Dossiê

TENSÕES ENTRE CRITÉRIOS SOCIAIS E RACIAIS: AÇÕES AFIRMATIVAS NOS EDITORIAIS DA FOLHA DE SÃO PAULO

TENSIONS BETWEEN SOCIAL AND RACIAL CRITERIA: AFFIRMATIVE ACTION IN FOLHA DE SÃO PAULO EDITORIALS

TENSIONES ENTRE CRITERIOS SOCIALES Y RACIALES: ACCIONES AFIRMATIVAS EN LOS EDITORIALES DE FOLHA DE SÃO PAULO

Guilherme Oliva de Paula i
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Brasil
Luciano Magela Roza ii
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Brasil

Caminhos da História

Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil

ISSN: 1517-3771

ISSN-e: 2317-0875

Periodicidade: Semestral

vol. 27, núm. 2, 2022

revista.caminhosdahistoria@unimontes.br

Recepção: 26 Maio 2022

Aprovação: 28 Junho 2022



DOI: https://doi.org/10.46551/issn.2317-0875v27n2p.17-35

Resumo: Este artigo tem o objetivo contribuir para a compreensão acerca de um dos componentes mais importantes do debate público sobre a implementação das cotas raciais nas universidades brasileiras, o enfoque midiático sobre a referida política de ações afirmativas. Para tanto, discutimos como o jornal Folha de São Paulo, por meio de seus editoriais, no período entre 2000 e 2012, opina sobre a proposição de ingresso ao ensino superior brasileiro através de ações afirmativas. O texto está organizado em três partes. Inicialmente, há a introdução da discussão. No segundo momento, são apresentados e problematizados alguns aspectos sobre a disputa interpretativa sobre as relações raciais no Brasil. Em seguida, analisamos como as questões relacionadas à questão racial e às ações afirmativas são abordadas nos editoriais do jornal no contexto histórico selecionado para pesquisa. A investigação apontou que o jornal alterou sua posição sobre ações afirmativas centradas em critérios sociais, mas permaneceu inflexível em relação à adoção de critérios raciais como norteadores das ações afirmativas.

Palavras-chave: Ações afirmativas, miscigenação, reparação histórica, mídia.

Abstract: This article aims to contribute to the understanding of one of the important components in the public debate on the implementation of racial quotas in Brazilian universities, the media focus on the aforementioned affirmative action policy. In order to do so, we discuss how the newspaper Folha de São Paulo, through its editorials, in the period between 2000 and 2012, opines on the proposition of admission to Brazilian higher education through affirmative actions. The text is organized in three parts. Initially, there is the introduction of the discussion. In the second moment, some aspects of the interpretative dispute about Brazilian racial relations are presented and problematized. Next, we analyze how issues related to racial issues and affirmative actions are addressed in the newspaper's editorials in the historical context selected for research. The investigation pointed out that the newspaper changed its position on affirmative action centered on social criteria, but remained inflexible in relation to the adoption of racial criteria as a guide for affirmative action.

Keywords: Affirmative actions, miscegenation, historical reparation, media.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo contribuir a la comprensión de uno de los componentes importantes en el debate público sobre la implementación de cuotas raciales en las universidades brasileñas, los medios de comunicación se centran en la mencionada política de acción afirmativa. Para ello, discutimos cómo el periódico Folha de São Paulo, a través de sus editoriales, en el período comprendido entre 2000 y 2012, opina sobre la propuesta de ingreso a la educación superior brasileña a través de acciones afirmativas. El texto está organizado en tres partes. Inicialmente, está la introducción de la discusión. En el segundo momento, se presentan y problematizan algunos aspectos de la disputa interpretativa sobre las relaciones raciales brasileñas. A continuación, analizamos cómo se abordan los temas relacionados con cuestiones raciales y acciones afirmativas en los editoriales del periódico en el contexto histórico seleccionado para la investigación. La investigación señaló que el periódico cambió su posición sobre la acción afirmativa centrada en criterios sociales, pero se mantuvo inflexible en relación a la adopción de criterios raciales como guía para la acción afirmativa.

Palabras clave: Acciones afirmativas, mestizaje, reparación histórica, medios de comunicación.

A maioria dos veículos de informação trazem como imperativos a imparcialidade e a objetividade para com os objetos reportados. Entretanto, sabemos que em toda e qualquer narrativa, existem alguns mecanismos inerentes a sua produção que impossibilitam tal característica. No caso da imprensa, Stuart Hall (1999, p. 224) alerta que “as notícias são o produto final de um processo complexo que se inicia numa escolha e seleção sistemática de acontecimentos e tópicos com um conjunto de categorias socialmente construídas”. Portanto, toda produção midiática está submetida a um conjunto de sentidos e interpretações socioculturais no qual jornalistas e chefes de redações encontram-se inseridos. Esta premissa se aplica a mídia brasileira e a sua capacidade de debater assuntos ligados às relações raciais brasileiras uma vez que “grande parte dos jornalistas faz parte das elites simbólicas brancas, portanto, têm limites ideológicos na leitura e na interpretação dos conflitos raciais” (ROSA, 2013, p. 99).

Sendo assim, a despeito da intensa denúncia contra o racismo promovida pelos movimentos sociais negros durante todo século passado, como a Frente Negra Brasileira, a União Negra Brasileira, o Movimento Brasileiro contra o Preconceito Racial, a União Nacional dos Homens de Cor e o Teatro Experimental do Negro, para citar alguns, a grande imprensa brasileira manteve uma posição de neutralidade no tocante à temática racial. Como observam Silva e Rosemberg (2008, p. 92) “nos jornais, o negro permaneceu, em geral, circunscrito às editorias policial, relacionado à criminalidade; de esporte, principalmente no futebol e no atletismo; de cultura, em geral, cantores e músicos”.

