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A DIGNIDADE NA FINITUDE DA VIDA HUMANA: ortotanásia e os cuidados paliativos
Direito em Movimento, vol. 19, núm. 2, pp. 153-182, 2021
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

Artigos

Direito em Movimento
Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2179-8176
ISSN-e: 2238-7110
Periodicidade: Semestral
vol. 19, núm. 2, 2021

Recepção: 13 Agosto 2021

Revised: 10 Setembro 2021

Aprovação: 20 Setembro 2021

Copyright EMERJ 2021

Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Attribution-ShareAlike 4.0.

Resumo: : O presente artigo pretende analisar a ortotanásia no Brasil e a prática dos cuidados paliativos, seu conceito e vantagens aos pacientes com enfermidades terminais, para quem a medicina curativa se torna inútil, bem como realizar uma breve análise jurídica com base na Constituição Federal de 1988 e nas Resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) e no Código de Ética Médica (CEM). A ortotanásia se refere à não intervenção terapêutica que se destine a prolongar a vida do doente terminal de forma artificial. Mesmo não dispondo de legislação específica, com o advento da Resolução nº 1.805/2006 do CFM, ficou mais fácil compreender e aplicar esses cuidados na prática. Para alcançar os objetivos propostos, utiliza-se uma revisão de literatura como metodologia, com base em artigos científicos e legislação brasileira vigente. Por fim, conclui-se que a ortotanásia e os cuidados paliativos podem ser adotados, ao promoverem qualidade de vida aos pacientes e seus familiares, e por se apresentarem de forma lícita, uma vez que não há impedimento legal nem ofensa a qualquer princípio estabelecido no Direito.

Palavras-chave: Ortotanásia, Resolução do CFM, Morte com dignidade.

Abstract: This article intends to analyze orthothanasia in Brazil and the practice of palliative care, its concept and advantages for patients with terminal illnesses, for whom curative medicine becomes useless, as well as to carry out a brief legal analysis based on the Federal Constitution of 1988 and in the Resolutions of the Federal Council of Medicine (FCM) and in the Code of Medical Ethics (CME). Orthothanasia refers to non-therapeutic intervention aimed at artificially prolonging the life of the terminally ill. Even without specific legislation, with the advent of Resolution No. 1,805/2006 of the FCM, it became easier to understand and apply these precautions in practice. To achieve the proposed objectives, a literature review is used as a methodology, based on scientific articles and current Brazilian legislation. Finally, it concludes that orthothanasia and palliative care can be adopted,since there is no legal impediment or offense to any principle established by law.

Keywords: Orthothanasia, FCM Resolution, Death with dignity.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo se constitui em temática da Bioética Contemporânea com viés constitucional, ao realizar breve análise jurídica acerca da ortotanásia e dos cuidados paliativos, visto que são adotados no Brasil e encontram fundamento em Resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) e no Código de Ética Médica (CEM). Ademais, apesar de se tratar de temas que já são na realidade praticados, há ainda uma discussão sobre a legalidade e a utilização dos fundamentos como resoluções do CFM e CEM, pois não existe ainda uma lei específica sobre a ortotanásia.

Abordam-se essas questões de modo a esclarecer e trazer uma reflexão a respeito da ortotanásia e dos cuidados paliativos, e as vantagens que trazem para o paciente com doença terminal incurável. Importante mencionar que, há alguns anos, um dos primeiros casos em que se optou pela morte no tempo certo aconteceu na cidade de Roma (Itália), onde o Papa João Paulo II optou por suspender todas as intervenções e decidiu receber apenas medicação para aliviar sua dor e sofrimento em sua residência, no Palácio Apostólico, na Praça de São Pedro.

Diante da frequência de acontecimentos que geram a necessidade da prática da ortotanásia, observa-se que, com o passar do tempo, ocorreram evoluções na medicina que possibilitaram que tal conduta se tornasse oportuna aos pacientes com doenças incuráveis, buscando conforto e paz nos seus últimos momentos de vida, por meio dos cuidados paliativos.

Nesse contexto, é de grande importância que o paciente fique junto com sua família, para que se sinta sempre bem e acolhido, sendo que a família também recebe os devidos cuidados para lidar com a situação da melhor forma. Ademais, é importante destacar que os pacientes e seus familiares devem ser sempre informados sobre o que será realizado a partir do momento que se fizer necessária a prática de cuidados paliativos, a fim de que estejam sempre cientes de decisões e procedimentos a serem adotados no momento de fim da vida.

Dessa forma, o principal objetivo deste artigo é a análise da prática da ortotanásia e dos cuidados paliativos no Brasil, no contexto da dignidade da pessoa humana, bem como seus conceitos e vantagens aos pacientes com enfermidade terminal, para quem a medicina curativa se torna inútil. Especificamente, pretende-se realizar uma breve análise jurídica, com base na Constituição Federal de 1988 e nas Resoluções do CFM e CEM, sobre a ortotanásia e os cuidados paliativos.

A metodologia se baseia em pesquisa bibliográfica, ao compreender o levantamento de bibliografia em revistas científicas e legislação brasileira vigente, tais como a Constituição Federal e legislações adicionais relativas ao tema. Ressalta-se que foi realizado um estudo técnico com base em doutrinas e artigos de autores como Luciano Santoro (2012); Leo Pessini e Christian Barchifontaine (2014); Hildeliza Boechat Cabral (2015), dentre outros, bem como pesquisa documental médica e jurídica.

Para tanto, o desenvolvimento deste artigo foi dividido em três seções. Após as “considerações iniciais”, a primeira seção trata da ortotanásia, seu conceito, contextualização em que se analisam os requisitos para a adoção dessa prática, assim como suas normativas do CFM. Nesse sentido, os três pressupostos obrigatórios para o emprego desse método são: ter uma doença incurável diagnosticada por médico; o consentimento do paciente, previsto pela Resolução nº 1.995/2012 do CFM; e o terceiro, conforme a Resolução nº 1.805/2006, que é a aplicação dos cuidados paliativos assim que descoberta a doença no seu estágio inicial. Além dessas normativas do CFM, o Código de Ética Médica também será adotado como base desta pesquisa.

