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Recepção: 08 Março 2022
Aprovação: 11 Maio 2022
Resumo: O planejamento urbano é crucial no enfrentamento das mudanças climáticas, especialmente no nível local, devido a fatores-chave como a sua capacidade intersetorial com outras agendas que são fundamentais no enfrentamento desse problema (como a gestão de riscos). Como principal política pública local de planejamento urbano, o plano diretor municipal é um objeto de estudo essencial para observar como as cidades e seus governos estão incorporando/efetivando a questão climática nas agendas governamentais locais. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é analisar como políticas e iniciativas para combater as mudanças climáticas são incorporadas no planejamento urbano de Natal. Para tanto, utiliza-se da pesquisa qualitativa, fazendo uso de levantamento bibliográfico, pesquisa documental, observação participante e análise de conteúdo como procedimentos metodológicos. Os resultados deste trabalho indicam que o plano diretor de Natal de 2007 pouco considerou, ou desconsiderou, alinhamentos e políticas voltadas às mudanças climáticas. Cenário este que continuou durante o seu processo de revisão e se efetivou em março de 2022 quando o projeto de lei do novo plano diretor da cidade foi sancionado pela Prefeitura.
Palavras-chave: cidades, governos locais, adaptação, mitigação, plano diretor.
Abstract: Urban planning is crucial in tackling climate change, especially at the local level, due to key factors such as its intersectoral capacity with other agendas that are fundamental in tackling this problem (such as risk management). As the main local public policy for urban planning, the municipal master plan is an essential object of study to observe how cities and their governments are incorporating/effectively implementing the climate issue in local government agendas. In this sense, the objective of this paper is to analyze how policies and initiatives to combat climate change are incorporated into the urban planning of Natal. For that, qualitative research is used, making use of bibliographic research, documental research, participant observation and content analysis as methodological procedures. The results of this work indicate that the 2007 Natal master plan considered little, or disregarded, alignments and policies aimed at climate change. This scenario continued during its review process and took effect in March 2022 when the new city master plan bill was sanctioned by the City Hall.
Keywords: cities, local governments, adaptation, mitigation, master plan.
1. Introdução
As mudanças climáticas são um fenômeno natural devido às modificações na média e/ou na variabilidade das propriedades do clima num longo período de tempo (IPCC, 2013). Por outro lado, as mudanças climáticas também podem ser compreendidas como um fenômeno social em virtude da ação antropogênica que auxilia no processo de emissão de Gases do Efeito Estufa (GEE), que intensificam, por sua vez, tais mudanças no sistema climático.
Essas emissões são comumente geradas no contexto das áreas urbanas (Bai et al., 2018) através, por exemplo, do uso de transportes à base de combustíveis fósseis, como o petróleo. Com a maior parte da população mundial (aproximadamente 55%) já vivendo em áreas urbanas, inclusive com projeções que apontam para um aumento de aproximadamente 70% dessa concentração nesses espaços até 2050 (UNDESA, 2019), as cidades têm exercido um papel crucial na intensificação das mudanças climáticas, tornando-se, simultaneamente, altamente vulneráveis aos impactos de tais mudanças.
Dessa forma, as cidades contribuem e sofrem diretamente com as mudanças climáticas; mas cabe destacar que exercem também um protagonismo essencial no enfrentamento do problema a partir da criação e efetivação de soluções práticas de mitigação das emissões de GEE ou de adaptação aos impactos climáticos (Aylett, 2014; Leck e Roberts, 2015; Ryan, 2015). Internacionalmente, o papel das cidades na linha de frente contra as mudanças climáticas começou a ser destacado em 1987 com o Relatório Brundtland, passando a ganhar ainda mais evidência anos depois, em1992, por meio da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (mais conhecida como “Rio-92”), que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil, e tinha como princípio “pensar globalmente, agir localmente” (Barbi, 2014).
