Dossier

A guerra cultural bolsonarista e as disputas pela história recente

The bolsonarist culture war and the disputes over recent history

Rodrigo Patto Sá Motta *
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Contenciosa

Universidad Nacional del Litoral, Argentina

ISSN-e: 2347-0011

Periodicidade: Anual

núm. 12, 2022

revistacontenciosa@fhuc.unl.edu.ar

Recepção: 10 Maio 2022

Aprovação: 16 Agosto 2022



DOI: https://doi.org/10.14409/rc.10.12.e0015

Resumo: Narrativas sobre a história são elementos essenciais nos processos de constituição das comunidades políticas, por isso mesmo elas são objeto de conflito entre os grupos que disputam o poder político. Nos últimos anos, os conflitos em torno da história recente do Brasil tornaram-se particularmente acirrados, graças ao giro à direita e à emergência do bolsonarismo. O propósito principal deste artigo é analisar as iniciativas dos grupos de direita autoritária (especialmente, mas não apenas os bolsonaristas) para dominar a história da ditadura militar, o que se tornou um objetivo estratégico em sua guerra cultural na busca por hegemonia política. No final do artigo, analisa-se como esse processo implica alguns desafios também para as reflexões sobre a epistemologia da História.

Palavras-chave: bolsonarismo, ditadura, militares, história reciente, guerra cultural, hegemonia, memória.

Abstract: Historical narratives are essential elements in the processes of constitution of the political communities, that is why they are the object of conflicts opposing groups that dispute political power. In recent years, conflicts around Brazil's recent history have become particularly fierce, thanks to the “rightist turn” and the emergence of bolsonarism. The main purpose of this article is to analyze the initiatives of authoritarian right-wing groups (especially, but not only bolsonarists) to dominate the history of the military dictatorship, which has become a strategic goal in their cultural war in the search for political hegemony. At the end of the article, we analyze how this process implies some challenges also for the epistemology of history.

Keywords: bolsonarism, dictatorship, armed forces, recent history, culture war, hegemony, memry.

Introdução

A história é frequentemente mobilizada nas disputas políticas, em grande medida por ser utilizada na formação de imaginários coletivos que instituem e dão legitimidade às comunidades políticas. As representações sobre o passado, que não se restringem à história acadêmica, são fundamentais para estruturar as identidades políticas de diferentes grupos sociais, sejam nações, classes, grupos religiosos, ou movimentos sociais, ao mesmo tempo em que podem oferecer inspiração para suas escolhas políticas. Não é surpresa, portanto, que a história ocupe lugar central nas batalhas políticas presentes, sendo objeto de disputas e manipulações por quem pretende justificar determinados projetos de poder. Por isso, a história e os historiadores são constantemente mobilizados no debate público, especialmente a História Recente, mas, no caso do Brasil, também temas clássicos como a colonização portuguesa e a escravidão, que as lideranças e intelectuais das direitas autoritárias e conservadoras buscam representar como se tivessem sido processos sem conflito e nem violência.

Nos últimos anos tem ocorrido uma intensificação nos debates e disputas em torno da história brasileira, sobretudo a que se refere ao período da ditadura militar. Em parte, tal processo deve-se ao incremento dos conflitos político-ideológicos, que desde as eleições de 2014 ganharam contornos de polarização opondo esquerda e direita. Nesse contexto ocorreram a ampliação da força do antipetismo e o surgimento do fenômeno bolsonarista, movimentos que convergiram no quadro das eleições de 2018, resultando em vitória da direita conservadora e autoritária.

O propósito principal deste artigo é analisar as iniciativas dos grupos de direita autoritária (especialmente o bolsonarismo) para dominar o campo da história (especialmente da ditadura militar), o que se tornou um objetivo estratégico em sua guerra cultural. Veremos como -graças à mobilização de discursos que em certos casos se aproximam do negacionismo- a história tem sido manipulada e falseada para justificar esse projeto autoritário de poder. Porém, antes de entrar no tema central do artigo, vale a pena apresentar um comentário sintético sobre as políticas de memória (e de esquecimento) referentes à ditadura que têm sido construídas (e disputadas) desde o início da redemocratização.

A transição pactuada dos anos 1980 e a tentativa de esquecimento da ditadura

A sombra do golpe de 1964 e da subsequente ditadura tem ocupado lugar significativo no cenário político brasileiro desde 1985, quando o regime militar formalmente terminou. A data de encerramento da ditadura é objeto de polêmica já que o primeiro presidente civil empossado em 1985, José Sarney, foi um político a serviço do regime militar. Ele foi escolhido para ser vice na chapa com Tancredo Neves, em um arranjo político envolvendo setores da oposição e dissidentes da ditadura. Esse acordo, chamado à época de Aliança Democrática, permitiu a vitória de Neves-Sarney nas eleições indiretas para suceder ao último general presidente, João Figueiredo (Napolitano, 2014: 309-311). Com a doença e morte de Neves antes da posse, Sarney tornou-se o primeiro presidente civil desde 1964. Outro elemento da continuidade da ditadura foi a manutenção de parte do seu aparato de repressão, principalmente o Serviço Nacional de Informações, que seria extinto apenas em 1990. Portanto, o mais adequado é considerar que em 1985 teve início um governo de transição pós-ditadura, e que a nova Constituição aprovada em 1988 deu início de fato ao regime democrático.

No mesmo período em que ocorriam tais mudanças no comando do Estado, a memória do recente período autoritário tornou-se um campo em disputa, simultaneamente ao surgimento de trabalhos acadêmicos voltados ao tema, primeiro nas ciências sociais e logo na historiografia. Porém, uma das iniciativas de maior impacto no campo do conhecimento sobre a ditadura teve origem nos meios religiosos, e não no mundo acadêmico, o projeto Brasil Nunca Mais. Durante os anos finais da ditadura e graças à iniciativa de um grupo religioso ecumênico sob a liderança do Cardeal católico Dom Paulo Arns, advogados de presos políticos coletaram nos arquivos da justiça militar documentos sobre a violência política estatal. O amplo acervo de informações coletado foi compilado no livro Brasil Nunca Mais (1985), que ao expor e documentar as várias formas de violência cometidas pelos agentes da ditadura alcançou grande repercussão pública (Silva, 2021: 205-208).

No entanto, tais iniciativas não alteraram o perfil da transição pós-autoritária no Brasil, marcada por pactos e arranjos de acomodação que produziram a retirada dos militares do comando estatal, mas sem o devido acerto de contas com o passado autoritário, e tampouco com os responsáveis pela violência e os crimes contra os direitos humanos. A democracia que se tentou construir nos anos 1980 em teoria deveria ter buscado a superação da ditadura militar. No entanto, os grupos que dirigiram a transição democrática evitaram enfrentar o passado autoritário, tanto no plano da memória quanto no aspecto criminal. Muito pelo contrário, tentaram esquecê-lo, em nome da pacificação e reconciliação nacional,[1] o que implicava, de acordo com tal perspectiva, evitar o julgamento dos crimes cometidos pelos operadores das agências repressivas estatais. A impunidade foi garantida pela lei de Anistia de 1979, aprovada ainda na ditadura, que beneficiava uma parte dos adversários do regime militar (exceto os acusados de “crimes de sangue”), mas concedia uma espécie de auto perdão para os agentes estatais (Rodeghero, 2011). Por isso, nenhum militar envolvido em crimes contra os direitos humanos foi nem sequer julgado, exceto o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado em uma ação civil declaratória aberta por algumas de suas vítimas, mas uma decisão judicial que teve efeitos apenas simbólicos.[2] Mesmo Ustra não tendo sofrido sanções efetivas, os nostálgicos da ditadura trataram-no como vítima de perseguições (revanchismo,[3] nos seus termos) da esquerda, transformando-o em símbolo das bandeiras da direita autoritária no quadro recente.

