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A FEIRA LIVRE COMO LUGAR DE CONHECIMENTO MATEMÁTICO SOCIOCULTURAL: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A FEIRA LIVRE DE SÃO JOSÉ DE PIRANHAS - PB
THE STREET MARKET AS A PLACE OF SOCIOCULTURAL MATHEMATICAL KNOWLEDGE: A CASE STUDY ON THE STREET MARKET OF SÃO JOSÉ DE PIRANHAS
Revista de História da Educação Matemática
Sociedade Brasileira de História da Matemática, Brasil
ISSN-e: 2447-6447
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 8, 2022
Resumo: O trabalho na feira popular é permeado por saberes matemáticos, com os quais o presente trabalho visa colaborar, mesclando esses saberes a outros conhecimentos. Pretendemos partir de um prisma histórico-cultural, acerca dos saberes matemáticos contidos nesse ambiente popular. O recorte espacial da pesquisa foi a Feira Livre de São José de Piranhas, cidade localizada no alto sertão paraibano, tendo como foco seus sujeitos participantes – feirantes e fregueses –, buscando investigar como esses sujeitos aplicavam conhecimentos matemáticos em suas estratégias de quantificação e aferição de valor. A base teórica da presente pesquisa foram os estudos de Ubiratan D’Ambrósio (1990; 2006; 1008) e Gelsa Knijnik (2012), acerca da Etnomatemática; Michel de Certeau (1994), teórico do campo da história, o qual lança olhar sobre as atuações humanas do cotidiano; e Lucila Delgado (2006), no que tange à utilização de técnica de coleta de dados referentes à oralidade, entre outros de igual valor. Caracteriza-se, também, como um estudo de caso, porque há um foco de observação em uma espacialidade particular – a Feira Livre de São José de Piranhas, PB –, por compreensão de que este lugar, pela manutenção de técnicas passadas relacionadas à feira, representa uma amostra histórica reveladora de práticas matemáticas. Este estudo nos permitiu entender a Feira de São José de Piranhas-PB como um local onde seus protagonistas ativam seus órgãos sensoriais, pela profusão de produtos alimentícios; estabelecem relações sociais e até afetivas; experenciam saberes matemáticos formais e não formais, muitos destes repassados por seus antecessores familiares.
Palavras-chave: Etnomatemática, História, Saberes matemáticos, Feira Livre.
Abstract: The work in the popular market is permeated by mathematical knowledge, so the present work collaborates with knowledge, from a cultural historical prism, about the mathematical knowledge contained in this popular environment. The spatial focus of the research was the Feira Livre de São José de Piranhas, a city located in the upper hinterland Paraíba, focusing on its participating knowledge for subjects, marketers and customers and how they applied mathematical in their quantification and value assessment strategies. The theoretical basis of the present research was the studies of Ubiratan D'Ambrósio and Gelsa Knijnik on Ethnomathematics; Michel de Certeau, theorist in the field of history who looks at human actions in everyday life; and Lucila Delgado regarding the use of data collection technique referring to oral data. It is also characterized as a case study, because there is a focus of observation in a particular spatiality, which happens to be the Feira Livre de São José de Piranha, PB, due to the understanding that this place, due to its characteristics of maintenance of past practices related to the market, represents a revealing historical sample of mathematical practices.
Keywords: Ethnomathematics, History, Mathematical knowledge, Street market.
INTRODUÇÃO
A Matemática, segundo a fala popular, está em todo lugar, entretanto, para ser compreendida, precisa ser vivida, experimentada, construída a partir das práticas e dos costumes que, muitas vezes, se encontram esquecidos, invisibilizados ou até mesmo desvalorizados pelos saberes acadêmicos.
Cada grupo humano possui sua maneira de aplicar determinado método matemático, dependendo das suas características e suas práticas. Assim, um pedreiro, por exemplo, usa suas noções de medidas para saber o quantitativo do material que vai utilizar para a realização de determinada obra; um cozinheiro, por sua vez, utiliza as suas bases para calcular a quantidade de ingredientes necessária a uma determinada receita.
Essas noções de medidas (peso, distância, altura, profundidade etc.) podem ser expressas de forma subjetiva é certo. Há, porém, estudos que, cientificamente, promovem sua aplicação na rotina da sociedade, assegurando-lhe comprovação, logo, fidedignidade. Esses estudos atravessam os muros das escolas e universidades, adquiridos pela experimentação ou reproduzidos entre usuários de um mesmo ambiente que lhes favoreça sua aplicação. A Matemática, então, como ciência e, ao mesmo tempo, como instrumento de trabalho de muitas pessoas que não tiveram uma formação escolar ou sua continuidade, participa ativamente das comunidades, seja em lugar remoto, sem uso de tantas tecnologias, seja em grandes centros urbanos. Em todos esses espaços, há, portanto, valores culturais e históricos que se perpetuam, ainda que renovados, a fim de garantir sua organização e manutenção.
Sob essa perspectiva, a modernização no espaço urbano de São José de Piranhas imprimiu normas, organizações e, inclusive, localizações novas na Feira Livre, de modo que os seus sujeitos participantes precisaram desenvolver táticas e estratégias de manutenção e ou adaptação de suas práticas matemático-comerciais, através de suas relações sociais (Figura 1).
Do ponto de vista sociocultural, a Feira Livre está relacionada às sociedades rurais que acordam com o “cantar do galo”, já que feirantes chegam ainda pela madrugada para organizar as barracas, colocar os produtos em destaque e, consequentemente, chamar a atenção dos clientes, buscando oferecer o melhor preço e os melhores produtos. Por sua vez, os fregueses também chegam cedo para escolher os produtos mais frescos, com mais opções de preço (Figura 2). Cabe lembrar que os preços tendem a cair quando o pôr do sol começa a despontar. O feirante não quer levar grande quantidade de produtos de volta, então pode ser mais vantajoso abaixar o preço; além disso, frutas e vegetais já não estão com a mesma qualidade do início do dia, o que lhes desmerece valor.