No Brasil, onde aproximadamente 80% da população já vive nas áreas urbanas (PNAD, 2015), os esforços nacionais para lidar com as mudanças climáticas, em especial nos campos do planejamento e da gestão, são lentos e incipientes (Sathler et al., 2019). Esse cenário é ainda mais crítico no que concerne ao planejamento urbanolocal, ainda que seja um setor no qual deveria estar diretamente alinhado à questão das mudanças climáticas devido a fatores, entre outros, como à sua capacidade de associação com outras pautas setoriais, como bem pontuam Teixeira e Pessoa (2021).
Sobre isso, destaca-se que, no país, o plano diretor municipal, regulamentado pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001) (Brasil, 2001), é a principal política pública local de desenvolvimento e planejamento do espaço urbano, podendo exercer função essencial frente às mudanças climáticas. Isso porque, através do plano diretor municipal, os formuladores de políticas públicas e os planejadores urbanos podem elaborar e implementar iniciativas direcionadas ao enfrentamento do desafio das mudanças climáticas e, consequentemente, promover benefícios à qualidade de vida das populações locais (Mauad, 2018).
Ao entender que, no Brasil, o plano diretor local pode exercer papel fundamental no contexto das mudanças climáticas, busca-se investigar o plano diretor de Natal, no qual seu projeto de lei foi sancionado em março de 2022 pela Prefeitura da cidade após os mais variados conflitos entre os representantes do governo municipal e a sociedade civil. É importante considerar que, de acordo com o Estatuto da Cidade, o plano diretor de uma cidade deve ser revisto, pelo menos, a cada 10 anos (Brasil, 2001). Nesse sentido, o objetivo deste artigo é analisar como políticas e iniciativas para combater as mudanças climáticas são incorporadas no planejamento urbano de Natal.
A partir de uma pesquisa com abordagem de natureza qualitativa, este artigo está estruturado em três momentos, além desta introdução. A seguir, detalha-se a metodologia adotada para realização e desenvolvimento da pesquisa. Posteriormente, tem-se a revisão da literatura e estrutura conceitual sobre cidades, planejamento urbano e mudanças climáticas. Em seguida, apresenta-se a análise e discussão dos resultados obtidos com a pesquisa. Para finalizar, conclui-se com as principais considerações finais sobre a análise em questão.
2. Metodologia
Para alcançar o objetivo proposto no momento introdutório, este artigo segue as orientações de uma pesquisa com abordagem qualitativa, utilizando-se de um estudo de caso de Natal (Figura 01), um lócus estratégico de investigação em função de ser uma área localizada em zona costeira. Marengo e Scarano (2016) apontam que cidades em zonas costeiras são mais susceptíveis à maior incidência de impactos climáticos, como eventos climáticos extremos (aumento do nível do mar, por exemplo).
Nesse sentido, busca-se realizar uma análise do plano diretor da cidade enquanto principal instrumento de planejamento urbano municipal, na perspectiva de observar se o referido plano incorpora ou não a questão das mudanças climáticas em seu texto. Essa análise está ancorada na metodologia desenvolvida por Lemos (2010), aplicada no âmbito do plano diretor municipal do Rio de Janeiro, e replicada por estudos como o de Espíndola e Ribeiro (2020) no contexto de outras capitais de estados do Brasil.
Em termos conceituais, a metodologia, inicialmente aplicada por Lemos (2010), consiste em analisar qualitativamente o plano diretor, verificando se o texto da referida política urbana apresenta alinhamentos com as mudanças climáticas a partir, por exemplo, da citação explícita do termo “mudanças climáticas” ou de questões relacionadas à temática (como mitigação, adaptação, e vulnerabilidades e riscos) em seus princípios, suas diretrizes, seus objetivos etc. (Espíndola e Ribeiro, 2020).
Para efetivar essa metodologia, realiza-se a pesquisa documental, a qual, neste artigo, acontece por meio da análise de dois documentos: o plano diretor de 2007 de Natal, regulamentado pela Lei Complementar nº 082, de 21 de junho de 2007; e a minuta final de revisão do referido plano, aprovada em março de 2020 em reunião do Conselho da Cidade do Natal (CONCIDADE) e publicada em junho do mesmo ano. A pesquisa documental é de suma importância para este estudo em razão de ser um instrumento de coleta de dados que permite compreender como o plano diretor de 2007 de Natal internaliza a questão das mudanças climáticas; assim como entender se, com a revisão de seu texto, tem procurado ou não avançar na incorporação do tema no âmbito do planejamento urbanomunicipal.