Em seguida, na segunda seção, trata-se o tema “Cuidados paliativos na tutela da dignidade da pessoa humana”, ao se abordar o conceito, a origem, a aplicação, a relação dos cuidados paliativos com a ortotanásia, bem como a correlação do cenário paliativo com a dignidade na finitude humana que irá proporcionar o funcionamento dos cuidados paliativos no fim da vida dos pacientes enfermos diagnosticados com doença terminal incurável. Por fim, incumbe-se de tecer as “considerações finais”, apresentando as conclusões a respeito dessas situações.

1 ORTOTANÁSIA

A ortotanásia é uma conduta adotada pelos médicos, a fim de preservar a dignidade dos pacientes enfermos com doença grave, incurável, irreversível e em estado de terminalidade, para quem as intervenções da medicina curativa já não produzem efeitos ou algum bem-estar. Ademais, é uma conduta que se consubstancia na morte em momento certo, aquele em que a pessoa escolhe para receber os cuidados paliativos, sem passar por um sofrimento maior nos seus últimos momentos de vida.

A notícia de uma doença grave em estado de terminalidade é difícil para a família do doente, mas todo ser humano já passou ou passará um dia por essa experiência, pois é fato natural da vida. Assim sendo, tornam-se importantes os debates sobre ortotanásia, tanto com a sociedade quanto com a classe médica, pois a compreensão e aplicação da medicina paliativa ao enfermo é fundamental.

1.1 Conceito e Contextualização

O termo “ortotanásia” pode ser compreendido como um processo em que um paciente em estado terminal com doença grave e irreversível decide não se sujeitar a procedimentos desconfortáveis, invasivos que tardam a sua morte e que afetam a sua qualidade de vida (CABRAL, 2016). Atribui-se a expressão “ortotanásia” ao professor Jacques Roskam, da Universidade de Liege, Bélgica, que, no primeiro Congresso Internacional de Gerontologia, realizado em 1950, teria inferido que entre encurtar a vida humana através da eutanásia e prolongar com persistência terapêutica, existiria uma morte correta, justa, isto é, aquela ocorrida no seu tempo apropriado, a ortotanásia; por isso a utilização dos termos gregos orthos (correto) e thanatos (morte). Trata-se da conduta médica que, diante de uma morte próxima, iminente e inevitável, suspende a realização de tratamentos que prolonguem a vida do paciente e que se mostram inúteis, indicando-lhe os cuidados paliativos adequados à promoção da morte com dignidade.

Diante disso, a ortotanásia pode ser considerada como uma conduta plausível frente à morte, visto que será realizada no tempo e modo correto, não sendo antecipada, levando-se em consideração o início do processo de finitude, não expondo o paciente a uma verdadeira tortura terapêutica.

A evolução do conhecimento técnico-científico possibilitou ao homem a desconformidade com tratamentos cruéis e degradantes, propiciando também ao médico estabelecer o momento correto em que a cura não é mais possível, mantendo-se unicamente a função cuidadora (SANTORO, 2012).

Segundo Adriano Marteleto Godinho, citado por Cabral; Ribeiro; Cabral; Souza:

A ortotanásia, portanto, se identifica com uma conduta de caráter passivo, na medida em que nada se faz tanto para encurtar quanto para prorrogar a vida humana, aliada a um comportamento ativo, consistente na prestação de assistência médica, psicológica e afetiva, que tende apenas a propiciar conforto ao paciente, antes de encerrada sua existência (CABRAL; RIBEIRO; CABRAL; SOUZA, 2018, p. 50).

Ademais, é importante trazer à baila a seguinte observação:

A palavra é também oriunda do grego, pela junção do prefixo ORTO (correto) com a palavra THANATOS (morte). É utilizada para caracterizar a morte natural, em que o paciente é atendido em seus últimos momentos com humanidade, atenção, procurando-se aliviar os seus sofrimentos, porém sem insistir em terapêuticas e procedimentos cuja efetividade inexiste para o paciente (ANDRADE, 2011, p. 29, grifos do autor).

Nessa perspectiva, os autores entram em consenso sobre o conceito de ortotanásia, pois o direito à vida é protegido constitucionalmente, de forma que, descrito pela Constituição Federal, não determina que as pessoas resistam obstinadamente à morte quando a vida não se mostra mais possível, pois não será lícito exigir de qualquer ser humano que se submeta a um tratamento cruel e desumano, conforme preceitua o art. 5°, inc. III, da Constituição Federal (CRFB, 1988).

Segundo Vieira, citada por Benevides e Geraige Neto (2014, p. 15-16):

Ortotanásia significa morte correta, ou seja, a morte pelo seu processo natural. Neste caso, o doente já está em processo natural da morte e recebe uma contribuição do médico para que este estado siga seu curso natural. Assim, ao invés de se prolongar artificialmente o processo de morte (distanásia), deixa-se que este se desenvolva naturalmente (ortotanásia). Somente o médico pode realizar a ortotanásia, e ainda não está obrigado a prolongar a vida do paciente contra a vontade deste e muito menos aprazar sua dor.

Portanto, Pessini e Barchifontaine (2014) esclarecem que, quando a eutanásia é solicitada pelo paciente enfermo, sua intenção pode ser outra, no sentido de que deseja uma melhor assistência com medicamentos adequados para sua situação, capazes de lhe oferecer o conforto e a paz nos seus últimos momentos de vida.

A ortotanásia, segundo os autores, refere-se à morte com dignidade, ao morrer bem, sem ter que passar por sofrimentos prolongados e inúteis e, ao mesmo tempo, sem recorrer à eutanásia. É a oposição de todo sofrimento, pois é a morte natural que ocorre no momento correto e sem nenhuma intervenção, apenas tendo cuidados e medicamentos, para que o paciente não sinta qualquer dor e desconforto nos seus últimos dias (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014).