A eminencia da adoção de ações afirmativa para o ingresso ao Ensino Superior público fomentou debate público sobre a implementação das cotas raciais nas universidades brasileiras. A mídia corporativa teve um papel importante neste debate, buscando influenciar a opinião pública sobre o tema.

Neste artigo, apresentamos de maneira sintética alguns dos resultados obtidos por meio da pesquisa de mestrado intitulada Antirracismo, história e tempo: ações afirmativas e reparação histórica no jornal Folha de São Paulo (2000 – 2012) defendida em setembro de 2019 pelo programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto tendo como autor Guilherme Oliva de Paula, orientador Luciano Magela Roza e co-orientador Marcelo dos Santos Abreu.

Na pesquisa, procuramos determinar como as diferentes interpretações sobre a história das relações raciais no Brasil, nos aspectos relacionados às experiências históricas e às temporalidades contribuíram para o posicionamento contrários ou favoráveis à implementação das ações afirmativas para a população negra entre os interlocutores vinculados ao jornal Folha de São Paulo no período de 2000 a 2012.

Podemos dizer que nossa pesquisa participa de um conjunto mais amplo de trabalhos cujo objetivo central é analisar como diversos interlocutores vinculados aos veículos midiáticos brasileiros construíram seus posicionamentos a respeito das ações afirmativas para a população negra, tais como as promovidas pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (GEMAA) da UERJ[1], e artigos, dissertações e teses produzidas por João Ferez Jr., Luiz Campos, Matheus Leibão, Daflon dentre outros.

Dito isto, no presente artigo, analisamos alguns dos argumentos apresentados nos editoriais publicados na Folha de São Paulo, entre 2000 e 2012, a respeito da implementação de ações afirmativas para a população negra brasileira no ensino superior. Focamos especialmente nossa atenção em como o jornal interpreta a dinâmica entre passado e presente no tocante às relações raciais brasileiras no intuito de fundamentar seu posicionamento sobre a questão. Ou seja, quais os passados são evocados nos editoriais selecionados, bem como qual o tipo de historicidade ou interpretação histórica é atribuída aos mesmos. Além disso, ponderaremos como o jornal interpreta o conceito de raça, o fenômeno da miscigenação, e o nível de justiça que permeia a implementação de ações afirmativas no contexto brasileiro.

Disputas sobre as relações raciais brasileiras

A produção e difusão de diferentes compreensões sobre as relações raciais brasileiras desenvolveu-se por meio da atuação de um amplo conjunto de sujeitos (intelectuais, cientistas, políticos, etc.) e ocorreu em diferentes locais (imprensa, literatura, artes visuais, parlamento, acadêmico, etc.).

Historicamente, a posição da grande mídia em relação ao racismo no Brasil está intimamente ligada ao tipo de interpretação histórica sedimentada no interior da sociedade brasileira, da qual são signatários. Como lembra Lilia Schwarcz (2012;2019), no século XIX observamos a ascensão do chamado mito da miscigenação, sendo ele, a interpretação de que o Brasil carrega como característica nuclear de sua formação a união entre três raças; branca, indígena e negra.

No período, esta formulação foi largamente utilizada pelos intelectuais ligados ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) e, posteriormente, pelos modernistas brasileiros, que detinham como objetivo a constituição de uma identidade nacional comum ao povo brasileiro[2]. Essa perspectiva histórica será reforçada por autores como Gilberto Freyre e Donald Pierson, para quem, a herança portuguesa possibilitou uma escravidão menos segregacionista e violenta, se comparada a experiência anglo-saxônica na América, permitindo um alto índice de miscigenação racial e cultural entre as três raças existentes no Brasil (MAIO, 2004). Com isso, a figura do mestiço abandona sua adjetivação danosa típica dos anos iniciais do pós-abolição[3]para se tornar o emblema de autenticidade brasileira, como afirma Gilberto Freyre, “todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelos loiros, traz na alma, quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e/ ou do negro” (FREYRE, 2003, p. 307).

É sob essa interpretação da história brasileira que é formulada a suposição de democracia racial. Uma vez que o povo brasileiro é caracterizado pela mestiçagem, o conceito de raça e as divisões raciais não teriam serventia para pensar as desigualdades sociais no país, como afirma Donald Pierson “é possível [...] que ao descrever as relações sociais no Brasil, o próprio termo “raça” deva ser posto de parte” (PIERSON, 1971, p. 39)

A compreensão acerca do modelo de relações raciais predominante entre nós como harmoniosas, simétricas foi orientada pela crença em um ideal de modernidade, civilização e progresso centrada na cultura europeia (branca) como horizonte de realização da história rumo a perfectibilidade, ou seja, como a mais racional e sofisticada ao passo que a cultura de origem africana (negra) é tida como ultrapassada. Diante da impossibilidade de tornarmos a imagem-semelhança da Europa, a suposta homogeneidade racial da mestiçagem idealmente resolveria a necessidade de desnegrecer o país. A definição do povo brasileiro como mestiço traz com sido a necessidade de abandono dos traços culturais africanos, ocasionando o que os movimentos negros chamam de branqueamento cultural. Neste processo de enfabulação sobre o Brasil, Clovis Moura (s/d) desenvolve diversas críticas a elementos da historiografia brasileira do século XIX e XX. Moura (s/d) considera alguns “historiadores como intelectuais orgânicos do sistema escravista (p.3) e aponta que:

De Frei Vicente de Salvador a Oliveria Vianna, os nossos historiadores retiram créditos da grande, senão fundamental, contribuição do negro (social, cultural e economicamente) colocando-o ou como animal de tração, bárbaro ou biologicamente inferior. Toda essa produção serviu e serve para manter essas populações desestruturadas etnicamente, em função da imagem desfigurada que os historiadores apresentam. Desta maneira, a historiografia abandona o seu papel de ciência para transformar-se em um instrumento ideológico das nossas elites racistas dominantes. (MOURA, s/d, p.216)

O sucesso da interpretação do mito da miscigenação está na sua conveniência para com a elite branca dirigente e privilegiada no Brasil. De maneira simples, esta interpretação oculta os conflitos raciais ligados à escravidão, fenômeno histórico que perdurou por 300 anos no Brasil, sobrevivendo a Independência e terminando apenas um ano antes da proclamação da República em 1889, sem qualquer tipo de processo indenizatório, assim como as desigualdades raciais que permaneceram vivas até o tempo presente. Neste sentido, a miscigenação atua como um mecanismo artificial de supressão dos traumas do passado escravista, e que se mantém latente na sociedade brasileira pelo seu não tratamento. A noção de mestiçagem, operando em uma chave temporal passado-passado, adota a solução-tampão da mistura racial como suposto antídoto para os conflitos e desigualdades raciais que persistem na sociedade brasileira.

