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Revisita ao desenvolvimento dos números decimais: Dos Árabes, Egípcios e Babilônios à Simon Stevin
Revisit to the development of decimal numbers: From Arab, Egyptian and Babylonic to Simon Stevin
Revisa el desarrollo de los números decimales: De árabes, egipcios y babilonios a Simon Stevin
Revista de Matemática, Ensino e Cultura, vol. 16, pp. 59-72, 2021
Grupo de Pesquisa sobre Práticas Socioculturais e Educação Matemática

ARTIGOS CIENTÍ­FICOS

Revista de Matemática, Ensino e Cultura
Grupo de Pesquisa sobre Práticas Socioculturais e Educação Matemática, Brasil
ISSN: 1980-3141
ISSN-e: 1980-3141
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, 2021

Recepção: 16 Dezembro 2020

Aprovação: 19 Janeiro 2021

Publicado: 02 Fevereiro 2021


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: Com o tempo, o ser humano teve a necessidade de contabilizar e, conforme desenvolvimento humano, aperfeiçoar os instrumentos para realizar essa contabilidade. Atualmente, há ampla utilização dos números racionais não inteiros representados em forma decimal, mas chegar à esse nível houve vários momentos de desenvolvimento na representação numérica. Diante disso, surge a questão norteadora da pesquisa: Como foi o processo de desenvolvimento da escrita dos números para que se chegasse ao modelo de notação e de operações atual? No intuito de responder à essa questão, o objetivo desse trabalho foi o de traçar um panorama quanto ao desenvolvimento dos números decimais desde civilizações mais antigas como árabes, egípcios e babilônio até o belga Simon Stevin, autor de De Thiende. Para tanto, foram realizados levantamentos em livros, artigos científicos, dissertações e teses que realizaram estudos sobre a História da Matemática. Assim foi observado que uma reconstrução do processo de desenvolvimento de algumas formas da escrita numérica, das frações decimais e, posteriormente, dos números decimais. Também é indicada a contribuição da notação dos números decimais para o desenvolvimento dos números irracionais algébricos e, posteriormente, os irracionais transcendentes.

Palavras-chave: História da Matemática, Representação Numérica Decimal, De Thiende.

Abstract: Over time, the human being had the need to account for and, according to human development, perfect the instruments to carry out this accounting. Currently, there is widespread use of non-integer rational numbers represented in decimal form, but reaching that level, there were several moments of development in numerical representation. In view of this, the guiding question of the research arises: How was the process of developing the writing of numbers in order to arrive at the current notation and operations model? In order to answer this question, the objective of this work was to outline the development of decimal numbers from older civilizations such as Arabs, Egyptians and Babylonians to the Belgian Simon Stevin, author of De Thiende. To this end, surveys were carried out on books, scientific articles, dissertations and theses that carried out studies on the History of Mathematics. Thus it was observed that a reconstruction of the development process of some forms of numerical writing, of decimal fractions and, later, of decimal numbers. The contribution of the notation of decimal numbers to the development of irrational algebraic numbers and, later, transcendent irrational numbers is also indicated.

Keywords: History of Mathematics, Decimal Numerical Representation, De Thiende.

Resumen: Con el tiempo, el ser humano tuvo la necesidad de dar cuenta y, de acuerdo con el desarrollo humano, perfeccionar los instrumentos para llevar a cabo esta contabilidad. Actualmente, existe un uso generalizado de números racionales no enteros representados en forma decimal, pero al llegar a ese nivel, hubo varios momentos de desarrollo en la representación numérica. Ante esto, surge la pregunta orientadora de la investigación: ¿Cómo fue el proceso de desarrollo de la escritura de números para llegar al modelo actual de notación y operaciones? Para responder a esta pregunta, el objetivo de este trabajo fue esbozar el desarrollo de los números decimales desde civilizaciones más antiguas como árabes, egipcias y babilonias hasta el belga Simon Stevin, autor de De Thiende. Para ello, se realizaron encuestas a libros, artículos científicos, disertaciones y tesis que realizaron estudios sobre Historia de las Matemáticas. Así se observó que se realizó una reconstrucción del proceso de desarrollo de algunas formas de escritura numérica, de fracciones decimales y, posteriormente, de números decimales. También se indica la contribución de la notación de números decimales al desarrollo de números algebraicos irracionales y, posteriormente, números irracionales trascendentes.

