ARTIGOS CIENTÍFICOS
Recepção: 30 Junho 2021
Aprovação: 20 Outubro 2021
Publicado: 08 Novembro 2021
URL: http://portal.amelica.org/ameli/journal/574/5744690014/
DOI: https://doi.org/10.37084/REMATEC.1980-3141.2021.n.p245-261.id484
Resumo: Este artigo se constitui de um recorte da tese de Marta Maria Maurício Macena que conta, em meio ao relato de doze professores, sobre uma educadora que foi destaque no Liceu Paraibano na década de 1960, D. Daura. Nove depoimentos nessa mesma tese, sem serem estimulados, trazem enfáticas afirmações a respeito dela. Ali no Liceu Paraibano, com apenas o Curso Normal (formação de segundo grau que habilitava para lecionar no ensino fundamental), foi professora de matemática na segunda fase do curso secundário (no Brasil, atual Ensino Médio) e em seguida, diretora dessa instituição, bem como do Instituto de Professores da Paraíba. Carismática para com alunos, servidores e professores, seu mandato, com características bem específicas, foi denominado de “Era Daura”.
Palavras-chave: Educadores matemáticos, Liceu Paraibano, Década de 1960.
Abstract: This article is a clipping of Marta Maria Maurício Macena's thesis that tells, amid the report of twelve teachers, about an educator who was featured at the Liceu Paraibano in the 1960s, Mrs. Daura. Nine statements in this same thesis, without being stimulated, bring emphatic statements about she. There at Liceu Paraibano, with only the Curso Normal (high school education that qualified to teach in elementary school), she was a mathematics teacher in the second phase of secondary school (in Brazil, current high school) and then director of this institution, as well as of the Instituto de Educação da Paraíba (IEP). Charismatic to students, servants and teachers, her mandate, with very specific characteristics, was called "Era Daura".
Keywords: Mathematical educators, Liceu Paraibano, 1960s.
Resumen: Este artículo es un recorte de la tesis de Marta Maria Maurício Macena que cuenta, en medio del informe de doce profesores, sobre un educador que se convirtió en evidencia en el Liceu Paraibano en la década de 1960, D. Daura. Daura. Nueve testimonios en esta misma tesis, sin ser estimuladas, traen afirmaciones enfáticas al respecto. Allí en el liceu Paraibano, con solo el Curso Normal (educación secundaria que calificó para enseñar en la escuela primaria), fue profesora de matemáticas en la segunda fase de la escuela secundaria (en Brasil, actual Escuela Secundaria) y luego directora de esta institución, así como del Instituto de Educação da Paraíba (IEP). Carismático para estudiantes, sirvientes y maestros, su mandato, con características muy específicas, se llamaba "Era Daura".
Palabras clave: Educadores matemáticos, Liceu Paraibano, Década de 1960.
INTRODUÇÃO
As fotografias a seguir (em João Pessoa – PB) estão relacionadas com a educadora dona Daura: a fachada do Colégio Liceu Paraibano (Figura 1), escola de referência na rede pública estadual de ensino, com o prédio atual no formato de um navio, a escola mais antiga da Paraíba, criada ainda durante a monarquia pela Lei n. 11 (24/03/1836), hoje se localiza na avenida Getúlio Vargas, foi inaugurado em 1937, mas durante um século, ele funcionou no antigo Convento de São Gonçalo (atual Faculdade de Direito); a fachada do Instituto de Educação da Paraíba – IEP (Figura 2); e o muro da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Professora Daura Santiago Rangel (Figura 3).
A Escola Cidadã Integral Técnica Estadual (ECITE) Professora Daura Santiago Rangel, que está localizada a Rua Benício de Oliveira Lima S/N – José Américo – João Pessoa – PB presta homenagem à professora que registrou a sua história quando esteve à frente do Liceu Paraibano.