Outro instrumento de coleta de dados utilizado é a observação participante, pois se vê nele, no caso deste artigo, um meio importante de acompanhamento das discussões e dos debates sobre a incorporaçãoda temática das mudanças climáticas no âmbito do processo finalizado de revisão do plano diretor de Natal. Esse acompanhamento foi iniciado em 2018, através da participação e colaboração direta dos autores deste artigo com o subgrupo “Áreas de Risco”, do Grupo de Trabalho (GT) “de Áreas Especiais”, da revisão do plano diretor de Natal. Cabe destacar que esse acompanhamento mais direto se estendeu ao longo de 2019, continuando até meados de fevereiro de 2020. Atualmente, o acompanhamento acontece de maneira secundária a partir, por exemplo, de notícias jornalísticas sobre esse processo de revisão do plano diretor municipal.
Ademais, realiza-se também um levantamento bibliográfico sobre cidades, planejamento urbano e mudanças climáticas em bases de dados (como o Google Scholar e o Portal de Periódicos CAPES), utilizando-se, para isso, de palavras-chave como “cidades e mudanças climáticas” e “planejamento urbano e mudanças climáticas”. Esse levantamento subsidia a revisão da literatura e estrutura conceitual apresentada no tópico a seguir.
Os dados obtidos com a pesquisa documental, a observação participante e o levantamento bibliográfico são analisados a partir da técnica de análise de conteúdo (Bardin, 2011), aqui selecionada por se entender que é uma técnica de análise que tem ampla validação em pesquisas qualitativas (Mozzato e Grzybovski, 2011), como é o caso deste estudo. Esses dados são apresentados no tópico da análise e discussão dos resultados.
3. Revisão da literatura e estrutura conceitual
A literatura científica vem cada vez mais apresentando que as mudanças climáticas geram uma série de impactos às populações e ao meio ambiente no contexto das cidades (Bigio, 2003; Wilbanks et al., 2007; Wilby, 2007; Ribeiro, 2008; Martins e Ferreira, 2011; Ribeiro e Santos, 2016). Dentre esses impactos socioambientais, estão a formação de ilhas de calor urbano, a ocorrência de inundações, o aumento do nível do mar, a escassez de água e o aumento de doenças infecciosas. Para solucionar ou pelo menos atenuar esses efeitos, as cidades, por meio de seus governos, podem atuar no enfrentamento desses desafios através de duas perspectivas principais.
A primeira é a mitigação, compreendida neste artigo como o conjunto de iniciativas direcionado à redução ou eliminação das emissões de GEE (IPCC, 2007), com efeitos e benefícios, geralmente, em longo prazo e no nível global. Geralmente, a mitigação possui benefícios globalmente, reduzindo as emissões mundiais de GEE. Todavia, a mitigação desses gases também pode acontecer no âmbito local a partir de setores-chave relacionados ao consumo de energia (Bulkeley e Kern, 2006; Bizikova et al., 2010). Barbi (2014) assinala nesse sentido que, dentre esses setores, está o de desenvolvimento urbano, que envolve as estratégias de ordenamento e planejamento do espaço urbano, como o plano diretor municipal.
Outra perspectiva de abordagem de enfrentamento das mudanças climáticas é a adaptação, definida nesta discussão como o processo de ajustes a fim de antecipar os possíveis e potenciais impactos climáticos no nível local, de modo a reduzir as múltiplas vulnerabilidades a situações de riscos socioambientais (IPCC, 2007). Diferentemente do que comumente se observa com a mitigação, a adaptação apresenta efeitos e benefícios em curto prazo e no nível local.
