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Recepção: 02 Março 2022
Aprovação: 04 Maio 2022
Resumo: O estudo teve como objetivo conhecer algumas tradições socioculturais das comunidades quilombolas e também conhecer e listar alimentos e remédios populares oriundos de animais com seus respectivos usos, na cozinha e em tratamentos de saúde. As comunidades pesquisadas estão localizadas na Serra do Espinhaço Meridional, em Diamantina (Minas Gerais, Brasil). A coleta de dados foi realizada por meio de dados antropológicos, observações, registros e caracterização dos recursos naturais e faunísticos com potencial alimentar e terapêutico, e também por meio de entrevistas, buscando identificar formas de utilização dos produtos locais. Evidenciamos fenômenos de ressignificação da natureza e interação socioambiental e cultural, expressas nas práticas tradicionais que caracterizam essas comunidades. Práticas essas que podem ser pensadas como técnicas num sentido mais alargado, como preconizado nos estudos de Milton Santos. As comunidades valoram a sua herança étnica e a memória coletiva do grupo, forjando assim uma tradição que incorpora inovações; embora apresentem dificuldades cotidianas derivadas do contraste entre o isolamento social no meio rural e ao mesmo tempo a presença de visitantes oriundos de grandes centros urbanos. Mostramos que as comunidades estudadas possuem uma cultura tradicional e popular onde expressam suas identidades étnico-culturais, de modo que as práticas/técnicas terapêuticas aqui apresentadas podem ser pensadas como patrimônio cultural imaterial, especialmente os saberes e práticas, que levam a elaborar a constituição do espaço que se pauta na relação natureza e sociedade.
Palavras-chave: Animais, comunidade tradicional, espaço geográfico, patrimônio cultural imaterial, zooterapia/saúde.
Abstract: The study aimed to know some sociocultural traditions of the quilombola communities and also to know and to list foods and remedies from animals with their respective uses in health treatments. The communities surveyed are located in Serra do Espinhaço Meridional, in Diamantina (Minas Gerais, Brazil). Data collection was carried out through anthropological data, observations, records and characterization of natural and faunal resources with therapeutic potential, and also through interviews, seeking to identify ways of using local products. We evidenced phenomena of resignification of nature and socio-environmental and cultural interaction, expressed in traditional practices that characterize these communities. These practices can be thought as techniques in a broader sense, as advocated in studies by Milton Santos. Communities are ethnically constituted maintaining the collective memory of the group, thus forging a tradition that incorporates innovations; although they present daily difficulties derived from the contrast between social isolation in rural areas and at the same time the presence of visitors from large urban areas. We show that the communities studied have a traditional and popular culture where they express their ethnic-cultural identities, so that the therapeutic practices/techniques presented here can be thought of as intangible cultural heritage, especially knowledge and practices, which leads to elaborating the constitution of space that is guided by the relationship between nature and society.
Keywords: Animals, traditional community, geographic space, intangible cultural heritage, zootherapy/health.
1. Introdução
O uso de animais na medicina popular é um fenômeno histórico e geograficamente distribuído, estudado sob diferentes abordagens: psicológica, etnobiológica, etnográfica, médica, etnofarmacológica e ecológica. Recentemente, com o avanço da medicina alopática, o termo zoofarmacologia tornou-se popular devido às importantes descobertas de novos potenciais fármacos e moléculas bioativas obtidas através do estudo de secreções e subprodutos animais como venenos de répteis, anfíbios e aracnídeos. Na herpetofauna brasileira (répteis), tanto a cascavel (Crotalus sp.) quanto a jararaca (Bothrops sp.) têm seus venenos investigados farmacologicamente. A partir da segunda serpente, foram patenteadas no exterior substâncias que compõem os conhecidos anti-hipertensivos comercializados em larga escala no Brasil. Segundo Costa-Neto (2004), o registro do uso medicinal de animais no Estado da Bahia oferece uma contribuição relevante para o fenômeno da zooterapia. A lista de doenças supostamente tratadas com medicamentos à base de produtos de origem animal e os depoimentos de seus usuários sobre sua eficácia permitem supor que substâncias de valor farmacológico, desconhecidas pela ciência ocidental, estejam realmente presentes.