Palabras clave: Historia de las Matemáticas, Representación numérica decimal, De Thiende.

INTRODUÇÃO

Desde os primórdios os seres humanos buscam modos de solucionar seus problemas cotidianos e satisfazer suas necessidades. Nesta busca, delineiam suas ações, constroem ferramentas que lhes auxiliam, criam maneiras para se comunicarem desenvolvendo as dimensões linguagem e, devido à essa necessidade de se aperfeiçoar, elaboram métodos mais eficientes para comunicação dos conhecimentos adquiridos.

Ao imaginar como intervir no ambiente ao seu redor, como registrar suas informações sobre a vida ou suas transações comerciais, os seres humanos criaram meios que permitiram realizar pesquisas sobre a sua história. No processo de construção do conhecimento matemático, é verossímil que foram necessárias a exploração ou reconstrução de alguns artefatos que permitiram uma nova forma de conhecer e explicar a construção histórica desse conhecimento (OLIVEIRA, 2017).

Nem sempre os números foram representados como são vistos tão comumente nos dias atuais. Sua representação foi aos poucos alterada e adequada conforme necessidade. Para se chegar aos números e à notação numérica atual foi necessário tempo e dedicação dos estudiosos matemáticos que, em seu momento da história, contribuíram para seu desenvolvimento. Vários autores, apresentados adiante, indicam a obra De Thiende (que significa “O Décimo” ou “O Decimal”), publicada em 1585 por Simon Stevin (1548-1620), como um marco para o desenvolvimento dos números decimais. Diante disso, surge a questão norteadora da pesquisa realizada: Como foi o processo de desenvolvimento dos números decimais para que se chegasse no modelo de notação e de operações atual?

Em resposta à essa questão, o objetivo da pesquisa realizada foi o de traçar um panorama quanto ao desenvolvimento dos números decimais e, dentro desse desenvolvimento, destacar a importante contribuição de Simon Stevin por meio de sua obra De Thiende. Para tanto, foram realizados levantamentos na obra original De Thiende, em livros, artigos científicos, dissertações e teses que realizaram estudos sobre a História da Matemática.

Para cumprir o objetivo da pesquisa, o texto foi dividido em duas partes. A primeira parte é uma breve reconstrução do processo de desenvolvimento de algumas formas de escrita numérica, das frações decimais e, posteriormente, dos números decimais. Isso devido ao fato de que os números decimais surgiram como um aprimoramento de notação de tais frações. Também é indicada a contribuição da notação dos números decimais para o desenvolvimento dos números irracionais algébricos e, posteriormente, os irracionais transcendentes. A segunda parte é composta por considerações a respeito da obra De Thiende de Simon Stevin. Em que são apresentadas ideias inovadoras a respeito da notação de números decimais e o desenvolvimento das quatro operações fundamentais e radiciação sob essa nova notação numérica. Ainda, é realizada uma comparação dos métodos de operações com o usado habitualmente hoje.

DESENVOLVIMENTO DA NOTAÇÃO DOS NÚMEROS DECIMAIS

O desenvolvimento das frações teve contribuição de diversos povos como os Árabes, Egípcios, Chineses e Europeus, onde teve contribuições de Simon Stevin, John Napier dentre outros.

A construção dos decimais pelos Árabes

Segundo Abdeljaouad (1981), a numeração ḡumal foi um sistema de numeração utilizado pelos árabes a partir do século VIII. Ele é baseado na sucessão das letras do alfabeto. A base desta numeração é 10, e possui nove casas para as unidades, dezenas e centenas. É um sistema aditivo não posicional e que não possui um símbolo para o zero. Como pode ser observado na Figura 1.


Figura 1
Sistema de numeração Árabe
Fonte: Abdeljaouad (1981, p. 70).

