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UMA ANÁLISE DO PARADIGMA DEMOCRÁTICO PELO CONCEITO DE REPÚBLICA
Direito em Movimento, vol. 20, núm. 1, pp. 70-93, 2022
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

Direito em Movimento
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2179-8176
ISSN-e: 2238-7110
Periodicidade: Semestral
vol. 20, núm. 1, 2022

Recepção: 15 Outubro 2021

Corrected: 09 Fevereiro 2022

Aprovação: 04 Abril 2022

Resumo: O presente artigo busca analisar o paradigma democrático através do conceito de república. Para tanto, utiliza-se da metodologia de revisão bibliográfica. Nesse limiar, demonstra como o desvirtuamento do significado republicano é capaz de minar a sua legitimidade, bem como aduz, como consequência, os desafios enfrentados pela democracia na era globalizada, entre eles o avanço desmedido da comunicação virtual, cujos efeitos refletem na maximização do poder de mercado e na transformação da liberdade republicana em liberdade econômica. Além disso, retrata o predador atual do regime democrático-republicano – o populismo – que desarticula a oposição, mina as instituições independentes, cala a imprensa, retira as liberdades individuais e a soberania popular, bem como coloca em xeque a democracia. Conclui-se que é preciso refundar a república na base constitucional, por meio da garantia dos direitos fundamentais e do alcance substancial da norma e, assim, prestigiar o governo democrático.

Palavras-chave: Conceito de República, Democracia Constitucional, Tecnologia, Populismo.

Abstract: This article seeks to analyze the democratic paradigm through the concept of republic. For this purpose, the literature review methodology is used. In this threshold, it demonstrates how the distortion of the republican meaning is capable of undermining its legitimacy, as well as adduces, as a consequence, the challenges faced by democracy in the globalized era, including the immeasurable advance of virtual communication, whose effects reflect in the maximization of power and in the transformation of republican freedom into economic freedom. Furthermore, it portrays the current predator of the democratic-republican regime – populism – which dismantles the opposition, undermines independent institutions, silences the press, takes away individual freedoms and popular sovereignty, as well as putting democracy in check. It is concluded that it is necessary to refound the republic on the constitutional basis, through the guarantee of fundamental rights and the substantial reach of the norm and, thus, honor democratic government.

Keywords: Concept of Republic, Constitutional Democracy, Technology, Populism.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo busca analisar o paradigma democrático sob a ótica da delimitação do conceito de república, na medida em que a criação republicana foi uma conquista fruto de lutas sociais, bem como representou a separação do político com o religioso e o início do processo eleitoral para a figuração de representantes eleitos, em que se pudesse evidenciar a vontade popular. Além disso, possibilitou a autonomia em relação ao antigo regime, bem como reuniu os direitos individuais, gradativamente, nas Cartas Constitucionais. Assim, depois do poder monárquico, que antes era ilimitado, e com o surgimento da república, os governantes passaram a se submeter às leis, e o povo se tornou livre para interferir no cenário político. Dessa feita, a consagração republicana significou um passo para o povo ser titular do poder, já que havia direitos, mas ainda faltava a democracia.

Inicialmente, este estudo se preza a demonstrar que, nos dias de hoje, há uma confusão epistemológica entre democracia e república, haja vista que são institutos inter-relacionais. No entanto, a democracia funciona como o meio que oportuniza o processo de reconhecimento da soberania popular, sem distinção entre cidadãos, bem como baseia-se na limitação de qualquer poder, inclusive o poder da maioria. Isto é, configura uma maximização da conquista republicana, cujas bases estão na autonomia, mas diferencia-se dela, pois há repúblicas não democráticas, como os regimes aristocráticos. Partindo dessa premissa, verifica-se que reais democracias são voltadas para o ideário liberal, ao passo que permitem um equilíbrio de poder dentro de uma república.

Com isso, trata dos desafios que as atuais democracias sofrem. Tudo começou pela crença de que, com a instauração democrática e o predomínio dos direitos humanos, seria impossível haver um retrocesso social e cultural. O alicerce que mantinha a democracia viva parecia extremamente forte, porém, foi só minar o conceito de república, deturpar a aplicação das liberdades e descaracterizar o significado de povo, para conseguir mudar toda a realidade de garantias.

Logo, vive-se hoje em uma “democracia” sem direitos, vazia de composição, consequência dos efeitos resultantes do progresso da globalização, os quais foram os principais responsáveis. Dessa forma, com a altivez do mercado e o fluxo imediato de informações prestadas pela internet, a influência das empresas privadas sobre a vida das pessoas tomou uma proporção desmedida. Cada vez mais, os indivíduos se tornaram produtos de testes para consumirem mais conteúdos guiados, cheios de grande influência na sua carga teórica. A partir disso, começou o declínio da democracia, já que a soberania territorial se tornou pequena dentro do espaço virtual, que possibilita que agentes governamentais do mundo todo cultivem ideias contrárias ao interesse nacional na mente da população.

Nesse fluxo, é possível perceber a necessidade de refundação democrática e republicana, pois emergem do liberalismo econômico figuras populistas para atuar no âmbito político, que se aproveitam de informações em massa, da polarização política e do poder de controle de dados para disseminar a sua forma de governo cunhado de ideais totalitários. Por meio disso, a população fica à mercê de governantes que não prezam pelos direitos fundamentais nem pelas cláusulas pétreas que mantêm as bases da democracia, e que usurpam do seu poder político para conseguir tirar a autonomia republicana das instituições independentes.