Na esteira dessa discussão, Klug et al. (2016) apresentam que o reconhecimento do papel estratégico da questão urbana sobre as mudanças climáticas, seja numa perspectiva de mitigação ou de adaptação, étema de agendas internacionais, como uma publicação de 2011 desenvolvida pelo Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-HABITAT, 2011). Outras agendas globais que reafirmam essa importância são o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e, mais especificamente, o seu quinto relatório de avaliação (IPCC, 2014); a Agenda 2030 e, em especial, seus Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) 11 e 13 (ONU, 2015a); o Acordo de Paris (ONU, 2015b) e a Nova Agenda Urbana (ONU, 2017).
No Brasil, as iniciativas do governo federal voltadas a enfrentar as mudanças climáticas foram iniciadas, de modo mais específico, em 2009, por meio da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), definida pela Lei n 12.187, de 29 de dezembro, buscando oficializar o compromisso voluntário do país em reduzir as emissões de GEE junto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) (Brasil, 2009).
Nesse sentido, outra iniciativa foi a criação, em 2011, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN) (Klug et al., 2016), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e que visa, além de monitorar as ameaças naturais em áreas de riscos em cidades brasileiras susceptíveis a eventos adversos, promover pesquisas e inovações tecnológicas voltadas ao melhoramento do sistema de alertas antecipado (Brasil, 2016a). Ainda mais recente, em 2016, foi publicado o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), regulamentado pela Portaria nº 150, de 10 de maio, com o objetivo de criar uma gestão de riscos às mudanças climáticas, buscando reduzir a vulnerabilidade nacional a essas mudanças (Brasil, 2016b).
Em termos gerais, pontua-se que essas iniciativas são voltadas a dotar as cidades de capacidades de enfrentamento às mudanças climáticas (Klug et al., 2016), criando mecanismos de mitigação ou de adaptação. Assim como no âmbito internacional, as estratégias climáticas no Brasil são, geralmente, integradas a outras políticas públicas ou ações existentes, como o planejamento urbano, denominado na literatura como abordagem de integração (mainstreaming approach) (Uittenbroek et al., 2014). Estes autores ressaltam que a abordagem de integração é mais viável, uma vez que possibilita custos mais baixos ao passo que as iniciativas climáticas se associam a outras que já existem. Campos et al. (2015) acrescentam que essa integração também é vista como importante, pois contribui positivamente para a qualidade de vida das populações, especialmente daquelas em condições de vulnerabilidade social.
O planejamento urbano, ancorando-se em Teixeira e Pessoa (2021), pode ser compreendido nesta discussão como um mecanismo do governo local voltado à gestão, regulamentação e organização do espaço urbano. Acrescenta-se, ainda com base nos autores mencionados, que o planejamento urbano consiste em uma política pública importante no enfrentamento das mudanças climáticas, tendo em vista sua capacidade intersetorial de integrar e se associar com outros setores. A exemplo, pode-se citar os setores de gestão de riscos, meio ambiente e mobilidade urbana. Nessa ótica, Apollaro e Alvim (2017) inteiram que o planejamento urbano é um meio importante de indução de transformações sustentáveis nas cidades, “possibilitando que novas atitudes sejam incorporadas aos padrões de ocupação e utilização das cidades e, por consequência, promovendo alterações significativas no estilo de vida da população que auxiliam no enfrentamento dos impactos decorrentes” (p. 32) das mudanças climáticas.
É importante assinalar que, especificamente no Brasil, as legislações voltadas ao planejamento urbano são estabelecidas, aprovadas e implementadas localmente através do Estatuto da Cidade, que é regulamentado pela Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (Brasil, 2001). Exemplos dessas legislações são aquelas que definem o plano diretor municipal, que, por sua vez, pode exercer função essencial no enfrentamento das mudanças climáticas, em especial no âmbito local. Não obstante, as cidades brasileiras comumente não incorporam ou apresentam dificuldades de inserção da questão das mudanças climáticas nas políticas públicas ou ações de planejamento urbano local como os planos diretores locais (Espíndola e Ribeiro, 2020). A seguir, observa-se essa ausência ou essas dificuldades no contexto de uma cidade brasileira.
