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UM ENSAIO SOBRE O ASPECTO FELINO DE MEDUSA: ENTRECRUZAMENTOS ENTRE DURAS, BREILLAT E TELLES
Un ensayo sobre el aspecto felino de Medusa: intersecciones entre Duras, Breillat y Telles
An essay on the feline aspect of Medusa: intersections between Duras, Breillat and Telles
TAREA. Anuario del Instituto de Investigaciones sobre el Patrimonio Cultural, vol. 1, núm. 3, pp. 114-138, 2016
Universidad Nacional de San Martín

Artículos

TAREA. Anuario del Instituto de Investigaciones sobre el Patrimonio Cultural
Universidad Nacional de San Martín, Argentina
ISSN: 2469-0422
ISSN-e: 2362-6070
Periodicidade: Anual
vol. 1, núm. 3, 2016

Recepção: 16 Outubro 2020

Aprovação: 30 Outubro 2020

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Resumo: Neste ensaio buscamos caracterizar o aspecto felino da autarquia feminina tal que simbolizada pela imagem de Medusa na narrativa La maladie de la mort, de Marguerite Duras, mas também em sua adaptação para o cinema, Anatomie de l’enfer, dirigida por Catherine Breillat. Para tanto, em primeiro lugar, abordamos a dimensão cinematográfica da escrita de Duras, a qual a vincula ao pensamento imagético de Homero e à estética expressionista de inspiração nietzschiana. Em seguida, mostramos os desvios do roteiro de Anatomie de l’enfer no que tange ao pitching de La maladie de la mort para desenvolvermos, na via aberta por Duras, a transversalidade filosófico-literária entre Homero e Breillat no que se refere às imagens de Calypso e de Ulisses. Por outro lado, em comparação a Calypso e através da Olympia de Manet, delineamos o caráter felino da feminilidade medúsica. Finalmente, no intuito de dar ensejo à reflexão acerca da ambivalência da subjetividade afirmativa, analisamos de forma breve o conto Tigrela de Lygia Fagundes Telles.

Palavras-chave: autarquia, afirmação, feminilidade, gato, Medusa.

Resumen: En este ensayo buscamos caracterizar el aspecto felino de la autarquía femenina simbolizada por la imagen de Medusa en la narrativa La maladie de la mort, de Marguerite Duras, pero también en su adaptación cinematográfica, Anatomie de l'enfer, dirigida por Catherine Breillat. Por tanto, en primer lugar, nos acercamos a la dimensión cinematográfica de la escritura de Duras, que la vincula con el imaginario de Homero y con la estética expresionista de inspiración nietzscheana. A continuación, mostramos las desviaciones del guion de Anatomie de l'enfer en cuanto al pitching de La maladie de la mort para desarrollar, en el camino abierto por Duras, la transversalidad filosófico-literaria entre Homero y Breillat con respecto a las imágenes de Calipso y Ulises. Por otro lado, en comparación con Calypso y a través de Olympia de Manet, delineamos el carácter felino de la feminidad medúsica. Finalmente, para dar lugar a la reflexión sobre la ambivalencia de la subjetividad afirmativa, analizamos brevemente el cuento Tigrela de Lygia Fagundes Telles.

Palabras clave: autarquía, afirmación, feminidad, gato, Medusa.

Abstract: In this essay we seek to characterize the feline aspect of the female autarchy as symbolized by the image of Medusa in the narrative La maladie de la mort, by Marguerite Duras, but also in its film adaptation, Anatomie de l'enfer, directed by Catherine Breillat. Therefore, firstly, we approach the cinematographic dimension of Duras' writing, which links her to Homer's imagery thinking and to the expressionist aesthetics inspired by Nietzsche. Then, we show the deviations from the Anatomie de l'enfer script regarding La maladie de la mort to develop, in the way opened by Duras, the philosophical-literary transversality between Homer and Breillat concerning Calypso and Ulysses. On the other hand, in comparison to Calypso and through Manet’s painting Olympia, we delineate the feline character of medusic femininity. Finally, to give rise to the reflection on the ambivalence of affirmative subjectivity, we briefly analyze Lygia Fagundes Telles' short story Tigrela.

Keywords: autarchy, affirmation, femininity, cat, Medusa.

Introdução: a escrita cinematográfica de Duras

A dimensão cinematográfica da escrita de Marguerite Duras a coloca na via literária de Homero, o qual, segundo Rancière (2015), não separa o pensamento da imagem e não contrapõe a fábula à realidade: “Homero não é um inventor de fábulas. Pois ele não conhecia nossa diferença entre história e ficção. (...) Simplesmente vivia num tempo em que o pensamento não se separava da imagem, tampouco o abstrato do concreto” (29. Minha tradução). Duras, como Homero, possui um pensamento imaginativo que lhe permite mitologizar o amor. A mitologia durassiana consiste na ficcionalização de símbolos, ou melhor, Duras faz dos símbolos ficção e de tal maneira combate o absolutismo intelectualista das Ideias da Razão, as quais nada mais são do que símbolos que se impõem e que são impostos como noções fixas, estruturantes.