2 O DESVIRTUAMENTO DO CONCEITO DE REPÚBLICA MINA SUA LEGITIMIDADE

Habitua-se a intercambiar o conceito de república com o de democracia. Não obstante serem termos complementares e representarem uma organização política desejável, não são sinônimos. Há democracias não republicanas, também conhecidas como monarquias constitucionais; bem como há repúblicas não democráticas, que não merecem nem serem referidas como repúblicas (RIBEIRO, 2008). “E como a forma e o estado de uma República dependem daqueles que detêm a soberania”, há vários tipos de repúblicas (BODIN, 2011, p. 328).

No entanto, a experiência republicana caminha em um elo conjunto com a raiz democrática e se consubstancia nas ideias de liberdade, justiça e direitos humanos, em que as pessoas que dela fazem parte, reconhecem-se como cidadãos – agentes iguais na esfera política – não pelos governantes, mas pela lei. Nesse sentido, desatrela-se a ideia democrática dos vícios ou virtudes dos governantes, para atribuir à qualidade das instituições. E, no mesmo sentido, enquanto cabe ao modelo teológico-político a experiência da heteronomia, “a república democrática tem a marca da autonomia”, isto é, conforme preceitua Claude Lefort, seria a capacidade de desembricamento do arquétipo monárquico da Idade Média – cujo líder político era figura divina – da dimensão política (MATOS, 2003, p. 47).

Bodin (2011, p. 71 e 73) conceitua a república como “um reto governo de vários lares e do que lhes é comum, com poder soberano”. Segundo o autor, por meio do conhecimento do fim e da descrição da república, é possível saber o trajeto que se percorre para alcançá-la. Por isso os antigos – Cícero e Aristóteles –, quando se referiam à república como “uma sociedade de homens reunidos para bem e felizmente viver”, retraíam-se a um modelo político reducionista, visto que faltava a menção “da família, da soberania e daquilo que é comum numa República”.

Nessa entoação, Bodin enfatiza a necessidade de um reto governo, pautado em regras ético-políticas, bem como na vontade uníssona orientada por um poder soberano. Segundo o autor, “dessa forma não teremos em conta, para definirmos a República, esta palavra ‘felizmente’; antes ergueremos mais alto a nossa mira para tocar o reto governo, ou pelo menos aproximar-nos dele”. Diante disso, analogicamente, se o médico administra bem os seus pacientes, e o piloto o seu navio, não podem ser censurados pela governança que desempenharam (BODIN, 2011, p. 74).

Noutro vértice, a arcaica dicotomia entre monarquia e república – na qual a primeira se associava ao regime de aristocracia (o poder dos melhores, que são poucos) e a segunda ao de democracia (o poder do povo, que são muitos) – já não impera atualmente. Partindo das mudanças que emergem “nas estruturas do poder e nas relações entre os vários órgãos do Estado”, as monarquias se constitucionalizaram – aderiram a um viés democrático – e deixaram de ser um governo de um só, na medida em que a república, governo de um corpo coletivo, ficou imprecisa. Por isso a necessidade da aferição etimológica do conceito de república (LAFER, 1989).

Sob uma perspectiva inicial, a origem etimológica da palavra “república” remete ao significado de res publica, que do latim traduz-se: bem público, coisa pública ou coisa comum. Nesse diapasão, Cícero foi o responsável por diferenciar aquilo que era público do privado, doméstico ou familiar, atribuindo ao bem público o atributo de ser o bem do povo, isto é, compondo uma reunião de pessoas que se voltam em prol de um bem comum ou do direito de todos (LAFER, 1989).

Em adendo, na antiguidade grega, a composição do corpo cívico se dava por meio do governo da pólis no espaço público, comum. Nesse sentido, a esfera do público era construída pela liberdade política de participação de todos os cidadãos, e as decisões comuns caberiam a toda comunidade ali reunida. Mesmo com a exclusão das mulheres, crianças, escravos e estrangeiros, “na Grécia antiga a política era assunto de todos os cidadãos” (SILVA, 2014, p. 2) e, portanto, havia o início da estrutura republicana ali representada.

De certo, o conceito de república representa uma abertura da participação cívica, bem como “simbolizada na formulação de uma terminologia claramente popular”. Nessa toada, “a vitalidade de um conceito depende de sua integração na práxis social”, isto é, o conceito nos remete à realidade histórica, a um objeto específico e a um contexto vivido. Consoante a esse entendimento, “a decodificação desse sistema nos permite a reconstrução do imaginário coletivo, das ideologias, dos hábitos e valores relativos à sociedade que o engendrou e às suas formas de permanência em outros contextos históricos”. Em consequência, os fundamentos básicos da república contemporânea foram embasados no modelo de democracia grega (LEITE, 2020, n.p.).

Com efeito, partindo do consensus juris ciceriano, isto é, consciência republicana do direito coletivo que não seja comprometida pela violência e arbítrio, desemboca na confecção de uma Constituição, carta emanada de um Poder Constituinte livre e soberano, a que Kant atribuiu “a ideia reguladora da razão prática, necessária para estabelecer um estado de direito.” (LAFER, 1989, p. 216).