Diferentemente de outros países da América do Sul que superaram ditaduras pela mesma época, o poder e a unidade das Forças Armadas foram preservados na Nova República brasileira. Os líderes militares foram saindo do cenário político aos poucos, porém, seu prestígio permaneceu basicamente intacto, e eles continuaram sendo fonte de pressão poderosa nos bastidores e sentindo orgulho da ditadura que protagonizaram, ao contrário da maioria de seus aliados civis, que preferiram se esquecer dos compromissos passados. Significativamente, as novas gerações de oficiais militares continuaram a ser ensinadas que as Forças Armadas salvaram o Brasil do comunismo e o transformaram em uma grande potência.

Apesar da política oficial de esquecimento, grupos de direita nostálgicos da ditadura - sobretudo militares aposentados - se organizaram desde o fim dos anos 1980 e início dos 1990 com o objetivo de manter viva uma memória favorável ao regime autoritário. Na visão da extrema direita, particularmente a militar, o fim da ditadura e a redemocratização teriam permitido o retorno dos antigos inimigos ao cenário público, já que a esquerda se reorganizou e conquistou alguns espaços de poder. Preocupava a tais lideranças de direita que as denúncias formuladas pela esquerda sobre a violência cometida pela ditadura alcançassem a maioria da população, e com isso prevalecesse no espaço público uma visão negativa sobre o período.

Motivado por tal interpretação sobre o contexto pós-ditadura, um grupo de oficiais ligado aos serviços de informação produziu um relatório que analisava a história da esquerda brasileira, particularmente as ações dos grupos armados, bem como seus planos para o futuro. O texto ficou conhecido como ORVIL nos meios militares, uma espécie de acrônimo com a palavra livro ao contrário. Apesar das intenções dos autores do relatório, devido ao engajamento do governo de José Sarney na transição pactuada o texto do ORVIL não foi publicado na ocasião (Figueiredo, 2009: 119). Os chefes militares aparentemente aceitaram o argumento de que a publicação do relatório contribuiria para ativar a memória sobre a ditadura, podendo com isso atrapalhar a política oficial de silenciamento sobre o passado autoritário.

Contrariando essas determinações oficiais, alguns militares aposentados do serviço ativo agiram por conta própria e divulgaram propaganda contra a esquerda por eles derrotada nos anos 1960-70, bem como visões favoráveis ao trabalho de repressão realizado pela ditadura. Vale destacar o ativismo do Coronel Ustra, que desde a segunda metade dos anos 1980 passou a defender tais visões em livros baseados em informações produzidas pelos serviços de repressão.[4] Esse oficial decidiu assumir posição pública em defesa da ditadura em reação a um episódio ocorrido em agosto de 1985, momento em que seu papel na máquina repressiva foi denunciado. Ele ocupava então o cargo de adido militar em Montevidéu, quando foi reconhecido e denunciado pela atriz e ex-presa política Bete Mendes, na ocasião deputada federal em visita oficial ao Uruguai (Figueiredo, 2009: 125-126). Mendes reconheceu o oficial como um dos responsáveis por sua tortura nos anos 1970, quando esteve presa no quartel do DOI-CODI de São Paulo, chefiado por Ustra. O episódio causou escândalo e gerou pressões para que o governo de José Sarney o demitisse do cargo, mas o então presidente cedeu à vontade dos militares e permitiu que Ustra completasse seu período de permanência em Montevidéu.

Alguns anos depois da produção do ORVIL e da publicação do primeiro livro de Ustra, militares da reserva começaram a criar entidades voltadas à atuação no espaço público. Para além de fazerem a defesa de interesses corporativos do grupo, tais entidades igualmente desafiavam a política oficial de silêncio a respeito da ditadura, buscando disseminar imagens favoráveis aos governos militares e críticas ao contexto da redemocratização. Diversas organizações desse perfil foram criadas no país, com destaque para o Grupo Inconfidência (1994) e Terrorismo Nunca Mais (Ternuma, 1998) (Santos, 2021: 290).

Devido ao desinteresse dos líderes dos primeiros governos pós-ditadura (José Sarney, F. Collor de Mello e Itamar Franco) em empreender políticas de memória e de reparação, iniciativas nessa área surgiram somente dez anos após o retorno dos civis ao poder. Em 1995, início do governo de Fernando Henrique Cardoso, um intelectual perseguido pela ditadura, foi criada a Comissão Especial de Mortos e Desparecidos.[5] Entretanto, essa comissão agiu de maneira discreta, procurando atender a algumas demandas das famílias dos desaparecidos políticos, mas sem provocar publicidade. No final do segundo mandato presidencial de FHC, em 2002, foi criada também a Comissão da Anistia, que se ocupou de oferecer compensações financeiras e simbólicas aos perseguidos políticos da ditadura, mas igualmente sem investigar os crimes por ela cometidos.[6]

A partir de 2003, com o início dos governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores, surgiram mudanças já que esse partido trazia um compromisso mais firme com a pauta dos direitos humanos e com demandas de entidades sociais (especialmente de familiares de desaparecidos políticos) que, desde os anos 1970-80, defendiam políticas de memória e de reparação.[7] A maior disposição dos governos do PT nessa área produziu dois desdobramentos principais. Primeiro, ações para ampliar o acesso público aos documentos das agências repressivas da ditadura, revertendo medidas do governo FHC que restringiu acesso a documentos classificados como sigilosos.[8] Porém, a principal iniciativa foi uma comissão oficial de maior envergadura para investigar os crimes do regime militar, quando haviam se passado 27 anos desde o seu fim: a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que atuou entre 2012 e 2014.[9]

Diferentemente das iniciativas oficiais anteriores, o papel da CNV não era tratar de reparações às vítimas, mas focar sobretudo nos crimes cometidos, buscando esclarecer as práticas violentas (torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres), mas também identificar os locais e as instituições responsáveis. A comissão produziu um relatório de mais de 3 mil páginas, resultado de suas próprias investigações e da compilação de pesquisas anteriores realizadas por pesquisadores universitários, jornalistas e ativistas de direitos humanos. O texto apresentou informações sobre 434 mortos e desaparecidos, mas também dados sobre outras formas de violência que atingiram milhares de pessoas, de diferentes grupos sociais, além de ter identificado quase quatrocentos responsáveis diretos e indiretos por tais violações.

Mesmo que a CNV tivesse a atribuição de recomendar políticas públicas para prevenir a violação de direitos humanos, e que alguns de seus membros pretendessem ir mais fundo nas investigações, na expectativa de produzir indícios para futuro uso judicial, o caráter conciliatório da transição e a força dos militares nos bastidores continuaram operando. Significativamente, a lei que instituiu a comissão determinou que seu trabalho não poderia gerar efeitos penais e tampouco contrariar a lei de anistia de 1979, que o sistema judicial brasileiro continuava interpretando como uma garantia de perdão para os crimes da ditadura. Ainda assim, as atividades da CNV e de comissões de investigação semelhantes criadas em outras esferas estatais geraram reação de lideranças militares e de figuras fiéis à memória da ditadura, que se sentiram afrontados e alvos do “revanchismo” da esquerda. Esse quadro contribuiu para o recente “giro à direita” ao aguçar sentimentos antiesquerdistas e despertar a aversão aos governos petistas entre os militares, o que teve peso importante nas pressões pelo impeachment de Dilma Rousseff e pela prisão do ex-presidente Lula da Silva.[10]

Evidentemente, a guinada à direita iniciada no contexto de 2013-2014[11] não se deveu exclusivamente às políticas de memória e de direitos humanos dos governos liderados pelo PT, ainda que elas tivessem sido ingredientes importantes. As políticas sociais e culturais conduzidas por aqueles governos também ajudaram a mobilizar seus adversários, que reagiram negativamente às pautas progressistas de inclusão social (por exemplo das mulheres, dos negros, dos indígenas) e de respeito à diversidade sexual. O crescimento da força de mobilização de grupos de direita decorreu também de campanhas pela defesa da moralidade tradicional e da religiosidade, supostamente ameaçadas pelas políticas sociais e culturais dos governos de centro-esquerda. Convergindo para acionar a tecla da moralidade ofendida, as denúncias de corrupção contra os governos de Lula e Dilma foram igualmente importantes para mobilizar o antipetismo, um processo que foi capitaneado e amplamente manipulado pela operação Lava Jato.