O retrato que buscaremos apresentar sobre a feira municipal de São José de Piranhas é único e, ao mesmo tempo, comum a outros lugares porque possuem bases culturais e sociais próprias, embora perpassadas por práticas pertencentes a sujeitos de outras espacialidades. Este trabalho parte, portanto, dos princípios teóricos e metodológicos da história cultural do saber matemático, almejando observar a dinamicidade e a criatividade dos saberes populares em torno dessa Ciência e de suas (re)invenções, inclusive fazendo aportes a visões da Etnomatemática.
Nossa problemática fica circunscrita em um período temporal de aproximadamente 16 anos já passados, considerando o tempo de trabalho (3 a 16 anos) dos participantes na feira de São José de Piranhas-PB, estes com idades de 26 a 55 anos. É em suas memórias que buscaremos indícios, artefatos que nos respondam ao seguinte questionamento: De que maneira os saberes matemáticos foram utilizados por feirantes e fregueses na Feira Livre de São José de Piranhas, PB? Durante a pesquisa, pode-se perceber que os feirantes, ao utilizarem formas tradicionais de saberes matemáticos que fazem parte do ambiente da feira popular, apontam para uma passagem de saberes matemáticos através do tempo. As formas tradicionais – e até afetivas – de quantificar e qualificar os alimentos a serem comercializados, mantidas na feira livres, de tempos pretéritos da comunidade de São José de Piranhas - PB, podem ser entendidas como um vestígio das práticas populares (que fogem às convenções e padronizações baseadas na lógica de sistemas institucionalizados).
Os saberes matemáticos populares, utilizados por fregueses e vendedores na Feira Livre de São José de Piranhas, são base para a construção de diversas estratégias de linguagem matemática, por isso a presente pesquisa objetiva promover uma discussão teórica em torno da questão do reconhecimento desses saberes e linguagens matemáticos presentes nessa feira livre, em específico, e como esse reconhecimento pode perpassar as experiências de seus protagonistas –feirantes e fregueses – nos últimos 16 anos. Com base nessa discussão, pretendemos, ainda, demonstrar a relevância da história do conhecimento matemático a partir da dimensão de saber popular para o estudo dessa ciência, não só na perspectiva teórica, mas também compreendendo esse saber no contexto do vivido, isto é, na perspectiva da relação passado-presente.
O trabalho está dividido em três tópicos. O primeiro tópico trata sobre a base teórica central de pesquisa que girou em torno dos estudos de D’Ambrósio (1990; 2006; 2008) e Knijnik (2012), sobre Etnomatemática; Michel de Certeau (1994), teórico do campo da história, na perspectiva das atuações humanas do cotidiano; e Delgado (2006), quanto à coleta de dados na dimensão da oralidade dos participantes. No segundo tópico, abre-se espaço para a descrição da feira, caracterização do espaço, dos sujeitos e objetos matemáticos da pesquisa.
No terceiro tópico, busca-se: i) conhecer a matemática, captando-se sua história por meio dos instrumentos de medida (como o copo, o mói, a balança, o saco), saberes e estratégias utilizados pelos sujeitos da pesquisa; ii) mostrar como feirantes e fregueses aplicavam essas estratégias no espaço da feira, para garantir a subsistência de sua família; iii) apresentar a Feira como escola do conhecimento matemático ao longo do tempo.
1. ETNOMATEMÁTICA, MEMÓRIA E CULTURA NA CONSTRUÇÃO DOS SABERES MATEMÁTICOS
Nos últimos anos, ao observarmos as realizações da Ciência, especialmente a área da Matemática, percebemos uma característica que a maioria dos educadores e pesquisadores enxergam como base: a busca por uma universalidade de conceitos, formas, linguagens e conhecimentos. Essa busca constante por uma linguagem universal, acadêmica, uma verdade, enfim, acabou provocando uma desvalorização das culturas, dos saberes que não se enquadram nessa característica particular, embora nem por isso deixassem de ser matemática.
Algumas transformações começaram a acontecer, a partir do século XX, na comunicação, na circulação de informações e produtos, influenciados pela globalização, e, principalmente, na forma de repensar conceitos estabelecidos há séculos.
D’Ambrósio (2008) afirma a existência de outros sistemas culturais, nos quais diferentes modos de pensar são desenvolvidos, fazendo com que a matemática que conhecemos não seja tão universal quanto pensamos. Em seus estudos sobre Etnomatemática, D’Ambrósio (1990) retrata e analisa os processos de geração, transmissão, difusão e institucionalização do conhecimento, procurando entender o saber/fazer matemático ao longo da história da humanidade, em diversos grupos de interesse, comunidades, povos e nações. Em seu livro mais recente, esse estudioso (2006) caracteriza a Etnomatemática como uma espécie de programa praticado por grupos culturais, tais como comunidades urbanas e rurais, grupos de trabalhadores, categorias profissionais, crianças de diferentes faixas etárias, sociedades indígenas e tantos outros que se identificam por objetivos e tradições comuns. O autor (2006, p. 286) argumenta, porém, que “este programa tenta não só explicar a matemática, (sic) como também tenta explicar religião, culinária, vestuários e modas, futebol e várias outras manifestações práticas e abstratas da espécie humana”.