Todavia, mesmo diante do apogeu da república, a democracia se concretizou nas Cartas Constitucionais “somente após a revolução capitalista e depois de um período ‘liberal’ – o século XIX”. Antes disso, o paradigma democrático parecia ser algo impossível de ser arguido e, desse modo, impunham limitações à cidadania como forma de controlar a virtude dos cidadãos na comunidade ideal de república. Dado isso, foi a expansão da classe média concomitantemente ao capitalismo que viabilizou a propagação do liberalismo nas novas Constituições, tendo como consequência um terreno fértil para a democracia (PEREIRA, 2005, p. 79). Era a importância do Direito para o combate aos arbítrios – o império positivista das leis como forma de limitar o poder (LAFER, 1989).

É com base nisso que “quando o liberalismo desafiou o republicanismo no século XVIII, não o fez em nome da igualdade política – o princípio plebeu – mas da liberdade, uma vez que as duas correntes concordavam em rejeitar a democracia”, de forma a não possibilitar a participação de todos os cidadãos, sejam eles diferentes quanto ao sexo, educação, etnia, dentre outros (PEREIRA, 2005, p. 78-79).

Em que pese as primeiras cartas constitucionais disporem no seu bojo princípios liberais e federativos, havia um abismo que separava a letra da lei das práticas políticas no Brasil. Rui Barbosa critica o establishment republicano por contemplar no seio as políticas dos governadores e a centralização de poder no Executivo federal, descambando em um processo de corrupção e degeneração do estado republicano brasileiro (CINTRA, 2016).

No tempo contemporâneo, não é diferente. As tendências despóticas são intrínsecas ao poder político e, como aduz os pensadores como Montesquieu, Madison, Hamilton e, já no início do século XIX, Benjamin Constant, o poder ilimitado é o principal traço desses regimes. Por conseguinte, “a boa ordem política no registro liberal dependeria de um conjunto de mecanismos institucionais celebrados na fórmula freios e contrapesos, cuja função seria precisamente limitar o poder, impedindo que ele se convertesse em tirania” e ferisse os direitos fundamentais, ou seja, não se trata de desvendar a origem do poder, mas a forma na qual ele é exercido (CINTRA, 2016, n.p.).

Em contrapartida, Rousseau, no seu livro Contrato Social, registra a dificuldade da comunidade política do povo em se reunir em assembleia para discorrer sobre todas as questões comuns, por isso, coloca uma figura externa em prol desse propósito: o governo. Todavia, o governo não pode ser confundido com os seus governantes, haja vista que esses últimos desempenham poderes dados pelo soberano e limitados por ele. Os representantes são, antes de mais nada, representantes do povo. Dessa maneira, se o povo não ratifica uma lei, ela é nula de pleno direito (ARAÚJO, 2000).

Observa-se que a tradição republicana de maneira geral compreende de um lado a comunidade política e, de outro, o governo. O problema está quando o governo, cuja titularidade é externa, tenta assumir o controle e usurpar o papel atribuído ao soberano (ARAÚJO, 2000), que no sistema democrático atual é exercido pelo povo.

Porém, conforme Massini Correas (2016), no que diz respeito à liberdade dos cidadãos – um dos principais fundamentos republicanos –, Rousseau condiciona à vontade geral dos integrantes do Estado, ou seja, à lei da maioria. Isso é um artifício perigoso para desconfigurar o próprio papel autônomo que a república prega e a separação de poderes que garante o controle do poder. Sobre isso, preceitua Rosler:

Aqui Rosler conclui que esta concepção positiva da liberdade resulta potencialmente perigosa, já que identifica a liberdade com uma racionalidade valorativa-substantiva, que poderia legitimar qualquer tipo de interferência com o arbítrio dos seres humanos. Frente a estas alternativas, aparece claramente melhor a concepção republicana de liberdade, que se encontra em uma situação intermediária entre a liberdade negativa e positiva, de modo que a negativa rechaça a interferência com a autonomia, sempre que se tratar de uma interferência arbitrária. Do mesmo modo que a positiva será uma liberdade valorativa e não meramente física, destinada a evitar a dominação arbitrária de outra pessoa e ser possível a realização de uma vida plena (MASSINI CORREAS, 2016, p. 87, tradução nossa).

Logo, reflete-se que não ter um sistema de equilíbrio dos poderes significa viver em uma sociedade em que o estado de exceção é o modus operandi da república, ferindo as liberdades civis, o direito da imprensa e o direito de reunião, sob supostas “acusações” durante o governo (CINTRA, 2016). “Tudo ocorre como se a Constituição tivesse sido concebida tendo em mente o estado de exceção, e a energia republicana não passasse de um estado de exceção represado” (MATOS, 2003, p. 51). Sendo assim, ante à precariedade das instituições no controle mútuo entre os poderes e à minimização da supremacia constitucional por governantes que buscam o proveito próprio, Rui Barbosa entende que esses fatores colocam em xeque a democracia e o pluralismo e deturpam a “voz do povo” (CINTRA, 2016).

Nesse entender, Rui Barbosa salienta que se vive em uma democracia “esfarrapada”, pois não há limites institucionais para o exercício do poder:

Um dos principais traços do desvirtuamento da República brasileira dizia respeito ao fato de que aqui as classes dirigentes encontravam débeis limites institucionais para o exercício do poder político. Exemplo disso era o poder quase ilimitado do Executivo federal e seus aliados nos estados. Rui denunciava que o princípio da divisão de poderes, tal como previsto na Constituição de 1891, vigorava de modo muito precário no país e, com frequência, os governos extravasavam suas competências institucionais, cooptando o Congresso e o Judiciário, limitando as liberdades civis, perseguindo oposicionistas ou intervindo violentamente para derrubar os governos estaduais considerados adversários. Se o Poder Executivo não encontrava contenção nos outros poderes da República, o que tínhamos na prática, dizia Rui, era uma "democracia esfarrapada" (CINTRA, 2016, n.p.).