Outro aspecto a considerar é que a fermentação direitista durante os anos de governo do PT tinha conexões internacionais, o que se percebe claramente nas linguagens e nos valores defendidos pelas lideranças de direita brasileiras. Além disso, sabe-se que a extrema direita dos EUA criou canais de financiamento para grupos congêneres em todo o mundo, inclusiva a América Latina. Elemento fundamental nessas conexões transnacionais da direita são as religiões neopentecostais, profundamente ligadas a matrizes do norte e cada vez mais influentes no Brasil (atualmente cerca de 30% da população), que constituem segmento particularmente sensível a discursos conservadores sobre comportamentos.

Mesmo reconhecendo a importância das conexões globais é necessário perceber que os discursos e as estratégias mobilizados pela direita radical possuem fundas raízes na história brasileira. Um dos pontos mais relevantes é precisamente o legado da recente ditadura militar, cuja defesa contribuiu para dar forma aos atuais movimentos autoritários e antiesquerdistas, que mostram nostalgia por uma época em que a esquerda não estava no poder, mas nas prisões, na clandestinidade ou no exílio. Além disso, o antipetismo combina-se à marcante tradição anticomunista, que se mostrou particularmente decisiva nos eventos de 1935-37, 1946-48, 1961-64 (Motta, 2019).

Um conjunto de lideranças e movimentos de direita de várias tonalidades se constituiu ao longo dos governos do PT, crescendo principalmente nas mídias sociais e por fora das instituições centrais no debate público tradicional (partidos, imprensa, sistema educacional). Com a aparente crise dos governos petistas a partir de 2013, que ela ajudou a insuflar, a direita radical ampliou seu raio de ação e começou a convergir com segmentos da direita moderada, viabilizando o impeachment fraudulento de 2016. Nesse contexto de aguçamento dos conflitos direita x esquerda, a memória e a história do golpe de 1964 e da ditadura se tornaram mais presentes no cenário brasileiro, ocupando lugar de destaque nos discursos dos diferentes agentes em disputa, especialmente os bolsonaristas.

O bolsonarismo e sua ofensiva no campo da (e contra a) história

Jair Bolsonaro ingressou nos cursos de formação militar em 1973, período em que a ditadura vivia sua fase mais violenta, e saiu em 1977 como aspirante a oficial, iniciando seu serviço no Exército. Na Academia ele certamente passou por doutrinação anticomunista, pois naquela altura a ditadura ainda combatia, torturava e matava esquerdistas, mesmo que um processo de distensão política tenha começado em 1974. Já como capitão e servindo no Rio de Janeiro, ele se envolveu em episódios que definiram sua saída do Exército e o ingresso na carreira política. Em 1986 ele publicou um texto em revista de circulação nacional (Veja) queixando-se dos baixos salários dos militares. O país vivia sob o primeiro governo pós-ditadura e o jovem militar estava insatisfeito com o tratamento dispensado à sua corporação. A publicação do texto gerou punição leve, mas, em 1987, outro episódio mais grave levou Bolsonaro a julgamento pelo Supremo Tribunal Militar: ele foi acusado de tramar, junto com outros militares, atos terroristas em protesto contra a situação salarial. O polêmico julgamento (junho de 1988) o absolveu e livrou de expulsão vexatória do Exército, mas sua carreira estava comprometida devido aos atos de indisciplina. Como havia evidências contra ele, surgiram suspeitas sobre algum tipo de acordo para que saísse da carreira militar sem o agravo da desonra. Aproveitando-se da notoriedade do episódio, Bolsonaro lançou-se candidato a vereador na cidade do Rio de Janeiro no mesmo ano de 1988, contando com os votos da chamada família militar, ou seja, os próprios militares, seus familiares e amigos, um grupo numeroso na área do Rio de Janeiro devido à concentração de tropas e serviços das Forças Armadas na antiga capital do país.

Logo após eleito ele saiu do serviço ativo e passou à reserva do Exército, com 33 anos de idade, e começou a dedicar-se integralmente à política. A carreira parlamentar foi orientada para a defesa das demandas corporativas dos militares, principalmente dos suboficiais e oficiais de baixa patente. Em 1990, antes de terminar o mandato de vereador, Bolsonaro elegeu-se deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro, sendo reeleito para 7 mandatos consecutivos. No entanto, ele foi sempre um personagem obscuro no Congresso, considerado extravagante e radical. O pouco prestígio de Bolsonaro nos meios parlamentares se revela em episódio significativo. Em 2017, cerca de um ano antes de sua eleição à presidência da República, ele se candidatou à presidência da Câmara dos Deputados e obteve apenas 4 votos em um total de mais de 500.[12] De fato, ele produziu pouco como parlamentar, tendo apresentado basicamente projetos de interesse corporativo dos militares ou relacionados à área de segurança e de repressão (por exemplo, um projeto para castrar acusados de estupro, não aprovado). Com o tempo, Bolsonaro, e também os seus filhos, que ele introduziu na carreira política a partir da mesma base eleitoral no Rio de Janeiro, estabeleceram laços com a polícia local, o que incluiu relações com figuras ligadas às milícias cariocas.[13]

Desde o princípio, o ponto ideológico chave na atuação parlamentar de Bolsonaro foi o antiesquerdismo, conectado à defesa da memória da ditadura militar e de seus heróis. Significativamente, seus heróis foram mais os militares que combateram a esquerda e menos os generais à frente do governo entre 1964 e 1985. Bolsonaro não mediu palavras na defesa da violência da ditadura, falando abertamente – e de modo elogioso – sobre a tortura e afirmando que os militares deveriam ter matado mais pessoas, além de defender a pena de morte e o fechamento do Congresso Nacional.[14] A propósito, um momento marcante na sua trajetória de defesa dos militares que combateram a esquerda foi a declaração de voto no processo de impeachment de Dilma Rousseff. Na sessão da Câmara dos Deputados de 17/04/2016, transmitida ao vivo, ele afirmou que seu apoio ao impeachment de Rousseff representava um voto contra o comunismo, pela família, por Deus, pelas Forças Armadas e uma homenagem ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”, disse o deputado da extrema-direita.[15] Um aspecto chocante da declaração de voto de Bolsonaro é que Ustra foi comandante da unidade militar em que Rousseff foi torturada.