4. Análise e discussão dos resultados
O plano diretor de 2007 de Natal não considera direta ou indiretamente as mudanças climáticas em seus princípios, suas diretrizes e/ou seus objetivos, demonstrando, dessa forma, uma falta de preocupação do planejamento urbano local com as mudanças climáticas. Sobre isso, exemplifica-se que a única menção sobre o tema no texto do plano diretor de 2007 da cidade é em relação ao equilíbrio climático, quando se menciona, por exemplo, no artigo 21 que um dos objetivos das Áreas de Controle de Gabarito é “garantir [...] o equilíbrio climático da cidade” (Natal, 2007).
Essa característica do planejamento urbano de Natal vai ao encontro de outras realidades locais do Brasil à medida que, na maioria das cidades brasileiras, não há identificação de diretrizes e/ou objetivos, tampouco legislações específicas, voltados às mudanças climáticas no contexto dos planos diretores municipais. Esse aspecto pode ser corroborado nas análises de Sathler et al. (2019), e Espíndola e Ribeiro (2020), quando observam que a maior parte dos planos diretores das capitais dos estados brasileiros não apresenta alinhamentos com a questão das mudanças climáticas.
Atualmente, o plano diretor municipal de Natal teve seu projeto de lei aprovado pela Prefeitura da cidade em março deste ano. O que se observa com esse texto são divergências e retrocessos oriundos de interesses dos empresários do mercado imobiliário da cidade, os quais são favoráveis, por exemplo, à verticalização da orla. Esta verticalização é sinalizada pelos grupos de interesses, como os agentes da construção civil, “com base no argumento de que [...] é o símbolo de modernidade para a cidade” (Silva et al., 2021, p. 16). No entanto, pontua-se que a verticalização da orla pode promover (e provavelmente causará), dentre outros efeitos negativos, a formação de ilhas de calor urbano (Mendes et al., 2019).
Em relação às pressões do setor privado, estudos apontam que tais pressões são um dos muitos desafios e obstáculos encontrados pelas cidades para incorporar as mudanças climáticas em suas agendas governamentais e urbanas locais (Martins e Ferreira, 2010; Di Giulio et al., 2019; Teixeira et al., 2020a, 2020b), com reflexos diretos sobre a construção e efetivação de capacidade de resposta às mudanças climáticas.
Na cidade do Natal, os resultados do estudo desenvolvido por Lapola et al. (2019) apontam que a formação de ilhas de calor urbanoafeta, em especial, as áreas que são altamente vulneráveis, como bairros pobres das Regiões Administrativas Norte e Oeste (antigos espaços de ocupação irregular). Dentre as iniciativas voltadas à melhoria desse quadro, os autores recomendam que o incentivo à infraestrutura verde seja um dos caminhos possíveis, auxiliando no enfrentamento das mudanças climáticas e seus impactos no nível local. Contudo, Teixeira e Pessoa (2021) salientam que pouco se tem feito nesse sentido por parte da gestão urbana local à medida que, dentre as poucas iniciativas, tem-se uma legislação direcionada à recuperação e criação de novas áreas verdes na cidade, a Lei nº 5.915, de 07 de abril de 2009.
Aliado aos interesses de grupos específicos, outro grande desafio na perspectiva de incorporação (e possivelmente efetivação) das mudanças climáticas na agenda governamental e urbana de Natal está associado ao desinteresse político local pela temática. Essa realidade local (mas não exclusiva) pode ser corroborada em estudos como os de Teixeira et al. (2020a); e Teixeira e Pessoa (2021). Em um estudo empírico mais amplo, Di Giulio et al. (2019) destacam que tal realidade é vivenciada também por outras grandes cidades brasileiras, como Curitiba e São Paulo. Nessa perspectiva, pontua-se que a vontade política é fator-chave na implementação de políticas públicas ou ações direcionadas ao enfrentamento das mudanças climáticas, podendo facilitar ou dificultar tal processo (Martins e Ferreira, 2011; Aylett, 2015; Ryan, 2015).