Divergências interpretativas acerca das relações raciais estiveram e estão em disputa na sociedade brasileira desde o século XIX. Paulina L. Alberto (2017), ao investigar a produção da intelectualidade negra a partir do século XIX, aponta que tais sujeitos teciam diversas críticas e reflexões sobre as desigualdades raciais e a suposta harmonia racial no contexto de então. Contudo, a partir da década de 1940, observamos o avolumamento das críticas dos movimentos sociais negros à interpretação do Brasil calcada na miscigenação[4]. Dentre estas entidades negras, podemos destacar a atuação do Teatro Experimental do Negro (TEN) formado por Abdias do Nascimento, com a organização de vários grupos de estudos, convenções nacionais e congressos, como a Convenção Nacional do Negro Brasileiro, em 1945, a Conferência Nacional do Negro, em 1949, e o I Congresso do Negro Brasileiro, em 1950, nos quais denunciavam como o discurso da miscigenação promovia o embranquecimento cultural da população negra e impossibilitava dimensionar e combater as desigualdades raciais no Brasil.

A proposta defendida pelos movimentos negros orientava-se pela necessidade de estorvar a mitologia da democracia racial. Em oposição à idealizada harmonia racial brasileira, a interpretação da formação nacional brasileira destacava a centralidade da violência, segregação e exclusão do povo negro como elementos constitutivos do Estado e da nação entre nós. Diferente da perspectiva da miscigenação que busca uma homogeneização do povo brasileiro por meio da figura do mestiço, esta nova interpretação estabelece a necessidade em destacar a diferença racial e cultural do povo brasileiro, defendendo a valorização das raízes africanas para a identificação do povo negro e assumindo um sentido de justiça social aristotélico no qual os diferentes devem ser tratados de maneira específica para o alcance da plena igualdade de direitos.

O acirramento da disputa entre estas duas interpretações ocorre nos anos finais de vigência da ditatura militar entre a década de 1970 e 1980[5]. Este período é marcado pela busca de ampliação dos direitos civis a partir da crítica à homogeneidade das identidades nacionais, apresentada por diferentes movimentos sociais e em contextos nacionais e transnacionais (HALL, 2006; BHABHA, 2000; ANDERSON, 1991; GUIMARÃES, 1996). No contexto brasileiro, há a fundação do Movimento Negro Unificado em 1978 defendendo uma ação coordenada de diversas entidades negras norteadas pela interpretação das relações raciais caracterizada pela valorização da negritude[6] e da diferença e a apropriação da noção de raça, não como ente biológico, mas como elemento fundamental para compreensão histórica e sociológica da sociedade brasileira. Um dos indícios da fratura interpretativa sobre as relações raciais no Brasil é observada na proposição de alteração e ressignificação de datas de comemoração da população negra no país engendrada pelos movimentos negros, das quais o dia 13 de maio (data de Abolição da escravatura) passa a ser comemorado como o Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo e o dia 20 de novembro (assassinato de Zumbi dos Palmares) passa a ser comemorado como o Dia da Consciência Negra.

Esta mudança proposta pelo Grupo Palmares, de Porto Alegre em 1971, e que será defendida pelo MNU, carrega a semântica de que a Abolição da escravatura foi um processo incompleto tendo em vista que depois dela a população negra permaneceu excluída da sociedade brasileira e a figura de Zumbi dos Palmares representa a necessidade de luta pela liberdade e igualdade dos negros brasileiros. Como afirma Edson Cardoso:

Ao comemorarmos o 20 de novembro e a saga heroica de Palmares afirmamos não apenas nosso direito a um passado. O que fizemos foi tomar à força das mãos da historiografia oficial um capítulo significativo, dentre muitos outros que aguardam ainda resgate, da afirmação de nossa dignidade humana e que é fonte perene de legitimidade para nossos esforços de organização política no presente. (CARDOSO, 2014, p. 160)

Além disso, ao proporem a ressignificação do 13 de maio como Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo, os movimentos sociais negros chamam a atenção para o processo inconcluso de emancipação negra pós-abolição, uma vez que, apesar de legalmente a escravidão moderna esteja extinta no país, um de seus aspectos, o racismo, atua em um continnum temporal ativo, o que justifica a luta antirracista no tempo presente.