Nesse mesmo sentido, Knijnik (2012) afirma que não podemos e não devemos reduzir a Etnomatemática somente à explicação dos saberes e fazeres matemáticos. Segundo a estudiosa:
A etnomatemática pensa a matemática como um conjunto de jogos de linguagens geradas por diferentes formas de vida que ganham sentido em seus usos, ou seja, cada comunidade possui sua própria forma de fazer matemática nas diferentes atividades, nos grupos, nos setores de trabalho, possibilitando que a cultura seja entendida como uma produção tensa e instável, enquanto as práticas matemáticas são os conhecimentos que constantemente reatualizam-se(sic) e adquirem novos significados, produtos e produtores da cultura. (Knijnik, 2012, p. 30)
Conhecer outros modos de fazer matemática pode nos oportunizar a reflexão mais profunda sobre nossa forma de concebê-la e de ampliarmos nossas possibilidades de explicar, conhecer e resolver problemas, a partir de estratégias pessoais novas, em situações novas ou naquelas já vivenciadas no cotidiano. Em consonância a essa vertente, a perspectiva de Michel de Certeau (1994) sobre o fazer humano na cotidianidade torna-se oportuna, na medida em que afirma existirem “mil maneiras” de atuar na realidade a partir das ferramentas (conhecimentos) que se possui. Dito de outra forma, segundo o historiador, existem:
Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros caracteriza a atividade, sutil, tenaz, resistente, de grupos que, por não ter(sic) um próprio [espaço], devem desembaraçar-se em uma rede de forças e de representações estabelecidas. Tem(sic) que “fazer com”. (Certeau, 1994, p. 79)
Para reconstruir um espaço histórico, é necessário ir muito além dos objetos, pois naquele espaço há/houve a existência de indivíduos participantes, marcas de usos, atos, práticas que indicam uma historicidade popular que foge das representações, procedimentos e ou quadros normativos. Nessa linha de pensamento, ainda segundo Certeau, analisar a realidade vivida:
Consiste em sugerir algumas maneiras de pensar as práticas cotidianas dos consumidores, supondo, no ponto de partida, que são do tipo tático. Habitar, circular, falar, ler, ir às compras ou cozinhar, todas essas atividades parecem corresponder às características das astúcias e surpresas táticas: gestos hábeis do “fraco” na ordem estabelecida pelo “forte”, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores, mobilidades nas manobras, operações polimórficas, achados alegres, poéticos e bélicos. (Certeau, 1994, p. 103)
Os marcos (sinais, elementos) que procuramos de conhecimento matemático se realizam no tempo de experiência (existência) das pessoas com a matemática, logo carregam uma dimensão de historicidade que pode ser captada na experimentação do saber matemático na feira livre em São José de Piranhas-PB. Assim sendo, buscou-se observar as pessoas em sua lida na própria feira, mas, sobretudo, escutar informações sobre como essas pessoas entendiam e conceituavam aquele espaço não só de dinâmica comercial de alimentos entre outros tantos produtos mas também de construção de relações humanas a partir dessa dinâmica.
Para Lucila Delgado (2006, p. 15), o estudo da oralidade enquanto um procedimento metodológico de coleta de dados preza pelo registro de fontes e documentos como narrativas que são de testemunhos dos sujeitos, trazendo à tona “versões e interpretações sobre a História em suas múltiplas dimensões”.
A memória é a principal fonte de transmissão do conhecimento matemático baseado nas experiências, lembranças e estratégias, que são revisitadas pelos feirantes e fregueses à medida que se deparam com usos de determinado instrumento de medida ou com o cálculo de suas receitas, lucros e prejuízos.
Assim, a memória objetiva incorporar o real, transformando as lembranças em algo concreto, palpável e relevante, através das rememorações. Essas rememorações puderam ser captadas por meio de entrevistas, do contato e diálogo entre as pessoas entrevistadas e a entrevistadora; uma troca de experiências, portanto, entre quem narra e quem escuta, situação perpassada por uma dinâmica que envolve temporalidade.
A temporalidade, ou seja, [é] a relação entre os múltiplos tempos [...]. Nele estão presentes o tempo passado, pesquisado, os tempos percorridos pela trajetória da vida do entrevistado e o tempo presente que orienta e estimula tanto as perguntas do entrevistador que prepara o roteiro do depoimento como as respostas a essas indagações. (Delgado, 2006, p. 16)
A feira é um espaço que permite o acesso aos saberes matemáticos no tempo, a representação da vida e da realidade no qual os sujeitos estão inseridos, tendo como ponto de mediação a transmissão das experiências vividas recuperadas pela memória.
2. A MATEMÁTICA NA FEIRA LIVRE
2.1. A Feira em expansão: um pouco de história; um tanto mais de cultura
Ao longo da história, as feiras livres foram se tornando um importante canal de distribuição comercial bem como uma forma de comunicação popular. A feira não representava apenas um local de vender produtos ou de realizar trocas, era também ponto de encontro onde as pessoas se reuniam em determinado dia da semana.
Em uma feira livre, é comum encontrar diversos ou numerosos os aspectos da cultura popular, como bem explicitam Morais e Araújo:
Nesses espaços das conversas, das tradições, dos encontros, das transgressões, das experiências, das compras, vendas e permutas, das jocosidades, das performances corporais e orais, enfim, das cores, odores e sonoridades que se misturam e se dissolvem, inúmeras pessoas efetuam as reproduções sociais e capitalistas da vida cotidiana. Dessa maneira, a feira se institui, antes de tudo, em um espaço de mobilidades comerciais e sociais onde, por meio das diversificadas dinâmicas, ergue-se uma rede de sociabilidades vivenciadas pelos agentes sociais no âmbito dos territórios construídos. (Morais & Araújo, 2006, p. 267)
Pode-se considerar que uma feira livre, em qualquer região do País, ultrapassa seu valor de simples local de abastecimento da comunidade, pois, no seu interior, se agrega um valor mais amplo, o valor cultural. Ali são comercializados produtos locais e também oriundos de outras localidades. Em seu estudo sobre “A Feira de Caruaru”[3], Cardoso (1975) afirma que a feira livre se torna um “fenômeno socioeconômico de importância capital na vida nordestina” (p. 169). Como retrata o autor, esse fenômeno cultural não só representa a principal forma de abastecimento para uma grande parcela da população mas, ao mesmo tempo, é a expressão do próprio significado etimológico da palavra, é o dia da festa, pois
[...] é um verdadeiro fenômeno que espanta e atordoa. Espanta sobremodo pelo contraste flagrante entre a fartura da feira e a pobreza da área rural circunvizinha. Atordoa, pois é verdadeiramente caótico o seu aspecto, dada a imensa profusão de mercadorias que ali surgem, ora expostas em toscas barracas, ora espalhadas pelo chão. (Cardoso, 1975, p. 169)
Desde a ocupação do sertão pela pecuária, as feiras do interior nordestino representam um dos fenômenos sociais mais importantes da região. Com produtos próprios da espacialidade, misturados com traços culturais da música, dos costumes, da culinária, a feira é uma verdadeira festa da cultura.