Numa organização aos estudos públicos secundários surgem “os primeiros liceus provinciais graças à reunião de cadeiras avulsas existentes nas capitais das províncias: o Ateneu do Rio Grande do Norte em 1835, os Liceus da Bahia e da Paraíba em 1836” (HAIDAR, 2008, p. 21). Lá, no Liceu, no período escolhido para investigação (década de 1960), estava inserido o ensino do segundo ciclo do ensino secundário.
Literalmente, a expressão ensino secundário designa um grau ou nível do processo educativo, e, dessa forma, teria o mesmo significado de ensino médio, de segundo grau ou pós-primário. Educação secundária significa a fase do processo educativo que corresponde à adolescência, ou que se superpõe à educação primária ou elementar; seria a educação do adolescente, assim como a educação primária é a da criança. [...] nessa função de qualificativos de dois dos graus do processo de educação escolar [...] se usaram inicialmente os termos primário e secundário. [...] Os termos ‘primário’ e ‘secundário’, em sua acepção pedagógica, começaram a tornar-se usuais na França, durante a Revolução [...] (SILVA, G., 1969, p. 19 e 120).
O ensino do segundo ciclo do ensino secundário corresponde ao atual ensino médio. O Art. 34, Cap. I, Tít. VII da Lei 4.024/61, que fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em vigor no período investigado, afirma: “O Ensino Médio será ministrado em dois ciclos, o ginasial e o colegial, e abrangerá, entre outros, os cursos secundários, técnicos e de formação de professores para o ensino primário e pré-primário” (BRASIL, 1961). Também se encontra na extensão dessa Lei, a referência ao nível de ensino pesquisado como ensino secundário (segundo ciclo), que atualmente corresponde ao ensino médio da Educação Básica. Foi só a partir da Lei de Diretrizes e Bases 9394/96, no Parecer CEB/CNE, 15/98 (Câmara de Educação Básica / Conselho Nacional de Educação) ficaram estabelecidas as diretrizes para o ensino médio: instituiu-se a condição de norma legal quando se atribuiu a este o estatuto de Educação Básica (Art. 21). O ensino médio é parte da Educação Básica, mas até a década de 1980, no contexto político-sócio-educacional, ele continuou ausente do foco das políticas públicas de Educação Básica, já que estas se voltavam prioritariamente para o ensino fundamental (CASTRO, 1997).
DONA DAURA OU MAMÃE DAURA
Coube à escritora professora Dra. Marinalva Freire da Silva (1993; 2006) historiar sobre a professora Daura, pela primeira vez. Em dois dos livros de Marinalva há depoimentos da própria professora Daura, bem como de alunos, de funcionários, de amigos e de parentes, que nos dizem do viver docente e da história de vida dessa educadora.
Uma pesquisa de doutoramento (MACENA, 2013), inserida em procedimentos metodológicos da História Oral, dispôs de onze professores-colaboradores. No relato de nove destes colaboradores, sem serem estimulados, constou o nome da referida professora. Embora todos sejam do sexo masculino, uma de suas principais referências é feminina – trata-se de dona Daura. Alguns, com apaixonante esmero, fizeram perceber um movimento histórico com singularidades que instauraram limites temporais que provocaram rupturas com a rotina. Tais limites são manifestos por seus contemporâneos como “era Daura” ou “era dona Daura” ou “época de dona Daura” ou “tempo de dona Daura” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007).
Pela frequência com que o nome da professora Daura apareceu nos relatos reunidos, e por se contar com os livros publicados a seu respeito pela professora Dra. Marinalva Freire da Silva, surgiu a ideia de montar uma entrevista “em memória”. Tal entrevista foi direcionada pelo mesmo roteiro dos demais professores e possibilitou averiguar o que ela, talvez, diria. Eis o que aguçou a curiosidade pelo seu viver profissional e acadêmico.