Possivelmente, muitos produtos obtidos de animais e plantas foram incorporados à farmacopéia popular por acaso, devido à avaliação dos sintomas experimentados após o consumo, assim como muitos podem ter sido incluídos ou eliminados após sequências de tentativa e erro (Moura e Marques, 2008). Informações valiosas sobre corantes, óleos, inseticidas, essências naturais, medicamentos, alimentos, repelentes e preparações diversas são passadas de geração em geração nas comunidades, e muitas vezes não são registradas cientificamente por negligência ou desconhecimento do potencial de conhecimento, com foco na sustentabilidade das comunidades tradicionais (Costa-Neto, 2000;Costa-Neto, 2004).
A pesquisa realizada por Moura e Marques (2008), em uma comunidade afro descendente da aldeia de Remanso, município de Lençóis na Chapada Diamantina (Bahia, Brasil), aponta as gorduras como o principal medicamento obtido de animais utilizados como recursos. Entre outros, destacam-se as gorduras dos seguintes animais: traíra (Hoplias lacerdae) contra reumatismo e socó (Tigrisoma lineatun) contra bronquite e pneumonia.
Estudos e análises científicas são necessários para verificar o uso de tais práticas na medicina popular. Por exemplo, a descoberta dos ácidos graxos ômega 3 e ômega 6, essenciais para a saúde humana, que compõem os lipídios (gorduras) de certas espécies animais, confirma a importância da investigação das práticas zooterapêuticas. Além da gordura, são utilizadas outras partes e produtos como: cascos, peles, vísceras, espinha dorsal, chifres, peles, dentes, ninhos, fezes, leite e mel. O número de partes ou produtos obtidos de cada animal varia. Alguns animais, no entanto, são usados inteiros e podem ser assados, moídos, pulverizados e adicionados a chás ou misturados com alimentos.
Muitos compostos farmacêuticos puros conhecidos, usados em todas as partes do mundo, foram descobertos com a ajuda da prática da medicina tradicional. Embora as farmacopéias científicas e populares listem múltiplas zooterapêuticas (medicamentos preparados a partir de animais, suas partes, produtos ou subprodutos), o uso médico e etnomédico de animais permanecem um fenômeno semi-oculto na literatura científica, sendo em sua maioria omitido pelos informantes populares. Sabe-se, no entanto, que a porcentagem de fontes animais para obtenção de medicamentos essenciais é bastante significativa e não muito inferior à de fontes vegetais (Moura e Marques, 2008). A crença no potencial terapêutico de um animal se deve a uma variedade de fatores que vão desde o físico, como a avaliação dos sintomas vivenciados após o consumo, até o simbólico, como a associação da forma da fração animal utilizada, além da parte do corpo humano que requer cuidados. Esta pesquisa tem como objetivo explicitar as formas lógicas e técnicas do uso da zooterapia em comunidades quilombolas no Vale do Jequitinhonha em sua porção alta. Objetivamos também demonstrar como as técnicas e ações zootereapicas elaboradas de forma racional e intencional são constituidoras de espaços e lugares. Utilizamos da etnografia enquanto processo metodológico de coleta e análise de dados. Realizamos pesquisas de campo junto as comunidades e entrevistas com aqueles que conheciam das técnicas zooterápicas.
2. Comunidades tradicionais
As comunidades negras quilombolas, por expressarem modos de vida caracterizados por aspectos culturais próprios que sintetizam processos etnohistóricos, constituem um patrimônio cultural e formativo da nação brasileira. A palavra quilombo, ou 'calhambo', é de origem bantu e significa acampamento ou fortaleza; foi usado pelos portugueses para nomear os assentamentos construídos por escravos fugitivos. O termo também pode ser atribuído a casa ou abrigo. Durante os períodos colonial e imperial, vários quilombos ou comunidades negras se formaram com a fuga de escravos que se rebelaram contra a ordem escravista.
A população quilombola de Minas Gerais, distribuída em 435 comunidades (CEDEFES, 2008), é em grande parte oriunda do povo Bantu que habitava as regiões sul e sudeste do continente africano. Nas comunidades Ausente, no município de Serro, Mato do Tição, no município de Jabuticatubas, Quartel do Indaiá, no município de Diamantina, e Tabatinga, no município de Bom Despacho, foram encontradas raízes lingüísticas de origem bantu. Africanos de outras origens também foram trazidos para a região de Minas Gerais. Os Mina-Geges, do oeste e noroeste da África, eram dotados de maior capacidade de extração de minerais. Os Yorubas e os Haussás, da região Nagô, localizada no Norte, Noroeste e Nordeste da África, também estão presentes nos traços culturais de algumas comunidades quilombolas, principalmente nas áreas de fronteira norte e nordeste de Minas Gerais.