O município de São José de Piranhas está situado no sertão da Paraíba, região nordeste. Seu povoamento se deu em decorrência da ocupação dos sertões do Rio Piancó e do Rio do Peixe. Sua ocupação se iniciou nas cabeceiras do Rio Piranhas e seus afluentes, ainda por volta do século XVIII, no então Sítio São José. As primeiras manifestações de seu progresso resultaram da proveitosa atividade agrícola exercida por seus habitantes nas numerosas fazendas do município.
Fundada ainda no período imperial, foi na República que São José de Piranhas alcançou notório desenvolvimento. Inicialmente, a administração do município coube ao Conselho Municipal, de acordo com a Lei nº 9, de 1892, até a criação do cargo de prefeito municipal pelo presidente Álvaro Lopes Machado, pela promulgação da Lei nº 27, de 2 de março de 1895.
A economia de São José de Piranhas nos primórdios de sua história era voltada para as atividades agrícolas e pecuárias, com destaque para as culturas do milho, do arroz, do feijão, da mandioca, dos engenhos de rapadura e do algodão, as quais abasteciam tanto o comércio local como as vilas vizinhas. Esse município era considerado, em meados do século XIX, o principal centro de abastecimento de toda a região pertencente ao alto sertão paraibano.
O desenvolvimento econômico de São José de Piranhas foi notado nas feiras semanais, evento que atraía fazendeiros, vaqueiros e moradores de cidades maiores como Sousa e Cajazeiras. A feira de São José era uma das mais importantes do sertão paraibano, de modo que os feirantes se viam atraídos a fazer parte de seu corpo vibrante, para vender e comprar produtos como rapadura e farinha, como afirma Leitão:
No início do século passado já apresentava as primeiras manifestações do seu desenvolvimento; era o primeiro arraial que ainda não se libertara da sua condição socioeconômica de fazendas de criação... No meado do seu primeiro século(sic) já oferecia algum movimento comercial, com a sua feira semanal a reunir fazendeiros, vaqueiros e agricultores da região. (1985, p. 95)
Assim como em outros lugares do Brasil, destacando-se o Nordeste, a feira livre em São José de Piranhas-PB tem alta representatividade popular e é responsável por empregar muitas pessoas, mover toneladas de produtos e gerar encontros e desencontros de moradores locais e até de outras comunidades. Se, por um lado, é nítida a importância que a feira tem para a economia, por outro, representa as marcas mais expressivas de uma cultura popular. Culturalmente falando, as feiras livres são marcadas pelos gritos dos feirantes, pela famosa pechincha dos consumidores, pelas conversas altas e risadas constantes, pela música regional. As feiras mais do que uma atividade econômica são uma atividade cultural.
3. O FEIRANTE E O PRODUTO – A MATEMÁTICA EM APLICAÇÃO
A amostra de sujeitos entrevistados consiste em 6 feirantes, sendo 3 mulheres e 3 homens; a formação educacional dessas pessoas varia de Ensino Fundamental incompleto a Ensino Superior incompleto; a faixa etária se encontra entre 26 e 55 anos. Em relação ao tempo de serviço na feira, as pessoas entrevistadas têm entre 3 e 16 anos.
Os produtos vendidos na feira são cultivados pelos próprios feirantes, representantes de 50% da amostra, ou seja, metade dos sujeitos entrevistados possuem contato direto com o plantio, colheita, transporte e venda dos produtos, acompanhando todo o processo, enquanto a outra metade compra seus produtos de fornecedores de outras cidades, comparando seu poder de compra às tabelas de preços desses fornecedores.
Dos seis feirantes entrevistados, três possuem verdurão, tipo de comércio fixo de venda de frutas e verduras, com o qual relataram trabalhar durante o restante dos dias da semana. Desses três feirantes, apenas dois mantêm funcionários em seus estabelecimentos.
Os sujeitos entrevistados serão, neste estudo, nominados Entrevistada A, Entrevistado B, e assim por diante. Tal prática busca resguardar as identidades dos participantes, conforme orientação da Resolução 510/2016/CNS, que orienta as questões éticas nas pesquisas com seres humanos, dentro da área das Ciências Humanas e Sociais.
A partir da técnica de coleta de dados, que teve como método a observação do espaço da feira e, como instrumento de coleta de dados, a entrevista, foram identificadas várias formas de medição e de recursos instrumentais utilizados pelos participantes em sua atividade laboral. Assim, identificamos a aplicação de Medidas convencionais, cujos conceitos e grandezas aparecem registrados no Sistema Internacional de Unidades,[4] e de Medidas não convencionais, que não possuem conceitos bem definidos, uma vez que são repasses de saberes populares e ou experiências práticas concebidas ao longo do tempo (Quadro 1). Também verificamos recursos diferenciados, para se adaptarem às medidas em uso por esses profissionais.