Abdeljaouad (1981), se refere à existência de uma numeração mista, que se desenvolveu em numerosas obras árabes a partir do século I. No qual os inteiros são representados em uma numeração de posição de base dez e para as partes fracionárias utiliza-se os minutos, segundos e terços. A numeração mista é uma base sexagesimal, esta numeração alia o dinamismo da aritmética indiana, e as possibilidades formidáveis que ela permite calcular, com os números da tradição babilônica do cálculo sexagesimal.

Muitos matemáticos árabes deram sua contribuição para a construção dos números decimais, o Quadro 1 mostra uma cronologia dos decimais com os matemáticos árabes.

Quadro 1


Fonte: Abdeljaouad (1981, p. 73).

Al Uqlidisi foi um pioneiro matemático árabe a utilizar os decimais, ele indica no início de sua obra “Kitab Al-Fusul” que tentou incluir em sua obra toda a aritmética de seus contemporâneos, sejam eles de origem indiana, grega ou árabe. Ele justifica o emprego universal desses números dizendo que “[...] estes são mais fáceis, mais rápidos e necessitam de pouca e, em particular, menos memorizações” (ABDELJAOUAD, 1981, p. 74).

Na obra “Kitab Al-Fusul” é notável o uso natural dos decimais, “usando o princípio que a metade de um é um número que podemos substituir a metade por 0,5” ele faz o seguinte cálculo: 1 9 ÷ 2 5 19 9 ' 5 4 ' 75 2 ' 375 1 ' 1875 0 ' 59375 . Al-Uqlidisi se sente confortável nos cálculos onde a potência de dez é usada, ele não hesita em multiplicar ou dividir um número por dez movendo-o em uma linha para a esquerda ou para a direita. Al-Uqlidisi insiste em vários lugares para marcar o lugar das unidades por um sinal para fazer aparecer a parte fracionária. Quando ele quer expressar em palavras um resultado, a parte fracionária do número é expresso sob a forma de uma fração decimal. 2´35´´, se lê 2 unidades e 35 cem que é representado por: 35 100 = 1 4 + 1 10 (ABDELJAOUAD, 1981).

Outro matemático e astrônomo árabe que se destacou com a construção dos números decimais foi Ḡamŝid Ghiyãth ad-Din Al-Kaŝi, seu tratado matemático “Miftah Al Hisad”, escrito em 1427 é composto de cinco livros: I aritmética indiana, II os cálculos das frações, III cálculos astronômicos; IV as medidas; V determinação de grandezas. Al-Kaŝi apresenta as matemáticas elementares conhecidas de sua época, e em particular a introdução dos decimais. Este manual possui um conjunto de conhecimentos necessários aos iniciantes, sejam eles destinados aos astrônomos ou aos comerciantes. Al-Kaŝi se intitula o criador dos decimais (ABDELJAOUAD, 1981).

Al-Kaŝi na introdução da sua obra apresenta o conceito de número de tal maneira que abrange o conjunto dos números reais positivos, ele anuncia no início do livro que descobriu as frações particularmente interessantes, são as frações onde os denominadores possuem potência de 10 e que ele dá o nome de frações decimais. Em vez de escrever esses números de maneira tradicional, isto é, em três níveis, o primeiro nível a parte inteira, o segundo para o numerador da parte fracionária e o terceiro para o denominador, ele utiliza uma nova notação, mais concisa e mais prática para os cálculos. Assim, no lugar de escrever: 358, 501 1000

Ele propôs, em notação atual, 358 501 que se lê 358 unidades e 501 décimos de 3ª ordem, pois ele denomina as frações decimais em décimos de primeira ordem ( 1 10 ) , décimos de 2ª ordem ( 1 100 ) e assim segue (ABDELJAOUAD, 1981).

Assim Al-Kaŝi expõe sua teoria e mostra como decompor qualquer soma de fração em frações decimais, inclusive as frações sexagesimais. Ele detalha as técnicas operatórias e explica como utilizar as frações decimais. As operações com as frações são reduzidas a operações com números inteiros. Em suas discussões da multiplicação dos números fracionários Al-Kaŝi convida o leitor a escrever os números fracionários em uma linha separando a parte inteira da parte fracionária utilizando duas cores diferentes, para realizar o produto como se os números fossem números inteiros e obter o resultado. Para encontrar a parte inteira usa a regra 10-n x 10-m= 10-n-m. Na Figura 2, segue o exemplo do tratado dado por Al-Kaŝi para multiplicar 25,07 x 14,3 = 358,501 (ABDELJAOUAD, 1981).