Agrava-se a isso a chegada da doutrina neoliberal no contexto político latino-americano e mundial, como uma reforma administrativa que tinha como objetivo superar a crise política e fiscal decorrente, no Brasil, da dívida externa (SALLUM JR., 1999). Conforme depreende Carinhato (2008, p. 37), “essa opção metodológica de conjugar política social e questões do campo político e econômico” resultou em uma exaltação do liberalismo econômico e do homus economicus, fundamentando uma proposta de liberdade da iniciativa privada sem nenhuma intervenção estatal.

Já para Sallum Jr. (1999, n.p.), nessa crise de hegemonia, os representantes se distanciaram dos representados, “que se fracionaram e polarizaram em torno de interesses e ideias distintos”. E se esqueceram do real significado histórico-cultural do termo “república” e das lutas sociais que marcaram a sua formação.

3 OS DESAFIOS ENFRENTADOS PELA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

O regime político democrático se tornou vigente no século XX através da implementação do sufrágio universal. A partir de então, as mudanças no cenário político não pararam, desde a consolidação da democracia liberal até a democracia social, e hoje, com a democracia deliberativa ou constitucional (PEREIRA, 2005).

No contexto atual, a cidadania democrática é composta, de acordo com Cícero Araújo, por três ideários normativos: civismo, pluralismo e plebeísmo, que correspondem, respectivamente, às tradições republicana, liberal e democrática (PEREIRA, 2005).

A matriz republicana se ergueu nos moldes do civilismo, pela aristocracia. Na antiguidade clássica, mesmo Atenas tendo a opção pela democracia ao invés da oligarquia de privilégios, Aristóteles entendia que a aristocracia era o regime ideal. Já “na república romana, a ideia de que a sociedade deveria e poderia ser governada por cidadãos dotados de virtudes públicas ganhou aceitação”. A partir disso, Cícero e Maquiavel, mesmo apartados por quinze séculos, apesar das adversidades, compartilhavam desse entendimento (PEREIRA, 2005, p. 78).

Enquanto isso, os filósofos políticos do século XVIII, como Montesquieu, Harrington e Madison, “embora atraídos pelo liberalismo, ou como Rousseau, interessado em democracia, permaneceram essencialmente republicanos aristocráticos”, porém, não mais vinculados a uma aristocracia hereditária, mas à econômica. Por isso Rousseau fazia a distinção de república e democracia, haja vista que a república ideal tinha severas limitações à entrada de novos cidadãos (PEREIRA, 2005, p. 78).

No entanto, com a ascensão capitalista e da classe média, tais restrições não eram mais politicamente viáveis, e o liberalismo desafiou o republicanismo por meio do princípio da liberdade. Somente nesse momento a democracia e o sufrágio universal foram implementados nos Estados-nação. Ocorre que o ideal liberal que ergueu os alicerces democráticos era regido pela conveniência política e comercial da propriedade e do mercado. Por isso, continuavam “presos a uma abordagem elitista, antiplebeia, da democracia”. A democracia, nada mais era, do que as oligarquias novamente no poder, dessa vez, eleitas pelo voto popular (PEREIRA, 2005, p. 79).

Desde o tempo das oligarquias no Brasil, a imprensa estava submissa à política e aos políticos. O seu papel cívico de instruir a sociedade transmitindo uma opinião pública nacional com autonomia já não imperava mais. A liberdade de imprensa estava resumida em apenas divagar a respeito dos interesses da oligarquia, manipulando o eleitorado a manter o status quo republicano e desviando verbas públicas em proveito próprio. Faltava liberdade na república, faltava democracia (CINTRA, 2016).

Segundo Ferrajoli, a liberdade é dividida em: liberdades-imunidades, que são aquelas que promovem a imunidade a interferências ou impedimentos, e as liberdades-poderes, que são aquelas entendidas como faculdades agendi, dentre elas a liberdade de reunião e a liberdade de imprensa. Ademais, Ferrajoli trata que a liberdade de imprensa e informação, na Itália, foi a primeira a ser atacada por arbitrariedades e abusos de poder. Isso tudo porque há uma confusão ideológica na tradição liberal entre liberdade de informação e propriedades do meio de informação. Dessa maneira, aqueles que detêm o poder comercial e propriedade da mídia querem se sobrepor aos direitos fundamentais. A liberdade de informação, em vez de limitar e controlar o poder, é, portanto, limitada e controlada. Esse problema é referente ao futuro da democracia não apenas na Itália, mas na maioria dos países, com a crescente padronização das informações (FERRAJOLI, 2008).

Mas é sobretudo a noção de liberdade que é minada pela ideologia neoliberal e populista, bem como a falta de um conceito sólido de república que determina a ausência de limites aos poderes econômicos e políticos da maioria. A partir disso, inicia o processo de privatização da coisa pública e se materializa na apropriação dos canais de informação, violando o pluralismo informativo (FERRAJOLI, 2008).

Mediante esse processo, a liberdade de informação passa a ser um produto do mercado, perdendo o seu caráter de garantia e direito fundamental. Veja que, de um lado, prejudica o direito de imprensa, isto é, o direito de expressar opiniões e difundir informações, essencial ao caráter liberal de um sistema político. E, de outro, interfere no direito de informação, direito de todos os cidadãos e pressuposto da democracia (FERRAJOLI, 2008).