Neste sentido, a mudança nas comemorações nacionais relacionadas à população negra não são apenas simples deslocamentos celebrativos defendidos pelos movimentos negros brasileiros, pois coloca em questão que as interpretações históricas impactam diretamente nas escolhas das ações no presente rumo ao futuro. Portanto, representar a Abolição da escravatura como um processo incompleto é uma forma de demarcar a problemática racial como um fenômeno latente no presente e passível de ser corrigido. Contudo, a transformação do significado das efemérides ligadas à população negra nacional não é acatada oficialmente pelo Estado brasileiro, produzindo uma disputa sob seus sentidos no centenário da Abolição da escravatura em 1988[7]. Na ocasião, foram organizados pelos órgãos oficiais eventos em diversas cidades espalhadas por todos os Estados da federação brasileira. Já os militantes dos movimentos negros organizaram manifestações nos dias anteriores, criticando a comemoração da Abolição da escravatura[8]. Tanto as comemorações oficiais quanto a mídia nacional optaram por uma interpretação da efeméride focalizada nos trezentos anos de vigência da escravidão no Brasil, cujo limiar seria a Abolição; procurando demarcá-la como episódio de ruptura radical entre o período escravista e a sociedade livre[9], desprezando a perspectiva sobre a Abolição defendida pelos movimentos negros como um fenômeno incompleto e compreendendo aos fenômenos históricos, como a escravidão, como evento localizados em temporalidades fechadas, nas quais o passado apresenta-se como superado e, desta forma, sem ressonâncias, continuidades e resíduos em outros tempos além da própria existência do fenômeno histórico como realidade jurídico-administrativa ou política. Como apresentamos anteriormente, este posicionamento tem como base a interpretação da realidade brasileira baseada na miscigenação e na democracia racial, como defendem Donald Pierson, Gilberto Freyre e outros autores, compreendendo que os efeitos da escravidão contribuem no presente para com as desigualdades “sociais”, excluindo da equação o fator raça[10].

Apesar da interpretação adotada pelos periódicos da efeméride do Centenário da Abolição em 1988 ter sido apoiada no mito da miscigenação, implicando a ausência do debate relacionado aos problemas ligados à questão racial brasileira no presente, a grande mídia nacional vinha aumentando o número de publicações tratando sobre a discriminação racial e o racismo no país. Segundo Carlos Hansebalg (1979, p. 271), entre 1968 e 1977, apenas 48 matérias foram publicadas pelos jornais de grande circulação brasileiros tratando de temas relacionados à discriminação racial e ao racismo. Entretanto, em 1988, há uma mudança significativa destes números se comparados aos resultados obtidos por Sérgio Antônio Guimarães em sua análise dos periódicos que circularam nas capitais Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Somente naquele ano, com a incidência de 101 matérias tratando sobre o tema, sendo 70% das matérias concentradas no Rio de Janeiro, 19% em São Paulo e 11% em Salvador[11](GUIMARÃES, 1996, p. 5).

Folha de São Paulo, a questão racial e as ações afirmativas

No tocante à questão racial, segundo Isabel Rosa (2013), em meio aos acontecimentos que agitaram o debate sobre o racismo e a discriminação racial no Brasil no final do século XX, com o centenário da Abolição da escravatura, em 1988, e a Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, em 1995, a Folha praticamente não debateu sobre a questão se comparada a outros jornais de circulação nacional. Pode-se dizer que o jornal focou seus esforços no desenvolvimento de duas pesquisas quantitativas sobre o racismo no Brasil, a primeira em 1988 e a segunda em 1995, sendo essa a forma escolhida pelo veículo para contribuir com o debate diante do estímulo das efemérides.

Observamos que ao longo da história do jornal, o mesmo assumiu diferentes posicionamentos políticos em decorrência do contexto e de seu corpo administrativo, mantendo certa distância do debate sobre a questão racial negra no Brasil, o que nos leva a concluir que o jornal não possui forte tradição em discutir o tema. Essa postura é alterada nos anos recentes, quando o debate sobre as ações afirmativas para os negros ganha destaque na agenda nacional, fazendo com que o jornal aborde cada vez mais o assunto.

Ao analisarmos os 35 editoriais da Folha sobre as ações afirmativas por critérios raciais, observamos que em todos eles o jornal se posiciona contrário à sua implementação. Entretanto, é interessante pontuar como esta posição foi sendo construída ao longo de nosso recorte cronológico; na medida em que o debate ocorria, o jornal revia suas convicções com relação às posições tomadas até então.

Em nenhum momento, ao longo de nosso recorte histórico, o jornal nega a existência do racismo e da desigualdade racial na sociedade brasileira. Ambos foram confirmados em praticamente todos os editoriais, a partir da apresentação de resultados obtidos por meio de pesquisas estatísticas ou simplesmente relatando sua existência por convicções próprias. Além disso, tanto o racismo quanto a desigualdade racial são compreendidos pela Folha como fenômenos históricos, cuja perpetuação incorre em decorrência do passado escravagista e da não inclusão dos negros à sociedade brasileira após a Abolição.

Nos primeiros anos dos editoriais analisados, uma das principais justificativas utilizadas pelo jornal contra a adoção das ações afirmativas por critérios raciais é a de que este tipo de política busca reparar uma injustiça do passado produzindo outra no presente. Semelhante ao posicionamento das delegações dos países europeus na Conferência de Durban, essa perspectiva pressupõe que as injustiças históricas não participam mais da experiência de tempo contemporânea. Neste sentido, estabelecer discriminações positivas no presente representa promover uma injustiça num contexto homogêneo no qual impera a suposta e abstrata igualdade republicana. Esse argumento compreende que as medidas de discriminações positivas maculam os princípios constitucionais de isonomia, mérito e autonomia universitária. Portanto, a Folha posiciona-se contrária a qualquer tipo de discriminação, seja ela positiva ou negativa, independente do critério utilizado, racial ou social. Essa perspectiva pode ser atestada pelo editorial publicado em 05/01/2004:

É inegável, de todo modo, que a reserva de vagas [nas universidades públicas] com base em critérios raciais ou econômicos implica uma forma de discriminação. [...] esta Folha entende que discriminações – positivas ou negativas – ferem o princípio republicano da plena igualdade diante da lei 110 (FOLHA DE SÃO PAULO, 2004, p. A2).