A partir de César Aira, parece ser possível afirmar que a literatura de Duras é expressionista, pois suas narrativas são invadidas por monstros cujas imagens são simbolizadas linha por linha. Como explica César Aira (2007), o mundo expressionista ou para o expressionista “perde sua natureza cristalina, fica gomoso, opaco de barro. (...) e sua obra fica cheia de monstros” (46). Estes monstros são projetados “no campo simbólico, mediante palavras” (Aira, 2007, 45). Tal procedimento estético é, com efeito, bastante inadequado, na verdade, ele visa à inadequação e beira ao absurdo, mas abandoná-lo seria renunciar à criação do tempo presente: “e já não por obstinação no erro, deu-se uma transmutação, operou-se uma química, e agora a inadequação é método. Retroceder (...) seria sair do presente (...)” (Aira, 2007, 46). Talvez possamos vincular esta caracterização do expressionismo à maneira pela qual Rancière descreve o contramovimento filosófico-literário que tem Nietzsche como um de seus heróis. Conforme Rancière, o contramovimento pós-Nietzsche – no qual também se inscreve o nascimento da psicanálise:

(...) mergulha no puro sem-sentido da vida bruta ou no encontro com as forças das trevas. (...) Com ele, define-se uma nova ideia de artista. O artista é aquele que viaja nos labirintos ou nos subsolos do mundo social. (...) Na topografia de um lugar ou na fisionomia de uma fachada, na forma ou no desgaste de uma vestimenta, no caos de uma exposição de mercadorias ou de detritos, ele reconhece os elementos de uma mitologia. E, nas figuras dessa mitologia, ele dá a conhecer a história verdadeira de uma sociedade, de um tempo, de uma coletividade; faz pressentir o destino de um indivíduo ou de um povo. (...) mergulha num esgoto que diz tudo, como um filósofo cínico, e reúne em pé de igualdade tudo aquilo que a civilização utiliza e rejeita, suas máscaras e insígnias, bem como seus utensílios cotidianos. (...) Ele afirma que não existe o insignificante, que os detalhes prosaicos que um pensamento positivista despreza ou remete a uma simples racionalidade fisiológica são os signos em que se cifra uma história. Mas afirma também a condição paradoxal dessa hermenêutica: para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado. (Rancière, 2015, 33, 36, 37-38. Minha tradução)

A relação de Duras com a Antiguidade arcaica é trabalhada sob o feixe da inadequação expressionista que mitologiza o amor através da imagem-símbolo de Medusa. A máscara de Medusa é simbolizada pela autora a partir da bestialidade de Lilith e a partir da animalidade do gato, geralmente um gato preto que reenvia as mulheres-bruxas ao primitivismo de suas liberdades. Em Duras, o gato sempre aparece em consonância com a floresta, a qual representa a vida fora da casa, a vida fora da instituição familiar, ou ainda, a floresta aparece como o lugar que, ao invés de evocar o formalismo humano, evoca a vida do animal – uma vida imprópria que não tem propriedade. No arquivo 76 DRS 26.2 do Fundo Marguerite Duras (1972-1974), disponível no InstitutMémoires de l’Édition Contemporaine (IMEC), Duras descreve a participação do gato no roteiro de Nathalie Granger da seguinte forma:

Nós vemos de muito perto os olhos do gato, sua matéria interna, mineral, neutra, brutal. A mulher, olhando o gato, olha a Natureza, contida nos olhos do gato. Incontrolável, terrificante, a Natureza também habita as crianças, todos, os criminosos da floresta de Dreux e os outros, todos os outros. (12. Minha tradução)

Como podemos perceber, em Marguerite Duras, a simbolização é despretensiosa, ou seja, por meio dos olhos ferinos de Medusa, Duras não pretende arcar com as dimensões fundamentais da ontologia e com as dimensões transcendentais da metafísica – o que acaba acontecendo com a simbolização psicanalítico-patriarcal do Falo. Assim, Duras desmascara o vértice expressionista da própria psicanálise, a qual teria levado muito à sério uma categoria que insiste em reduzir as mulheres a um objeto, ao objeto do desejo e da repulsa masculina: “Existe ainda, eu creio, uma categoria fálica que é levada muito a sério” (Duras, Torre, 2013, 139. Minha tradução). Por outro lado, em L’énigme de la femme, Kofman também trabalha a psicanálise sob a chave do expressionismo, entendido aqui como o procedimento estético que simboliza a imagem e mitologiza a história. Por este motivo, neste ensaio, retomo as reflexões de Kofman sobre Medusa e sobre a mulher afirmativa com o intuito de mediar a comparação entre La maladie de la mort (2010), narrativa durassiana primeiramente publicada em 1982, e Anatomie de l’enfer (2004), adaptação fílmica da referida obra de Duras dirigida por Catherine Breillat. A partir do longa-metragem de Breillat, busco explorar o caráter cinematográfico da escrita e, de modo geral, do pensamento de Duras, o qual pode ser genealogicamente atrelado a Homero e, desse modo, ao contramovimento filosófico-literário de inspiração nietzschiana.

1. O roteiro de Anatomiede l’enfer

As narrativas durassianas são fábulas cinematográficas que não se opõem à realidade. Pelo contrário, por meio do movimento imagético de sua escrita, Duras diagnostica o real e nele intervém. Talvez seja por este motivo que quase todas as criações literárias de Duras tenham sido adaptadas para o cinema, tanto pela própria autora, como é o caso de Détruire dit-elle (1969), quanto por outros diretores, como é o caso de La maladie de la mort. Existem, pois, duas adaptações fílmicas bastante recentes de La maladie de la mort que dão vazão à dimensão homérica da escrita de Duras. Trata-se do curta-metragem The malady of death (2003), dirigido por Asa Mader, e do longa-metragem Anatomie de l’enfer (2004), dirigido por Catherine Breillat. É justamente em Anatomie de l’enfer que a interface felina de Medusa aparece. Portanto, no presente texto, que visa dar ensejo à animalidade ou ao animalismo da feminilidade medúsica, tal que caracterizada nas vias abertas por Duras, não compararemos as duas adaptações cinematográficas de La maladie de la mort, mas nos centraremos no filme de Breillat.