Medidas Convencionais | Recurso Instrumental | Medidas Não-Convencionais | Recurso Instrumental |
Pesos em quilogramas e gramas; Sacos de 60 quilogramas | Balança | Mói | Cálculo mental para uma mão fechada, cheia |
Dúzia | Cálculo mental para definir o preço de venda por unidade, tendo como referência a precificação com base 12 | Copo | Cálculo mental para se obter o quantitativo de, aproximadamente, um copo de 200 ml cheio ou pela metade |
Funil | Cálculo mental para se obter o quantitativo: Pequeno – aproximadamente 100 g; Médio – aproximadamente 250 g; Grande – aproximadamente 500 g |
Desde os primórdios, o ser humano tem noção do que é medir. O conceito formal de medida está ligado ao que se denomina grandeza. Medir é comparar grandezas dadas – como a massa, por exemplo – com outro padrão a que chamamos de unidade. As unidades e instrumentos permitem saber como foi medida determinada quantidade de produto vendido, comprado ou estocado.
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES: A FEIRA COMO LUGAR DE CONHECIMENTO MATEMÁTICO HISTÓRICO
Na feira, a verificação de pesos e medidas é vista como elemento de captação numérica da Matemática. Assim sendo, quando pegamos uma porção de cominho[5] na mão, por exemplo, não há como mensurar sua quantidade, então se faz uso de um copo, pois este delimita o volume, no espaço, de um modo concreto; esse copo se torna, portanto, instrumento de captação ou de transferência do elemento matemático para a matéria. Ocorre a materialização da matemática no mundo visível.
É uma prática de convivência contida dentro dos usos matemáticos na feira que interfere, inclusive, em elementos quantitativos. Pode-se citar o exemplo do “mói” de coentro.[6] Na própria quantidade de coentro que é vendida por R$1,50 (um real e cinquenta centavos), existe uma relação quantitativa em função da lucratividade, contudo, ao mesmo tempo, quem vende insere um quantitativo excedente – não cobrado – que beneficia o freguês – é o chamado “agrado” – e, de certa forma, estimula-o a voltar a essa banca, a esse vendedor. Com base na análise de práticas desse tipo, observou-se que existe uma espécie de coerência matemática quantitativa que embasa e constrói relações de fidelização entre quem vende e quem compra.
Por meio dos dados coletados, foi possível compreender a interação social, criando um tipo de relação entre os protagonistas no cenário das feiras livres. Na perspectiva de D’Ambrósio (2002), o uso da Matemática na feira livre de São José de Piranhas revela a manutenção de uma cultura arraigada na população local e em outros que a visitam ou frequentam. Não se trata apenas de vender mais ou menos caro ou mais ou menos barato que o concorrente, mas sim de captar fregueses com posturas e atitudes que os identificam, que não provocam estranhezas, que lhes permitem se sentir parte da feira, da comunidade que dela usufrui.
Segundo D’Ambrósio (2002), a etnomatemática contribui para o entendimento de que a matemática do cotidiano se ramifica na diversidade cultural, na mistura de saberes diferenciados, provenientes da troca de experiências, muitas vezes fruto da necessidade ou de bagagens culturais repassadas.
Isso significa, em outras palavras, que o conhecimento se constrói na Feira a partir da vivência dos sujeitos, ao longo do tempo, envolvendo desde os processos de produção (plantio e colheita ou escolha dos produtos de fornecedores) até o armazenamento e oferta dos produtos, abrangendo inclusive, a forma de escolher os produtos pelos clientes, a pechincha, o experimentar, o cheirar, o apalpar. São princípios de uma matemática experimentada, vivida de acordo com a realidade das trocas que ocorrem entre os sujeitos participantes, o que Certeau (1994) caracteriza como Artes de fazer.
Enfim, para melhor promover a compreensão dessas bases quantitativas, serão destacados a seguir os instrumentos, ou recursos instrumentais, e elementos matemáticos utilizados na feira livre e que fazem captar a matemática ou as estratégias matemáticas utilizadas nesse meio popular, mostrando um pouco sobre seu contexto histórico e usos.
4.1. Balança
As balanças são instrumentos de medidas muito antigos, criação de cerca de 7 mil anos atrás. Os registros (Rheinboldt, 1990) indicam que seu surgimento se deu na sociedade egípcia, no chamado “livro dos mortos”. Segundo narrado nesse livro, simbolicamente o coração do morto era pesado para designar o destino da sua alma, ou seja, a condenação ou não por seus erros. Os primeiros registros de usos indicam que a balança de então consistia em um artefato construído com dois pratos e um travessão, separando-os; colocava-se, em um dos pratos, a peça de peso padrão e, no outro, o objeto cujo peso seria verificado; observando-se se havia, ou não, equilíbrio entre os pratos, era possível estimar o peso.
Atualmente existem vários tipos de balanças que foram desenvolvidos ao longo do tempo, para se pesarem inúmeros tipos de materiais, desde amostras de laboratórios até veículos. Entre esses tipos, destacaremos dois, a balança de prato único (Figura 3) e a balança digital (Figura 4), que são utilizados na feira para pesar os produtos.
A balança de prato único (Figura 3) surgiu quando a Erhart Mettler (1917 – 2000), em 1946, colocou no mercado o primeiro modelo comercial. Sobre o funcionamento desse tipo de balança, Rheinboldt (1988) afirma que possui um dispositivo, móvel ou fixo, em um lugar dos pratos, ou o contrapeso é fixo, apresentando um conjunto de pesos removíveis, sendo esse sistema utilizado em quase todas as balanças, para se obter uma leitura uniforme.
A balança digital (Figura 4) permite pesar o produto eficientemente e de forma rápida, assim como estipular o preço de acordo com o peso do produto.