Neste período, a Folha defende apenas políticas universalistas que apontam para a preocupação com a melhoria na qualidade dos serviços públicos, além de aceitar modalidades de ação afirmativa que, ao seu ver, não implicariam na utilização de discriminações positivas, como evidencia o editorial publicado em 20/05/2006. No mesmo, o jornal elogia a proposta do programa de inclusão de alunos carentes da Universidade de São Paulo (USP), o Inclups, por prever o aumento de vagas em cursos noturnos, criação de bolsas para estudantes carentes e um programa de tutoria acadêmica. Contudo, critica outras medidas previstas pelo programa, como o bônus acrescido às notas de alunos carentes, oriundos da rede pública de ensino:

O mesmo não pode ser dito de algumas outras medidas previstas [pelo Inclups] que recaem flagrantemente no que se convencionou chamar eufemisticamente de “discriminação positiva”. Exemplos disso são propostas como a que determina concessão de bônus de 3% nas notas da primeira e da segunda fase do vestibular e da introdução do sistema de avaliação seriado apenas para estudantes da rede pública, entre outras. Alternativas como essa apenas buscam corrigir um erro – a desigualdade de condições entre alunos de baixa renda e os demais –, substituindo-o por outro (FOLHA DE SÃO PAULO, 2006, p. A2)

Poucos meses depois, o jornal flexibiliza sua posição como “contrária a qualquer tipo de discriminação”, passando a ver com bons olhos a modalidade de ação afirmativa que previa o acréscimo de pontos extras às notas dos vestibulandos carentes (bonificação)[12], mas permanece contrária à possibilidade dessa medida ser adotada para a população negra, como evidencia o editorial “Avanço afirmativo”, publicado em 14/08/2006:

Esta Folha, que tem sistematicamente recusado qualquer forma de discriminação positiva, passa a defender que processos como o que redundou na fórmula adotada pela Unicamp [bonificação nas notas] assumam a proa da discussão – desde que renunciem ao viés racial (FOLHA DE SÃO PAULO, 2006, p. A2).

Como foi possível observar, as mudanças de posição da Folha sobre o tema ocorrem concomitantemente à ampliação do número de universidades públicas que adotam as ações afirmativas por critérios raciais, como também à tramitação de projetos de lei que previam as mesmas medidas. Nesse sentido, a flexibilização da posição da Folha representa uma tentativa de influenciar a opinião pública diante dos avanços da utilização de políticas públicas por critérios raciais circunscrita no discurso dos movimentos negros calcado na negritude. Por isso o jornal passaria a defender as mesmas políticas, mas levando em consideração critérios sociais desconectados de aspectos raciais.

Destarte, a primeira vez que o jornal assume esta posição de maneira explicita é no editorial “Barreira na elite”, publicado em 21/11/2006:

O que necessita de reparos, entende esta Folha, é a terapia usualmente proposta para enfrentar esse problema: a reserva de vagas para negros em faculdades do Estado, estabelecida por lei federal. [...] A melhor resposta para o problema que vem sendo esboçado no país são as ações afirmativas com critério social, e não racial. Em vez de discriminar pela cor da pele, a seleção dos candidatos ao benefício deveria mirar os mais pobres – que incluem brasileiros de todas as cores (FOLHA DE SÃO PAULO, 2006, p. A2).

A partir deste momento, a Folha mantém sua posição de concordância perante às ações afirmativas por critérios sociais, como demonstram os editoriais, “Cotas de imperfeição”, de 25/11/2008 (1), e “Missão superior”, de 31/07/2012 (2):

O senado tem a responsabilidade de corrigir distorções importantes que constam do projeto de lei nº 73/1999, sobre a reserva de vagas em universidades federais, aprovado na Câmara, votado às pressas no Dia da Consciência Negra. O mérito do diploma é não se deixar aprisionar pelo prisma racial. Reserva 50% das vagas a alunos que tenham feito todo o estudo em escola pública. [...] O critério é um modo inteligente de favorecer os estratos mais pobres da população (FOLHA DE SÃO PAULO, 2008, p. A2).

O problema não é o recurso a cotas, que, usadas com parcimônia, podem ser instrumento legítimo de inclusão social na universidade (a Folha defende apenas o critério socioeconômico e recusa o componente racial) (FOLHA DE SÃO PAULO, 2012, p. A2).

O jornal permanece avesso à proposta de que estes mecanismos sejam decretados por meio de lei federal e defende que cada universidade pública defina de maneira autônoma a melhor forma de aplicação de políticas afirmativas por critérios sociais, isto é, defende o princípio da autonomia universitária. Isto é, de maneira estratégica, o jornal constrói um discurso baseado na discriminação positiva por critérios sociais que ao ser implantado por universidades em decorrência de autonomia, competiria com a implementação das ações afirmativas por critérios raciais já em curso.

É interessante percebermos que a Folha flexibiliza sua posição, passando a defender as ações afirmativas por critérios sociais, contudo, mantem sua oposição às ações afirmativas centradas em critérios raciais, mesmo reconhecendo as desigualdades raciais existentes na contemporaneidade brasileira. No movimento argumentativo desenvolvido pelo jornal faz-se importante destacar que o aceite à adoção de critérios sociais não tenciona a mitologia interpretativa da miscigenação racial a qual a Folha mante-se alinhada e, portanto, excludente da compreensão acerca da presença estrutural de aspectos racializados na distribuição de recursos materiais e simbólicos entre nós. A ótica da miscigenação racial aparece em vários editoriais, por exemplo, quando compara a formação nacional brasileira com a de outros países que passaram por processos de segregação racial:

[Ações afirmativas] são políticas corretivas que podem fazer sentido em países onde não houve miscigenação e as etnias se mantêm segregadas, preservando sua identidade aparente. Não é o caso do Brasil, cuja característica nacional foi a miscigenação maciça, seguramente a maior do planeta. Aqui é duvidosa, quando não impraticável, qualquer tentativa de estabelecer padrões de “pureza” racial (FOLHA DE SÃO PAULO. Cotas raciais, um erro. São Paulo, p. A2. 27 abr. 2012)

Como é evidenciado, o conceito de miscigenação racial empregado pela Folha carrega em si uma dupla compreensão, biológica e cultural, orientada pela ideia de que no Brasil o intercurso reprodutivo entre negros e brancos promoveu o desenvolvimento de uma nova raça com uma cultura e fisionomia especificamente brasileira.