Para os referidos autores, ortotanásia significa:

É a arte de morrer bem, e sem recorrer à eutanásia. O grande desafio da ortotanásia, o morrer corretamente, humanamente, é como resgatar a dignidade do ser humano na última fase da sua vida, especialmente quando ela for marcada por dor e sofrimento. A ortotanásia é a antítese de toda tortura, de toda morte violenta em que o ser humano é roubado não somente de sua vida, mas também de sua dignidade (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014, p. 430).

Na mesma linha de raciocínio, compreende-se que a ortotanásia pode ser uma escolha do enfermo para evitar sofrimentos prolongados, apresentando-se como uma morte no tempo correto, não sendo algo premeditado, e sim uma espera natural sem usar meios artificiais nem desproporcionais. É preciso que se compreenda que optar pela ortotanásia não significa deixar de viver, mas passar o restante dos dias ao lado da família, podendo ser na própria casa, com amor, carinho e aconchego.

1.2 Requisitos para adoção

Segundo lição de Cabral (2016), o ordenamento jurídico brasileiro não tem uma lei específica para a ortotanásia, porém tem sido utilizada como parâmetro a Resolução nº 1.805/06 do Conselho Federal de Medicina, que aplica a prática da ortotanásia no âmbito da deontologia médica (CABRAL, 2016). Ao se tratar de informações legais a respeito da ortotanásia, identificam-se três pressupostos interligados à dignidade da pessoa no momento da morte: constatação de estado terminal de doença grave e incurável, consentimento da pessoa enferma e adoção de cuidados paliativos (CELINE; RICCO; CABRAL, 2020), cabendo salientar que a referida Resolução do CFM supracitada (BRASIL, 2006) serve de base para a prática da ortotanásia. Nesse sentido, destaca-se que:

Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou seu representante legal (BRASIL, 2006).

O primeiro requisito a ser preenchido para aplicação ética da ortotanásia é que o paciente enfermo tenha uma doença grave, incurável e irreversível, devendo ser comprovada e diagnosticada pelo médico responsável, que terá de confirmar que o paciente não apresenta chances de melhora ou de cura, conforme explica Celine; Ricco; Cabral (2020) no sentido de que “[...] incumbe ao médico diagnosticar o doente como portador de uma enfermidade em fase terminal”.

O segundo pressuposto é o consentimento do paciente, encontrando respaldo no artigo 1º da Resolução nº 1.805/2006 do CFM, que permite “ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal” (BRASIL, 2006).

Isso requer que o paciente enfermo possua entendimento de sua situação e apresente a permissão, o consentimento de deixar de realizar intervenções com fins meramente curativos, que não irão proporcionar melhoria do quadro clínico. Assim sendo,

O consentimento deve ser manifestado de forma clara e consciente pelo enfermo ou ter sido manifestado previamente mediante adoção de diretivas antecipadas de vontade, sendo o direito ao consentimento deferido ao representante legal somente nos casos de incapacidade que impossibilite o enfermo para decisões (CELINE; RICCO; CABRAL, 2020, p. 15-16).

Nesse mesmo sentindo, Pessini e Barchifontaine (2014, p. 484) expõem:

Qualquer intervenção médica preventiva, diagnosticada e terapêutica só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido do indivíduo envolvido, baseado em informação adequada. O consentimento deve, quando apropriado, ser expresso e pode ser retirado pelo indivíduo envolvido a qualquer hora e por qualquer razão, sem acarretar desvantagens ou preconceito.

A adoção de cuidados paliativos representa o terceiro pressuposto para a ortotanásia, quando já forem adotados todos os métodos da medicina curativa incapazes de promover melhorias ao paciente (CELINE; RICCO; CABRAL, 2020).

Observa-se que esse requisito é respaldado pelo Conselho Federal de Medicina, no artigo 2° da Resolução nº 1.805/2006, ao assegurar os cuidados paliativos como fundamentais para amenizar os sintomas do enfermo, a fim de controlar a dor e o sofrimento. Ademais, a adoção desses cuidados faz parte da listagem das condições para que a ortotanásia venha a ocorrer eticamente, de forma congruente, em integral consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, sobreposto ao paciente enfermo em seu estado terminal.

Para melhor compreensão, é ponderoso explicar que a medicina curativa realiza o emprego de remédios, medicamentos e, até mesmo, procedimentos ao paciente, no sentindo de obter a cura da enfermidade. Já a medicina paliativa objetiva proporcionar conforto ao enfermo, buscando tratar os sintomas do paciente nos seus últimos dias ou meses de vida, através de apoio psicoemocional e espiritual, visto que, para a medicina curativa, não há mais possibilidades de cura.

O cuidado paliativo é uma abordagem interdisciplinar que irá proporcionar ao paciente uma morte digna, ou seja, sem dor, sem ansiedade, livre de angústia e atendimento integral a sua pessoa e família (CABRAL, 2016).

Respeitados esses três pressupostos, tem-se a garantia de estar aplicando a ortotanásia de forma justa, humana, correta e ética.

Segundo Léo Pessini, citado por Cabral (2015), a medicina paliativa enumera cinco princípios importantes na atenção ao doente terminal:

Veracidade (fundamento do princípio da confiança, consistente em comunicar a verdade à pessoa enferma e a seus familiares); proporcionalidade terapêutica (empregar todas as medidas terapêuticas que sejam proporcionais aos resultados); duplo efeito (refere-se aos efeitos positivos e negativos consequentes de um mesmo procedimento); prevenção (previsão de possíveis complicações e/ou sintomas e prevenção e aconselhamento capazes de evitar sofrimentos desnecessários); não abandono (permanência junto ao paciente, estabelecendo comunicação empática, a fim de auxiliar o paciente em suas decisões) (CABRAL, 2015, p. 97-98).

A Resolução nº 1.805/2006, em seu art. 2º, expõe que o doente permanecerá recebendo cuidados capazes de aliviar os sintomas eassistência integral, como “conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar” (BRASIL, 2006).