O roteiro de Anatomie de l’enfer é baseado no livro Pornocratie (2001), escrito por Breillat sob inspiração de La maladie de la mort. A narrativa de Breillat mantém a mesma cadência homérica da narrativa de Duras, contudo, no caso de Pornacratie quem contrata e paga pelas noites de conjugalidade matrimonial é a mulher e não o homem. Aparentemente Breillat inverte o pitching de La maladie de la mort com base em La pute de la côte normande (1986) – texto em que Duras nos relata o processo de adaptação deLa maladie de la mort para o teatro, processo que resultaria na obra Les yeux bleus cheveux noirs(2016). Com efeito, em Pornocratie, Breillat não deixa de apreender a riqueza de La maladie de la mort, obra em que Duras nos permite problematizar, por meio do retrato da melancolia amorosa do homem e da mulher que se subjugam ao contrato e à normalidade estanciada por ele, a repressão masculina, a opressão feminina e a misoginia atrelada à falocracia. Dito de outro modo, o que está em jogo em La maladie de la mort são as funções sociais que reiteram a misoginia em uma sociedade falocrática e que incidem sobre homens e mulheres de modo a reprimi-los e oprimi-las no que tange à experiência do amor.

Nesta narrativa de Duras a figura do homem permanece ambígua, ou seja, o homem que contrata as noites pagas pode ser interpretado como um heterossexual falocêntrico ou como um homossexual que tenta se adequar às normas matrimoniais do amor, as quais preveem o vínculo de finalidade reprodutiva entre um homem e uma mulher. Em La pute de la côte normande, Duras conta que, em razão dos diferentes sentidos de La maladie de la mort, ela enfrentou muitas dificuldades para produzir a sua adaptação teatral (Duras, 1986, 9-10). Entretanto, no verão de 1986 espontaneamente ela começa a escrever o roteiro da peça que acentua, no que concerne à ambiguidade de La maladie de la mort, a angústia de um homem gay que não ama a mulher que o ama e a angústia desta mulher que, em virtude da vontade de ser amada, submete-se à misoginia contratual do homem que a despreza e que procura nela aquilo que ela não tem, a saber, o Falo.

Para o teatro, Duras decide romper com a ambiguidade acerca da sexualidade do personagem masculino, aproximando o enredo de Les yeux bleus cheveux noirs daquilo que ela experenciava com Yann Andréa, seu companheiro. Durante todo o verão Duras escreve, durante a época na qual “Yann entra em um período de crise, de gritos. (...) Ele grita comigo, ele se torna um homem que quer qualquer coisa, mas que não sabe o quê” (Duras, 1986, 11. Minha tradução). Sendo assim, inspirando-se em si mesma, Duras (1986) relata o seguinte sobre a peça: “[Nela], eu tenho dezoito anos, eu amo um homem que odeia o meu desejo, o meu corpo. Yann datilografa o que dito. Enquanto ele datilografa, ele não grita. É depois que isto acontece” (11. Minha tradução). Em Les yeux bleus cheveux noirs, a mulher que diz não ser prostituta, mas que aceita o contrato das noites pagas, apaixona-se pelo homem que sofre por não ser amado por um outro homem, mais precisamente, por um homem estrangeiro que já estivera com a jovem mulher.[1] Astuciosamente, Breillat nos reenvia a tal recorte da trama de Duras – trama que faz da realidade ficção e da ficção realidade. No entanto, em Pornocratie a mulher assume o papel do homem sofredor, isto é, a mulher sofre ao ver o seu noivo com outro homem; e um terceiro homem, assumidamente gay – o que não é o caso do noivo em questão –, assume o papel da jovem mulher de Duras, porém, na mise-en-scène de Breillat, este homem não se apaixona pela mulher que sofre, mas por ela se compadece, já que a encontra à beira do suicídio no banheiro da boate em que seu noivo a traíra com um outro homem.[2]


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Anatomie de l’enfer. Fonte: cinelounge.org. Copyright Rezo Films.

2. O contrato de Calipso

No caso das adaptações de Breillat, Pornocratie e Anatomie de l’enfer, quem estabelece o contrato é a própria mulher que busca entender por que os homens são incapazes de desejá-la, ou ainda, por que os homens são incapazes de desejá-la pacificamente, sem a violência matrimonial do desprezo, da propriedade e do estupro que se legitima pela posse, pois “eles não nos olham. Eles nos tomam, nos estupram. Eles chamam isto de ter uma mulher, mas eles não têm nada” (Breillat, 2001, 26. Minha tradução). E na busca obsessiva por tal compreensão ela paradoxalmente assume a máscara de Medusa e o feitio de Calipso. Enquanto Medusa a mulher denuncia a misoginia masculina, mas enquanto Calipso ela denuncia a fraqueza feminina daquela que solapa sua própria potência afirmativa, ao se submeter à misoginia de um homem que não a ama. Catherine Breillat transpõe a ambivalência relativa à sexualidade do homem em La maladie de la mort à ambivalência da figuração feminina, cujo poder afirmativo pode ser intensificado através de Medusa ou mitigado por meio de Calipso. Ao contratar o homem que por ela se compadece, a jovem mulher se apresenta como a deusa que busca transformar o amor em obrigação contratual. Na Odisseia, como explica Vernant (1982), Calipso promete a Ulisses a imortalidade em troca de sua companhia eterna (16). Sobre sua relação com Calipso, Ulisses relata:

Quando sobreveio a décima noite negra, fizeram os deuses que eu chegasse à ilha de Ogígia, onde vive Calipso de belas tranças, terrível deusa. Ela acolheu-me; com gentileza me estimou e alimentou. Prometeu-me a imortalidade, para que eu vivesse sempre isento de velhice. Mas nunca convenceu o coração dentro do meu peito. (Homero, Od., 2010, VII, 253)