Na esteira dessa discussão, outro desafiona perspectiva do plano diretor de Natal e, portanto, no planejamento urbano local está relacionado com a replicação de outras políticas públicas existentes, sejam elas nacionais ou locais. Por exemplo, os atores institucionais envolvidos com o subgrupo “Áreas de Risco” buscavam e ainda buscam incorporar a questão das mudanças climáticas a partir da replicação de princípios, diretrizes, objetivos etc. de outras políticas públicas que já existem, como é o caso da Política de Mudança do Clima no Município de São Paulo, regulamentada pela Lei nº 14.933, de 05 de junho de 2009 (São Paulo, 2009). Esse aspecto foi justificado pelos atores institucionais que estavam presentes nas reuniões do subgruposeguindo o raciocínio de que São Paulo é uma das poucas cidades do Brasil em incorporar questões diretamente às mudanças climáticas em seu plano diretor local.
A respeito disso, critica-se a replicação de políticas públicas já existentes (ainda que locais), uma vez que pensar em políticas públicas ou ações para as mudanças climáticas requer pensar em aspectos contextuais e particulares locais, como o nível de vulnerabilidade social às mudanças climáticas. Por exemplo, Natal e São Paulo são cidades com níveis diferentes de vulnerabilidade sócio-climática (a primeira é altamente vulnerável aos efeitos das mudanças climáticas, enquanto que a segunda apresenta um nível médio de vulnerabilidade nessa perspectiva), segundo dados do Índice de Vulnerabilidade Sócio-Climática (IVSC) (Darela Filho et al., 2016). Sendo assim, salienta-se sobre a importância de elaborar políticas públicas de mudanças climáticas considerando a realidade local e seus aspectos contextuais.
Posto isso, pontua-se sobre a importância e pertinência da participação de outros setores da sociedade nos processos de tomada de decisões políticas relacionados às mudanças climáticas. Embora o governotenha papel central na promoção e efetivação de respostas às mudanças climáticas (Aylett, 2014; Ryan, 2015; Di Giulio et al., 2017), outros segmentos, como universidades, empresas e sociedade civil, também possuem responsabilidades sobre o enfrentamento desse desafio, contribuindo para uma governança climática nas cidades de forma efetiva (Almeida et al., 2013; Aylett, 2014; Leck e Roberts, 2015; Romero-Lankao e Hardoy, 2015; Sathler et al., 2019).
Ainda assim, a efetivação dessa governança é um desafio, como acontece na cidade do Natal, que não apresenta uma governança climática efetiva em razão, entre outros fatores, da fraca rede de comunicação local entre esses setores, em especial, entre o poder público e a sociedade civil, corroborando o que já pontuamoutros estudos sobre cidades e mudanças climáticas no contexto do Brasil (Di Giulio et al., 2019; Teixeira et al., 2020a, 2020b; Teixeira e Pessoa, 2021). Isso pode ocorrer em função, entre outros aspectos, da resistência dos gestores e técnicos municipais à opinião, por exemplo, dos representantes das universidades.
Sobre essa relação entre ciência e política, é importante pontuar que, no caso de Natal, háum baixo alinhamento dos atores institucionais ao conhecimento científico proveniente dos pesquisadores/cientistasque participam junto ao subgrupo, contribuindocomo ceticismo que é estimulado pela percepção de distanciamento das evidências científicas em relação aos problemas enfrentados no cotidiano. Essa questão é trabalhada, por exemplo, em obras de Giddens (2001, 2010), quando abordam sobre esse ceticismo generalizado na modernidade.
Os desafios e obstáculos da incorporação da questão das mudanças climáticas no planejamento urbano de Natal, mesmo após processo de revisão de seu plano diretor local, ainda são muitos. Entretanto, de acordo a minuta publicada em junho de 2020, as perspectivas para inserção do tema das mudanças climáticas no plano diretor em questão são algumas, cabendo destacar que muito em função da participação de pesquisadores, inclusive de autores deste artigo, nos subgrupos dos GTs da revisão do plano.