Martins da Silva, citado por Maria Helena Diniz (2018, s.p.), expõe o seguinte sobre a existência de princípios norteadores da relação médico-paciente:

Nas relações médico-paciente, a conduta médica deverá ajustar-se às normas éticas e jurídicas e aos princípios norteadores daquelas relações, que requerem uma tomada de decisão no que atina aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos a serem adotados. Tais princípios são da beneficência e não maleficência, o do respeito à autonomia e ao consentimento livre e esclarecido e o da justiça. Todos eles deverão ser seguidos pelo bom profissional da saúde, para que possa tratar seus pacientes com dignidade, respeitando seus valores, crenças e desejos ao fazer juízos terapêuticos, diagnósticos e prognósticos. Dentro dos princípios bioéticos, o médico deverá desempenhar, na relação com seus pacientes, o papel de consultor, conselheiro e amigo, aplicando os recursos que forem mais adequados.

Posto isso, o médico irá auxiliar na decisão compartilhada, fornecendo informações adequadas, sendo que a última palavra é a do paciente, caso seja autônomo, capaz e tenha discernimento para manifestação de sua vontade. Caso não seja capaz, será levada em consideração a manifestação do representante legal do enfermo, sempre atentando para o seu bem-estar e a preservação da dignidade humana e autonomia.

1.3 Normativa do CFM

A base constitucional do direito à ortotanásia está garantida em princípios e direitos primordiais para a vida humana, sendo importante destacar alguns artigos que nos trazem essas garantias. O artigo 1º da CRFB, em seu inciso III, explicita o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (CRFB, 1988).

Apesar de não ter um conceito objetivo, esse princípio está presente em diversos dispositivos legais e na atividade jurídica, sendo usado para resguardar a garantia de uma vida digna para qualquer pessoa.

Seguindo a lógica de Cabral (2016, p. 56),

A dignidade humana, com o cumprimento dos anseios da pessoa, com o respeito à sua autodetermi­nação, sendo assim, para a implementação ética da ortotanásia, é fundamental que a pessoa seja respeitada pela família e pela equipe médica quanto à forma como pretende passar seus últimos dias, não sendo possível dissociar dignidade e morte digna, noções intrínsecas ao conceito de ortotanásia, entendida como “morte no tempo certo” – reafirmando, portanto, que morte e dignidade não podem ser desvinculadas nem estudadas de forma estanque, já que apresentam íntima relação na promoção da denominada morte digna. (grifos da autora).

Tem-se também o artigo 5º da CRFB, em seu inciso III, que estabelece:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (BRASIL. CRFB, 1988).

Porém o sistema normativo não estava sendo suficiente para que a dignidade da pessoa e sua vida fossem realmente protegidas e preservadas, o que culminou com a Resolução nº 1.805 do CFM, resultante de um processo histórico com o foco em discussões sobre os direitos dos doentes, que foi finalmente decidido em reunião plenária de 09 de novembro de 2006. Conforme demonstrado pelo Conselho Federal de Medicina, é dever do médico zelar pelo bem-estar dos pacientes e lhe compete diagnosticar o doente como portador de uma doença em fase terminal, se este for o caso.

As normativas do Conselho Federal de Medicina foram criadas através de um grande debate e várias observações que procuraram o melhor entendimento sobre o assunto na sociedade. Em 2005, o CFM promoveu um simpósio, na cidade de São Paulo, sobre o tema “terminalidade da vida”, que serviu de fundamento para a resolução em pauta. Naquele momento, foram ouvidas pessoas dos mais diversos matizes, entre as quais juristas, religiosos, bioeticistas e médicos (ANDRADE, 2011).

Já a Resolução nº 1.931/2009 do CFM, que aprovou o revogado Código de Ética Médica (CEM), intitulou o seu capítulo I como “Princípios Fundamentais”, e o seu inciso XXII traz o prenúncio dos cuidados paliativos com a seguinte redação: “Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados” (ARAÚJO, 2017, p. 6).

Em 30 de abril de 2019, entrou em vigor o novo Código de Ética Médica, por meio da Resolução nº 2.217/2018 do CFM, modificada pelas Resoluções nº 2.222/2018 e 2.226/2019, ambas também do CFM, que revogou a anterior (2009), contendo atualizações acerca de importantes mudanças do mundo contemporâneo e das tecnologias atuais.

O novo Código de Ética Médica foi aperfeiçoado através de princípios médicos, normas e disposições gerais, sempre com o objetivo principal de absoluto respeito ao ser humano, sendo que essa nova Resolução também adota o mesmo sentido da busca da dignidade e respeito à autonomia do paciente, inclusive na fase da terminalidade da vida.

No que diz respeito à dignidade da pessoa humana, o Código de Ética Médica estabelece, no capítulo de “Princípios fundamentais”, que “O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional” (BRASIL, 2019). Já os artigos 25 e 31 preveem que é vedado ao médico:

Art. 25. Deixar de denunciar prática de tortura ou de procedimentos degradantes, desumanos ou cruéis, praticá-las, bem como ser conivente com quem as realize ou fornecer meios, instrumentos, substâncias ou conhecimentos que as facilitem.

Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte (BRASIL, 2019).

No estudo da ortotanásia, é evidente o animus de fazer o bem, considerando a dignidade que pertence e acompanha o enfermo (ANDRADE, 2011). Assim sendo, o artigo 24 do mesmo Código esclarece que é vedado ao médico, no uso de sua autoridade, “limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a sua pessoa ou seu bem-estar” (BRASIL, 2019).

Ainda no que se refere à a Resolução n° 1.805/2006, supramencionada, no mês de maio de 2008, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma Ação Civil Pública em oposição ao CFM (autos processo n° 2007.34.00.014809-3) indagando a referida Resolução, ao alegar que o CFM não possuía competência para legislar, não podendo regulamentar como ética uma conduta caracterizada como crime, posição adotada sobre a ortotanásia. No entanto, o magistrado entendeu a favor do CFM (MOREIRA, 2015), conforme se observa o seu entendimento nos autos do processo:

A ortotanásia não antecipa o momento da morte, mas permite tão somente a morte em seu tempo natural e sem utilização de recursos extraordinários postos à disposição pelo atual estado da tecnologia, os quais apenas adiam a morte com sofrimento e angústia para o doente e sua família (MOREIRA, 2015, p. 134).