O encontro entre o Ulisses e a Calipso de Breillat é tão espontâneo quanto este relatado por Homero: no caso da Odisseia, os deuses enviaram Ulisses à ilha de Ogígia e, no caso da narrativa de Breillat, o homem é enviado à mulher em virtude da mensagem de morte que ela comunica. Além disso, o Ulisses de Breillat, como o de Homero, é incapaz de amar aquela que o contrata. Sabemos que o Ulisses de Homero não ama Calipso porque ama outra mulher, ou melhor, uma mulher mortal, e não uma deusa. Ulisses ama Penélope, sua esposa, por quem abandona a ilha de Ogígia, bem como a imortalidade e a eterna juventude que lhe foram prometidas (Homero, Od., 2010, V, 215). Em distinção, o Ulisses de Breillat não ama Calipso porque para ele todos os homens estão em guerra contra as mulheres, contra todos os tipos de mulheres, pois elas “são mais fracas e eles fazem uso, então, de suas forças contra elas” (Breillat, 2001, 23. Minha tradução). Portanto, a Calipso de Breillat, isto é, a Calipso moderna, simboliza “todas aquelas que não serão amadas (...)” (Breillat, 2001, 17. Minha tradução), seja pelos homens que as querem porque elas parecem ser o Falo (Girl=Phallus) (LACAN, 2010, p.471), seja pelos homens que reprimem seus desejos e que não assumem aquilo que sentem por outros homens, como é o caso do noivo da protagonista, seja por homens que assumem o seu desejo por outros homens em razão de uma superioridade falocrática, como é o caso daquele que ela contrata para experenciar quatro noites nupciais.

Vale ressaltar que a partir da recontextualização da figura de Ulisses, Breillat não direciona sua crítica aos gays, mas sim aos homens que não rompem com o falocentrismo e que recaem na miserável lógica do amor patriarcal, o qual é incapaz de conceber a diferença, esteja ela atrelada a homens afeminados, à feminilidade de mulheres cis e trans ou à masculinidade de homens trans. Além disso, a partir da recontextualização da figura de Calypso, Breillat parece criticar as mulheres que são tão falocêntricas quanto os homens que as desprezam e que as violentam, mulheres que continuam a desejar o Falo ao invés de simplesmente negá-lo, como o faria Medusa. Mais precisamente, Breillat critica as mulheres que continuam a depender da estrutura misógina do matrimônio e que repudiam, em decorrência do falocentrismo que as determina, a homossexualidade feminina ou masculina, mas também outras formas femininas, formas que não se reduzem às prescrições biológico-cristãs da anatomia.

A Calipso moderna de Breillat, na medida em que bem adaptada ao tempo do interesse econômico, promete a Ulisses dinheiro e não a imortalidade divina. Ela lhe paga para que ele deixe de observar somente aqueles que considera superiores e passe a observá-la em sua fraqueza desigual. Por um lado, ela quer ser incluída neste jogo falocêntrico do espelho que a extirpa de sua potência afirmativa, que a faz ser o Falo para aquele que tem o Falo, já que de acordo com a estruturação do amor moderno, tal que nos explica Butler (2002), “a ordem do Simbólico cria inteligibilidade cultural através das posições mutuamente exclusivas do ‘ter’ o Falo (a posição do homem) e do ‘ser’ o Falo (a paradoxal posição da mulher)” (56. Minha tradução). Por outro lado, na narrativa e na mise-en-scène de Breillat, a mulher também quer quebrar este espelho e entender em que medida a sua figura é capaz de desestruturar as regras falocráticas do amor. Como Calipso ela o contrata para encapsulá-lo em sua ilha que o afasta de todos os outros homens para os quais o seu desejo se orienta. Como vimos, a Calipso arcaica privara Ulisses da mortalidade representada por Penélope. Em distinção, a Calipso moderna priva Ulisses de seu desejo homossexual e impõe a ele a heterossexualidade contratual, da qual deriva sua melancolia, representada pelas lágrimas que manifestam a irrealização do desejo que sente por outros homens e pela cólera em relação à mulher que o priva de sua felicidade.[3] No entanto, como Medusa, ela o contrata para desestabilizá-lo mediante a imagem de sua feminilidade felina que nos remete tanto a Olympia, a prostituta de Manet, quanto a Lilith que, conforme as análises de Blanchot, também se atrela à imagem da jovem mulher em La maladie de la mort:

Cada um pode fazer, a seu grado, uma ideia dos personagens, particularmente da jovem mulher cuja presença-ausência é tal que ela se impõe quase que ultrapassando a realidade à qual ela se ajusta. De uma certa maneira, somente ela existe, ela é descrita: jovem, bela, peculiar, sob o olhar que a descobre, pelas mãos ignorantes que a conhecem crendo tocá-la. E, não esqueçamos, é a primeira mulher para ele e é, portanto, a primeira mulher para todos, no imaginário que a torna mais real do que ela poderia ser em realidade – aquela que está ali, para além de todos os epítetos que tentamos atribuir a ela para fixar seu ser-aí. Resta esta afirmação (ela é verdadeira no condicional): “O corpo teria sido longo, feito numa única fundição, em uma única vez, como pelo próprio Deus, com a perfeição indelével do acidente pessoal.” “Como pelo próprio Deus”, eis Eva ou Lilith, mas sem nome, não tanto porque ela é anônima, mas porque ela parece muito atípica para que qualquer nome lhe convenha. (Blanchot, 2012, 62. Minha tradução)

3. O aspecto felino de Medusa


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Anatomie de l’enfer. Fonte: cinelounge.org. Copyright Rezo Films

No filme de Breillat, Olympia surge despudoradamente como a mulher que afirma o seu poder ao negar o Falo, isto é, ao afirmar a negação que a constitui, ela se apresenta a Ele como a mulher afirmativa, como aquela que não tem o Falo e tampouco quer ser o Falo. Conforme mostra Sarah Kofman, este tipo de mulher é considerada por Freud como castradora e narcisista e, enquanto tal, ela terrifica à la mode de Méduse os detentores do Falo. Como diz Kofman (1982), para Freud as serpentes que compõem o cabelo de Medusa indicariam na mulher a inveja do pênis, inveja que “tranquilizaria o homem contra sua angústia da castração; o horror perante a cabeça de Medusa é sempre acompanhado de uma sideração (Starrwerden) que significa a ereção” (101. Minha tradução). Ou ainda, de acordo com o próprio Freud (2013):