Esforços foram concentrados no sentido de registrar uma versão “aos olhos de atores sociais que vivenciaram certos contextos e situações, considerando como elementos essenciais nesse processo as memórias desses atores” (GARNICA, 2007, p. 13). Ouvindo, lendo e registrando, na presença da subjetividade, é possível contar um pouco de dona Daura. E, para falar sobre a prática, dispondo dos indícios oriundos do que contaram os entrevistados rodeados por um filtro da memória.
Ela nasceu na de cidade Monteiro (maior município do estado paraibano situado na região da Borborema.) em 31 de outubro de 1908 e disse que tomando como suas “as palavras de Fernando Pessoa: ‘transcorreu tranquila [...] minha infância e boa foi minha educação’ [...] Aos seis anos já lia, escrevia e conhecia as quatro operações aritméticas, demonstrando aptidão para as Ciências Exatas” (SILVA, 1993, p. 22; 2006, p. 24). Época em que o professor Assis, que ministrava aulas particulares, lhe ensinou gratuitamente. Aos sete anos, contemplada com uma bolsa de estudos, foi para o Colégio Nossa Senhora das Neves (uma instituição tradicional em João Pessoa – PB, fundada em 1858 que encerrou suas atividades em 2002) e lá permaneceu por dez anos. Em 1927, oradora da turma pioneira, concluiu o Curso Normal na mesma instituição.
A primeira Escola Normal surgiu em Niterói em 1835, no entanto a LDB 9394/96 atribuiu a formação de docentes para a Educação Básica ao Ensino Superior, através dos cursos de licenciatura (BRASIL, 1996; ASSIS, 2015).
De um início, até ser a professora de matemática, a diretora da Escola de Professores e a diretora do Liceu Paraibano. Em 1928, foi a primeira das candidatas a ser contratada professora pública estadual para o ensino primário. Lecionou em quase todos os Grupos Escolares de João Pessoa: D. Pedro II, Antônio Pessoa, Isabel Maria das Neves, Duarte da Silveira, Epitácio Pessoa e Tomás Mindello. Habilidades que possuía com a matemática e com os procedimentos pedagógicos lhe favoreceu a uma nomeação para a cadeira de matemática da Escola Normal da Paraíba, na época, localizada na Praça João Pessoa, onde hoje funciona o Tribunal de Justiça. Daí, em 1939, foi nomeada para assumir a cadeira de matemática no Liceu Paraibano, nos turnos diurnos e noturnos, disciplina que ensinou com esmero e carinho levando os alunos a apreciá-la. Rigorosa, mas muito querida, os alunos gostavam muito dela. Ali no Liceu Paraibano lecionavam matemática juntamente com os professores Kleber Cruz Marques e Walter Rabelo Pessoa da Costa – “a santíssima trindade dos professores de matemática do velho Liceu Paraibano” (SILVA, 1993, p. 52).
Como o irrisório salário que percebia dos cofres públicos não dava condição de sobrevivência, também se voltou ao magistério particular preparando, inclusive, alunos para exame de admissão ou qualquer outro tipo de concurso. Ela disse que se inseria numa missão que exigia uma dose imensa de paciência e amor, num exercício árduo e sublime, na qual sempre procurava sanar as situações de indisciplina para melhor ensinar. Atenta ao proceder de outros nas suas aulas dizia: “senão, é a aula expositiva que se torna monótona, cansativa; é a falta de segurança de quem apresenta o conteúdo, a instabilidade emocional [...]; a metodologia utilizada; enfim, é a ausência de motivação para as atividades de classe [...]” (SILVA, 1993, p. 45).
Conduzia sempre à tiracolo uma caixa de parafernálias (como diziam os alunos) contendo cordões, compasso, esquadros, giz..., com tranquilidade e sem perder a oportunidade de sorrir, procurava sempre “ajustar as normas disciplinares aos caracteres e às diferenças individuais do aluno” (SILVA, 1993, p. 46). Como o índice de aprovação não era baixo, por admirar o jovem, deu-lhe sempre atenção e oportunidade de participar nas decisões que conduziriam o seu viver pedagógico, tendo em conta que para transmitir e para orientar para a aprendizagem era mister haver ordem. Assim, tomava como máxima “sempre educar antes de instruir”. Em caso de reincidência, lançando mão do seu poder de persuasão, oferecia ao aluno uma nova oportunidade, no entanto sua sisudez às vezes era mal interpretada.