Jair Bolsonaro passou a ser mais conhecido fora dos círculos da extrema-direita e da “família militar” durante o período de crise que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Nas eleições de outubro de 2014, em que se reelegeu deputado federal pelo Rio de Janeiro com grande votação, ele começou a circular em outras regiões do país (principalmente nas grandes passeatas antipetistas de São Paulo em 2015-16) para tornar-se uma referência nacional no campo da direita radical. Seu perfil se adequava bem à sensibilidade antipetista e antiesquerdista em ascensão, em que se destacavam anticomunismo, ataques a países socialistas ou assim considerados (Cuba, China, Venezuela, Bolívia), patriotismo verde-amarelo representando rejeição ao “vermelho”, conservadorismo moral (machismo, homofobia) escudado em discursos religiosos, defesa de ações violentas e liberação do porte de armas, e acusações de que a esquerda era responsável por aumento da corrupção. A mobilização direitista e a crescente popularidade de Bolsonaro contribuíram para valorizar a memória da ditadura, vista como campeã na luta antiesquerdista e como período em que os “bandidos” eram punidos. A propósito, durante a campanha eleitoral de 2018, em mais de uma ocasião ele ameaçou tratar com violência os adversários de esquerda, especialmente os petistas e comunistas, inclusive mencionando lugares usados pela ditadura para reprimir os adversários. Em um dos discursos mais célebres, uma semana antes do segundo turno das eleições, ele declarou:

Perderam ontem, perderam em 2016 e vão perder a semana que vem de novo. Só que a faxina agora será muito mais ampla. Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria.[16]

Passando agora aos discursos e ações do bolsonarismo e de outros grupos de direita radical voltados à história, aos historiadores e ao mundo acadêmico, é importante perceber que eles decorrem de uma compreensão particular sobre “guerra cultural” e luta por hegemonia. A direita autoritária tem mobilizado tais conceitos de origem marxista - desenvolvidos principalmente por Antonio Gramsci - tanto para interpretar as ações dos inimigos esquerdistas como para inspirar as próprias estratégias. Em tom de denúncia, nos últimos anos lideranças intelectuais da direita têm afirmado que a esquerda começou a desenvolver seu projeto de hegemonia cultural nos anos finais da ditadura militar. O argumento, em parte influenciado pela direita norte-americana, é que a esquerda teria passado a adotar estratégia gramsciana em busca de hegemonia, colocando em primeiro plano a “guerra cultural”.

Curiosamente, tais discursos contêm uma queixa à ditadura, como se ela não tivesse sido suficientemente inflexível nos expurgos ideológicos, o que se conecta com a fala de Bolsonaro sobre os militares terem matado número insuficiente de inimigos. Esses discursos repetem a opinião de parte do aparato de repressão dos anos 1970 que lamentava a disposição de alguns líderes da ditadura em tolerar certos intelectuais esquerdistas no aparato educacional e cultural (Motta, 2014: 235-236; 300). De acordo com tal visão, devido a esse descuido permitiu-se que intelectuais e militantes de esquerda ocupassem espaços estratégicos nas instituições culturais e educacionais. Ideólogos de extrema direita recentes, como Olavo de Carvalho, se apropriaram de tais críticas feitas pelos agentes repressivos da ditadura, mas acrescentaram um tema ausente nos discursos dos líderes do regime militar, a acusação de que a esquerda passara a adotar a estratégia gramsciana (Puglia, 2018: 49-50). De acordo com tal perspectiva, a esquerda teria usado as posições conquistadas nas instituições culturais e acadêmicas em uma guerra cultural cujo objetivo seria disseminar imagens negativas sobre a ditadura e sobre os valores de direita em geral, estabelecendo uma hegemonia que abriu caminho ao poder nos anos 1990 e 2000.

O argumento é questionável em vários pontos: há fortes razões para duvidar se a esquerda alcançou tal hegemonia, tendo em vista sua derrota eleitoral em 2018; ele supõe um plano perfeito e uma inexistente unidade entre grupos de esquerda rivais; e, além disso, essa leitura gramsciana com viés direitista ignora que a vitória eleitoral da esquerda em 2002 deveu-se também a fatores conjunturais (o esgotamento do Plano Real, por exemplo). No entanto, valores genericamente progressistas assumiram de fato lugar importante no debate público entre os anos 1980 e 2010, a exemplo da disposição favorável a demandas sociais como a reforma agrária e o reconhecimento de direitos indígenas. Além do que já foi comentado, outro fenômeno incomodou a direita radical: o fato de que a imprensa dominante, que havia apoiado o regime militar e o chamava respeitosamente de “Revolução”, ter passado a criticar a agora chamada ditadura e a escamotear seu anterior apoio.

Levando-se em conta a ascensão do bolsonarismo ao poder e a perspectiva da direita autoritária sobre “guerra cultural” e “hegemonia da esquerda”, compreende-se por que após as eleições de 2018 a politização da história foi intensificada, em especial a referente à ditadura militar. A história assumiu lugar central na guerra cultural da direita autoritária, que acredita ser necessário dominá-la para moldar a opinião política dos brasileiros. A intenção desses grupos é anular a história acadêmica com o objetivo de tomar o seu lugar como fonte de educação do público, para o que estimulam a desconfiança em relação aos historiadores (professores ou pesquisadores). Desacreditar os pesquisadores acadêmicos significa remover um obstáculo às tentativas de fazer prevalecer versões farsescas ou falseadoras da história. Como os negacionistas e outras correntes anticientíficas, os nostálgicos da ditadura pretendem substituir o saber acadêmico por suas opiniões, paixões e preconceitos.

Nesse campo tem havido iniciativas do novo governo, mas também de organizações de direita igualmente empenhadas na luta cultural. Antes de abordar as políticas do governo Bolsonaro comentaremos, sinteticamente, certas ações de indivíduos e de grupos privados nas disputas sobre a história, na maior parte anteriores àquele governo. Haveria diferentes casos a explorar, tanto mais se fizéssemos uma pesquisa nos materiais que circulam pelas redes sociais, mas vamos mencionar apenas alguns exemplos que alcançaram maior repercussão pública. Um deles é o programa Escola sem partido (Penna, 2016), uma campanha conservadora criada em 2004, mas que ganhou repercussão pública a partir de 2014. O propósito básico do movimento era denunciar a suposta hegemonia de professores esquerdistas no sistema escolar, que a partir de tais posições ensinariam aos jovens conceitos socialistas e valores morais contrários aos padrões conservadores, principalmente feminismo e defesa da diversidade sexual. Embora o ataque fosse dirigido ao sistema escolar e aos professores como um todo, os historiadores foram particularmente atingidos por serem considerados os mais propensos a abordar temas políticos em sala de aula. Graças ao ativismo do Escola sem partido e de seus aliados, ao longo dos anos recentes inúmeros professores de história foram perseguidos em sala de aula, e alguns foram processados judicialmente. No entanto, algumas iniciativas inspiradas pelo grupo, inclusive propostas de lei que limitavam a liberdade de ensino sofreram derrotas nos tribunais superiores, o que contribuiu para que ele saísse de cena a partir de 2019.

Outro tipo de ativismo influente no campo dos discursos sobre a história foi protagonizado por escritores não especialistas que produzem textos voltados ao mercado, configurando uma espécie de história pública de viés direitista. Nessa linha cabe destacar o jornalista Leandro Narloch, que a partir de 2009 começou a publicar livros sobre história de caráter conservador e antiesquerdista, emulando a iniciativa de escritores latino-americanos de mesma linhagem, como os autores do Manual del perfecto idiota latino-americano, publicado originalmente em 1996 (Mendoza, Montaner e Vargas Llosa, 2016). Graças à ajuda da mídia tradicional, e de uma estratégia narrativa voltada a seduzir os leitores por meio da exploração de episódios pitorescos e escandalosos, com base em visões polêmicas e preconceituosas, os livros de Narloch alcançaram grande repercussão pública e alta vendagem. A sua perspectiva conservadora se expressa em diferentes aspectos, por exemplo em representações eurocêntricas e elitistas sobre a história brasileira. Porém, importa destacar o viés marcadamente antiesquerdista de seu trabalho, que se revela no modo como busca atenuar os crimes da ditadura. No seu livro Guia politicamente incorreto da História do Brasil, a ditadura aparece como uma resposta necessária à violência da esquerda, e a própria tortura estatal é relativizada em nome da necessidade de combater os revolucionários.[17]