Se os cabelos da cabeça de Medusa são frequentemente representados na arte como serpentes, então estas surgem de novo, do complexo de castração e, curiosamente, por mais amedrontadores que sejam em si seus efeitos, eles oferecem realmente um abrandamento do horror, pois substituem o pênis, cuja falta é sua causa última. (92)

Para Breillat, que se coloca na via de Duras, a figuração medúsica de Olympia não simboliza a inveja do pênis, mas sim a afirmação da autossuficiência feminina, a qual se deve à negação da estrutura fálica. Então, ao utilizar a máscara de Medusa, Olympia reflete em nossos olhos a impureza de uma vida precária que se basta a si mesma. Ao olhar para Medusa, ele não percebe a carência de Calipso, mas a força da autarquia que rompe o espelho fálico. Como explica Kofman (1982), o terrificante em Medusa não é a castração, mas a afirmação da negação que a constitui, ou seja, a afirmação de sua força a-fálica: “Terrificante é a indiferença da mulher ao desejo do homem, é sua autossuficiência (...), autossuficiência que a torna enigmática, inacessível, impenetrável. E na medida em que ela não simula e nem dissimula nada, ela exibe a platitude ou a beleza de seus seios.” (73. Minha tradução) Assim o faz Olympia, que distorce a imagem freudiana da mulher narcísica ao revelar o narcisismo de homens que, como Freud, por não suportarem a autossuficiência da mulher, “imaginam que ela é um puro estratagema, uma aparência, que seu coquetismo, sua beleza são um adorno suplementar destinado a prender os homens, que sua ‘platitude’ sempre dissimula no fundo certa... inveja do pênis, certo ‘desejo pelo outro’” (Kofman, 1986, 73-74. Tradução minha).

Olympia sempre foi uma mulher afirmativa e é a afirmação de sua força autárquica que a aproxima da animalidade dos gatos. A partir da interpretação de Kofman acerca da mulher afirmativa em Nietzsche, podemos subverter as análises de Freud que comparam o narcisismo das mulheres ao dos felinos com o intuito de rebaixá-las sob a clave da moralidade que atribuí um valor negativo ao amor-próprio feminino (Kofman, 1982, 67). Conforme Freud (2012), àqueles que renunciam ao seu próprio narcisismo – ou seja, aos homens em geral –, as mulheres narcísicas são atraentes como o são “certos animais que parecem não se preocupar conosco, tal como os gatos e os grandes predadores” (62. Minha tradução). Diferentemente, como explica Kofman, para Nietzsche a mulher afirmativa é comparada aos gatos porque o seu suposto egoísmo manifesta a força de sua astúcia, a qual impede que ela se sacrifique em nome do amor pelos outros. Mais precisamente, de acordo com Nietzsche (2005):

o que na mulher inspira respeito e com frequência temor é sua natureza, que é “mais natural” que a do homem, sua autêntica astuciosa agilidade ferina, sua garra de tigre por baixo da luva, sua inocência no egoísmo, sua ineducabilidade e selvageria interior, o caráter inapreensível, vasto, errante de seus desejos e virtudes... (§ 239, p.131)

Segundo Kofman, Nietzsche confina com Lou Salomé no que tange à explicação da feminilidade, pois para ambos o amor-próprio das mulheres, ou ainda, sua posição libidinal inatacável, é o caminho para a experiência da alegria individual e relacional. Para Lou Salomé o desejo das mulheres não pode ser explicado com base na inveja do pênis, já que as mulheres não invejam os homens, mas, pelo contrário, os homens invejam as mulheres, ou melhor, invejam a maneira pela qual elas cuidam de si mesmas e amam a si mesmas:

(...) a mulher guarda sempre “uma reserva enigmática”, se dá sem se abandonar e, quando ela se dá, “o fruto de seu dom resta em seu colo”, como diz Goethe citado por Lou Salomé em uma página de seu Jornal no momento em que ela indica que quando um neurótico deseja se tornar mulher é um sinal de cura, pois é um desejo de se tornar feliz – somente nas mulheres a sexualidade não será uma renúncia. (Kofman, 1982, 62. Minha tradução)

Pelo amor que elas enigmaticamente resguardam por si mesmas, as mulheres afirmativas, além de serem comparadas aos gatos, também o são aos grandes criminosos representados pela literatura. De acordo com Kofman (1982), em Nietzsche o “grande criminoso à la Dostoiévski é o modelo do verdadeiro espírito livre, daquele que, pertencendo à ordem invencível dos Assassinos, soube receber este princípio essencial, este último segredo: ‘Nada é verdadeiro, tudo é permitido’.” (64-65. Minha tradução)[4] Para a mulher afirmativa a verdade não é universal, necessária e obrigatória. Em distinção, para ela a verdade é uma perspectiva entre várias outras perspectivas, que se impõe e se apreende astuciosamente. Então, a sabedoria da mulher afirmativa não advém do erotismo socrático-platônico, do qual desponta o dogmatismo filosófico, mas advém da astúcia afrodisíaca, isto é, a sua sabedoria é astúcia e esta é experenciada por meio do amor afrodisíaco que se atrela ao espelho de Medusa (Kofman, 1983, 15, 96-98; Nietzsche, 2005, p.7). Segundo Kofman, é possível que as interpretações de Nietzsche acerca da mulher afirmativa tenham inspirado as análises de Freud sobre a mulher narcísica, porém, em distinção a Freud, Nietzsche não atribui à autossuficiência da mulher o mal moral.