Numa inspeção, dirigia o seu jipe passando por praças próximas ao Liceu Paraibano na intenção de flagrar algum estudante à toa, à medida que encontrava os conduzia de volta à sala de aula (Figura 5).
Essa professora utilizava uma receita (SILVA, 1993, p. 59-60) para o exercício consciente do magistério:
· ter prestígio entre os educandos, para que possamos ser admirados e queridos;
· saber o conteúdo com profundidade daquilo que ensinamos;
· dominar bem a metodologia que aplicamos;
· estabelecer o grau de dificuldade dos conteúdos para facilitar a aprendizagem;
· motivar o educando no trabalho que está sendo realizado, porque o aluno motivado é capaz de grandes realizações;
· ter claro os objetivos a se atingir. Se o professor não sabe o que quer, como os alunos o saberão? Um professor sem objetivo é como um navio sem rota;
· fazer valer sua própria disciplina. Ninguém se esforça em uma atividade se não acha que vale a pena o esforço;
· usar a imaginação para não cair na rotina;
· ver no conteúdo apenas um meio e não um fim em si mesmo;
· criar atividades extra-classe que complemente as atividades de classe;
· colocar-se como um orientador da atividade do aluno;
· fazer com que os alunos trabalhem com a sua orientação, para estudo, descobrimento e aprofundamento dos conteúdos apresentados;
· enfim, entrosar seu trabalho com os outros professores, pois todos visam a um fim comum.
Foi em 1958 que, assumiu a direção da Escola de Professores – depois, Instituto de Educação da Paraíba (IEP) – onde, com alguma base nas teses e métodos de Anísio Teixeira[2], modificou a estrutura de funcionamento: cuidou da extinção do desnecessário vestibular (para acesso à Escola de Professores); implantou o funcionamento da escola nos turnos da manhã e da tarde, sendo as tardes dedicadas às atividades práticas e artísticas; assegurou almoço de boa qualidade e a preço baixo para alunas que moravam distante; a cada ano, apresentou ao governador uma relação com os nomes das melhores alunas para serem conduzidas à contratação.
Em 1959, mudou um quadro histórico de uma função antes exercida apenas por homens, com carta branca para escolher professores e funcionários, o governo do Dr. Pedro Moreno Gondim[3] a nomeou diretora do Liceu Paraibano num momento de crise aguda, de greves. Sem interesse político ou amizade particular, o quadro de professores ficou composto de gregos e troianos – professores com capacitação para o trabalho e ex-alunos brilhantes que já se encontravam nas faculdades. Com a missão de estar à frente dessa instituição por oito dias, permaneceu no cargo por oito anos com dedicação, zelo profissional e amor ao trabalho.
O aluno pobre tinha prioridade para entrar naquela instituição e nomes paraibanos dos mais ilustres passaram pelo Liceu da época, “e se merecimento há, este merecimento não é meu e sim daqueles professores que foram mestres na mais perfeita acepção da palavra” (SILVA, 1993, p. 37).
Com interesse extremo pela aprendizagem, cuidava de ser franca e imparcial nas suas atitudes ao administrar alunos, professores e funcionários. Por preocupar-me com a formação integral dos estudantes, enquanto agentes de transformação da sociedade, eles carinhosamente a cognominaram de “dona Daura” ou “mamãe Daura”, isto lhe fazia muito feliz.