Figura 2
Multiplicação dos decimais dado por Al-Kaŝi
Fonte: Abdeljaouad (1981, p. 76).

Em seu segundo livro Al-Kaŝi consagra um capitulo para a aritmética dos decimais onde mostra a similaridade completa com a aritmética dos astrônomos. E insiste na facilidade dos cálculos com os decimais. Após explicar todas a natureza dos decimais, Al-Kaŝi anuncia todas as regras de conversão de uma fração a outra. Assim, para transformar o número 376 décimos de ordem 3 (0,376), em uma fração sexagesimal, ele propõe: multiplicar 376´´ por 60, onde se obtém 22 et 560´´´; depois multiplica-se 560´´´ por 60, e se obtém 33 e 6´´´; e continua a multiplicação de 6´´´ por 60 e se obtém 36. A resposta final será 22´33´´ 36´´´. Al-Kaŝi não se contenta apenas em definir os decimais, mas utiliza esta numeração em várias partes do Miftah Al Hisad. Também são encontrados nos livros II e III nos cálculos de superfícies e no livre V para ilustrar as regras de resolução de problemas de álgebra, ele utiliza os números fracionários seja na numeração decimal seja em numeração sexagesimal (ABDELJAOUAD, 1981).

A notação fracionária no Egito

Há aproximadamente 5.000 anos, no Antigo Egito, os egípcios desenvolveram um sistema de numeração e uma grafia quase ao mesmo tempo que os babilônios (Figura 3). No entanto, o sistema elaborado pelos egípcios tinha base decimal e era aditivo (ROQUE; CARVALHO, 2012). Este último significa que havia um símbolo que representava cada número múltiplo de 10 e não tinha relação posicional. O que não os tornava práticos para representar números extensos. Já os babilônios utilizavam um sistema posicional sexagesimal.


Figura 3
Sistema de numeração no Egito Antigo
Fonte: Roque e Carvalho (2012, p. 30)

Mendes (2005) apresenta algumas das aproximações interpretadas por diferentes pesquisadores sobre o tema (Figura 4).


Figura 4
Grafia numérica egípcia
Fonte: Mendes (2005, p. 75).

Já para as frações, os egípcios inventaram um modelo que equivale às frações cujo numerador é 1, ou seja, em notação atual 1 n . Segundo Roque e Carvalho (2012), uma fração com denominador diferente de 1 utilizada era a 2 3 , a fração 1 2 era representada de forma especial (talvez devido à sua frequente utilização) e as demais frações utilizadas eram representadas escrevendo os números inteiros com uma elipse em cima. Para exemplificar, o número 1 7 era escrito com a elipse sobre sete barras verticais (Figura 5).


Figura 5
Elipse sobre sete barras verticais que representa

1 7

Fonte: Roque e Carvalho (2012, p. 31)

A contribuição dos Babilônios

Segundo Ifrah (2005), as aparições de representações fracionárias são atribuídas à civilização babilônica ao utilizarem frações hexadecimais para relacionar horas com minutos e segundos. Para exemplificar, ainda segundo o autor supracidato, ao representar o que atualmente é 28 minutos e 45 segundos era utilizada a expressão 28 60h + 45 3600h .

Assim, como os demais sistemas de numeração utilizados pela humanidade, o de base decimal sofreu inúmeras transformações e aprimoramentos até atingir o modelo que é utilizado atualmente. “Em geral, os sistemas de numeração usados dependiam do contexto e diferentes bases eram utilizadas nas necessidades do dia a dia” (ESTRADA et al., 2000).