Mais recentemente, surgiu uma iniciativa coletiva para a produção de narrativas de viés direitista sobre a história, o grupo empresarial Brasil Paralelo. Essa instituição foi criada por um grupo de jovens direitistas no ano de 2016, e uma de suas principais atividades tem sido produzir vídeos sobre a história do Brasil para divulgação nas redes sociais. Trata-se de filmes que apresentam valores nacionalistas tradicionais, caros à cultura conservadora, ao mesmo tempo em que divulgam opiniões liberais em matéria de economia. Importa destacar que um de seus produtos audiovisuais de maior impacto enfoca o golpe e a ditadura militar, 1964: o Brasil entre armas e livros (2019), cujos índices de visualização no youtube alcançam a casa dos milhões. Sem surpresa, o filme bate na tecla de que o golpe de 1964 foi necessário para derrotar uma suposta ameaça comunista, mas com a novidade de enfatizar narrativas distorcidas sobre a ação da espionagem soviética no Brasil. Além disso, como está indicado em seu título (a referência aos livros), o filme incorpora a teoria sobre a suposta estratégia gramsciana da esquerda para obter hegemonia cultural. Um índice revelador do impacto das atividades do grupo Brasil Paralelo no campo da direita foi a nomeação de um de seus membros, Rafael Nogueira, para dirigir a Biblioteca Nacional no início do governo Bolsonaro. O afinamento de Nogueira com a ideias do grupo apareceu em uma declaração “sobre a importância de tomar dos ‘doutores em História’ a prerrogativa de narrar a História do Brasil, dando a ela um tratamento mais adequado.”[18]

Voltando agora o foco para o governo Bolsonaro, desde a campanha eleitoral estava claro que ele iria intensificar as ações autoritárias no campo da história. “Deixa os historiadores para lá!” Essa frase foi proferida pelo então candidato presidencial na campanha eleitoral de 2018, durante entrevista ao Jornal Nacional da Rede Globo. Foi a maneira que ele escolheu para iniciar a resposta a um questionamento do jornalista William Bonner a propósito dos eventos de 1964. Reagindo à afirmação do jornalista de que os historiadores sérios se referem a 1964 como um golpe, Bolsonaro desqualificou a história acadêmica, como se não merecesse consideração quando está em pauta o passado recente.[19] Ainda durante a campanha eleitoral de 2018, as intenções do futuro governo de extrema direita foram reveladas nas declarações de um general reformado do Exército que integrava a equipe de campanha do então candidato: ele prometeu eliminar livros de história “que não tragam a verdade sobre 64”.[20]

Nas semanas iniciais do novo governo, declarações e ações de seus integrantes indicaram que a disposição de interferir na produção e no ensino de história não eram apenas retórica eleitoral. O primeiro titular do Ministério da Educação do governo Bolsonaro, Ricardo Vélez Rodríguez, algumas semanas após assumir o cargo, anunciou a disposição de revisar os livros didáticos para adequá-los à visão de que 1964 não originou uma ditadura.[21] Em declarações à imprensa, Vélez Rodríguez explicitou a opinião do governo em relação ao tema, fazendo afirmações de tipo negacionista: “Não foi um golpe contra a Constituição da época, não. […] Foi um regime democrático de força”.[22] Em poucas frases, o ministro da Educação tocou dois pontos essenciais da linguagem negacionista sobre a ditadura: a queda de João Goulart em 1964 não teria sido um golpe, e o regime político subsequente não teria sido uma ditadura.

Naturalmente, Bolsonaro não se empenharia menos do que seus auxiliares. Depois de assumir a presidência ele manteve o tom da campanha, e em diferentes ocasiões se manifestou sobre os eventos de 1964. Em março de 2019, por exemplo, ele fez declarações públicas estimulando comemorações dedicadas à “revolução” de 31 de março de 1964. Para estimular seus seguidores, na ocasião a Presidência da República divulgou um pequeno vídeo corroborando sua visão sobre o significado daquele evento histórico, com destaque para a narrativa anticomunista. A peça audiovisual apresenta um narrador (um homem de meia idade) cuja fala opera o falseamento da história, pois se atribui à esquerda, em 1964, atos violentos que na verdade seriam praticados pela ditadura contra seus oponentes (“Era, sim, um tempo de medo… daquilo que os comunistas faziam… Prendiam e matavam seus compatriotas… O Exército nos salvou”).[23]

Mas a iniciativa presidencial em março de 2019 gerou também efeitos contrários ao esperado. A fala do presidente estimulou reações entre alguns grupos sociais e nas mídias, o que levou à organização de protestos em algumas cidades e à publicação de inúmeros relatos sobre a violência da ditadura. Significativamente, em 31 de março de 2019 ocorreram os protestos antiditatoriais mais relevantes desde os anos 1980, e a esquerda acabou utilizando a data oficial do 31 de março, no lugar do 1 de abril, movida pela necessidade de protestar contra os nostálgicos da ditadura.[24] Um indício de que o governo não conseguiu atrair apoio majoritário para sua opinião nostálgica da ditadura apareceu em pesquisa do Datafolha realizada uma semana depois, no dia 6 de abril de 2019. Diante da pergunta se 1964 deveria ser desprezado ou comemorado, 57% dos entrevistados optaram pela primeira opção e “apenas” 36% pela segunda.[25]

No 31 de março seguinte, em 2020, o presidente voltou à carga. Em suas redes sociais, ele comemorou o evento como “um dia de liberdade”. Como se não bastasse, alegou ainda que a escolha do general Castelo Branco pelo Congresso evidenciava que em 1964 não ocorreu um golpe: “A verdade: o Marechal foi eleito de acordo com a Constituição e não houve golpe em 31 de março”.[26] É importante deixar claro que tal afirmação, corriqueira em tempos de fake news e de “pós-verdade”, não corresponde à verdade dos fatos. Em 1964 houve um golpe militar (com apoio de lideranças civis) e a Constituição foi violentada, pois, de acordo com o seu artigo 139, o general Castelo Branco não poderia ter sido escolhido para ocupar o posto de presidente que estava vago devido ao exílio forçado de Goulart.[27]

Em 19 de abril de 2020, cerca de vinte dias após as declarações elogiosas de Bolsonaro ao golpe de 1964, em manifestações que mostravam fidelidade aos valores autoritários de seu líder, grupos de militantes da direita radical foram às ruas para demandar o fechamento do Supremo Tribunal Federal e ameaçar outras instituições da República. De maneira significativa, e mostrando que a nostalgia pela ditadura tinha apoio militante fora dos círculos militares, algumas pessoas presentes a tais manifestações públicas portavam cartazes pedindo um “novo AI-5”, sendo que em uma das ocasiões o próprio Bolsonaro estava presente e fez discursos de incentivo aos manifestantes.[28]

Em março de 2021, a memória e o legado da ditadura marcaram sua presença no cenário público, mais uma vez. Entre outros episódios, vale a pena destacar que o presidente entrou na justiça para ter o direito de comemorar a vitória sobre a esquerda em 1964, e que o recém-nomeado ministro da Defesa, general Braga Netto, publicou nota alusiva ao 31 de março usando o tom (auto) elogioso habitual. Segundo o general, a data deveria ser comemorada pois em 1964 as Forças Armadas teriam assumido o controle para “pacificar o país” e com isso garantiram “as liberdades democráticas de que hoje desfrutamos”. Como se não bastasse, naquele 31 de março de 2021, quando a pandemia de covid-19 já havia matado mais de 300 mil brasileiros, grupos de militantes de direita em verde e amarelo, saudosos de 1964, mais uma vez saíram às ruas pedindo uma intervenção militar.