Além da docência de matemática, exercia as duas direções concomitantemente, Escola de Professores e Liceu Paraibano. Mas mudou o governo e assumiu João Agripino Filho[4], que desmantelou toda a organização: acabou com o almoço das alunas da Escola de Professores, demitiu o dentista que atendia em dias marcados, acabou com as aulas de trabalhos manuais, pois cria o governador ser tudo isso supérfluo. Dona Daura tinha muita liberdade dada pelo governador Pedro Gondim, mas João Agripino cortou isso. E, no dia 10 de março de 1966 foi “destituída do cargo de diretora dos dois maiores estabelecimentos da rede estadual de ensino do estado da Paraíba, [...] por politicalha, destruindo [...] um trabalho educacional construído com amor, desprendimento e justiça” (SILVA, 1993, p. 48-49). Foi um retrocesso, com o Liceu perdendo a credibilidade da juventude. Depois de demitida do cargo de diretora de ambas as instituições, ainda lecionou matemática no Instituto de Educação da Paraíba até sua aposentaria em 1974. Foram 46 anos de serviços em prol da educação de jovens. Depois se dedicou ao instituto La Salle fundado por ela em 1968. Ali ensinou matemática e português.
Saviani (2008) diz ser justificável o alvoroço histórico-político-sócio-educacional que caracterizou a revoltosa, efervescente e longa década de 1960 que ultrapassa o limite de 10 anos. Especialmente, tendo em conta as expressivas mudanças no cenário educativo nacional, para o ensino de matemática no secundário. Ele considera “que a década de 1960 foi uma época de intensa experimentação educativa, deixando clara a predominância da concepção pedagógica renovadora” (p. 336). Nela, os entrevistados para tese de Macena (2013), desempenharam algum papel.
Nesse período no qual se desenvolvia o Movimento da Matemática Moderna no Brasil (MMM), foi criado, sob um projeto da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste. (SUDENE), o Colégio Universitário (O § 2º do Art. 46, Cap. II, Tít. VII e o § 3º do Art. 79 Cap. II, Tít. IX da nossa primeira LDB, dispõem sobre a terceira série do ciclo colegial e sobre a possibilidade das disciplinas de tal série serem ministradas em tais instituições. Esses colégios eram instituídos pelas universidades e a Lei garantia: “Nos concursos de habilitação [vestibulares] não se fará qualquer distinção entre candidatos que tenham cursado esses colégios e os que provenham de outros estabelecimentos de ensino médio”). Também protagonizava a Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES), instituída pelo decreto nº 34.638 (14/11/1953) (BRASIL, 1953), para a formação emergencial de professores secundários.
A educação sempre se mostra em emergência. Mesmo nas capitais há carência e muito mais nos interiores brasileiros.
Alguns personagens influenciaram diretamente das mais diversas maneiras nessa formação emergencial, principalmente ministrando-lhes aulas; tratando do ensino de crianças, adolescentes e jovens; favorecendo a aquisição de conhecimento daqueles que estariam em sala de aula. A lista privilegiada é composta por Lauro de Oliveira Lima, Maria Julieta Sebastiani Ormastroni, Myrian Krasilchik, Aluísio Monteiro, Daura Santiago Rangel, Assis Brasil, Osvaldo Sangiorgi, Kleber Cruz Marques, Leônidas Hegenberg, João Gabriel Chaves, Manoel Viana Correia, Carlos Ovídio Lopes de Mendonça, Fernando Melo, Hélio Guimarães, Marieta Medeiros, Francisco Xavier de Andrade, Orlando Galiza, José Walter Chastinet Mascarenhas entre outros.
Assim muitos estudantes universitários faziam o curso da CADES e passavam a fazer parte do corpo docente de determinadas instituições de ensino público.
Como diretora, dona Daura cuidava para que o ensino em sala de aula ficasse em nível mediano para absorver toda a turma, mas, atendendo à necessidade daqueles alunos que gostavam de estudar, alunos mais carentes de conhecimentos, tinha o curso de extensão. Era mantida a vaidade que o Liceu tivesse uma participação muito boa nos resultados dos vestibulares.