Nessa época, segundo Aires (2010), a fração era aplicada como recurso para representar uma divisão cujo resultado não era um número inteiro. Então, de acordo com Ifrah (2005), perceber os números inteiros como decorrência de frações não era algo fácil, uma vez que a comunidade cientifica identificava-os como conjuntos disjuntos. Ou seja, não havia qualquer elemento em comum entre o conjunto dos números inteiros e o conjunto das frações. No entanto, segundo o autor supracitado, a utilização de frações decimais permitiu a notação sem dificuldade de todas as frações, além de mostrar nitidamente os inteiros como frações particulares: aquelas cuja representação não comporta algarismo depois da vírgula.

No entanto,

A notação fracionária é mais intuitiva e surgiu mais cedo na história; a notação decimal é mais difícil de entender, mas se presta melhor à computação, pois o simbolismo é uma extensão natural da regra da “notação posicional” para os números inteiros. A mudança de um símbolo para uma casa à direita multiplica esse número por 10; a movimentação para uma casa à esquerda divide esse número por 10. Tudo muito razoável e sistemático (STEWART, 2012, p. 29).

As frações decimais eram utilizadas para representar a parte não inteira de um determinado número. No entanto, nessa época, não havia sequer um consenso entre os estudiosos matemáticos em que base numérica utilizar, visto que a utilização da base numérica sexagesimal ainda era bastante difundida. Tais frações decimais eram representadas, em notação atual, sob a forma

( n ) 10 = a , b c d e . . . = a + b 10 + c 100 + d 1000 + e 10000 + . . .

Em que essa notação pode ser estendida a qualquer base numérica B, representada novamente em notação atual por:

( n ) B = a , b c d e . . . = a + b B + c B 2 + d B 3 + e B 4 + . . .

O conceito de frações decimais tem início nos anos finais do século XVI, meados da Idade Moderna e fim do Renascimento. Em que, de acordo com Silva (1997), é quando surgem tratados de aritmética que apresentam o cálculo fracionário de um modo muito semelhante ao que está nos livros atuais. No qual considera-se frações maiores que a unidade e fração como representação de uma divisão. No entanto, ainda segundo a autora, as situações inconvenientes relacionadas ao cálculo fracionário ainda levavam alguns matemáticos a buscar resoluções que utilizassem somente os inteiros.

Cabe destacar que o uso de frações decimais não fazia parte do sistema hindu. Segundo Boyer (2012), na China antiga, encontra-se um uso mais que secundário de tais frações, do mesmo modo ocorrido na Arábia Medieval e na Europa Renascentista. Em corroboração, Gundlach (1992) indica que as notações dos modernos numerais arábicos não são as mesmas dos numerais indo-arábicos do mundo ocidental. “Por exemplo, sua representação numeral para o cinco é 0, e seu zero é representado por um ponto”. Mesmo assim, o uso de frações decimais não fazia parte do sistema hindu original. Ambos autores supracitados indicam que o primeiro tratamento sistemático dado aos números decimais apareceu no livro De Thiende de Simon Stevin (1548-1620), publicado em l585. A respeito desse livro, Pastor e Balbini (1985, p. 107)[4] indicam que essa obra "[...] ensina como todos os cálculos que apresentam nos negócios podem ser realizados com uso somente números inteiros, sem auxílio de frações".

De acordo com Stewart (2008), Stevin se dedicou a desenvolver uma carreira em que chegou a ser ministro de finanças . Desse modo, compreendeu a necessidade de procedimentos contábeis mais ágeis e precisos, do que os estudados no primeiro período renascentista e a notação indo-arábica trazida para ao continente europeu por Leonardo de Pisa (1170-1240). Ainda segundo o autor, Stevin encontrou laboriosos cálculos com frações decimais, e havia preferido a precisão e ordem dos hexadecimais babilônicos se não fossem para serem usados na base 60. Diante desse impasse, tratou de encontrar um sistema que combinara o melhor de ambos, e inventou algo similar ao sistema babilônico com base 10, os decimais.