Para além de discursos e iniciativas no campo da memória, o governo Bolsonaro tomou medidas para interferir no campo da pesquisa e do ensino da história da ditadura. Em primeiro lugar, vale a pena registrar que seu governo promoveu redução aguda nas verbas para as universidades e para as agências de pesquisa. Além disso, o Ministério da Educação foi ocupado por uma sucessão de figuras devotadas à direita autoritária, que se ocuparam de desviar verbas das instituições públicas para entidades privadas e igrejas evangélicas favoráveis ao governo. A campanha destrutiva passou ainda pela estratégia de depreciar as universidades públicas, que um dos ministros da Educação de Bolsonaro (Abraham Weintraub) acusou de serem antros de “balbúrdia”, mais especificamente, ele afirmou que seriam locais de produção e consumo de drogas, além de ninhos de proselitismo ideológico esquerdista. Tratava-se de criar imagem negativa para as universidades públicas de maneira a justificar os cortes de recursos, o que emulava declarações anteriores de Bolsonaro (em abril de 2019) de que as instituições privadas produziriam mais pesquisas.[29]

Outro episódio grave, que aparentemente visava pressionar pelo corte de verbas, mas também semear o medo nos meios acadêmicos: em outubro de 2019, figuras ligadas ao governo circularam listas de pesquisadores que seriam inconvenientes a seus olhos, pois se tratava de investigadores dedicados a temas relacionados à história da ditadura ou dos movimentos LGBT. Houve também iniciativas para golpear instituições de pesquisa federais na área de Ciências Humanas e Sociais, como a Fundação Rui Barbosa, e foram nomeados dirigentes de instituições educacionais e culturais (alinhados à direita radical) à revelia dos especialistas das respectivas áreas, por exemplo, no Instituto Brasileiro de Museus e no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Para além de ações de natureza estritamente destrutiva, outro eixo das políticas do governo Bolsonaro envolveu projetos para disseminar as suas convicções ideológicas – notadamente patriotismo autoritário, moralismo conservador e anticomunismo. Nessa linha, o Ministério da Educação criou um programa de escolas cívico-militares em parceria com o Ministério da Defesa, que implica a contratação de militares aposentados para atuarem em escolas públicas visando aproximá-las dos “padrões de ensino adotados pelos colégios militares”.[30] Foram também tomadas iniciativas para interferir na produção de material didático, notadamente na área de história, com consequências previsíveis. O governo atuou também para impedir que as provas de história dos exames nacionais para ingresso no sistema universitário abordassem temas relacionados à ditadura, um ato de censura visando a desestimular o estudo e o conhecimento da História Recente.[31]

Está claro que tais iniciativas são parte de uma estratégia da guerra cultural, que, embora seja atribuída aos inimigos, é praticada intensamente pelo bolsonarismo. De um lado, o governo procurou enfraquecer as instituições públicas de ensino/pesquisa e amedrontar especialmente os pesquisadores da área de Ciências Humanas e Sociais, que ele acredita serem os vetores da ameaça esquerdista. De outro lado, tomou iniciativas visando utilizar o aparelho de Estado para difundir suas convicções ideológicas através do sistema escolar, do material didático e das mídias oficiais (como a rede de televisão pública).

É importante registrar a realização de ações de resistência nos meios acadêmicos, já que a lógica de ação do tempo da ditadura militar voltou a fazer sentido, embora existam diferenças entre os dois contextos. O corte de verbas federais para a educação pública em maio de 2019 gerou o maior protesto de rua contra o governo Bolsonaro, em uma jornada convocada por entidades de professores e estudantes que mobilizou centenas de milhares de pessoas (em cerca de 200 cidades) em defesa da educação e da pesquisa. Além disso, as cortes de justiça e o Congresso bloquearam algumas iniciativas autoritárias oficiais, e certos dirigentes e servidores de agências públicas de financiamento à pesquisa buscaram contornar algumas pressões do governo.

No que se refere às disputas de representações sobre a história da ditadura, a imprensa tradicional passou a divulgar mais pesquisas e informações sobre a violência estatal naquele período, em contraste com seu apoio aos governos militares à época. E quanto às atividades de historiadores e historiadoras acadêmicos, as ameaças autoritárias não surtiram efeitos relevantes e a produção de conhecimento sobre a História Recente seguiu pujante. Vale destacar que muitos historiadores ampliaram esforços para a divulgação pública (nos meios tradicionais e nas redes sociais) do conhecimento produzido nas universidades, como uma tentativa de enfrentar os discursos negacionistas e falseadores.

Considerações finais

A modo de fechamento do artigo, será apresentada uma reflexão mais detida sobre o uso de negacionismo para nomear os discursos nostálgicos e favoráveis a uma memória positiva da ditadura. Em seguida, serão feitas considerações sobre os desafios que tais embates sobre o passado recente apresentam à epistemologia da História, que nos impelem a repensar o problema dos regimes de verdade adequados a essa área do saber.

Como é sabido, o termo negacionismo foi cunhado para nomear (e criticar) os discursos que a partir dos anos 1970/80 começaram a colocar em dúvida a realidade do genocídio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial (Moraes, 2013).[32] Tais posições foram sustentadas por autores invariavelmente conectados ideologicamente ao nazismo, o qual buscavam reabilitar ao negarem ou reduzirem os seus crimes contra a humanidade. A violência cometida pela ditadura militar brasileira não é comparável ao genocídio dos judeus, o que torna o uso de negacionismo no presente caso um desafio ao mesmo tempo científico e ético. Ademais, nem sempre os argumentos dos defensores da ditadura implicam posições estritamente negacionistas, já que na maioria das vezes não se trata de negar os eventos, como a derrubada do presidente João Goulart em 1964, mas de distorcer os seus significados. Assim, em muitos casos trata-se antes de abuso, manipulação ou falsificação das representações sobre o passado.

Porém, por vezes é possível afirmar a presença de negacionismo, como foi apontado rapidamente páginas atrás. No caso da história recente brasileira, parece-me mais convincente postular a presença de discursos negacionistas nas seguintes situações: a negação de que em 1964 ocorreu um golpe; a negação de que o regime político instaurado em seguida ao golpe foi uma ditadura; e a negação, e mais frequentemente a relativização, dos crimes cometidos pelos agentes do Estado autoritário.

Mesmo que nem sempre se possa falar em negacionismo, a divulgação de representações que distorcem ou falseiam as evidências permanece um problema grave. Divergências interpretativas sobre eventos e processos históricos fazem parte da produção do conhecimento e contribuem para a geração de uma historiografia mais confiável e sólida. No entanto, isso só tem validade quando os participantes do debate se pautam por regras e padrões baseados na ética, na honestidade intelectual e no respeito aos dados empíricos.[33] Em outras palavras, o diálogo é difícil (às vezes impossível) quando o oponente falsifica ou esconde evidências, diz mentiras propositadamente ou manipula a interpretação lógica dos documentos para construir seu argumento.

Nos embates sobre a história, principalmente a recente, certas figuras abusam da mentira e da falsidade. Embaralhando as noções sobre o que seja falso e verdadeiro, certas lideranças e intelectuais da direita autoritária buscam desqualificar o conhecimento acadêmico. Com frequência eles reivindicam fazer asserções verdadeiras, apresentando-as como a “Verdade” supostamente ocultada por seus adversários. Para conferir impressão de credibilidade a tais discursos, e reivindicar que eles contêm a verdade, negacionistas e demais mistificadores por vezes mobilizam evidências históricas, como documentos sigilosos localizados em arquivos. Porém, esses indícios são interpretados de maneira distorcida e manipulados de uma maneira que afronta preceitos básicos da lógica científica. Apesar do mise-en-scène para aparentar credibilidade, são menosprezados os protocolos científicos para o estabelecimento da verdade: a necessidade de evidências e indícios; o respeito a procedimentos lógico-racionais para validação e análise do material empírico; o debate intersubjetivo para colocar à prova o conhecimento produzido.