Quando iniciou o período ditatorial, o Liceu Paraibano estava sob a direção da professora Daura e, sob a mira das autoridades de segurança, jipes e viaturas militares estacionavam próximos ao colégio nas horas de maior movimento, numa forte pressão psicológica.
Essa década foi propícia para apresentações teatrais condizentes com a situação vivida no país.
Bertolt Brecht, dramaturgo e o mais expressivo poeta alemão revolucionário do século 20, se decidiu pela defesa do povo oprimido. Deixou uma rica produção artística, como algumas das melhores peças teatrais de todos os tempos. Criou um drama universal, denunciando a opressão feminina: “Os fuzis da senhora Carrar” onde não há herói nem anti-herói, mas vítimas da selvajaria da guerra. Todo o discurso de paz e não luta da senhora Carrar cai por terra quando o filho mais velho é assassinado gratuitamente por tropas do general Franco enquanto pescava. Nesse momento, até ela, partidária da paz, pega em armas (RIBEIRO, 2021).
Em meio a esse entusiasmo patriótico, em meados de março de 1964, o grupo teatral do Liceu optou pela apresentação da peça “Os fuzis da senhora Carrar” de Bertold Brecht. Tal ação provocou maior vigilância até que, um jovem oficial em uniforme de campanha, com a pistola 45 atada à perna, entrou no colégio chegando até ao gabinete da diretora e, sem pedir licença, falou duro, lhe repreendendo, lhe acusando de ser conivente com a situação decaída. Pondo-se de pé, falou: “Está bem, tenente, o senhor tem a força e pode me dizer coisas assim, mas me esclareça só num ponto: quem, se não os senhores mesmos, se encontrava oferecendo cobertura ao presidente deposto, no famoso comício da Central do Brasil a treze de março passado?” (SILVA, 1993, p. 103). Referia-se a João Goulart que presidiu o Brasil de 7 de setembro de 1961 até 2 de abril de 1964.
Foi-lhe oportuno discutir a educação em diversos ambientes, esse era um tema que estava impregnado por todo o seu corpo:
· de 1955 a 1958, foi Superintendente de Educação de Adultos quando representou o Estado da Paraíba no II Congresso de Educação no Rio de Janeiro (1958, entre os organizadores estavam: Dr. Heli Menegali, Armando Hildebrand, Dulcie Vicente Kanitz, Vitória Ceylão, Eloywaldo Chagas, Fernando Carvalho e Lourenço Filho) e lá defendeu o trabalho “Finalidades, formas e aspectos sociais da Educação” que, com prefácio do professor José Pedro Nicodemos, foi publicado pela Secretaria de Educação e Cultura da Paraíba (RANGEL, 1958);
· nessa publicação, denominada de tese, com palavras enfáticas, a professora Daura destacou: a tendência que cultivamos de copiar do estrangeiro; que em 1958, a Campanha de Educação de Adultos entrava para o segundo decênio sem produzir os frutos esperados; a missão civilizadora da escola; as causas do analfabetismo; os efeitos do analfabetismo; o descaso político com a educação; a responsabilidade do homem;
O homem é impulsionado, tanto pelas suas necessidades como pelas suas ideias, por isso toda estrutura política que se restringe à conquista do conforto material, é perecível, porque o ser humano é insaciável e este estado de permanente insatisfação é, incontestavelmente, a tendência de nossa alma para Deus (RANGEL, 1958, p. 29).
· em julho de 1960 participou do Curso de Educação Social promovido pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB;
· em janeiro de 1961 representou o estado da Paraíba como participante efetiva do III Simpósio de Orientação Educacional promovido pela CADES, em Recife – PE;
· de 1962 a 1966 foi membro do Conselho Estadual de Educação;
· também colaborou com o jornal católico “A imprensa (1897-1968)”, que, numa atitude rara à época, sob a direção do padre Carlos Coelho, abriu espaço para as mulheres escreverem.