Apesar de Viète (1540-1603), em Universalium Inspectionum (Inspeção Universal). que é um apêndice do livro Canon Mathematicus (Matemática Canônica), já haver recomendado o uso de frações decimais em detrimento das hexadecimais (BRITO; SCHUBRING, 2009) no livro De Thiende Stevin enfatizava o aspecto operacional, em que apresenta uma sistematização com algumas inovações da notação decimal já conhecida na época (ROQUE, 2012). Ou seja, neste livro era demonstrado um novo modo de representar números não inteiros e sua aplicabilidade nos cálculos das operações aritméticas e indica a resolução de raízes sem maiores detalhes. De modo a facilitar a resolução de operações aritméticas e é neste instante que começa-se a entender que frações e números inteiros compõem um mesmo conjunto (IFRAH, 2005; RÍBNIKOV, 1987). Posteriormente, de acordo com Kline (1992), Viète melhorou e estendeu os métodos de extração de raízes quadradas e cúbicas.

Assim, os números decimais se tornaram amplamente conhecidos porque Stevin se dispôs a explicar, de modo simples e completo, o sistema elaborado. Ele pretendeu ensinar "como efetuar, com facilidade nunca vista, todas as computações necessárias entre os homens por meio de inteiros sem frações" (BOYER, 2012, p. 232):

Isto é, estranhamente, Stevin. se concentrava em seus décimos, centésimos, milésimos, etc., como numeradores inteiros, como fazemos na medida comum do tempo em minutos e segundos. Quantos dentre nós pensamos em 3 minutos e 4 segundos, digamos. como numa fração? É muito mais provável que pensemos em 3 minutos como num inteiro em vez de como 3/60 de hora; e essa era exatamente a maneira de pensar de Stevin. Por isto ele não escrevia suas expressões decimais como um denominador. como o fazia Viéte; em vez disso. num círculo acima ou depois de cada digito ele escrevia a potência de dez assumida como divisor (BOYER, 2012, p. 232).

Desse modo, é corroborado o dito anteriormente por Stewart (2008), ao indicar que Stevin havia tido a influência dos babilônios e das rações decimais para compor sua ideia de números decimais. Para exemplificar, a Figura 6 é o modo que Stevin representou o que hoje é escrito como 8,937.


Figura 6
Representação decimal pra o que atualmente se escreve 8,937
Fonte: Stevin (1585, p. 12).

Então fica evidente que Stevin não foi, de algum modo, o inventor das frações decimais e nem o pioneiro em seu uso sistematizado. No entanto conseguiu seu objetivo de explicitar o seu sistema elaborado para os números decimais de modo elementar e completo. Depois de Stevin, houve várias indicações de notações para representar os números decimais. Alguns matemáticos usavam em suas obras indicações de notação que foram publicadas anteriormente. Do mesmo modo que algumas indicações de notação sofriam pequenas variações de notações indicadas anteriormente por outro matemático. Um exemplo destacado por Cajori (1928), é Napier ter usado vírgula para separar a parte inteira da parte decimal e Molyneux ter usado uma ‘vírgula virada para a direita’. As indicações das notações sobre decimais, em sua primeira adoção e com omissão das pequenas variações como exemplificado, pode ser observada no Quadro 2.

Quadro 2
Representação das notações para os decimais em ordem cronológica

Fonte: Cajori (1928, p. 211-342).

Até esse ponto na história, a preocupação dos matemáticos da época era encontrar uma notação que facilitasse o cálculo numérico que antes era realizado com frações decimais. No entanto, havia números que não eram frações decimais e recaiam em dízimas periódicas. Conforme Cajori (1928), essa indicação de como representá-las aparece em 1742 quando, em Londres, John Marsh publica sua obra Decimal Arithmetic Made Perfect em que indica colocar um círculo nos algarismos que se repetem. Esta e outras notações são apresentadas no Quadro 3.

Quadro 3
Representação das notações para as dízimas periódicas decimais em ordem cronológica

Fonte: Cajori (1928, p. 335).

Como contribuição em outros tipos numéricos, Ifrah (2005, p. 330) indica que desde o século VI a.C., Pitágoras e os demais matemáticos gregos já haviam descoberto que a diagonal de um quadrado não tem unidade de medida comum com o seu lado. “De fato, tanto pela medida quanto pelo raciocínio, o comprimento de sua diagonal não corresponde a um número inteiro [...]. Ou seja, uma vez que tal é o seu comprimento matemático, a 2 é um número incomensurável”. Este fato foi a descoberta que há números que não são inteiros ou frações, que atualmente denomina-se números irracionais.