Com relação ao uso da balança na Feira que ora analisamos, faremos a transcrição de forma direta ou indireta das falas dos participantes entrevistados.
Os Entrevistados B, E e F afirmaram usar a balança porque é mais rápido e eficaz. Já os Entrevistados A, C e D disseram que têm a balança, mas que, na maioria das vezes, não fazem uso dela, só a utilizam quando o cliente exige, uma vez que, com a prática e o manuseio dos produtos, adquiriram noções de seu peso.
No artigo “Na vida dez, na escola zero”, a autora Terezinha Nunes Carraher et al. (1982) afirma que, na escola, aprendemos a somar, subtrair, multiplicar e dividir, mas, no dia a dia, os cálculos são feitos mentalmente, aplicando-se métodos “naturais”, a partir dos quais o indivíduo encontra as respostas, criando procedimentos e adequando o problema ao contexto mais simples para que possa resolvê-lo.
A Entrevistada A assegurou:
“Ah a gente sabe mais ou menos quanto de produto dá o quilo, mas tem a balança e damos sempre um agrado pra pessoa voltar sempre”.
O Entrevistado B, por sua vez, afirma que faz uso somente da balança digital porque compra todos os produtos na cidade de Patos (também na Paraíba), com exceção do coentro. Assim sendo, como o tamanho dos produtos varia muito de uma compra para outra, não tem como quantificar o peso sem o uso desse instrumento.
4.2. Copo
O popular copo “americano” foi criado em 1947, por Nadir Figueiredo. Recebeu esse nome porque, embora fosse uma criação brasileira, sua produção só foi possível graças ao maquinário vindo dos EUA. Em 2010, chegou à marca de 6 milhões de unidades vendidas. Usado para tomar o café da padaria e das casas, até mesmo a cerveja em bares e restaurantes, o copo ainda se tornou unidade/instrumento de medidas para receitas e outros produtos.
O copo americano, com seus 190 mililitros, é um instrumento utilizado na feira para vender chás e temperos, como coloral, cominho e pimenta. O feirante, na verdade, associa um copo bem cheio a determinado valor (Figura 5), ou seja, não são os 190 ml que servem como base, mas sim um copo cheio, meio copo, um copo e mais um pouquinho. Um exemplo bem claro é o apresentado pela Entrevistada D,que quantificou um copo bem cheio de coloral com o valor de R$ 3,00 (três reais) – se o freguês pede R$ 4,00 (quatro reais) de coloral, ela sabe que é um copo cheio e mais um pouco.
As Entrevistadas A e D relataram que sempre dão um “agrado” aos fregueses, para que voltem. Esse conceito de pouco e bem cheio está diretamente ligado ao que foi anteriormente mencionado, de que existe, no elemento quantitativo presente na feira, a possibilidade de embasar relações entre as pessoas. Vê-se na imprecisão dos elementos quantitativos da feira popular um revestimento de sentimentos e laços que apontam para uma subversão de que volumes e medidas fundamentam apenas dimensões de exatidão, comprovando que os laços de freguesia e de confiança ultrapassam a lógica do exato e do natural (Figura 6).
Pode-se destacar que o copo, ainda que tenha sua medida em mililitros, na feira é revestido de um exercício de medida não-convencional, pois seus usos populares e matemáticos ultrapassam culturalmente os sistemas normativos de medidas.
Sobre isso, vale nos reportar a D’Ambrósio (2002), quando diz que a etnomatemática procura entender, dentro do contexto cultural do indivíduo, seus processos de pensamentos e seus modos de entender, explicar e desempenhar ações na sua realidade. A matemática da feira não anula os conhecimentos matemáticos formais, mas incorpora valores, saberes, estratégias que foram passando de pai para filho, de mãe para filha, de avô para neto, ao longo das gerações.
4.3 “Mói”
No dicionário informal, “mói”[7] significa “um monte, o mesmo que vários/as”. Usado em sentidos diferentes nas situações do dia a dia, na feira é usado para designar principalmente a quantidade de coentro (ou outro produto semelhante, como folhas de couve, alface) que equivale a determinado preço.
O mói é uma medida não convencional, com a qual o feirante, ou quem fornece o produto, escolhe a quantidade e a associa ao valor que considera suficiente para ter lucratividade. O tamanho do mói varia de acordo com o feirante, a espessura e a quantidade de produto que foi colhido. Os entrevistados afirmaram que cada feirante tem seus próprios gastos no plantio e cultivo, portanto não há como padronizar o preço para todas as barracas.
4.4. Dúzia
A dúzia é uma unidade de medida que tem como base o sistema duodecimal, ou seja, sistema de base doze. Esse sistema tem origem diretamente ligado ao corpo humano, partindo das falanges dos dedos da mão, com exceção do polegar, que somam 12. Na Feira Livre de São José de Piranhas, a dúzia é utilizada como unidade base para vender produtos como banana, laranja, maçãs, mexerica, entre outros, sendo utilizada por todos os sujeitos entrevistados.
Os entrevistados afirmaram que, em diversas situações, quando o cliente reclama do preço da dúzia, utiliza-se como estratégia de venda o “agrado”, já anteriormente citado neste estudo. O Entrevistado exemplifica: o cliente quer comprar uma dúzia de banana, mas o valor é R$ 6,00 (seis reais), considerado por ele caro; para não perder a venda, o feirante oferece 15 bananas pelo mesmo valor, tentando garantir, assim, a clientela.
4.4. Sacos ou Sacas[8] (Feijão e Milho)
Os sacos de náilon são utilizados para venda de grãos, como feijão e milho, vendidos geralmente pelos próprios agricultores na feira. Os sacos cheios até a borda pesam 60 kg, mas geralmente não estão completamente cheios e podem ser vendidos com base em outras medições: a meia saca ou por quilo (Figura 7).