Em consequência do diabetes, uma perna lhe foi amputada. Ainda assim, em momentos de alívio, escreveu três cartas:
· uma com sugestões para a implantação da reforma agrária no Brasil foi enviada ao ministro da agricultura, senador Pedro Simon, que considerou suas sugestões e respondeu com um telegrama;
· outra com sugestões para mudanças no sistema educacional brasileiro foi enviada ao ministro da educação, senador Marcos Maciel (Figura 6);
· e outra ainda, que por se agravar o seu estado de saúde, não chegou às mãos do destinatário, presidente José Sarney.
Palavras da professora Daura Santiago Rangel (SILVA, 1993, p. 39-40):
A escola brasileira necessita de toda a proteção do governo, principalmente que o governo prepare os elementos capazes para dirigir as escolas brasileiras. Dessa forma, estamos colhendo agora os erros do passado e é por isso que há na sociedade brasileira alguma coisa de temível. Aprendemos nos bancos escolares que o Brasil é imensamente rico. Não se compreende que este País que tem uma extensão continental, que não possui desertos, não possui vulcões, não sofre o horror do tremor de terra, não tem terras geladas, precise estar sempre às portas dos outros solicitando favores, quando tem o suficiente para nos bastar a nós mesmos. Como se pode compreender que um pais como este não tenha resolvido nem ao menos o problema alimentar, que é problema fundamental de qualquer nação. Diz a sabedoria popular: ‘Saco vazio não se põe em pé’, então, nos falta tudo e, se não tomarmos uma medida urgente, não podemos saber que futuro nos espera porque somos uma Nação carcomida pelas dívidas e, principalmente, pela falta de entusiasmo, de amor ao País; todo mundo quer ser servido, mas não servir ao Brasil, então, sem esta alma, sem este espírito não se pode conseguir um futuro promissor. Está faltando entusiasmo, sentimento de patriotismo ao brasileiro. Eu vejo o futuro do Brasil com muita apreensão, não sei se estou vendo assim com pessimismo de velha, mas eu vejo com muita apreensão porque justamente não há esse entusiasmo, este amor ao País, este amor à causa. Não sei se surgirá algum fato novo que venha unir os brasileiros, que venha restabelecer a confiança que precisamos ter nas instituições porque o governo se impõe pelo funcionamento destas. Se elas têm apenas aparência de funcionamento, se elas não têm autenticidade, ninguém pode pedir conta aos outros, aos brasileiros a fé, que no dizer de Cristo, transporta montanhas. Esta fé é o que nos falta.
A escola brasileira necessita de toda a proteção do governo, principalmente que o governo prepare os elementos capazes para dirigir as escolas brasileiras. Dessa forma, estamos colhendo agora os erros do passado e é por isso que há na sociedade brasileira alguma coisa de temível. Aprendemos nos bancos escolares que o Brasil é imensamente rico. Não se compreende que este País que tem uma extensão continental, que não possui desertos, não possui vulcões, não sofre o horror do tremor de terra, não tem terras geladas, precise estar sempre às portas dos outros solicitando favores, quando tem o suficiente para nos bastar a nós mesmos. Como se pode compreender que um pais como este não tenha resolvido nem ao menos o problema alimentar, que é problema fundamental de qualquer nação. Diz a sabedoria popular: ‘Saco vazio não se põe em pé’, então, nos falta tudo e, se não tomarmos uma medida urgente, não podemos saber que futuro nos espera porque somos uma Nação carcomida pelas dívidas e, principalmente, pela falta de entusiasmo, de amor ao País; todo mundo quer ser servido, mas não servir ao Brasil, então, sem esta alma, sem este espírito não se pode conseguir um futuro promissor. Está faltando entusiasmo, sentimento de patriotismo ao brasileiro. Eu vejo o futuro do Brasil com muita apreensão, não sei se estou vendo assim com pessimismo de velha, mas eu vejo com muita apreensão porque justamente não há esse entusiasmo, este amor ao País, este amor à causa. Não sei se surgirá algum fato novo que venha unir os brasileiros, que venha restabelecer a confiança que precisamos ter nas instituições porque o governo se impõe pelo funcionamento destas. Se elas têm apenas aparência de funcionamento, se elas não têm autenticidade, ninguém pode pedir conta aos outros, aos brasileiros a fé, que no dizer de Cristo, transporta montanhas. Esta fé é o que nos falta.