Além de demonstrar a miscigenação como uma particularidade na formação nacional brasileira, cujo processo produziu a ausência de segregação racial no presente, outro ponto que nos chama atenção nesta afirmativa é que o jornal aceita que sejam empregadas políticas de discriminação positiva por critérios raciais em sociedades que sofreram segregação racial e não passaram por processo de miscigenação, como é o caso dos EUA. Ou seja, a Folha compreende que países, os quais sofreram segregação racial, façam uso de políticas de compensação para corrigir as assimetrias raciais mantidas até o presente.

Contudo, de forma ambígua, ao mesmo tempo em que o jornal afirma ser o Brasil um país miscigenado, ele reconhece a existência de racismo e de discriminação racial na contemporaneidade brasileira como fruto de um processo histórico de exclusão da população negra, desde a Abolição, que se perpetua até o presente. Importante ressaltar que esta justificativa sobre o fenômeno é a mesma utilizada pelos defensores das ações afirmativas por critérios raciais baseada na ótica da reparação histórica, como pode ser visto no editorial publicado em 05/07/2006, intitulado “Discriminação oficial”:

Os argumentos são conhecidos. O Brasil é um país fraturado por um processo colonizador assentado sobre a escravidão. Os efeitos permaneceram após a abolição e em parte se traduzem nas ínfimas taxas de acesso dos negros aos ensinos superiores e aos postos valorizados no mercado de trabalho. Estabelecer critérios de raça para preenchimento de vagas nas universidades e nas empresas torna-se, como corolário, um passo decisivo na tentativa de corrigir distorções históricas.

Em linhas sumárias, é nesses termos que os defensores das políticas de cotas costumam se manifestar. E não se pode dizer que o diagnóstico seja impreciso. Segundo dados reunidos pelo Ipea em 2001, por quatro gerações em seguida, negros e pardos têm sido prejudicados no acesso à escola, salário, saúde e emprego (FOLHA DE SÃO PAULO, 2006, p. A2).

O entendimento mais plausível para essa conjunção argumentativa, que, a princípio, aparenta ser paradoxal, é pressupor que o jornal compreende a miscigenação como um processo histórico contínuo rumo ao futuro, representado pela superação do conceito de raça, e o estabelecimento da constituição de uma identidade brasileira homogênea. Em outras palavras, se a democracia racial não é uma realidade experimentada na contemporaneidade brasileira, como demonstram as pesquisas estatísticas vinculadas pelos editoriais, nada impede que no decorrer do processo de miscigenação ela possa ser alcançada no futuro, porém, é importante ponderarmos que, em experiências históricas pretéritas e no tempo presente, e não no terreno das idealizações do devir, miscigenação racial não se converteu na superação do racialismo, assim como uma compreensão não-hierárquica da miscigenação.

A rejeição da Folha em aceitar a utilização de critérios raciais não se estabelece a partir da negação do racismo e da desigualdade racial no presente, mas sim pela crença de que intensificar os sentidos da história do Brasil baseados na miscigenação representa o caminho mais adequado para a consolidação da democracia racial, ou a superação do conceito de raça no devir, a presumida redenção de um ponto futuro. Argumentando desta forma, o jornal compreende como retrocessos as políticas públicas voltadas para o fortalecimento do conceito de raça/negritude, como o Estatuto da Igualdade Racial[13], o qual trazia em seu texto original a necessidade de oficialização da declaração racial de todos os brasileiros, e também as ações afirmativas por critérios raciais para o acesso às universidades. Esse sentido de “processo” ou “movimento”, rumo à defendida democracia racial pode ser evidenciada no editorial “Igualdade distante”, publicado em 23/11/2008: (Error 34: La referencia debe estar ligada) (Error 35: El tipo de referencia es un elemento obligatorio) (Error 36: No existe una URL relacionada)

Menos do que discutir se “existe ou não racismo” no país, trata-se de enfrentar as várias faces da desigualdade social. O que não pressupõe, vale lembrar, políticas de cotas compensatórias, afirmações artificiais de “negritude” e divisões identitárias radicais numa sociedade que cada vez mais se vê como mestiça. O caminho é a adoção de políticas universais em prol de uma verdadeira igualdade de oportunidades, que não discriminem ninguém pela cor que tenha – ou que deixe de ter (FOLHA DE SÃO PAULO, 2008, p. A2).

Dessa forma, para a fundamentação deste “projeto nacional”, a Folha utiliza dois argumentos centrais. Em ambos os casos, sua intenção é demonstrar como o Brasil contemporâneo estaria se afastando de uma realidade passada, na qual prevalecia como regra institucional a segregação racial, ou seja, o período escravista. O primeiro argumento diz respeito ao fato da ciência comprovar que não existem divisões raciais entre os seres humanos. Ao se basear na ciência, o jornal tenta demonstrar o quão ultrapassado ou retrógrado é a oficialização de critérios raciais pelo Estado como critério de aplicação de políticas públicas. O segundo se refere à argumentação de que a miscigenação racial brasileira é tão intensa que é impossível definir quem é negro no Brasil.

A partir dessas afirmativas, o jornal passa a articular o projeto de futuro baseado na superação das raças por meio da miscigenação e as políticas compensatórias. Como já visto, a Folha não vê como problemática a utilização de discriminação positiva, como exemplificado no caso dos EUA. Portanto, no caso brasileiro, no entendimento do jornal, em decorrência da intensa miscigenação pela qual o país passou, e vem passando, a discriminação positiva baseada na raça perde sua potência, já que, independentemente da cor dos indivíduos, a grande vítima da história brasileira não são os negros, mas sim os pobres. Neste sentido, observa-se a compreensão da pobreza desarticulada de aspectos raciais, regionais, de gênero, etc. A pobreza é entendida de forma absoluta no que tange às suas intersecções com outros elementos da realidade brasileira.