O Vale do Jequitinhonha é uma região hidrográfica com alta concentração de comunidades remanescentes de quilombos, a maioria localizada na sub-região do Médio Jequitinhonha, também em outras áreas. Na região do Alto Jequitinhonha, Serra do Espinhaço Meridional, predominam encostas com topos planos, popularmente conhecidos como mares de morros. Neles, é evidente a predominância de solos profundos, denominados latossolos - fundamentais para o processo de recarga de aqüíferos - e áreas côncavas, canalizadas, características de nascentes.
Os quilombolas podem ser considerados um dos grupos em situação de vulnerabilidade social e econômica do Brasil, uma minoria esquecida, que começa a ganhar espaço no cenário nacional nos últimos anos, por não ter acesso à maioria das políticas públicas e/ou sociais atuais no país, embora estejam garantidos na Constituição Federal brasileira (Brasil, 1988).
As comunidades quilombolas preservam sua relação com o meio ambiente de forma harmoniosa. A tradição de utilizar os recursos naturais para fins terapêuticos faz parte de sua cosmovisão. Esse quadro caracteriza a dialética atual desses grupos que precisam viver o tradicional, o cultural, para se identificar e marcar sua alteridade diante de outros atores. Muitas práticas culturais relacionadas à saúde em comunidades quilombolas estão sendo transformadas com a introdução de novos agentes exógenos à cultura tradicional. Esse fato contribui para descaracterizar a identidade cultural desses povos, além de ir contra as recomendações globais de valorização dos saberes tradicionais, principalmente as práticas curativas (CEDEFES, 2008).
A recomendação sobre a salvaguarda da cultura popular tradicional, apresentada na 25ª Conferência Geral da UNESCO (Paris, 1989), reforça a importância da cultura tradicional e popular como patrimônio universal da humanidade como meio de comunicação e identificação cultural entre todos os povos (Cury, 2004). Além de sua importância econômica, política e social, observamos que as comunidades tradicionais estudadas estão vinculadas ao patrimônio cultural imaterial e possuem uma cultura tradicional e popular, mas que vivem um momento delicado em suas relações sociais e culturais, principalmente no que diz respeito aos meios econômicos para a manutenção material e social/cultural das comunidades. Portanto, as formas de salvaguardar suas práticas culturais devem ser consideradas como patrimônio cultural imaterial.
A partir de documentos internacionais (Brasil, 2002) como a Alma-Ata de 1978 e a Carta de Ottawa de 1988, em 1991, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reforçou a contribuição da medicina tradicional na prestação de assistência social, especialmente às populações com pouco acesso aos sistemas de saúde, e solicitou aos Estados membros que intensificassem a cooperação entre os praticantes da medicina tradicional e os cuidados médicos modernos, especialmente no que diz respeito ao uso de remédios tradicionais de eficácia científica comprovada.
Esta pesquisa é um estudo de campo observacional, desenvolvido em comunidades remanescentes de quilombos, localizadas no entorno da região de Diamantina (Minas Gerais, Brasil), na Serra do Espinhaço Meridional. Tem como objetivo conhecer as tradições socioculturais de comunidades remanescentes de quilombos, relacionadas à zooterapia. Buscou também conhecer e listar os remédios populares para animais e seus respectivos usos, a fim de promover o conhecimento de seu uso e ampliar a fusão dos saberes acadêmicos, culturais e etnobiológicos facilitando o registro, transmissão e compartilhamento de práticas terapêuticas.
3. Metodologia
As comunidades participantes foram identificadas e suas características socioeconômicas, antropológicas, culturais e tradicionais foram documentadas. As comunidades de Baú, Ausente de Cima, Ausente de Baixo no distrito rural de Milho Verde (Serro, Minas Gerais) e a comunidade de Quartel de Indaiá no distrito rural de São João da Chapada (Diamantina, Minas Gerais).