Ataques contra a liberdade de imprensa são apenas o primeiro passo. No passo seguinte, a guerra contra as instituições independentes frequentemente mira fundações, sindicatos de trabalhadores, think tanks, religiosas e outras organizações não governamentais (MOUNK, 2019, p. 59).

O que ocorre em alguns países é a insurgência de regimes abertamente autoritários e a emergente concentração econômica e dos meios de informação. Tudo isso se inicia com a confusão teórica da concepção de liberdade e de república em uma concentração monopolista no ideário nacional. Os impérios midiáticos são o maior problema atual da democracia, pois há um exponencial aumento de informações homologadas a um nível mundial. Há um verdadeiro quarto poder, uma dimensão dominadora dos interesses privados pelos interesses públicos (FERRAJOLI, 2008).

Nesse proceder, a simbiose entre a doutrina jusnaturalista e contratualista do constitucionalismo moderno e a doutrina romana-civilista repercutiu na falácia de que liberdade era sinônimo de propriedade. Conquanto reflexo dos pressupostos de Locke, isso generalizou o termo “propriedade” como um direito subjetivo à imunidade, à liberdade e a haveres, bem como “abriu vista à distorção da ideia genérica de direito de propriedade como algo ilimitado juridicamente” (COPETTI, 2016, p. 38).

Mediante isso, a liberdade passou a ser vista como um poder e um poder ilimitado, vinculado ao mercado e ao interesse privado, se contrapondo, sobremaneira, ao ideário democrático. Ergueu-se como se liberalismo e democracia fossem termos antagônicos, porém, enquanto a democracia abre espaço para que o cidadão participe da esfera pública, o liberalismo “estabelecia limites ao estado em nome dos direitos de liberdade, compreendendo que o poder se limitava ao poder público e não também aqueles direitos-poder que eram os direitos de autonomia privada” (COPETTI, 2016, p. 41).

Nesse sentido, na medida em que os direitos fundamentais, universais e indisponíveis, os quais incluem a liberdade, são normas tético-deônticas, os direitos patrimoniais são normas hipotético-deônticas, por serem singulares e disponíveis. Logo, o direito de propriedade não é um direito fundamental, visto que há uma diferença substancial e excludente entre esses conceitos, de forma que o direito fundamental à liberdade é que confere a garantia de usufruir, em igualdade de condições, da propriedade (COPETTI, 2016).

A partir da compreensão de que os direitos fundamentais sociais se traduzem em exigência moral, argumentos que suscitem a questão da “reserva do possível” seriam de segunda ordem e, na verdade, procuram apenas tangenciar a questão dos direitos sociais para retirar-lhes, ou, ao menos, reduzir-lhes a efetividade (COELHO, 2017).

Acrescenta ainda o autor que tais direitos não poderiam, em tempo algum, estar sujeitos a “negociações políticas” (COELHO, 2019).

Partindo dessa premissa, pode-se inferir que o poder econômico é um dos fundamentais responsáveis pelo enfraquecimento da própria esfera privada. Por esse contexto, visando a fortalecer o Estado de Direito, deve-se limitar o poder da maioria, ou qualquer poder que ouse ser ilimitado, por meio da consolidação de uma democracia formal e substancial, pautada nos direitos fundamentais e na rigidez constitucional fruto do pós-Segunda Guerra Mundial (COPETTI, 2016).

O problema maior na concretização de uma democracia forte ocorre porque enquanto a república é uma construção romana que impõe àqueles que mandam o dever de obedecer, de estar sujeito aos mesmos direitos impostos legalmente e de sofrer limitações, na democracia, de outro modo, há um problema constitutivo, pois desemboca em uma dificuldade de opor direitos/deveres, assim como Hobbes argumenta no capítulo XIV do Leviatã (RIBEIRO, 2008).

A concepção de democracia perpassa por uma análise interdisciplinar e também de vários atores sociais. Por isso, o Direito, o Estado e a sociedade vêm sofrendo, nos últimos anos, constantes e significativas mutações em todo o mundo. O Direito e os tribunais constitucionais passam a ter protagonismo, pois, em alguns ramos do Direito, é possível verificar as mudanças com mais facilidade, especialmente quando analisamos a efetividade das normas constitucionais e as confrontamos com as decisões dos tribunais constitucionais de diversos países (COELHO, 2021).

A democracia visa a atender os desejos das massas – há muito tempo sendo sinônimo de posse/propriedade – ou mesmo em detrimento da conquista de direitos humanos, esquecendo-se do seu verdadeiro cerne constitutivo que é o poder do povo. Desse modo, existe democracia não com o fim de saciar a fome ou respeitar os direitos, e sim porque o povo é o detentor do poder. “Não é que a fome e a violência sejam problemas menores, mas é que em princípio podem ser superados em registros políticos não democráticos, de um Estado de Direito aristocrático, ou ainda de um governo populista e autoritário” (RIBEIRO, 2008, p. 21).

“Uma democracia sem república não kratos, é simples populismo distributivista”. Há um problema na autonomia, na gestão dos poderes, e isso impede a consolidação democrática, pois, para haver democracia, necessita-se da república, isto é, é preciso haver uma democracia que seja não apenas política, porque senão transforma-se em uma “heteronomia das multidões”, como é visto atualmente. “A solução republicana vigia para os membros do Senado”, já que ainda persistia a moralidade republicana, mas hoje encontra-se de “mãos atadas”. Logo, com vistas a atingir esse propósito, deve-se frear o poder ilimitado, com o povo como condutor das decisões, tendo em vista que os limites substanciais estão impostos nas Constituições, cujos direitos fundamentais encontram-se positivados (RIBEIRO, 2008, p. 23).