A notação para representação de decimais (seja com vírgula ou com ponto) aliada à uma ciência em desenvolvimento beneficiou a utilização pelos europeus de uma notação para os números irracionais. Descobriram que estes números eram identificáveis com números decimais sem fim, cujos algarismos após a vírgula nunca se reproduzem na mesma ordem (BOYER, 2012).

Exemplo: 2 = 1 , 4 1 4 2 1 3 5 6 2 3 7 . . .

Então, conforme Ifrah (2005), havia sido considerado que os números irracionais eram exprimíveis por meio de radicais, denominados racionais algébricos. Mas esta categoria revelou-se insuficiente para caracterizar o universo dos números irracionais. Isso devido à muitos matemáticos em que se destacam os trabalhos de Joseph Liouville (1809-1882) que em 1844 construiu uma classe ampla de números reais não algébricos, de Charles Hermite (1822-1901) que em 1873 continuou as ideias de Liouville mostrando que

Então, conforme Ifrah (2005), havia sido considerado que os números irracionais eram exprimíveis por meio de radicais, denominados racionais algébricos. Mas esta categoria revelou-se insuficiente para caracterizar o universo dos números irracionais. Isso devido à muitos matemáticos em que se destacam os trabalhos de Joseph Liouville (1809-1882) que em 1844 construiu uma classe ampla de números reais não algébricos, de Charles Hermite (1822-1901) que em 1873 continuou as ideias de Liouville mostrando que não pode ser raiz de equação polinomial com coeficientes inteiros e de Carl Louis Ferdinand Lindemann (1852-1939) que em 1882 publicava o artigo[6] Ueber die Zahl π (Sobre o Número π ), no periódico alemão Mathematische Annalen (Anais Matemáticos), em que estendia a obra de Liouville e Hermite e mostrara conclusivamente que π também é transcendente (BOYER, 2012; EVES, 2004; MAOR, 2008).

Descobriu-se então que existia outro segmento de números: os que não são inteiros, frações ou mesmo irracionais algébricos: são os atualmente denominados de números transcendentes. Que não são solução de equação algébrica de coeficientes inteiros ou fracionários. Estes números são necessariamente irracionais, mas não são exprimíveis por meio de radicais. Desse modo, ficam evidentes as contribuições dos números decimais para a descoberta desses novos tipos de números supracitados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Posteriormente a todos os fatos levantados, conclui-se que o objetivo da pesquisa realizada foi atingido, pois foi possível traçar um panorama sobre o desenvolvimento dos números decimais na civilização, tanto como tipo de número como em representação numérica. Constatou-se também que as contribuições para as mudanças no sistema de numeração decimal, atribuídas a Stevin foram de fundamental importância para chegar ao sistema amplamente difundido atualmente.

Ainda foi destacado na pesquisa realizada a importância da simplificação dessa representação dos decimais para os números que já tempos eram conhecidos desde os tempos de Pitágoras, os irracionais algébricos. Posteriormente, com a necessidade de ampliação da categorização dos irracionais, essa notação auxiliou na representação decimal dos números transcendentes.

Neste sentido, mostramos que a representação dos números decimais abranger práticas diárias, como a utilização do sistema de medidas padronizadas ou não-padronizadas, transações financeiras e outras situações que variam conforme formação sociocultural da população.

Também se compreende que essa a pesquisa não esgotou todas a situações que envolveram a evolução dos números decimais e sua representação (e nem foi esse o objetivo). No entanto, contempla um panorama de seu desenvolvimento na história até Simon Stevin.

REFERÊNCIAS

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Notas

[4] Texto original: "[...] enseña cómo todos los cálculos que se resentan en los negocios pueden realizarse con enteros solamente, sin ayuda de fracciones
[5] De acordo com Cajori (1928, p. 195)A notação de Oughtred para decimais deve ter atrasado a adoção geral do ponto decimal ou vírgula proposta por Napier.
[6] Pode ser encontrado no site da Editora Springer: https://link.springer.com/article/10.1007%2FBF01446522.

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