Nessa perspectiva, o STF entendeu que a ortotanásia é permitida, conforme mérito da Ação Civil Pública n° 2007.34.00.014809-3 e que, coerentemente, a Resolução pactua com tal determinação (MOREIRA, 2015). No entendimento de Cunha, Silva e Moreira:

A Resolução do Conselho Federal de Medicina n° 1.805/2006 – que versa sobre a ortotanásia e a ausência de normas específicas que pontuem mais claramente a relação do tratamento versus doença e, por consequência, a cura ou a morte, o direito vai adotar como parâmetro os princípios basilares do ordenamentos jurídico brasileiro, sendo que vários estão positivados na Constituição Federal. Nessa perspectiva, a partir da interpretação e ponderação desses princípios é que surgem as soluções diante da necessidade de resposta para os problemas que se originam dessa relação vida-morte (CUNHA; SILVA; MOREIRA, 2019, p. 48).

Ademais, a Resolução n° 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina foi criada para que a ortotanásia fosse regularizada, uma vez que seu objetivo foi demonstrar, a partir de uma análise constitucional, a legalidade da prática da ortotanásia na perspectiva do direito de morrer com dignidade, inserido no contexto de Estado Democrático de Direito, além de evitar intervenções inadequadas que são incapazes de alterar o prognóstico da doença do paciente.

O intuito da Resolução é que o enfermo possa ter uma morte digna, natural, sem que possa se caracterizar uma distanásia que é a morte prolongada através de aparelhos artificiais. Sendo assim, o paciente poderá decidir o que melhor lhe aprouver quando a medicina curativa não for mais válida.

Nesse contexto, é preciso entender que a referida Resolução, voluntariamente por si só, não pode solucionar a questão da aplicação da ortotanásia no Brasil, contudo sua serventia deve ser utilizada para os debates que se estendem, levando-se em consideração a humanização da medicina quanto ao reconhecimento de seus limites e à prioridade ao ser humano e não às técnicas e tratamentos (CABRAL, 2015).

Importante mencionar que o primeiro caso de ortotanásia que foi divulgado, porém bem discretamente e ainda não visto como ortotanásia à época, foi o da morte do Papa João Paulo II, que optou por ter uma morte em seus aposentos no Palácio Apostólico, adotando os cuidados paliativos no fim de sua vida.

2 CUIDADOS PALIATIVOS NA TUTELA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Nesta seção, será abordada a relevância dos cuidados paliativos na tutela da dignidade da pessoa humana, assim como o seu conceito, origem, aplicação e importância da ortotanásia. Por conseguinte, serão analisados o cenário paliativo e a dignidade na finitude humana, situação que o paciente enfermo vivenciará no momento final de sua vida.

2.1 Conceito, origem e aplicação

A Lei n° 52/2012, Lei dos Cuidados Paliativos, possibilita o direito de acesso e administra o ingresso dos pacientes enfermos aos cuidados paliativos, regulamentando o compromisso do Estado em matéria de cuidados paliativos e estabelecendo a Rede Nacional de Cuidados Paliativos (RNCP). À vista disso, a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) entende que os cuidados paliativos devem ser indicados e iniciados assim que o enfermo recebe o diagnóstico da doença incurável (SILVA; CABRAL, 2020).

No Brasil, os cuidados paliativos tiveram início na década de 1980, segundo Pessini e Barchifontaine (2014), e foram evoluindo com o passar dos anos, na proporção em que foram sendo desenvolvidos em vários países do mundo. Esses cuidados foram assim definidos não pela idade ou tipo de doença, mas tendo como principal referência um diagnóstico de morte iminente. A expressão se origina do latim pallium que se refere a “manto”, oferecendo um abrigo ou proteção para aqueles que passam frio, ou seja, aqueles pacientes enfermos com doenças incuráveis que não podem mais optar pela medicina curativa e terão a opção de ter os cuidados paliativos nos últimos momentos de vida (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014). Nesse sentido,

A Organização Mundial de Saúde (OMS, 1990) conceituou os Cuidados Paliativos pela primeira vez em 1990, como os cuidados ativos e totais aos pacientes quando a sua doença não responde aos tratamentos curativos, quando o controle da dor e de outros sintomas (psicológicos, sociais e espirituais) são prioridade e o objetivo é alcançar a melhor qualidade de vida para o pacientes e familiares (DADALTO; SANTOS, 2018, p. 32).

Para Santoro (2012), adotar cuidados paliativos significa poder proporcionar o procedimento natural de fim da vida, nas melhores circunstâncias viáveis, para o paciente, seus familiares e todas as pessoas comprometidas com o caso. O autor faz menção às obrigações das pessoas envolvidas para que o cuidado paliativo seja exitosamente aplicado, como controle da dor, dos sintomas de desconfortos e preservação, até onde for possível, da consciência e comunicação (verbal ou não) do enfermo, garantia da alimentação, nutrição apropriada, a ajuda necessária de enfermagem e cuidados, bem como propiciar que a família tenha atendimento psicológico necessário. Ademais, ajudar e possibilitar qualidade, dignidade ao enfermo em seus últimos dias (SANTORO, 2012).

Nesse sentido, o art. 2º da Resolução 1.805/06 do Conselho Federal de Medicina, que trata da terminalidade da vida, determinando ao médico a manutenção dos cuidados paliativos:

Art. 2°. O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar (SANTORO, 2012, p. 90).

Os cuidados paliativos foram inspirados por Cicely Saunders, assistente social, médica e enfermeira britânica proclamadora do movimento de St. Christopher Hospice, que provém de Christopher (Cristovão), que significa “aquele que carrega Cristo”, tendo em vista que São Cristóvão é o santo dos peregrinos e viajantes (MOREIRA; CABRAL; DADALTO, 2018). Nesse mesmo sentido, segundo Von-Held,

A palavra hospice tem origem no latim hospes, significando estranho ou estrangeiro. Posteriormente, o termo tomou outra conotação: hospitalis significa amigável, bem-vindo ao estranho, evoluindo o significado para hospitalidade. Este movimento começou introduzir um novo conceito de cuidar, e não só de curar, focado no paciente até o final de sua vida (VON-HELD, 2015, p. 160).