Há uma retomada contemporânea do termo “república”. Isso ocorre porque há um aguilhão crítico por detrás das interpretações desse conceito. Atualmente, radicalizou-se as aspirações liberais, as quais estão voltadas para questões mercadológicas e à esfera de interesses privados, retraindo o espaço público e o espaço social com uma agressividade ultraliberalista dos neoliberais ou neorepublicanos, que buscam satisfazer o apetite dos indivíduos. Para retomar o ideal democrático, é preciso retomar a densidade da esfera do comum, “da ação coletiva e da solidariedade política” (CARDOSO, 2008, p. 30).

Na despolitização do político, a economia traz consigo a figura do especialista competente, e o que resta do ideário da liberdade transfere-se para o consumo: a liberdade do consumidor depende da hierarquia das mercadorias a que pode ter acesso, desviando-o dos assuntos comuns à pólis e da organização da vida coletiva. Frustrações e decepções passam ao domínio do privado, incapazes de encontrar sua expressão política (MATOS, 2003, p. 48).

A democracia contemporânea é induzida pela globalização econômica. Há “uma liquidação do político pela economia”. Percebe-se no seio democrático atual uma predominância de conceitos pré-modernos, modernos e pós-modernos. O primeiro corresponde à figura da moral e da religião influenciando o Direito, na medida em que a ordem social se via estática; o segundo corresponde ao individualismo possessivo e o poder de mercado fruto do capitalismo emergente; e no terceiro, o Estado deixa de ser o garantidor dos direitos sociais e civis. Por tudo isso, houve um enfraquecimento da dimensão simbólica da lei, do pluralismo e a perda do sentimento de pertencimento a uma tribo (MATOS, 2003, p. 48).

O poder econômico desqualifica as instituições políticas e democráticas de representação social, bem como coloca, conforme Schmitt, em descrédito o parlamento, ou seja, faz da corrupção um bode expiatório para conseguir colocar a classe política como suspeita. Perde-se, com isso, a garantia de legitimidade das leis e faz, hobbesianamente, com que prefira a troca da liberdade por segurança (MATOS, 2003).

Essa situação é ainda mais agravada com a virtualização da comunidade humana, que começou com o telefone e a televisão, e terminou com a internet, que ampliou o processo de desterritorialização e a criação de um cyber space. Do ponto de vista ontológico, a internet não cria um novo espaço a não ser ela mesma, isto é, uma rede mundial de computadores que transmitem interações humanas. Mas, fenomenologicamente, “a Internet altera de inúmeras maneiras as experiências de interação humana” e modifica o mundo físico no qual se vive, tudo isso associado ao processo de virtualização. Nesse sentido, como a política faz parte de interações humanas territoriais e não podendo alçar um diâmetro universal, o que ocorreria se a política, que outrora era circunscrita a um determinado território, se virtualizasse? (EISENBERG, 2003, p. 496).

O espaço virtual gera uma zona, onde as leis soberanas nacionais não imperam ou têm sua operacionalização dificultada. Justamente por ser um ambiente de intercâmbio global de informações, em que há uma rápida difusão de ideias a um número indeterminado de pessoas, sem estar atrelado a um território, dificulta a fiscalização e a implementação dos direitos fundamentais e das garantias legais constitucionalizadas nesse espaço. A soberania nacional dentro de uma aldeia global virtual fica ameaçada. A virtualização permitiu que influências internacionais opinassem em espaços públicos e políticos nacionais, a seu bel prazer. Isso porque a liberdade de expressão é incondicionada, e o poder político fica a mercê da difusão em massa de pensamento, adstrito ao sistema de dados dos operacionadores de aplicativos. A democracia contemporânea sofre de um problema prático do poder ilimitado da economia no ambiente virtual e como isso repercute no cenário político atual (EISENBERG, 2003).

A internet foi programada para ser um recurso horizontal de interação, uma vez que conferiria uma nuance comunitária. Todavia é efetivamente manipulada por “instituições públicas e privadas que imprimem sobre ela regras e hierarquias bastante similares àquelas que estruturam a complexidade da vida urbana no mundo contemporâneo”. Em outras palavras, há um relativo grau de independência da internet de uma esfera pública, pelo aprimoramento dos meios de comunicação de massa, tomando uma proporção de aldeia global. Nesse sentido, pergunta-se: “são as interações pessoais de cada um que se globalizam através dela?” ou as intenções de uma maioria? Vemos que a aparente neutralidade nas interações não é real, mas até onde vai o real dentro de um ambiente virtual? São esses questionamentos que nos fazem pensar o impacto que a internet proporciona na perspectiva da vida política das sociedades modernas (EISENBERG, 2003, p. 498).

4 O POPULISMO COMO DESARCUTILADOR DA REPÚBLICA e da democracia

Viver sob uma república pressupõe que qualquer decisão, mesmo que majoritária, só é correta ou democrática se sofrer controle ou limitação. É o condicionamento à lei vigente e sancionada conforme o procedimento legal. Dito isso, é válido inferir que o conceito de povo é demasiadamente importante para deter o populismo (MASSINI CORREAS, 2016).