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Olympia, Édouard Manet, 1863, 130,5 x 190. Copyright foto Musée d’Orsay

Nesse sentido, de um ponto de vista nietzschiano talvez seja possível dizer que o aspecto subversivo da Olympia de Manet, o qual conjuga a comparação da mulher com o criminoso e a comparação da mulher com o gato por meio da representação pictural da prostituta nua ao lado de seu gato preto, não é motivo para rebaixamento feminino, mas sim para a exaltação da feminilidade que afronta os valores demasiado humanos e demasiado falocratas de nossa sociedade. A Olympia de Manet subverte o narcisismo freudiano, pois em seu despudor ela nos mostra que narcísicos são aqueles que se constrangem perante a autossuficiência daquela que deles difere:

Olympia chocou por aquilo que mostra, um boudoir perfumado, e isto que ele esconde, o sexo sobre o qual essa cortesã coloca sua mão de soberana. Ambivalência reforçada pelo gato preto, com a cauda ereta aos confins da caricatura e do fantástico, mas fazendo sinal em direção ao espectador, ao intruso a ser subjugado. O felino (...) verdadeiro atentado ao pudor reenvia também ao sexo dissimulado de Olympia. (Guéguan, 2011, 136. Minha tradução)[5]

Ademais, a Olympia de Manet dialoga, através do gato, com a poética do impuro em Baudelaire (Guéguan, 2011, p.136). Manet foi fortemente influenciado por As Flores do mal (2012) e o seu quadro nos reenvia ao menos a três poemas de Baudelaire (2012) que elogiam o aspecto felino das mulheres (Spleen e ideal – XXXIV O gato), a estranheza medúsica dos gatos (Spleen e ideal – LI O gato) e a sua autarquia, motivo pelo qual os amantes e os sábios os amam (Spleen e ideal – LXVI Os gatos). Baudelaire, por sua vez, nos reenvia a Foucault e à estética da existência, mostrando-nos que os dândis recontextualizam a animalidade cínica, simbolizada pelo cão, através da figura feminina do gato. De modo geral, isso significa que tanto para cínicos antigos quanto para artistas modernos “a animalidade é um exercício. É uma tarefa para si mesmo, e é ao mesmo tempo um escândalo para os outros” (Foucault, 2011, p.234). Mais precisamente, por um lado, o escândalo da animalidade cínica na Antiguidade era canino, como explica Foucault acerca de Diógenes que,

comendo na praça pública, se faz tratar de cão pelos passantes: você come como um cão, dizem eles. E Diógenes reverte logo a humilhação e a reverte, dizendo: mas vocês também são cães, pois só os cães fazem uma roda em torno de um cão que come. Cão eu sou, mas vocês são tanto quanto eu. (Foucault, 2012, p.231)

Por outro lado, na arte moderna, sobretudo na arte moderna de Baudelaire e de Manet, o escândalo da animalidade de tipo cínica é felina e ela nos expõe, a partir da nudez de Olympia e da luz sombria que arde em chamas desde a pupila dos gatos, à precariedade da vida que é preciso estetizar, à fragilidade desta vida que não pode ser protegida pelos contratos de imortalidade, os quais buscam igualar os homens aos deuses, como é o caso homérico de Calypso e de Ulisses, ou o Homem a Deus, como é caso da filosofia dogmática e da religião. O cinismo moderno de Baudelaire, que flerta com a espiritualidade estoica (Baudelaire, 2010, p.63)[6], é felino e enquanto tal afeminado, mas esta feminilidade não é pura como a da Virgem com o Menino ou como a da Vênus de Urbino.[7] A feminilidade dândi é imprópria como a de Olympia e infernal como a de Lilith, ou seja, ela é medúsica. O aspecto infernal de Lilith é tão escandaloso quanto o aspecto criminoso e felino de Olympia.

Breillat mostra que a demonização de Lilith possui um viés moralizante, como aquele que imputa à autossuficiência canina de Diógenes e à autossuficiência felina de Olympia um valor moral de conotação negativa. Demonizar Lilith é vinculá-la à bestialidade e, sendo assim, excluí-la de toda pureza humana ou humanista que tangencia a vida dos falocratas. São estes que lhe outorgam a bestialidade demoníaca, ou melhor, em nome de Deus e em nome do Falo, eles lhe outorgam – com toda a violência que creem legítima – o estupro da mulher-besta, como mostra Breillat em seu filme. Por meio de tamanha violência eles querem afastar delas tudo aquilo que é satânico para fazer “aparecer [ali] a face de Deus. Mas eles nunca verão nada, eles não são capazes” (Breillat, 2011, 56. Minha tradução). E é justamente por não serem capazes que eles atribuem a elas a bestialidade. Contudo, como Diógenes elas revertem tal humilhação, dizendo que de fato são satânicas e que por isso também são deus. Em Pornocratie (2011), Lilith afirma àquele que a violenta: “Um é Deus, outro é Satã. [Mas] os dois são Deus” (57. Minha tradução).[8]

4. E para terminar: uma breve reflexão sobre nossa ambivalência

Na busca por outras figuras felinas ou ferinas, deparo-me com “Tigrela”, conto de Lygia Fagundes Telles que parece se valer dos reflexos bestiais de Medusa. Talvez o meu olhar esteja viciado, talvez eu esteja vendo Medusa em todos os lugares, até mesmo naqueles em que ela não está. Seja como for, o fato é que eu vi Medusa em Tigrela, mas também vi um tigre em Medusa e percebi que, em certa medida, somos todas Romana. Somos Romana na medida em que nosso eu – nosso eu feminino – é ambivalente, pois, além de si, ele inclui ao mesmo tempo um outro. O que quero dizer é que nosso eu, quando se desata das amarras do Falo, abraça em si a diferença. Assim o faz Romana que, ao se separar do quinto marido, passa a viver “com um pequeno tigre num apartamento de cobertura” (Telles, 2009, 33). Esse tigre se chama Tigrela, ou talvez este tigre seja ela, a própria Romana. Tigrela parece ser o duplo medúsico de Romana que demarca a ambivalência do seu eu. A tigresa evoca a estranheza que Romana sente por si mesma ao se olhar no espelho e se perceber como uma mulher que independe dos jogos institucionais do casamento e, de modo geral, do amor. Tigrela, embora esteja dentro de Romana, marca a sua extroversão – a extroversão de um aspecto do si que fora melancolicamente ofuscado pela estrutura patriarcal. Em outras palavras, Tigrela marca em Romana a extroversão do desejo por autarquia:

Uma noite, enquanto eu me vestia para o jantar, ela veio me ver, detesta que eu saia mas nessa noite estava contente, aprovou meu vestido, prefere vestidos mais clássicos e esse era um longo de seda cor de palha, as mangas compridas, a cintura baixa. Gosta. Tigrela? Perguntei, e ela veio, pousou as patas no meu colo, lambeu de leve meu queixo para não estragar a maquiagem e começou a puxar com os dentes meu colar de âmbar. Quer para você? Perguntei, ela grunhiu, delicada mas firme. Tirei o colar e o enfiei no pescoço dela. Viu-se no espelho, o olhar úmido de prazer. Depois lambeu minha mão e lá se foi com o colar dependurado no pescoço, as contas maiores roçando o chão. (Telles, 2009, 36)

Romana e Tigrela não figuram um binarismo psíquico, mas sim uma ambivalência subjetiva. O binarismo que se atrela à lei patriarcal, a qual é metonimicamente retomada pela imagem psicanalítica do Falo (Butler, 2002, 56), estabelece diferenciações excludentes, ou seja, a mulher que se adequa a esta estrutura relega Tigrela à escuridão da inconsciência. Por outro lado, à medida que desobedecemos a referida lei, animamos em nós a ambivalência que embrulha o si ao outro e o outro ao si. Sobre sua relação com Tigrela, Romana relata: “No começo me imitava tanto, era divertido, comecei também a imitá-la e acabamos nos embrulhando de tal jeito que já não sei se foi com ela que aprendi a me olhar no espelho com esse olho de fenda” (Telles, 2009, 34). Olharmo-nos no espelho com esse olho de fenda, com este olho de gato que nos reenvia à feminilidade de tipo bestial ou criminosa, nada mais é do que liberar em nós mesmas – em nossa topografia interna – a autossuficiência outrora sacrificada em nome do Falo (Butler, 1997, 9). Em nós, em nosso eu, Tigrela estivera adormecida por séculos e séculos. Pois bem, já é hora de despertá-la, de deixá-la correr livremente por este apartamento que fica no meio de um jardim, de uma selva que Romana mandou plantar justamente para acolher a desobediência medúsica da pequena tigresa (Telles, 2009, 35, 38).

Embora o espaço do apartamento não seja assim tão grande, nele cabe Romana e nele cabe Tigrela. Isso quer dizer que nele cabe a variação do humor melancólico que parece entrecruzar os traços humanoides de Romana aos traços animalescos de Tigrela.[9] Parece, portanto, que a mulher afirmativa seria aquela que afirma esta oscilação, isto é, aquela que não teme o conflito que tal variação psíquica pode gerar: “Gostava de uísque, essa Tigrela, mas sabia beber, era contida, só uma vez chegou a ficar realmente de fogo. E Romana sorriu quando se lembrou do bicho dando cambalhotas, rolando pelos móveis até pular no lustre e ficar lá se balançando de um lado para outro (...)” (Telles, 2009, 34). Não somos puramente puras e tampouco somos puramente impuras – por vezes nossa animalidade desmente nossa humanidade, por vezes nossa humanidade desmente nossa animalidade. Então, talvez possamos dizer que o exercício da autossuficiência decorre de um processo de apropriação de si que envolve, ao mesmo tempo, a estranheza em relação à outra que habita em nós como a potência do que podemos vir a ser. Em outras palavras – e aqui chego, de fato, à conclusão deste texto – para que nosso desejo por autarquia se torne ato, precisamos nos revoltar contra aquela que já somos, ou contra aquela que sempre fomos, para simultaneamente nos apropriarmos daquela que ainda não somos, mas que podemos nos tornar: Tigrela.