Vejo o magistério, embora existam algumas exceções, muito despreparado, e o é pela formação falha que vem recebendo.
O magistério não me trouxe mágoas em absoluto. Se me fosse dado quando eu desaparecer, quando cumprir a minha missão na terra, voltar novamente à vida, eu desejaria ser outra vez professora.
Aconselho à professora iniciante que abrace a sua profissão com muito amor, muito senso de responsabilidade e ela terá na execução de seu trabalho a sua própria recompensa.
Em meio a homenagens, medalhas e títulos, foi lembrada por muitos do seu convívio, também há os que dela ouviram falar. Professora e administradora, mas, mesmo com as falhas cometidas ao exercer esse sacerdócio, almejou ser lembrada como educadora e, o fato de fazer parte da história da educação paraibana, lhe deleitava.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru: Edusc, 2007.
ASSIS, Lígia Lobo de. O Curso de Formação de Docentes, modalidade Normal, em Nível Médio – questões atuais em perspectiva histórica. ISSN 2176-1396. Disponível em <file:///C:/Users/Marta%20Mac%20Air/Desktop/UFPA/Normam_forma%C3%A7%C3%A3o%20de%20docente.pdf> Acesso em 27set. 2021.
DIANA, Daniela. Anísio Teixeira. Disponível em: <Anísio Teixeira: biografia e principais ideias - Toda Matéria (todamateria.com.br)> Acesso em 27set. 2021.
BRASIL. Decreto nº 34.638, de 17 de novembro de 1953. Institui a Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES). Diário Oficial da União. Disponível em: < http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2844810/dou-secao-1-20-11-1953-pg-56/pdfView>;. Acesso em: 11 jul. 2008.
BRASIL. Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as diretrizes e bases para o ensino da Educação Nacional. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/diarios/2896161/dou-secao-1-27-12-1961-pg-1/pdfView>. Acesso em: 27 jul. 2010.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União. Disponível em: <L9394 (planalto.gov.br)> . Acesso em: 27 set. 2021.CASTRO, Maria Helena Guimarães. Apresentação. In: CASTRO, Cláudio de Moura. O secundário: esquecido em um desvão do ensino?
HAIDAR, Maria de Lourdes Mariotto. O Ensino Secundário no Brasil Império. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
MACENA, Marta Maria Maurício. Sobre formação e prática de professores de Matemática: estudo a partir de relatos de professores, década de 1960, João Pessoa (PB). Tese (Doutorado) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas. Rio Claro – SP, 2013.
RANGEL, Daura Santiago. Finalidades, Formas e Aspectos Sociais da Educação. II Congresso Nacional de Educação de Adultos, Rio de Janeiro, 9 a 16 de julho de 1958. Secretaria de Educação e Cultura da Paraíba, João Pessoa – PB, 1958.
RIBEIRO, Alex. Os fuzis da Senhora Carrar. Disponível em <Os Fuzis da Senhora Carrar – Assisto Porque Gosto> Acesso em 27set. 2021.
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2008.
SILVA, Geraldo Bastos. A educação secundária: perspectiva histórica e teoria. São Paulo: Editora Nacional, 1969.
SILVA, Marinalva Freire da. Daura Santiago Rangel: uma educadora. João Pessoa: Ideia, 1993.
SILVA, Marinalva Freire da. Daura Santiago Rangel: reconstrução de uma época. João Pessoa: Ideia, 2006.
Notas
Ligação alternative
https://www.rematec.net.br/index.php/rematec/article/view/73 (pdf)