Cumpre salientar que, segundo Massini Correas (2016), o inimigo natural e interno do republicanismo é o cesarismo, que corresponde ao intento de Júlio César em Roma de instaurar uma ditadura perpétua. É a tendência de dominação, de corrupção, de unanimidade e de um governo autoritário, que também compõe os adjetivos de um governo populista.

Diante desse cenário, a república contra-ataca com conceitos como liberdade e povo. Liberdade aqui entendida como a superação da falácia da liberdade como dominação e a consagração do governo das leis. Já a palavra “povo” não pode ser avocada como um relato populista de manipulação e usufruto ilimitado do poder. Sendo assim, o perigo está na utilização da mesma palavra para vários significados, sem consciência da sua diversidade semântica, o que conduz a erros de argumentação no debate político (MASSINI CORREAS, 2016).

Foram esses erros na interpretação que levaram os cientistas políticos a acreditarem que uma vez consolidada a democracia, não haveria retrocesso, que a democracia caminhava em um processo de sentido único. Todavia, a pressão da globalização, a força do mercado, as desigualdades econômicas e os medos identitários abriram margem para a ascensão da ideologia populista, que usa dos mecanismos da própria democracia para provocar a sua destruição (MASSINI CORREAS, 2016).

Eleições livres e justas, liberdades cívicas, direitos humanos e Estado de Direito sempre foram valores inquestionáveis. E mais do que isso, a democracia era o único sistema internacionalmente aceito como legítimo (MASSINI CORREAS, 2016). Mas, com os problemas advindos da globalização e do acúmulo de riquezas, a população buscou conforto em promessas emitidas por populistas.

Segundo Villa (2000, n.p.), a principal característica da liderança populista recorre ao clássico instrumental weberiano, como aquela autoridade que emana carisma, “que estabelece um contato direto com as massas prescindindo das mediações de partidos ou de outras organizações”, atribuindo somente para si aspirações de sanar o débito social com as classes excluídas, combinando elementos de dominação, por meio da volta do nacionalismo e amor à bandeira, bem como “de manipulação das classes populares com experiências que incluem um alto conteúdo identificador".

Foi dessa forma que aconteceu na Venezuela, com Chávez, que tentou transformar a tentativa de golpe em 1992 em um ato heroico de sacrifício pelas massas. Ele conseguiu a identificação do povo, não apenas pelo carisma, mas pelo sentimento de mudança da conjuntura tradicional de poder. Foi traduzir o desejo popular de ruptura profunda em seu discurso e se promover através do descontentamento com as elites (VILLA, 2000).

Assim como o chavismo, muitos governos populistas na América Latina manipularam os recursos simbólicos, a aversão aos outros partidos e o amor à pátria para o seu projeto de poder. O “uso da figura de Bolívar permite que tal símbolo da nacionalidade venezuelana se transforme numa fonte de legitimidade e de autoridade de um ator político individual”, bem como colocou o governante numa posição de líder religioso. Porém, desde o início, Chávez já mostrava sua vocação ao autoritarismo nas pequenas aparições em público. Em outras palavras, já sinalizava o amadurecimento do seu projeto de longo prazo (VILLA, 2000, n.p.).

Sob a justificativa do combate à corrupção, começou a combater a impressa, a “refundar” as instituições, a formular outra Constituição, a tirar a autonomia de órgãos como o Poder Judiciário e a dissolver o Congresso. Essas estratégias de implementação de um totalitarismo aconteceram aos poucos, de forma velada. Inicialmente, a legitimidade dessas ações foi respaldada por meio da doutrinação da população através do controle da imprensa. Foi disseminada a ideia de combate à antiga elite oligárquica que oprimia as classes menos favorecidas. Após, em busca do “bem comum”, foi feito “um laboratório político no qual a consulta popular ou democracia plebiscitária” era a regra. Ou seja, como as decisões eram submetidas à consulta popular, justificava-se, por esse motivo, a manutenção do seu caráter democrático e, dessa forma, a oposição seria um inimigo que não permitia o crescimento do regime democrático (VILLA, 2000, n.p.).

Sob esse ponto de vista, Rousseau (2020) adverte que a consulta popular é um mecanismo válido, mas questiona: pelo simples fato de ser a voz do povo, pode consubstanciar legitimidade de decisões que contrariem o ordenamento jurídico vigente? Não. É por isso que o sistema liberal encontra o seu fundamento na limitação do poder, sobretudo o poder que é exercido pelo povo.

Apesar de soar paradoxal o poder ser do povo e, ao mesmo tempo, ser restringido visando ao bem do povo, é esse mecanismo de equilíbrio que garante a legitimidade estrutural do sistema democrático, visto que há uma linha tênue para sair de um sistema democrático, atingir a usurpação do poder e agir em benefício de uma classe determinada, de modo a subjugar direitos agregados constitucionalmente (ROUSSEAU, 2020).

Doravante, “a promessa de dar livre expressão à voz do povo é característica central do populismo.” Os governantes apelam para o povo para conseguir apoio para eleger determinada classe ou para promover ideias, em detrimento de outra convicção política ou de outro grupo social. Por intermédio dessa jogada retórica, eles reivindicam para si o monopólio moral da representação por meio do apoio popular, consagrando-se o único que consegue satisfazer a vontade popular e que luta contra a opressão do anseio geral. E, certamente, Donald Trump quis expressar exatamente isso quando afirmou: “A única coisa importante é a unificação do povo, porque os outros não significam nada.” (MOUNK, 2019, p. 56).