Em 1947, em um hospital de Archway de Londres, Cicely, como enfermeira, teve participação no tratamento do enfermo David Tasma, um judeu refugiado de 40 anos, que tinha uma doença incurável, câncer retal avançado, fato que desenvolveu uma amizade entre ambos, o que o fez deixar para ela 500 libras para a finalidade de criar uma instituição para moribundos no final de suas vidas. No ano de 1963, ela começou um planejamento de uma entidade com a finalidade de acolher os pacientes enfermos que não tinham mais possibilidade de cura (MOREIRA; RIBEIRO; PONTES-RIBEIRO; CABRAL, 2020).

Logo em seguida, em 1967, depois de 8 anos reunindo recursos, teve início, em Londres, o primeiro Hospice, berço dos cuidados paliativos, almejando a humanização no tratamento dos enfermos nos seus últimos momentos de vida. Surge, então, uma concentração de abstenção à medicalização, resultando a ideia da boa morte, em que se proporciona que os pacientes tenham a chance de se preparar para morrer com dignidade. Nesse Hospice, Cicely fez pesquisas descobridoras sobre a morfina e sua amenização da dor nos enfermos, e ainda teve novos entendimentos sobre como controlar os sintomas das dores. Cicely fazia combinações de cuidados, em que os pacientes enfermos poderiam ser tratados com medicação, aulas de artes ou jardinagem, visto que, para ela, os pacientes mereciam tratamentos sociais, emocionais e espirituais, mesmo quando a medicina era contrária e tinha opiniões diferentes (CELINE; RICCO; CABRAL, 2020).

O hospice não se amolda ao sentido comumente atribuído de hospício, como uma entidade voltada ao tratamento de portadores de doenças mentais. Trata-se, na verdade, de instituição voltada para o cuidado de pacientes terminais, proporcionando-lhes uma vida agradável, ao cuidar de suas necessidades físicas, espirituais e emocionais com seus entes queridos, sem abreviar nem prolongar sua vida (MOREIRA; CABRAL; DADALTO, 2018, p. 57).

No Brasil, em 1983, o pioneirismo aconteceu por meio da Dra. Miriam Martelete, que fundou o serviço de cuidados paliativos na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Com isso, foi-se expandindo para outras cidades brasileiras e, no ano de 1989, aconteceu a criação dos serviços de cuidados paliativos do Instituto Nacional do Câncer (INCA), no Rio de Janeiro. Esse setor brasileiro, até o momento atual, é o que oferece cuidados no padrão e nas referências de St. Christophe’s. Em seguida, em 1997, foi instituída a Associação Brasileira de Cuidados Paliativos (ABCP), instituição sem fins lucrativos que tem por finalidade fornecer os cuidados paliativos a pacientes com doenças evolutivas. No mesmo ano, em 1997, a ABCP teve a primeira congregação dos paliativistas, e, no ano subsequente, em 1998, houve a inauguração (através do INCA) do hospital Unidade IV, exclusivo para os cuidados paliativos (MOREIRA; CABRAL; DADALTO, 2018). É importante salientar que:

Um dos momentos marcantes na história da medicina paliativa se deu com o advento da Resolução n° 1.805/2006, do Conselho Federal de Medicina (CFM), ao reconhecer a prática dos cuidados paliativos. Ela regulamenta que, quando o paciente estiver numa fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, é possibilitado ao médico suspender ou limitar procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal (MOREIRA; CABRAL; DADALTO, 2018, p. 64).

A utilização dos cuidados paliativos começa no estágio inicial da doença, objetivando oferecer ao paciente total conforto desde o começo de seu tratamento, ao evitar que sinta dores ou sofrimentos (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2014). Assim sendo,

No mês de novembro do ano de 2018 o Sistema Único de Saúde (SUS) publicou, pelo Ministério da Saúde Brasileiro, a uniformização dos cuidados paliativos. Defende que devem estar aptos em todos os pontos da rede, “na atenção básica, domiciliar, ambulatorial, hospitalar, urgência e emergência.” A resolução tem como objetivo especificar as diretrizes do cuidado paliativo e aprofundar, de forma especializada, o cuidado. Assim como nas melhores conceituações a nível mundial, no SUS, também se especifica que a oferta dos cuidados paliativos deve acontecer o mais cedo possível, ou seja, logo no início do tratamento da doença, abarcando, para tanto, o alívio da dor, todo e qualquer sintoma físico indesejável, assim como o amplo cuidado psicológico de todos os indivíduos envolvidos no processo, desde o paciente até os familiares e cuidadores. Deve-se, ainda, olhar pelo sofrimento psicossocial que a doença pode causar (COSTA; MAGALHÃES; ROCHA, 2019, s.p.).

Os cuidados paliativos são tratamentos básicos que todo paciente deve ter em casos de doenças incuráveis e de quadro irreversível, levando-se em consideração que esse enfermo deve sempre saber de sua situação, cabendo à equipe médica sempre optar pelos melhores tratamentos paliativos, a fim de que diminua seu sofrimento e o de seus familiares, possibilitando uma morte serena. No entanto, os cuidados paliativos são oferecidos e indicados pelos médicos como a última opção quando o fim se aproxima (CABRAL, 2015).

2.2 Os cuidados paliativos e a ortotanásia

Esses dois temas são abordagens que visam à morte digna e no tempo natural da vida. Para que seja aplicada de forma ética no Brasil, a ortotanásia deve preencher três pressupostos já mencionados: estado de terminalidade de doença do paciente, seu consentimento e adoção de cuidados paliativos. Quando esses requisitos são adotados, a ortotanásia é proporcionada ao enfermo com sua autorização expressa, de forma que os médicos iniciam a abordagem dos cuidados paliativos no paciente enfermo.