Por conseguinte, o jornal defende a diluição do conceito de raça ao plano das desigualdades social e argumenta que a aplicação de estratégias de combate à desigualdade social são o bastante para reverter os altos índices de desigualdade racial, tendo em vista que as pesquisas estatísticas vinham demonstrando que os negros ocupam as camadas socioeconômicas mais baixas na hierarquia social brasileira. Com isso, seria possível resolver o problema da desigualdade racial, sem a necessidade da valorização do conceito de raça, como demonstra o editorial de 14/05/2008:

É possível, entretanto, evitar essas armadilhas teóricas e práticas sem renunciar a medidas anti-racistas. Um dos efeitos do racismo é que os grupos discriminados acabam perenizando-se nos estratos de baixa renda. Uma política que favoreça pessoas mais pobres automaticamente contemplará negros, índios e outras minorias sem o risco de racializar as relações sociais (FOLHA DE SÃO PAULO, 2008, p. A2).

Nesse sentido, o jornal procura demonstrar que, em decorrência da miscigenação em curso, as políticas de compensação focadas no conceito de raça não devem ser aplicadas, pois trazem para a equação racial brasileira um aspecto de segregação, sendo mais interessante o combate às desigualdades sociais. A fim de fortalecer essa perspectiva, a Folha apresenta no editorial de 16/04/2005 uma interpretação da história da escravidão que evidencia seu viés econômico e que tem por objetivo enfraquecer a conexão direta entre o trauma da escravidão e a desigualdade racial latente, argumentando que os maiores efeitos históricos da escravidão são seus entraves para o pleno desenvolvimento do capitalismo e o aumento da desigualdade social em geral. Além disso a interpretação trazida procura aliviar a responsabilidade do Estado brasileiro em lidar com traumas histórico ligados à história dos negros, dividindo-a entre diferentes agentes, incluindo os reinos africanos. Ou seja, procura desestimular a relação entre ações compensatórias e desigualdade racial:

Nunca é demais lembrar o que representou a nódoa da escravidão. Várias dezenas de milhões de africanos foram reduzidos à condição de coisa para servir aos interesses econômicos de uma pequena elite. Milhões deles morreram nos abjetos porões dos navios negreiros e depois da chegada às Américas. O Brasil assume seu quinhão de culpa nessa ignomínia – a qual, diga-se, só teve a duração e a extensão conhecidas porque contou com uma rede de interesses estruturada em três continentes. Entre os que mais lucraram com o comércio escravista estão os mercadores e a coroa portugueses, senhores-de-engenho, mineradoras e cafeicultores brasileiros e também potentados africanos que arrebanhavam conterrâneos e os vendiam como escravos. [...] Paradoxalmente, embora o Estado brasileiro tenha acatado e favorecido a escravidão e as contribuições dos africanos tenham sido decisivas para formar nossa rica tradição cultural, o país foi num certo sentido também refém dela. Vários estudos vêem a manutenção da escravidão até tempos tardios como fator decisivo pelo atraso na gestação de um mercado de trabalho que teria sido importante para o surgimento de um capitalismo mais desenvolvido e de uma sociedade menos desigual (FOLHA DE SÃO PAULO, 2005, p. A2).

Ratificando a afirmativa anterior, observamos no editorial de 28/11/2012 como o jornal articula compensação e justiça, desde que ela seja atrelada à questão social e, portanto, compatível com a história do Brasil e com os efeitos da miscigenação:

O fato de que a lei se baseie no louvável propósito de corrigir assimetrias históricas não basta para tornar menos equivocados alguns de seus aspectos. O principal erro, como esta Folha já argumentou, reside na eleição do critério racial para discriminar os beneficiados. Não há dúvidas de que os efeitos perniciosos da escravidão de africanos e índios ainda deixam marcas na sociedade brasileira. Mas também é evidente que, num país em que se verificou um processo de miscigenação maciça, fica difícil, senão impossível, estabelecer padrões de “pureza racial” – conceito que é, por si só, um logro. No Brasil, a disparidade étnica dissolveu-se e confundiu-se com a iniquidade socioeconômica. Faz sentido, portanto, que eventuais políticas compensatórias na educação privilegiem critérios de renda ou formação em escola pública, cuja qualidade, aliás, deveria ser a primeira preocupação (FOLHA DE SÃO PAULO, 2012, p. A2).

No momento em que o jornal passa a aceitar as políticas de discriminação positiva por critérios sociais, ele passa também a aceitar que o Estado deve se responsabilizar pelas injustiças históricas e agir ativamente no combate de sua perpetuação, por meio de políticas públicas. Contudo, a Folha procura se distanciar de uma interpretação histórica calcada no conceito de raça evocada pelo fortalecimento do discurso da negritude, apresentando esta perspectiva como incompatível com o desenvolvimento histórico brasileiro, no qual o fenômeno da miscigenação racial tem produzido a diluição do conceito de raça, redirecionando as fraturas históricas da escravidão e do pós-Abolição ao campo das desigualdades sociais. Portanto, para o jornal, seria mais adequado, diante de nosso contexto atual, a utilização de políticas universalistas de combate à pobreza mescladas com políticas de ações afirmativas por critérios sociais. Com isso, não seria necessário abrir mão da valorização da identidade brasileira como mestiça rumo à democracia racial, em curso pelo processo de miscigenação. Acredito serem esses os motivos que levam a Folha a se posicionar contrariamente à adoção de ações afirmativas por critérios raciais, pois a mesma compreende que qualquer estímulo ao desenvolvimento da identidade negra, engajada na compensação histórica, coloca sob ameaça o curso natural da história brasileira rumo à superação da desigualdade racial por meio da miscigenação. Contudo, a retórica da miscigenação esconde o fantasma do branqueamento. Diz-se genericamente, “somos todos mestiços” para reafirmar que não somos negros nem indígenas, conseguindo com isso, mascarar os privilégios brancos.