Um primeiro exemplo está na proposta de criação do Sistema Municipal de Redução de Riscos, Proteção e Defesa Civil por parte do subgrupo “Áreas de Risco”, visando integrar a gestão de redução de riscos no planejamento urbano da cidade (Natal, 2020). Nessa ótica, tem-se a proposta de elaboração da Política Municipal de Redução de Riscos, Proteção e Defesa Civil que, na perspectiva climática, visa “incorporar ações de planejamento relativas a riscos climáticos e meteorológicos” (Natal, 2020, p. 71). A proposição do Plano Municipal de Redução de Riscos é outro exemplo de tentativa de efetivação de uma gestão de riscos em Natal, visando atualizar o Plano já existente e que está desatualizado desde 2008, devendo ser elaborado em articulação com outros planos municipais, inclusive de mudanças climáticas. A elaboração de políticas públicas ou ações climáticas em associação com outras já existentes, sobretudo de caráter urbano, é comum, conforme apresentado no tópico anterior de revisão da literatura e estrutura conceitual.
Na proposta do Plano Municipal de Redução de Riscos de Natal, observam-se, de certo modo, alterações no plano diretor municipalvoltadas à incorporação de medidas de mitigação e de adaptação. Em relação à mitigação, não se constata nenhum alinhamento com a redução das emissões de GEE. Quanto à adaptação, verificam-se algumas perspectivas de incorporação dessa forma de enfrentar as mudanças climáticas no plano diretor de Natal, como por exemplo, a compatibilização do “desenvolvimento econômico-social com a proteção do sistema climático e promover a implementação de medidas de adaptação às mudanças do clima” (Natal, 2020, p. 26). Isso significa uma possibilidade de avanço, pelo menos em tese, da incorporação da adaptação climática na política de planejamento urbano municipal de Natal.
Na minuta de revisão do plano diretor em questão, propõe-se ainda a inserção dos ODS e da Nova Agenda Urbana no planejamento urbano municipal a partir da sua vinculação com os objetivos do Sistema de Espaços Livres e Áreas Verdes do Município de Natal (SELAV) (Natal, 2020). Ainda assim, a referida minuta se mostra, em certa medida, frágil, pois não traz maiores detalhamentos da relação dos ODS e da Agenda 2030 com o planejamento urbano local, não mencionando, por exemplo, os ODS 11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis) e 13 (Ação Contra a Mudança Global do Clima), que são, respectivamente, voltados às discussões sobre planejamento urbano e mudanças climáticas. No âmbito de agendas globais de mudanças climáticas, como é o caso da Agenda 2030 e seus ODS, as cidades passaram a ser globalmente reconhecidas como impulsionadoras de iniciativas capazes de promover transformações significativas, principalmente no que tange à capacidade de responder aos desafios impostos localmente pelas mudanças climáticas (Mauad, 2018).
Muito embora haja algumas perspectivas de incorporação das mudanças climáticas no plano diretor municipal de Natal, pontua-se que a efetivação dessas propostas é muito provável que não ocorra, continuando a configurar-se em um desafio, na medida em que a cidade do Natal, dentre outros fatores, não apresenta um histórico de alinhamento das questões ambientais e, sobretudo, climáticas ao seu planejamento urbano local.
Este cenário vivenciado por Natal quanto à internalização das mudanças climáticas no planejamento urbano local é, talvez, reflexo de uma agenda governamental nacional que pouco tem se preocupado nos últimos anos com as questões ambientais como um todo, seja elaborando novas políticas públicas ambientais ou implementando as já existentes. Nessa ótica, Moura (2016) assinala que alguns desafios para a política ambiental brasileira estão relacionados, por exemplo, à falta de investimento em planejamento, avaliação e accountability na área; à fragmentação da estrutura de governança ambiental e à estrutura federativa do país.