Ademais, é importante destacar a importância do apoio da família quando essa é a opção ou a única chance de o paciente viver mais um tempo, sem sofrimentos causados por prolongamentos artificiais (CABRAL; RIBEIRO; CABRAL; SOUZA, 2018).

Conforme já se explicou, o próprio paciente decide sobre querer ou não optar pela ortotanásia e os cuidados paliativos, pois tem a liberdade de poder escolher o que acha melhor para si. Mas há casos em que o paciente é incapaz e não deixou nenhum documento que expresse sua vontade, como um testamento vital. Nesse caso, caberá um mandatário da saúde, que é instituído como procurador, que será consultado pelos médicos no momento da tomada de decisão sobre o tratamento. Entretanto, não havendo um mandatário, os familiares tomarão uma decisão, sempre preservando a dignidade do paciente e a sua vontade, que pode ser observada durante a vida, de acordo com sua religião e convicções (GERVASIO; RIBEIRO; NOVAIS, 2019).

Cabe ressaltar que existem duas formas de manifestação de vontade do paciente, expressa por instrumentos jurídicos: o consentimento informado e o testamento vital. O consentimento informado é quando o paciente expressa sua vontade, já que o médico lhe comunicou um diagnóstico irreversível, sendo previsto no artigo 1° da Resolução nº 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina. O testamento vital somente poderá ser feito pelo paciente se ainda possuir o pleno gozo de suas faculdades mentais, havendo condições de decidir livremente (LIMA, 2017). Segundo Santoro,

O avanço do conhecimento técnico-científico não pode levar o homem à submissão a um tratamento cruel e degradante; muito pelo contrário, deve possibilitar que o médico, com precisão, estabeleça o momento exato em que a cura não é mais possível, preservando apenas a função cuidadora. Encontrado esse ponto, deve o médico interromper qualquer atividade heroica e que levaria a uma prolongação indesejável de sua vida (SANTORO, 2012, p. 134).

O direito de viver, previsto na Constituição Federal, não determina que as pessoas optem por tratamentos que não terão resultados de cura. Assim, conforme também previsão da dignidade da pessoa humana na Constituição, o paciente poderá requerer a ortotanásia e os cuidados paliativos quando o médico não puder mais fornecer a medicina curativa ao paciente (SANTORO, 2012). Nesse sentido, segundo Martins,

Tal prática não encontra impedimento legal nem ofende princípio algum já estabelecido no Direito, mas, por ser obscura ao conhecimento comum da maioria das pessoas, já teve a regulamentação de sua prática impedida por liminar solicitada pelo Ministério Público Federal. Atualmente, a prática não apenas é permitida, como também é vista como caminho para fazer valer a dignidade da pessoa humana (MARTINS, 2013, s.p).

Os cuidados paliativos se constituem em uma solução para o paciente enfermo não sofrer mais com tratamentos excessivos. Contudo há debates éticos e bioéticos no sentido de ainda haver confusão com relação à instigação à morte ou à suspensão de tratamentos, sendo necessário salientar que os cuidados paliativos são aplicados ao paciente na especialidade médica e não por sua conta própria.

Quando é realizada a opção pela ortotanásia, o seu objetivo é auxiliar no conforto do paciente durante a sua finitude. É um tratamento necessário que visa a um apurado bem-estar mental, físico e social, exigindo-se sempre o melhor para o paciente, pois ser acometido por uma doença incurável afeta vários aspectos, principalmente pessoais e familiares (LÓSS; ROCHA; NOVAIS, 2019).

Nesse contexto, a OMS tece uma análise sobre a abordagem paliativa:

Uma abordagem que aprimora a qualidade de vida, dos pacientes e das famílias que enfrentam problemas associados com doenças ameaçadoras da vida, através da prevenção e do alívio do sofrimento, por meio de identificação precoce. Avalição correta e tratamento da dor e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual (LÓSS; ROCHA; NOVAIS, 2019, p. 61).

Diante disso, observa-se o quanto é importante as duas abordagens – cuidados paliativos e ortotanásia - serem aplicadas concomitantemente, uma vez que, no momento em que o paciente opta pela ortotanásia, está deixando de prolongar sua vida com meios artificiais que seriam fúteis, ao passo que a sugestão dos cuidados paliativos pelos médicos visa ao conforto do paciente, a fim de estar bem na sua finitude.

2.3 O cenário paliativo e a dignidade na finitude humana

A finitude da vida sobrevém na fase em que a doença do paciente avança e as abordagens curativas não fazem mais efeito, passando a ser impossível recompor a saúde do paciente e sequer conseguir prolongar sua vida, não sendo válido nenhum esforço para prolongar sua vida de forma artificial, em respeito à libertação de seu sofrimento. Nesse cenário, o melhor a ser feito é proporcionar tranquilidade e paz ao paciente, principalmente física e emocional, até o momento de sua morte, pois a dignidade é prevista constitucionalmente.

Como o melhor deverá ser realizado ao paciente, a obstinação terapêutica só iria proporcionar sofrimentos, já que seu prognóstico desfavorável é irreversível. Posto isso, pode-se concluir que:

É possível perceber que a obstinação terapêutica, com práticas de postergar a morte a todo custo, não é benéfica para o paciente, gerando dor e desconforto. O tratamento no fim da vida deve objetivar aliviar os sintomas, proporcionando um fim acolhedor. O profissional que se dedica a cuidar de doentes em fim de vida precisa se orientar para a pessoa, objetivando cuidar e aliviar o seu sofrimento e atender às suas diferentes necessidades, não mais se preocupando com o diagnóstico da sua doença (LÓSS; ROCHA; NOVAIS, 2019, p. 63).

No momento da finitude, a dignidade advém de respeito a valores que a pessoa enferma sempre acreditou e preservava consigo mesma, sendo essencial acatar suas crenças, valores espirituais e escolhas para que o paciente possa ter uma morte digna. Paralela à dignidade, a autonomia do paciente enfermo também deve ser preservada, ao representar a capacidade do indivíduo de conduzir a sua própria vida (CELINE; RICCO; CABRAL, 2020).