Para vender quantidades menores de grãos, como milho e feijão, são utilizados copos funis como instrumento medidor. Os Entrevistados A e C, indagados sobre esse instrumento, revelaram em suas falas que esse funil é utilizado há muitos anos. Ele é feito de alumínio e facilita muito na venda de produtos quando o cliente deseja adquirir pequenas quantidades. Afirmaram ainda não saber a origem, mas que o funil exerce uma representatividade popular muito forte na Feira Livre de São José de Piranhas, desde a sua formação.
4.5. Cálculo mental: a mente como instrumento
O ser humano, desde os tempos primeiros, teve a necessidade de usar a matemática de forma intuitiva, para garantir a sua sobrevivência e subsistência. Os povos nômades, por exemplo, viviam em regiões diferentes, as quais, com o passar do tempo, sofreram modificações. Regiões com água em abundância tornaram-se escassas, obrigando o homem a produzir seu próprio alimento por meio da agricultura, do pastoreio e estocá-lo, para não faltar nas regiões ou tempos de escassez. A fim de garantir que não houvesse falta de alimentos, foi necessário se adquirirem as primeiras noções de quantidades como também noções de contagem dos animais do rebanho.
Para essa contagem feita de forma intuitiva, usamos a mente como instrumento. Quando simplesmente surge um problema e se procura resolvê-lo de formas diferentes, usando estratégias próprias para calcular, lança-se mão de um recurso para o qual não há regra específica. Esse recurso pode ser denominado de cálculo mental.
No nosso cotidiano, somos levados a usar o cálculo intuitivo em diversas situações. O cálculo mental se constitui como um saber popular que não pode ser excluído da matemática formal, afinal raciocínio lógico é condição necessária para se resolverem, de forma coerente, os problemas matemáticos na escola, faculdade, no trabalho e em muitas outras situações que surgem.
Na Feira Livre de São José de Piranhas, o cálculo mental, mesmo diante dos avanços nos instrumentos de medidas, do processo de modernização e informatização, aparece enraizado nas noções e estratégias matemáticas aplicadas por feirantes e fregueses. Um exemplo claro dessas estratégias é apresentado pelos Entrevistados A e C que, perguntados sobre o uso da calculadora, afirmaram não usar esse instrumento, até mesmo por não o saberem, de forma que todo processo de compra e venda é repassado nas “contas de cabeça”.
No artigo “Na vida dez, na escola zero”, Carraher et al. (1982) afirmam que:
Quando o pai tem uma barraca na feira, por exemplo, alguns dos filhos podem acompanhar o pai, especialmente a partir de uma certa idade. Enquanto os menores parecem apenas "passar o tempo" desta forma, os maiores, a partir de aproximadamente dez anos, auxiliam nas transações, podendo mesmo assumir a responsabilidade pela venda de parte das frutas e verduras. Nestas situações, as crianças e adolescentes resolvem inúmeros problemas de matemática, via de regra sem utilizar papel e lápis. (Carraher et al., 1982, p. 3)
O Entrevistado C, perguntado sobre o que o motivou a ser feirante, informou que:
“vem de família. Meu pai era feirante e eu acabei continuando o trabalho dele, e o fato de morarmos na zona rural contribuiu bastante.”
A resposta desse entrevistado nos permite concluir que os saberes matemáticos são passados por meio de experiência familiar e inferir que, de modo especial, a feira é um ambiente em que há resolução de problemas de forma intuitiva.
Uma das finalidades da Matemática é preparar o homem para resolver os problemas que aparecerem, ou seja, encontrar soluções eficazes para enfrentar as diferentes situações ao longo do tempo. Assim, há a necessidade de pensar, raciocinar logicamente, pensar intuitivamente. Em outras palavras, o cálculo mental é necessário na vida e no cotidiano da feira.
4.6. Matemática Financeira
O Brasil vive momentos em que muito se fala em crise econômica, falta de dinheiro nos cofres públicos, folhas de pagamentos que não fecham, falta de investimentos, dívidas internas e externas, cortes orçamentários e necessidades de reformas tributárias. Essa crise econômica afeta todos os setores, em especial o setor do comércio, com aumentos no preço dos produtos e juros altos.
Isso significa que, devido às transformações ocorridas, conceitos como juros, receitas, lucro e prejuízo se aplicam em diversas situações e têm diversas aplicações, como financiamento de carros, pagamentos de prestações e, especialmente, nas trocas comerciais. Em função do aumento dos preços e da desvalorização do dinheiro, a mesa do brasileiro se tornou menos farta, e intensifica-se a procura por pagar menos levando mais. Na feira, os feirantes e fregueses devem estar atentos a todo esse processo financeiro. De um lado, os feirantes almejam vender seus produtos de forma lucrativa, de outro os fregueses desejam levar mais pagando menos.
O Entrevistado B assegura:
“Os clientes do verdurão também vão comprar lá na feira, porque é mais barato, sai mais em conta”.
O Entrevistado F afirma:
“Na feira os clientes têm mais oferta”.
E o Entrevistado B completa:
“A segunda-feira só tem movimento se for aqui na feira; a gente acaba vendendo mais”.
Ou seja, a Matemática Financeira e os conceitos financeiros estão totalmente ligados às trocas comerciais que são feitas no espaço da feira, e os feirantes e fregueses têm um conhecimento próprio, criando estratégias para garantir a lucratividade. Se por um lado os fregueses fazem o seu dinheiro render, por outro, os feirantes vendem mais produtos, com preço mais acessível, mas garantindo o lucro em cima do que é gasto na produção e ou na compra dos produtos.
O Entrevistado C afirma com muita propriedade que:
“Com certeza, a matemática está no dinheiro que circula, no peso, nos gestos, nos gastos e nos preços dos produtos. Tem muita matemática por aqui.”