Diante desse quadro, torna-se importante refletir com mais cuidado sobre o estatuto da verdade no campo da história, com atenção para suas implicações políticas.[34] Não se pretende resolver aqui os desafios teóricos envolvidos no tema, mas apenas argumentar que os historiadores acadêmicos deveriam investir mais em reflexões sobre os pressupostos científicos dessa área do conhecimento, ou melhor, sobre a cientificidade possível para a história. Por muitos anos, e graças ao influxo do pós-modernismo e do giro linguístico, têm sido hegemônicos entre os historiadores o ceticismo, o relativismo e a descrença na possibilidade de a história produzir conhecimento verdadeiro.

Porém, como seria possível refutar o negacionismo e demais manipulações do conhecimento histórico sem basear-se nos princípios metodológicos que fundamentam a história acadêmica? Como seria possível dizer que alguma afirmação é falsa, mentirosa ou distorcida, se não pudéssemos fazer asserções verdadeiras? Acreditar que nenhuma verdade é realmente alcançável pelo conhecimento histórico significaria, no limite, admitir que todas as versões podem ser aceitáveis, inclusive as negacionistas. É claro que há várias nuanças nessa discussão, com conflitos de interpretação difíceis de resolver e que não admitem qualquer pretensão ingênua à verdade absoluta. No entanto, podem ser estabelecidas verdades básicas, simplórias talvez, mas que adquirem significado especial em tempos de negacionismo e fake news.

Defender tal posição não significa propor um retorno ao “iluminismo” ou ao “positivismo”, e tampouco à crença na objetividade pura. Reafirmar alguns princípios básicos da historiografia moderna não requer aceitar todos seus pressupostos, já que, obviamente, alguns deles estão superados, como a perspectiva linear sobre o fenômeno da temporalidade (conectada ao otimismo progressista), o eurocentrismo e o objetivismo cientificista. Mas, reiterando, para enfrentar os discursos que manipulam o conhecimento da história e pretendem assumir seu controle para justificar projetos autoritários, não temos instrumentos melhores do que o aparato crítico-científico da historiografia.

Para travar debate com os discursos negacionistas e nostálgicos em relação à ditadura, se acreditássemos que a história não pode estabelecer verdades já estaríamos derrotados de antemão. Se os defensores de tais posições afirmam serem os donos da verdade, a resposta cética de que a história não pode estabelecer verdades não é alentadora, tanto por sua insuficiência do ponto de vista científico como pela ineficácia do ponto de vista político, já que tal postulado pode debilitar o discurso acadêmico.

No lugar de se colocarem em posição defensiva, investindo no questionamento do valor do conhecimento acadêmico e exaltando formas alternativas de discurso sobre o passado, os historiadores deveriam mostrar ao público porque a história produzida em instituições acadêmicas é relevante e confiável para apontar a falsidade e a manipulação politicamente interessada dos defensores de ditaduras.

* * * * * *

Em março de 2022, no momento do aniversário do golpe, a memória de 1964 e da ditadura foi novamente homenageada pelo governo Bolsonaro e seus líderes militares. Tratava-se de mobilizar o passado recente no quadro da campanha pela reeleição de Bolsonaro, cujo principal oponente era o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato das esquerdas (e de uma parte do centro) que nas pesquisas de opinião do início do ano aparecia como favorito para vencer as eleições. Nesse contexto, buscando ganhar votos do centro e da direita moderada, Jair Bolsonaro e seus aliados buscaram ativar novamente a polarização direita x esquerda, associando os adversários mais uma vez ao “comunismo” e ao “mal”, tentando insuflar o sentimento antipetista que havia sido decisivo em 2018. Dessa maneira, na disputa eleitoral de 2022, estava em jogo não apenas o governo e o futuro do Brasil, mas também o julgamento da história da ditadura, um passado presente.

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Notas

[1] Evidentemente, tal estratégia era interessante também porque ocultava o envolvimento de parte das elites civis com a ditadura militar. Reis Filho, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
[2] Folha de S.Paulo, 10/10/2008. Em junho de 2021 a justiça condenou Carlos Alberto Augusto, ex-agente do Deops-sp, conhecido por Carlinhos Metralha, a dois anos e 11 meses de prisão em regime semiaberto pelo desaparecimento de um militante de esquerda durante a ditadura. No entanto, a expectativa de que o caso poderia significar uma mudança de rumos foi frustrada devido à decisão do tribunal de segunda instância que, em fevereiro de 2022, suspendeu a condenação do ex-policial. Um dos argumentos utilizados na sentença de absolvição é que o crime teria sido perdoado pela lei de Anistia de 1979. https://veja.abril.com.br/coluna/maquiavel/a-volta-por-cima-do-unico-condenado-por-crimes-na-ditadura/

Acesso em: 20 abril de 2022.