É sempre significativo levar em consideração os desejos do enfermo, como onde ele deseja estar, em que lugar ele se sente bem, mas é primordial que o paciente tenha sempre uma boa relação com seu médico, esclarecendo junto com sua família sobre o que lhe faz bem, de forma a garantir a efetividade dos cuidados paliativos (CABRAL, 2015). Assim, o paciente com diagnóstico de quadro irreversível pode e deve receber os cuidados paliativos com o apoio de sua família, embora o cenário paliativo seja diversificado em enfermarias hospitalares, hospices, instituições e em domicílio (VASCONCELOS; PEREIRA, 2018).

Ademais, é essencial optar por uma equipe multidisciplinar para tratar as necessidades do enfermo e de seus familiares, acrescentando conversas, conselhos para o luto da família, caso o paciente venha a falecer. O tratamento dos cuidados paliativos deve ser sempre iniciado antes do momento da morte do paciente e ter uma equipe central que se componha de médico, enfermeiro, assistente social e terapeuta. Como já mencionado, o apoio psicossocial e espiritual é fundamental caso o paciente tenha suas crenças e queira segui-las com fé (VON-HELD, 2015). Nesse sentido, Moreira diz:

Sob o ponto de vista religioso, percebe-se que é entendimento do pontificado que a autonomia da vontade do paciente em estado terminal ou em condições irreversíveis deve ser reconhecida e respeitada, coadunando-se, portanto, com os direitos fundamentais insculpidos na Constituição Federal vigente no país e, por conseguinte, com as diretrizes da Resolução do CFM (MOREIRA, 2015, p. 139).

Diante disso, pode-se observar o quanto é importante que o paciente tome sua própria decisão na finitude da vida quando o médico manifesta que a medicina curativa é um procedimento inválido, mostrando-se necessária a conversa sobre o cenário paliativo com o paciente e sua família logo no início, quando a doença é diagnosticada, de modo que o paciente possa escolher, junto com o seu médico, o melhor no momento de sua finitude.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ortotanásia é uma conduta médica adotada quando o paciente é diagnosticado com uma enfermidade incurável, não cabendo mais a medicina curativa. Sua finalidade é possibilitar que o paciente morra no momento certo e de forma natural, sem nenhuma abreviatura ou obstinação terapêutica, tendo como base o princípio da dignidade da pessoa humana, que é previsto pela Constituição Federal, e o da autonomia da vontade, que possibilita ao paciente decidir sobre sua vida.

Os cuidados paliativos minimizam o sofrimento do enfermo no processo da morte, sendo adotados recursos para que tenha todo o conforto possível, psicológico e espiritual. Por isso é importante que seja respeitada toda decisão do paciente e, excepcionalmente, de seus representantes legais, em casos em que o enfermo não tenha condições de expressar sua própria vontade.

No Brasil, não há uma legislação específica que discipline a ortotanásia. No entanto, tem-se a Resolução nº 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina (CFM), juntamente com o Código de Ética Médica (CEM) como normas deontológicas que regularizam essas abordagens apesar de não terem força de lei, mas que deverão servir como norte para as condutas médicas aplicadas aos enfermos com doenças incuráveis, procurando-se sempre amenizar o sofrimento do paciente.

A partir de uma análise constitucional e ética, observou-se que a prática da ortotanásia e dos cuidados paliativos apresenta-se de forma lícita, visto que não há impedimento legal nem ofensa a qualquer princípio estabelecido no Direito, além de ser benéfica ao paciente terminal, na perspectiva do direito de morrer com dignidade, não permitindo que seja sujeito a tortura ou tratamento desumano.

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suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente,

garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao

sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do

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[1] Professor do Departamento de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Tem estágio de pós-doutorado em Educação/Currículo Jurídico pelo Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e atualmente realiza estágio de pós-doutorado em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Lattes: http://lattes.cnpq.br/7148335865348409

[2] Bacharel em Direito.

[3] Doutora e Mestra em Cognição e Linguagem (Uenf). Realiza estágio de pós-doutorado em Direito Civil e Processual Civil (Ufes). Advogada (OAB/MG). Miembro de la Asociación de Bioetica Juridica de la Universidad de La Plata – AR. Integrante do Gepbidh (Grupo de Estudos e Pesquisa em Bioética e Dignidade Humana). Lattes: http://lattes.cnpq.br/5709978455102527- E-mail: rveggi@yahoo.com.br

[4] Doutora e Mestra em Cognição e Linguagem (Uenf). Estágio Pós-doutoral em Direito Civil e Processual Civil (Ufes). Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Miembro Efectivo de la Asociación de Bioetica Juridica de la Universidad de La Plata – AR. Coordenadora do Gepbidh (Grupo de Estudos e Pesquisa em Bioética e Dignidade Humana). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3000681744460902 - E-mail: hildeboechat@gmail.com

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Notas

[1] 1] Professor do Departamento de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Tem estágio de pós-doutorado em Educação/Currículo Jurídico pelo Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e atualmente realiza estágio de pós-doutorado em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Lattes: http://lattes.cnpq.br/7148335865348409
[2] [2] Bacharel em Direito.
[3] [3] Doutora e Mestra em Cognição e Linguagem (Uenf). Realiza estágio de pós-doutorado em Direito Civil e Processual Civil (Ufes). Advogada (OAB/MG). Miembro de la Asociación de Bioetica Juridica de la Universidad de La Plata – AR. Integrante do Gepbidh (Grupo de Estudos e Pesquisa em Bioética e Dignidade Humana). Lattes: http://lattes.cnpq.br/5709978455102527- E-mail: rveggi@yahoo.com.br
[4] [4] Doutora e Mestra em Cognição e Linguagem (Uenf). Estágio Pós-doutoral em Direito Civil e Processual Civil (Ufes). Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Miembro Efectivo de la Asociación de Bioetica Juridica de la Universidad de La Plata – AR. Coordenadora do Gepbidh (Grupo de Estudos e Pesquisa em Bioética e Dignidade Humana). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3000681744460902 - E-mail: hildeboechat@gmail.com


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