Em vista disso, podemos inferir que o jornal lança mão da interpretação da história racial brasileira calcada no mito da miscigenação, apresentando estratégias de combate à desigualdade racial que não pressupõem a valorização da cultura e da identidade negra, tais como as políticas universais e a discriminação positiva por critérios sociais. Assim, desencorajam qualquer tipo de mobilização política baseada no conceito de raça.

Sobre os aspectos temporal e histórico, a Folha estabelece em sua argumentação uma cisão entre passado, presente e futuro, ao considerar a história do Brasil como um constante processo de miscigenação biológica e identitária rumo à democracia racial. Ante esta interpretação, a Abolição é representada como um evento limítrofe, separando dois sistemas de organização sociais distintos, um segregacionista e o outro não segregacionista, ou republicano, mas em ambos a miscigenação aparece como um elemento comum aos dois sistemas. Neste sentido, para o periódico, a miscigenação representa o elemento de continuidade no decorrer da história brasileira, produzindo um efeito de continuidade histórica. Portanto, para a Folha de São Paulo, intensificar a miscigenação, desprezando a valorização do conceito de raça, significa acelerar o processo histórico de modernização próprio à história nacional brasileira, alcançando por fim, na imprecisão de um ponto futuro, a democracia racial.

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Notas

[2] Após a independência, em 1822, foi estabelecido certo consenso com relação à compreensão do mito fundador brasileiro baseado na união das três raças (SCHWARCZ, 2012; 2019).
[3] Autores como Sílvio Romero (1851-1914), João Batista Lacerda (1846-1909) e Renato Kehl (1889-1974), acreditando na superioridade da raça branca a partir de teorias racialistas, como o darwinismo social, defendiam a imigração de europeus para o Brasil com o intuito de promover o embranquecimento biológico da sociedade brasileira. Ou seja, se a raça branca era superior, no intercurso reprodutivo, ela haveria de suplantar as características negras e indígenas presentes no país (MUNANGA, 1999).
[4] Num primeiro momento, os movimentos sociais negros brasileiros não questionavam a interpretação calcada no mito da miscigenação e da democracia racial. Para entidades como a Frente Negra Brasileira e a União Nacional dos Homens de Cor, esses elementos deveriam ser intensificados para que o Brasil alcance no futuro a igualdade racial. Neste sentido, limitavam-se a denunciar casos de discriminação racial que ocorriam no presente e prover recursos materiais, empregos, educação e alimentação para as populações negras brasileiras (GUIMARÃES, 2001, p. 4).
[5] Assim como na ditadura do Estado Novo da década de 1930, a ditadura militar também intensifica a interpretação brasileira baseada no mito da miscigenação e da democracia racial (SANTOS, 2007, p. 116).
[6] O conceito de negritude é utilizado por intelectuais como Franz Fanon, Aimé Césaire e Léopold Senghor, para a definição de uma perspectiva de interpretação dos fenômenos baseado no olhar negro, tendo em vista que até então qualquer enunciado só seria passível de interpretação a partir do olhar branco, já que este representava o universal (MBEMBE, 2014). Neste sentido, buscam positivar a diferença entre brancos e negros a partir da valorização das raízes culturais africanas, compreendida como o berço da civilização negra.
[7] O dia 20 de novembro como Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra só será instituído oficialmente em âmbito federal no governo de Dilma Rousseff pela lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011.
[8] Segundo Andrews, “as organizações negras no Rio de Janeiro e em Salvador formaram uma frente unida para boicotar quaisquer festividades do dia 13 de maio e, em vez disso, organizaram passeatas antes desse dia em oposição ao evento. Em Salvador, a pressão política dos blocos de Carnaval foi suficientemente forte para convencer tanto a Prefeitura quanto o Governo do Estado a não realizarem nenhuma atividade no dia 13 de maio” (ANDREWS, 1998 p. 342-343).
[9] O jornal O Estado de São Paulo comemorou o dia com o suplemento especial Abolição: Cem Anos de Liberdade, com artigos escritos por historiadores que se concentram inteiramente na escravidão e na luta pela abolição (ANDREWS, 1998).
[10] "Ao contrário de qualquer comemoração anterior da Abolição, o Centenário teve um caráter nacional com uma preocupação explícita com as desigualdades sociais no Brasil. Mesmo assim, ficou fora [...] da maioria dos eventos ligados ao Centenário a discussão do preconceito racial como um processo permanente de estruturação das desigualdades raciais" (HANCHARD, 2001, p. 172).
[11] Segundo o autor, a maior concentração das publicações na cidade do Rio de Janeiro pode estar ligada ao fato da sede do MNU estar instalada na cidade e contar com o “SOS racismo” canal telefônico para a denúncia de casos de racismo e discriminação racial.
[12] Vale salientar que, a partir de 1978, o modelo de ação afirmativa baseado na bonificação substitui o de reserva de vagas nos EUA, passando a ser a modalidade de ação afirmativa mais utilizada pelas universidades norte-americanas (DAFLON; FERES; CAMPOS, 2013).
[13] O Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do senador Paulo Paim (PT/RS), em sua versão original (PLS nº 213/2003) obrigava o Estado brasileiro a valorizar a cultura e a história afro-brasileira, reservar vagas para negros em vários setores da sociedade brasileira, como nas universidades, no funcionalismo público e no mercado de trabalho, e demandava a declaração racial de todos os brasileiros. Após sete anos de tramitação, o Estatuto foi aprovado em uma versão mais singela, no ano de 2010.

Autor notes

i Graduado e Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). E-mail: guilherme.oliva.paula@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0499-3500.
ii Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto do Departamento de História e professor do Programa de Pós-Graduação em História, ambos da UFOP. E-mail: luciano.roza@ufop.edu.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3505-2607.

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