Bibliografía

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Notas

[1] O homem apaixonado observa aquele que tanto deseja com outra pessoa, a saber, com a jovem mulher: “No parque, assim que o jovem estrangeiro aparece, o homem se reaproxima da janela do hall sem se dar conta. Suas mãos estão dependuradas no parapeito da janela, elas estão privadas de vida, decompostas pelo esforço de olhar, pela emoção de ver. Com um gesto, a jovem mulher mostra ao jovem estrangeiro a direção da praia, ela o convida a segui-la, ela pega em sua mão, ele não resiste, eles viram as costas para a janela do hall e eles se afastam indo para o lado que ela apontou, em direção ao pôr-do-sol” (Duras, 2016, 12. Minha tradução). O homem que sofre de amor desperta o desejo da jovem mulher que há pouco estivera com o estrangeiro. Em um café, o homem gay, doente de amor, e a jovem mulher se encontram: “Ele se senta em uma mesa. Ainda mais do que ele, ela nunca o viu. Ela o observa. É inevitável. Ele está sozinho em sua beleza e extenuado por estar sozinho, tão sozinho e tão belo quanto qualquer um a ponto de morrer. Ele chora. Para ela, ele é tão desconhecido como se não tivesse nascido. Ela deixa as pessoas com as quais está. Ela vai até a mesa daquele que acaba de chegar e que chora. Ela se senta à sua frente. Ela o observa. Ele não vê nada. Nem que as mãos dela estão inertes sobre a mesa. Nem que ela desfez o sorriso. Nem que ela treme. Que ela sente frio. Ela nunca o viu nas ruas da cidade. Ela pergunta o que ele tem. Ele diz que ele não tem nada. Nada. Para não se preocupar. A suavidade da voz que de repente rasga a alma e faz acreditar. Ele não consegue parar de chorar. Ela diz a ele: Eu gostaria de lhe fazer parar de chorar. Ela chora. Ele não quer nada na verdade. Ele não a escuta. (...) Ele não escuta. Ele não escutou. Ele para de chorar. Ele diz que está muito triste porque ele perdeu o contato com alguém que ele gostaria de rever. Ele acrescenta que frequentemente sofre com este tipo de coisas, com estas tristezas profundas. Ele diz a ela: Fique comigo” (Duras, 2016, 14-15. Minha tradução).
[2] No filme de Breillat, a jovem mulher é interpretada por Amira Casar e o homem gay por Rocco Siffredi.
[3] Como explica Vernant (1982), na Odisseia, “na costa da ilha de Ogígia, onde com apenas uma palavra ele poderia se tornar imortal, sentado sobre uma rocha em face ao mar, Ulisses se lamenta todos os dias e soluça. Ele se afunda, ele se liquefaz em lágrimas. Seu aión, sua vitalidade corre sem cessar, kateíbeto aión, pelo póthos, pela saudade por sua vida mortal, que está do outro lado do mundo, com o outro polo do casal, com Penélope que, por sua vez, também consome o seu aión, chorando por sentir saudades do desaparecido Ulisses” (17. Minha tradução). As lágrimas de Ulisses representam a falta que ele sente por Penélope: “Para junto do magnânimo Ulisses se dirigiu a excelsa ninfa [Calispso], depois que ouviu a mensagem de Zeus. Encontrou-o sentado na praia, os olhos nunca enxutos de lágrimas: gastava-se-lhe a doçura de estar vivo, chorando pelo retorno. E já nem a ninfa lhe agradava. Por obrigação ele dormia de noite ao lado dela nas côncavas grutas: era ela, e não ele, que assim o queria. Mas de dia ficava sentado nas rochas e nas dunas, torturando o coração com lágrimas, tristezas e lamentos. E com os olhos cheios de lágrimas fitava o mar nunca vindimado” (Homero, Od., 2010, V, 150). Penélope também chora por sentir falta de Ulisses e pela emoção de reencontrá-lo: “Deste modo assemelhava Ulisses muitas mentiras a verdades. E ela, enquanto ouvia, vertia uma torrente de lágrimas, a ponto de parecer que o próprio rosto se derretia, quando o Euro aquece o que o Zéfiro fez nevar, e a neve, ao derreter, faz aumentar o caudal dos rios – assim se lhe derretiam as belas faces em torrente de lágrimas, chorando pelo marido, que estava à sua frente” (Homero, Od., 2010, XIX). Diferentemente, o Ulisses de Breillat chora, já na primeira noite das núpcias contratadas, por ter sido privado do desejo orientado a outros homens, como nos relata ela, a Calipso moderna: “Ao vê-lo chorar assim, eu compreendo que lhe aconteceu algo que eu não sabia. Eu apoio minha cabeça inclinada sobre seu ombro como sinal de afeto e de pertencimento, pois a fraqueza assumida do fraco tranquiliza o forte. – Não é nada, é apenas a primeira noite. Depois eu volto a dormir até o amanhecer” (Breillat, 2001, 77. Minha tradução).
[4] A passagem de Nietzsche citada por Kofman está em Genealogia da moral (1998), III.24, p.138.
[5] Como vimos acima, o gato preto não aparece de forma explícita e caricatural na Olympia de Breillat. Contudo, isso não quer dizer que ele esteja ausente. A referência ao gato preto acontece no filme pela exposição do sexo da mulher. Inclusive é interessante ressaltar que a palavra “chatte” em francês significa gata, o feminino de “chat” que é gato, mas em um sentido popular “chatte” também significa o sexo da mulher.
[6] Vale lembrar que Foucault articula, sob a chave da transhistoriedade, Baudelaire à espiritualidade ascética dos estoicos e à espiritualidade ascética dos cínicos. De modo geral, Baudelaire recontextualiza a ética do eu da Antiguidade helenístico-romana por meio da relação entre a obra de arte e a vida de artista. De acordo com Foucault, ele se aproxima do estoicismo através da valorização do presente (Foucault, 2010, 224) e do cinismo a partir da animalidade, a qual se apresenta como uma tarefa àqueles que buscam estetizar a própria existência, ou seja, “a animalidade não é um dado, é um dever” (Foucault, 2011, 234). Conforme Foucault, a arte no mundo moderno é o veículo do cinismo, pois ela “é capaz de dar à existência uma forma em ruptura com toda outra, uma forma que é a da verdadeira vida. (...) a própria arte, quer se trate da literatura, da pintura ou da música, deve estabelecer com o real uma relação que não é mais da ordem da ornamentação, da ordem da imitação, mas que é da ordem do desnudamento, do desmascaramento, da decapagem, da escavação, da redução violenta ao elementar da existência. Essa prática da arte como desnudamento e redução ao elementar da existência é algo que se assinala de uma maneira cada vez mais sensível a partir sem dúvida de meados do século XIX. A arte (Baudelaire, Flaubert, Manet) (...)” (Foucault, 2011,164-165).
[7] Respectivamente: Raffaello, Madonna di Pasadena, 1503, 55 X 40cm, Pasadena, Norton Simon Museum. / Tizianno, Venere di Urbino, 1534. 119 X 165 cm, Florenza, Galleria degli Uffizi
[8] No texto “Foucault em defesa de Eva”, Margareth Rago aponta, a partir de Foucault, que o padre Tertuliano foi “‘o inventor dessa ideia maravilhosa do pecado original’, assim como da mulher como ‘a porta do diabo’.” (RAGO, 2019, p.181)
[9] No presente ensaio, não abordo o caráter melancólico da constituição falocêntrica da feminilidade e nem mesmo o caráter melancólico da constituição afirmativa, os quais respectivamente articulo, a partir de Judith Butler e de Michel Foucault, à melancolia oblativa ou estruturada e à melancolia desviante ou criativa. Para uma análise da variação do humor melancólico no que se refere à experiência dos vínculos amorosos, certificar Notas sobre o amor e melancolia: da estrutura à resistência (Stephan, 2020).


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