Esses desafios são fortemente ampliados com o governo federal atual, que tem promovido cada vez mais o desmonte das políticas públicas ambientais e climáticas nacionais, com reverberações diretas e negativas sobre os mais diversos sistemas (sociais, ambientais, naturais etc.) nas diferentes escalas espaciais (municipal, estadual, regional, nacional e global). Desmonte este já esperado diante dos discursos antiambientalistas do presidente atual do país durante o período eleitoral de 2018. Esta questão é reforçada em estudos como o de Scantimburgo (2018), que já sinalizava para a ideia de fragilização das questões ambientais por parte do presidente Jair Bolsonaro, o que poderia trazer (e estar trazendo) diversos efeitos negativos em diferentes perspectivas para o país, como o ambiente, o social e o econômico.
Em análise publicada em agosto de 2021 pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN) sobre as propostas de alteração do plano diretor de Natal, a referida instância refletiu sobre os problemas locais que serão ainda maiores em caso de implementação das modificações que estão sendo propostas para a política de planejamento urbano municipal (MPRN, 2021). Dentre esses desafios, estão os relacionados às mudanças climáticas locais, como o desconforto ambiental urbano (MPRN, 2021), resultado de processos como a verticalização da orla. A seguir, são ressaltadas algumas questões analisadas e discutidas no transcorrer deste tópico.
5. Conclusões
A integração da questão das mudanças climáticas às políticas públicas ou ações de planejamento urbano local ainda é um grande desafio para a gestão das cidades, em especial no Brasil, tendo em vista fatores-chave como a falta de capacidade de assimilação por parte dos atores institucionais da função crucial que o planejamento urbano municipal exerce sobre o enfrentamento das mudanças climáticas e seus efeitos impostos no âmbito local.
Empiricamente, esse desafio é observado no contexto da cidade do Natal, pois, a partir da análise e discussão dos resultados, pôde-se constatar que o plano diretor de 2007 da cidade não incorpora as mudanças climáticas em seu texto à medida que não apresenta, por exemplo, princípios, diretrizes e/ou objetivos voltados para o tema. Aprovado em março de 2022, o novo plano diretor da cidade apresenta poucas perspectivas de inserção das mudanças climáticas no planejamento urbano local. Ainda assim, é importante enfatizar que a efetivação dessas perspectivas é complexa e um desafio devido a fatores como os interesses de grupos específicos (a exemplo, os empresários do mercado imobiliário).
Nesse sentido, afirma-se que este artigo consegue responder o objetivo proposto no momento introdutório ao passo que foi possível observar que a questão das mudanças climáticas é quase inexistente no âmbito do planejamento urbano de Natal, não havendo perspectivas de inserção e efetivação da temática no planejamento urbano local.
Assim sendo, no âmbito das Dimensões Humanas, Sociais e Políticas das Mudanças Climáticas, este artigo é de suma importância para o campo teórico-analítico do planejamento urbano em interface com as mudanças climáticas, corroborando outras pesquisas do campo de estudo, sejam elas teórico-conceituais ou empíricas, que abordam sobre a ausência de uma abordagem da questão climática no planejamento urbano das cidades. É nesse sentido que também se trata de um artigoimportante para a gestão pública local, por se tratar de uma análise que visa mostrar a pertinência da incorporação do tema das mudanças climáticas no planejamento urbano por parte da gestão urbana e suas instituições. Ademais, o presente estudo é de fundamental relevância social, uma vez que coloca em discussão e debate um desafio global e local, que tem consequências negativas sobre as populações.
Como perspectiva de estudos futuros, pretende-se dar continuidade a esta investigação num viés de compreensão de como a questão das mudanças climáticas está colocada no plano diretor municipal vigente (2022) de Natal, verificando se e como as perspectivas pensadas e apontadas neste artigo para as mudanças climáticas, sejam do ponto de vista da mitigação ou da adaptação, estão, de fato, sendo construídas e implementadas pela gestão urbana local, de modo a integrar a temática com as políticas públicas ou ações de planejamento urbano municipal ou até mesmo criar uma agenda governamental climática.
Agradecimentos
Os agradecimentos são, em especial, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro de toda pesquisa de dissertação de Mestrado do primeiro autor, que subsidiou as análises e discussões deste artigo.
Referências
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