[3] A palavra revanchismo passou a ser usada por lideranças militares em 1977, quando se começou a discutir a possibilidade de uma anistia parcial para os adversários da ditadura. A expressão significa que os militares consideram inaceitável serem julgados por suas ações repressivas, o que representaria na sua visão uma revanche indevida praticada pelos derrotados na luta armada. Motta, Rodrigo Patto Sá. Passados presentes: o golpe de 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2021, p.282.
[4] Trata-se dos livros Rompendo o silêncio, de 1987, e A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça, lançado em 2006.
[5] Lei n. 9140, 4 dez. 1995.
[6] Lei n. 10559, 13 nov. 2002. Ver Brito, Alexandra Baharona de. “Justiça transicional” em câmera lenta: o caso do Brasil. In Pinto, António Costa e Martinho, Francisco (org.). O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p.235-260.
[7] Essas entidades surgiram no contexto dos movimentos sociais que entre 1975 e 1979 pressionaram a ditadura militar pela anistia aos presos e perseguidos políticos. Ainda que a Lei de Anistia elaborada pela ditadura fosse restrita e não atendesse plenamente às demandas democráticas, sua aprovação em agosto de 1979 esvaziou os movimentos sociais pela anistia. Porém, a partir deles surgiram entidades ligadas aos familiares de mortos e desaparecidos que, além de denunciarem publicamente as instituições repressivas ainda vigentes, demandaram do Estado informações sobre as vítimas da repressão. Nessa linha, tiveram destaque a Comissão de familiares de mortos e desaparecidos políticos (CFMDP) e os Grupos Tortura Nunca Mais (GTNM), que eram organizados regionalmente (principalmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro) e foram criados nos anos 1980. Importa destacar que essas entidades produziram informações sobre os mortos e desaparecidos e listas de agentes estatais responsáveis pelos crimes antes que o Estado brasileiro tomasse iniciativas nessa área. Silva, Op.cit., p. 87-95; Gallo, Carlos Artur. Do luto à luta: um estudo sobre a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 329-361, jul. 2012.
[8] Tais medidas afetaram mais a esfera federal, principalmente o arquivo do Serviço Nacional de Informações da ditadura (disponibilizado para consulta pública em 2006), já que documentos de órgãos de polícia estaduais (os DOPS) já vinham sendo liberados desde os anos 1990. O decreto do governo FHC (nº 4.553) dificultando acesso aos documentos da ditadura foi publicado em dezembro de 2002, no final de seu mandato. Em 2011, o governo de Dilma Rousseff aprovou medidas em direção contrária, que tornaram mais simples a consulta pública de documentos classificados como sigilosos (Lei 12.527).
[9] Lei n. 12528, 18 nov. 2011.Ver também Bauer, Caroline Silveira. Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade. Jundiaí: Paco, 2017.
[10] É o que se depreende do depoimento do general Villas Bôas. O general, que na época era Comandante do Exército, foi autor de um célebre tuíte às vésperas da votação pelo Supremo Tribunal Federal de um pedido de habeas corpus em favor de Lula (abril de 2018), que exerceu grande pressão sobre os juízes do STF. Castro, Celso (Org.). General Villas Bôas: conversa com o comandante. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2021, p. 154-9, 185-91.
[11] Em junho de 2013 ocorreram jornadas de protesto de rua de larga escala no Brasil, que são consideradas o início da crise que levaria ao impeachment de Dilma Roussef. Os protestos começaram com lideranças estudantis reclamando redução dos preços do transporte público, mas logo as manifestações se generalizaram e produziram uma agenda ampla e heterogênea de demandas, principalmente críticas contra a corrupção. Nesse contexto, grupos de direita se organizaram melhor e ganharam mais consistência, aproveitando-se do clima político de inquietação. Não obstante Dilma Rousseff tenha sido reeleita ao fim de 2014, as eleições foram muito disputadas e as forças de direita exploraram os sentimentos antipetistas para mobilizar o eleitorado. A vitória apertada da candidata de esquerda (51,6% para Dilma e 48,4% para Aécio Neves) levou seus oponentes a questionarem os resultados e, em seguida, lançarem uma campanha pelo impeachment.
[12] A propósito dos primeiros anos de atividade política de Bolsonaro ver Oyama, Thaís. Tormenta. O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019 e Carvalho, Luís Maklouf. O cadete e o capitão. São Paulo: Todavia, 2019.
[13] As milícias são organizações clandestinas que vendem proteção e serviços ilegais a moradores de determinadas regiões do Rio de Janeiro. Seus integrantes são geralmente policiais e suas atividades incluem vários tipos de crimes, inclusive assassinatos.
[14] Registros sobre a atuação parlamentar de Bolsonaro podem ser encontrados no verbete do Dicionário Histórico e Biográfico do CPDOC-FGV. Em diferentes ocasiões houve iniciativas para punir o deputado por suas declarações, mas sem consequências. http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jair-messias-bolsonaro. Acesso em 3/04/2022.
[17] Os principais livros de Leandro Narloch são Guia politicamente incorreto da História do Brasil. São Paulo: Leya, 2009 e Guia politicamente incorreto da América Latina. São Paulo: Leya, 2011. Para estudos críticos sobre os livros desse jornalista ver Venâncio, Renato. O Incorreto no “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”. https://hhmagazine.com.br/o-incorreto-no-guia-politicamente-incorreto-da-historia-do-brasil/; e Malerba, Jurandir. Acadêmicos na berlinda ou como cada um escreve a História?: uma reflexão sobre o embate entre historiadores acadêmicos e não acadêmicos no Brasil à luz dos debates sobre Public History. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 7, n. 15, p. 27–50, 2014.
[18] Paulo, Diego Martins Dória. Produtora de extrema-direita. Os mitos da Brasil Paralelo. https://diplomatique.org.br/os-mitos-da-brasil-paralelo-2/. Consultado em 23/04/2022. Ver também Nicolazzi, Fernando. A história da ditadura contada pela Brasil Paralelo. https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2019/03/a-historia-da-ditadura-contada-pelo-brasil-paralelo-por-fernando-nicolazzi/ Consultado em 28 de abril de 2022.
[19] Pela mesma época, tornaram-se frequentes manifestações de outras personalidades públicas sobre a história recente. Um exemplo notável foi o ministro do Supremo Tribuna Federal (STF) José Antonio Dias Toffoli, que, às vésperas do primeiro turno das eleições de 2018, quando presidia a Suprema Corte brasileira, afirmou que 1964 deveria ser visto como um movimento e não como um golpe ou uma revolução. A declaração provocou grande celeuma, pois foi entendida como tentativa de minimizar o caráter autoritário da derrubada do presidente João Goulart. Ver https://oglobo.globo.com/brasil/toffoli-diz-que-nao-usa-mais-golpe-nem-revolucao-mas-sim-movimento-de-64-23116536. Acesso em 4 de abril de 2022.
[21] Ver www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/04/livros-didaticos-vao-negar-golpe-militar-e-ditadura-diz-ministro-da-educacao.shtml. Acesso em 4 de abril de 2022.
[22] Trechos de entrevista do então ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, em abril de 2019. Disponível em: http://valor.globo.com/politica/noticia/2019/04/03/velez-quer-alterar-livros-didaticos-para-resgatar-visao-sobre-golpe.ghtml. Acesso em 3 de abril de 2022.
[23] Trechos da fala de um vídeo divulgado pela presidência da República em 31 de março de 2019. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/planalto-e-eduardo-bolsonaro-divulgam-video-que-celebra-golpe-de-64.shtml. Acesso em 3 de abril de 2022. Também no dia 31 de março de 2019, o governo Bolsonaro enviou um telegrama à ONU em que negou um golpe de Estado em 1964 e defendeu a ação militar como necessária para derrotar o comunismo. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47818978. Acesso em 27 de abril de 2022.
[24] Desde 1964 as forças de oposição preferiram dizer que o golpe se deu em 1. de abril (o dia da mentira), uma forma de ridicularizar o evento e recusar a data de 31 de março, a preferida pelos golpistas.
[26] www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/03/31/interna_politica,841564/bolsonaro-diz-que-nao-houve-golpe-militar-em-1964.shtml
[27] A Constituição de 1946 estabelecia que caso a presidência ficasse vaga (e Goulart não tinha um vice) caberia ao Congresso eleger alguém de forma indireta para completar o mandato presidencial interrompido. Entretanto, os ocupantes de certos cargos, inclusive militares chefes de Estado-Maior, não poderiam ser eleitos para o cargo de presidente antes de um prazo de desincompatibilização de suas funções. Como Castelo Branco era Chefe do Estado-Maior do Exército no momento do golpe, ele não poderia ter sido eleito presidente naquele momento.
[28] O Ato Institucional n.5 (13/12/1968) foi uma das medidas mais autoritárias e violentas da ditadura, que permitia o fechamento do Congresso, a suspensão de direitos políticos, o cancelamento do direito ao habeas corpus, entre outros atos discricionários. Os manifestantes de abril de 2020 exigiram também o fim das restrições sanitárias editadas para conter a pandemia da covid 19. https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-discursa-em-ato-com-pauta-a-favor-do-ai-5-e-contra-o-congresso. Consultado em 19/04/2022.
[29] As declarações de Bolsonaro mostravam ao mesmo tempo ignorância e má-fé, já que as instituições públicas são responsáveis por cerca de 95% das pesquisas realizadas no Brasil. https://jornalggn.com.br/educacao/desmente-bolsonaro-mais-de-95-da-producao-cientifica-do-pais-vem-de-universidades-publicas/. Consultado em 26 de abril de 2022.
[31] Também foram excluídas questões sobre o feminismo. https://www.cartacapital.com.br/politica/feminismo-armas-ditadura-as-questoes-censuradas-pelo-governo-no-enem-em-2019/. Consultado em 27 de abril de 2022.
[32] Moraes, Luís Edmundo de Souza. Negacionismo: a extrema-direita e a negação da política de extermínio nazista. Boletim do Tempo Presente, n. 4, pp. 1-22, 2013.
[33] A respeito dos abusos da história e de definições e procedimentos adequados para identificá-los ver De Baets, Antoon. Uma teoria do abuso da História. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 33, nº 65, 2013, p. 17-60.
[34] Naturalmente, essa discussão é tributária das reflexões que nos anos 1980-90 alguns historiadores (como Pierre Vidal-Naquet, Carlo Ginzburg, Saul Friedlander e Roger Chartier, entre outros) empreenderam frente ao negacionismo.

Autor notes

* Rodrigo Patto Sá Motta é professor da Universidade Federal de Minas Gerais (coordenador do LHTP) e pesquisador 1D do CNPq. Suas principais publicações são os livros Em guarda contra o perigo vermelho, o anticomunismo no Brasil (Niterói, Eduff, 2020; publicado em espanhol pela Ediciones UNGS em 2019 e pela Sussex University Press em 2020), As universidades e o regime militar (Rio de Janeiro, Zahar, 2014) e Passados presentes. O golpe de 1964 e a ditadura militar (Rio de Janeiro, Zahar, 2021).
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