Os populistas são parciais desde o momento em que concorrem às eleições, dirigindo ira a segmentos éticos ou religiosos diferentes, que, para eles, não correspondem ao povo real. Como consequência, atingem as instituições que os defendem e ameaçam a sua existência, principalmente se ousarem questionar sua representação como legítima. Com frequência, a guerra às instituições independentes inicia com o ataque à liberdade de imprensa, com o objetivo de dominar o conteúdo das mídias sociais e veicular apenas atributos favoráveis à sua permanência (MOUNK, 2019).

Portanto, não há como negar a coesão entre liberalismo e democracia, não apenas em virtude de difundir a vontade popular e da adesão de um Estado de Direito, mas também se atrela à proteção aos direitos individuais, assegurando que os ricos não sejam desleais com os desfavorecidos. Com efeito, as eleições só podem ser consideradas justas se houver autonomia da imprensa para criticar (de forma honesta e proba) e quando os direitos individuais das minorias forem respeitados. Outrossim, uma democracia sem liberdade é uma “democracia sem direitos” e, em decorrência disso, constitui uma tirania da maioria. Em contraste, “direitos sem democracia” representam o povo sem voz e a exclusão da vontade popular (MOUNK, 2019).

Por conseguinte, a Constituição representa o documento hábil para cumprir a meta democrática de organização do Estado, distribuição e separação dos poderes, reconhecimento dos direitos fundamentais e exclusão da arbitrariedade do poder, porque ela nasceu com esse intuito. Logo, não adianta ser calcada como norma no seu aspecto formal e se esquecer do conteúdo, do aspecto substancial, que confere a ela a qualidade democrática (ROUSSEAU, 2020).

5 CONCLUSÃO

O presente artigo buscou estabelecer as bases da democracia por meio da averiguação do real conceito de república. Nesse limiar, foi possível perceber que, para construir a epistemologia de um instituto, faz-se necessário trazer à baila os âmagos históricos, fenomenológicos e sistemáticos.

Partindo dessa análise conjunta, a república nasceu da cultura greco-romana, mas não tinha o impacto ontológico que tem hoje. Mesmo representando “coisa pública” – interesse comum do povo – e trazendo em seu seio a autonomia das instituições e a descentralização do poder, ainda permanecia nos moldes oligárquicos do Antigo Regime. Somente com a Revolução Francesa e Americana, envolta nos ideais liberais capitalistas, o ideal republicano assume um viés democrático, que se distingue pela forma de governo que garante as liberdades públicas e a soberania popular.

Por meio desses fatores, a república passou a ser um componente inerente à democracia, e sua congruência parecia forte o suficiente para nunca retroceder. Porém, com o advento da globalização e do comércio a nível global, ocorreu uma distorção factual desse conjunto significante: a liberdade pregada pelo ideário republicano torna-se um liberalismo possessivo, que subverte os valores igualitários e o caráter de direito fundamental, que é protegido constitucionalmente, em benefício de valores econômicos.

Nesse ínterim, observa-se que o poder de mercado consegue descaracterizar o termo “república” e remeter ao interesse neoliberal consumerista. Nesse sentido, a economia torna-se um poder ilimitado que não pode ser mediado pelo Estado ou regrado por qualquer outro poder. O equilíbrio de forças fica prejudicado, e uma nova ameaça ao regime democrático-republicano surge – dessa vez, não por meio da monarquia ou oligarquia, mas sim por um poder que se assemelha no aspecto dominador: o poder de mercado.

Isso tomou proporções maiores com a chegada da internet e do fluxo de informações em massa, já que o poder econômico foi expandido e maximizado a uma escala global. O povo se deparou com uma democratização do livre arbítrio e com o alcance da informação, no entanto, ao mesmo tempo, viu os seus dados serem roubados pelas grandes empresas e utilizados para melhor atender aos seus interesses privados. Isso sem considerar o uso crescente das fake news. Como conter esse mecanismo de manipulação? Onde está a esfera pública? A coisa pública ou república perdeu o seu posto soberano com a desterritorialização provocada pelo meio virtual e, nesse sentido, a democracia viu-se coagida por novos atores do cenário político: os populistas.

Vale destacar que o governo populista não é uma invenção recente, mas é possível perceber em diversos países que, a cada eleição, essa conjuntura política nociva assume o protagonismo das eleições e dos respectivos governos, caso eleitos.

O que se vê, na verdade, é uma autofagia da democracia, isto é, a pretexto de assegurar direitos fundamentais, acaba por violá-los. Isso sem considerar o efeito nefasto da corrupção, do nepotismo cruzado, do aparelhamento da máquina pública para fins particulares ou do próprio grupo político. Vale frisar que sem direitos e sem liberdade, jamais será garantido o Estado Democrático. Não raro, o povo que elegeu um populista sofre em suas mãos por não gozar dos direitos fundamentais provindos de lutas sociais e que estavam protegidos constitucionalmente. De um lado, a rigidez constitucional não conteve o avanço de governos autoritários, sobretudo quando há a dissolução do Congresso. De outro, diversas instituições foram aparelhadas e, portanto, desacreditadas pela corrupção. Diante de todo o contexto, é possível concluir que se vive em uma Era em que a democracia e a república precisam ser revisitadas para conseguir sobreviver a esses predadores. Da mesma forma, mostra-se necessário e urgente estabelecer uma releitura da relação entre o Estado, o Direito e a sociedade.

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