Esse participante consegue enxergar o conhecimento matemático através dos elementos de sua rotina, de forma clara, no âmbito da feira e das trocas tanto comerciais como sociais que ocorrem entre os sujeitos. Analisando as entrevistas realizadas, todos os sujeitos entrevistados conseguem ver a matemática acontecendo na feira. O que muda é apenas a forma como veem; dito de outra forma, os entrevistados que compram suas mercadorias de fora têm um contato mais específico com a matemática institucionalizada, enquanto aqueles que cultivam seus produtos entendem o processo matemático de forma mais intuitiva.
As feiras evidenciam concepções de vida, de trabalho, de tessituras sociais, que confirmam a solidariedade e a responsabilidade individual e coletiva, a transparência nas relações, o estabelecimento da confiança, a iniciativa pessoal, o amor ao trabalho – uma escola de vida (Kliksberg, 2001).
E como essas concepções se relacionam? Por meio de gestos, diálogos, tons de vozes, a maneira de vender os produtos, o modo de escolher e comprar os alimentos, os arredondamentos feitos mentalmente, as promoções, as pechinchas, a sociabilidade, o senso de peso, o cheiro, a degustação/sabor, os encontros de comunidades rurais diferentes, os encontros da comunidade rural com a comunidade urbana, a transformação do espaço, as trocas de experiências. Em outras palavras, isso significa que as práticas da feira se constituem como forma particular de expressar a cultura particular, os valores, mas também a Matemática, com sua linguagem própria, de caracterizar a comunidade ou o grupo social no qual está inserida.
O indivíduo, a partir do contexto histórico e das particularidades do espaço da feira, cria um campo próprio de linguagem, utilizando a “inteligência prática”, para criar suas próprias estratégias. Os feirantes utilizam estratégias de venda para obter lucro, cobrir os gastos e obter o maior número de fregueses possíveis, por outro lado os fregueses também se utilizam dessa inteligência para comprar produtos de qualidade, com menor preço.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A feira de São José de Piranhas, traz marcas históricas e matemáticas reveladas por meio da oralidade, por intermédio das rememorações dos entrevistados. É importante destacar que os elementos rememorados e a práticas culturais fazem parte da tessitura dos saberes matemáticos no tempo e no espaço. As experiências vividas por feirantes e fregueses, através das significações entre o presente e o passado relatados, revelam uma matemática vivida e experimentada, onde a Feira se caracteriza como escola do conhecimento histórico e matemático.
As feiras livres são espaços que se transformam em um grande espetáculo cultural de trocas sociais e saberes, estes ora voltados para aspectos culinários e afetivos, ora para a geometrização do espaço, para as medidas, o cálculo mental; saberes que perpassam intensamente a materialização dos elementos formais da matemática a partir do mundo do qual fazem parte e de seus elementos físicos e epistemológicos. Neste sentido, concordamos com a comprovação da máxima de que a matemática está em toda a parte, nas diversas situações do dia a dia, expressas de maneira particular de acordo com o povo, grupo ou nação, no tempo e no espaço.
A matemática da feira permite explicar, reconhecer e resolver os problemas cotidianos através de estratégias pessoais, por meio de instrumentos convencionais ou não convencionais. É possível perceber os saberes matemáticos através do diálogo que ocorre em 3 instâncias: a primeira entre o feirante e o processo de produção; a segunda entre os feirantes e os fregueses; e a terceira entre os fregueses e a escolha dos produtos.
As estratégias utilizadas por feirantes e fregueses se dão por meio do contar, pegar, medir, cheirar, experimentar; trata-se, portanto, da linguagem da feira que se comunica diretamente com seus sujeitos, criando o conhecimento matemático. A Matemática acontecendo no tempo e no espaço, através dos saberes constituídos pelos sujeitos participantes.
Através das análises das entrevistas, pôde-se chegar a algumas conclusões: i) os feirantes que têm contato direto com os produtos e participam de todo o processo, desde o plantio até a venda, percebem a matemática de forma mais intuitiva; ii) as pessoas manipulam os produtos para obter informações da realidade que as cerca porque os órgãos sensoriais são o primeiro instrumento de coleta de dados sobre o mundo; iii) os laços de confiança estabelecidos entre feirantes e fregueses ultrapassam a lógica da exatidão típica de uma matematicidade sistemática e objetiva; e por último, iv) o conhecimento matemático se dá através das experiências dos sujeitos, da matemática vivida, permeada de sentimentos dando vazão a uma matemática da feira.
É possível identificar a Matemática acontecendo na vida das pessoas, nas quantidades, no pesar, no medir, no passar troco, elementos matemáticos presentes nos aspectos quantitativos, no contato entre os sujeitos (feirantes e fregueses) da feira. Tudo isso se torna um modo do próprio sujeito perceber a matemática presente em sua realidade, a partir dos elementos matemáticos vivenciados. É uma reflexão sobre o sentir a matemática no cotidiano da feira.
Partindo desse prisma, o trabalho contribui diretamente para o modo como é possível problematizar e perceber os detalhes da experiência histórica através de memórias de feirantes e fregueses e como esses lidam com o saber matemático nas suas práticas cotidianas. É interessante observar como ele desenvolve saberes, a partir de um fazer, e como ele aplica, a partir de uma astúcia, de uma esperteza própria, lógicas matemáticas, a começar de um improviso, amparado nas circunstâncias que lhe aparecem, além das práticas solidárias, a ideia de divisão, medição e organização do espaço (as ruas transformadas pela feira).
REFERÊNCIAS
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Rheinboldt, H. (1988). A História da Balança. Nova Stella Editorial.
Notas
Ligação alternative
https://histemat.com.br/index.php/HISTEMAT/article/view/518 (pdf)