) envolveu caso no qual agente financeiro conferiu quitação a mutuários, que foram cobrados da sucessora daquele. Destaca-se o seguinte trecho da ementa do julgado que favoreceu os recorridos mutuários:
PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE DOS EFEITOS DO CONTRATO — DOUTRINA DO TERCEIRO CÚMPLICE
— TUTELA EXTERNA DO CRÉDITO. O tradicional princípio da relatividade dos efeitos do contrato (res inter alios acta), que figurou por séculos como um dos primados clássicos do Direito das Obrigações, merece hoje ser mitigado por meio da admissão de que os negócios entre as partes eventualmente podem interferir na esfera jurídica de terceiros — de modo positivo ou negativo —, bem assim, tem aptidão para dilatar sua eficácia e atingir pessoas alheias à relação inter partes. As mitigações ocorrem por meio de figuras como a doutrina do terceiro cúmplice e a proteção do terceiro em face de contratos que lhes são prejudiciais, ou mediante a tutela externa do crédito. Em todos os casos, sobressaem a boa-fé objetiva e a função social do contrato.
No aspecto processual quanto à composição do litisconsórcio passivo, a Corte da Cidadania (REsp n. 886.077/RJ) fixou posicionamento sob a égide do CPC/1973 (arts. 46 e 292, que, respectivamente, são reproduzidos nos arts. 113 e 327 do CPC/2015): “é admissível, em princípio, que um mesmo dano derive de inadimplemento de um contrato e de ilícito extracontratual, por que responsável um terceiro. (...) Isso ocorrendo, viável a cumulação de demandas em um mesmo processo, formando-se litisconsórcio passivo”.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
A definição de terceiro tem como berço a Teoria Geral do Direito e parte da relação jurídica. Nesta, há os chamados “figurantes”, ou partes ou polos, que são os sujeitos que estão insertos ou no fato jurídico constitutivo ou na relação jurídica irradiada. O terceiro, portanto, não é figurante, isto é, tomado em um sentido amplo, são definidos por exclusão aqueles sujeitos de direitos que não constam nem no fato constitutivo nem em um dos polos da consequente relação.
Com a definição acima que se desceu ao nível do Direito Privado, com a denominada teoria do terceiro cúmplice (no inadimplemento) ou terceiro ofensor, que tem seu desenvolvimento no âmbito contratual e diz respeito a situações nas quais sujeitos alheios aos figurantes, ao próprio negócio e à sua consequente relação exercem atos que, de alguma forma, violam a continuidade contratual.
Apesar da relação jurídica ser de Direito Obrigacional e, portanto, ter efeitos apenas contra e para aqueles que declararam ou manifestaram vontade no contrato ou em sua consequente relação contratual, alguns fundamentos orientados pela incolumidade da esfera jurídica viabilizam efeitos externos, contra (ou, melhor dizendo, oponíveis em um sentido estrito a) terceiros.
O primeiro fundamento está na distinção entre oponibilidade stricto sensu e relatividade eficacial-contratual. A primeira consiste nos efeitos indiretos ou externos do ato, que irradia sua eficácia no sentido de reconhecer sua existência no meio social, enquanto a relatividade dos efeitos diz respeito aos chamados “efeitos diretos ou internos” do ato, que irradiam sua eficácia específica e buscada pelos envolvidos no ato.
O segundo fundamento para o reconhecimento de efeitos externos de relações jurídicas, cujos efeitos (específicos) se circunscrevem aos figurantes, é o da norma-princípio da função social do contrato, que tem dois sentidos. O primeiro é de que o contrato é considerado não apenas um fenômeno jurídico, mas também um instrumento de mudanças no plano fático, um meio inserto e que existe na ordem social. O segundo sentido é de que a função social do contrato está relacionada à necessidade de que as operações econômicas não atentem contra os interesses sociais juridica mente tutelados, que não se coloque o contrato em posição antagônica ao interesse social, que não é vulnerado se socialmente inútil ou atender tão somente o interesse dos contratantes.
O último fundamento citado como componente do núcleo da vedação ao terceiro cúmplice no inadimplemento é a boa-fé, um preceito ético-jurídico que se baseia na ideia de coesão pautada na confiança que os indivíduos têm de que suas expectativas sejam respeitadas, aqui inclusas as de que os contratos nos quais figuram sejam respeitados.
A resultante dos fundamentos acima é de que o terceiro pode ser responsabilizado por induzir a ruptura contratual por um dos contratantes. E mais: por não ser figurante, aplica-se o regime da responsabilidade civil extranegocial ou aquiliana, esta na modalidade objetiva em razão do reconhecimento de que o terceiro ciente da existência do contrato ou sua relação contratual exerce abusivamente poderes jurídicos, amoldando-se em exercício abusivo de posição jurídica, que envolve não a aferição de culpa lato sensu, e sim da mera conduta e dos seus reflexos nos planos jurídico e fático, atraindo a responsabilização objetiva do terceiro ofensor.
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Notas