No estudo foram registrados dados antropológicos, regionais e culturais com os moradores das comunidades por meio de contatos com lideranças e/ou representantes das comunidades. Estas lideranças e representantes facilitaram o acesso de moradores que conhecem algumas práticas zooterápicas. Quanto à base teórica dos estudos, nos apegamos à definição de cultura apresentada na 25ª Conferência Geral da UNESCO:
A cultura tradicional e popular é o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundada na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente responde, mas expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou por outras maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes. (Cury, 2004, p. 294-295).
Em visitas as comunidades, após o esclarecimento dos objetivos da pesquisa, foram solicitadas às lideranças e/ou representantes de cada comunidade quilombola autorização formal para o desenvolvimento da pesquisa (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE). A investigação atendeu à Resolução nº. 196/1996 do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). O estudo foi financiado pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), CVZ - APQ-02120-09.
Foram realizadas observações, registros e caracterização de recursos faunísticos com potencial terapêutico na região, por meio de questionários e entrevistas semiestruturadas com duração de 20 a 50 minutos, nas residências, buscando a identificação de usos e suas formas, bem como partes ou produtos de origem animal. Os procedimentos para as entrevistas envolveram encontro com os participantes, apresentações, esclarecimentos sobre a pesquisa, formalização do TCLE. As questões referiam-se ao conhecimento ou memória do costume de usar parte de um animal como remédio, partes que eram usadas, como e para quê; alimentos de caça (caldos), uso de banha/gordura na alimentação ou para uso no corpo.
Para análise utilizou-se o modelo de união das diferentes competências individuais. Assim, o conhecimento dos informantes é considerado independentemente de serem concordantes ou não. Os controles foram realizados por meio de testes para verificar a consistência e validade das respostas, utilizando entrevistas repetidas em situações síncronas (mesma pergunta feita para pessoas diferentes em momentos próximos) e anacrônicas (pergunta repetida para a mesma pessoa em momentos diferentes). Em seguida, as informações foram agrupadas em tabelas, de forma codificada, buscando a identificação taxonômica das espécies por meio das descrições fornecidas pelos informantes, utilizando registros fotográficos e filmagens, se possível, para auxiliar na identificação.
4. Resultados
Foi preparada uma planilha que incluiu as espécies da fauna registradas na região, conforme mencionado pelos entrevistados. Foram registradas seis principais espécies de animais domésticos de uso diário nos terreiros e peridomésticos das famílias (bovinos, suínos, equinos, caprinos, cães e galinhas) com uso terapêutico intenso e diversificado. Entre os animais silvestres, destacam-se principalmente o tatu, a paca, a capivara, o mocó, o gambá, o caxinguelê e o coelho. Dentre os insetos e artrópodes, foram citados a abelha, a formiga (formiga dourada), a vespa e o escorpião. Entre os répteis, destacamos o uso de cobras e tegu (lagarto branco) em práticas terapêuticas de combate a venenos. As finalidades mais referidas foram as relacionadas com problemas respiratórios como gripe, bronquite, tosse, coqueluche, problemas digestivos, feridas, cicatrização, picadas e, em particular, problemas associados ao estado de debilidade das crianças (criança ‘aguada’, incapaz de andar ou falar de forma saudável).
No presente estudo, 33 animais foram citados como fontes terapêuticas. Estes foram agrupados em animais domésticos (Quadro 1), aves e mamíferos silvestres (Quadro 2), insetos e artrópodes (Quadro 3) e peixes, répteis e anfíbios (Quadro 4).
O Quadro 1 apresenta a lista de animais domésticos citados para fins medicinais pelos entrevistados. Em geral esses animais estão presentes em todos os peridomicílios nas comunidades rurais, sendo utilizadas diversas matérias-primas, modos de uso e finalidades terapêuticas.
O Quadro 2 apresenta a lista de mamíferos e aves silvestres citados para fins medicinais pelos pesquisados nas comunidades. Esses animais viviam nas matas e capoeiras no ambiente das comunidades rurais. Ressalta-se que o uso zooterapêutico de animais da floresta parece não ocorrer mais nas comunidades, devido à redução de animais e à política de preservá-los (inspeção e sanção).
A lista de insetos e artrópodes citados para fins medicinais pelos pesquisados nas comunidades é apresentada no quadro 3 a seguir. Destacamos as citações sobre problemas respiratórios e o uso do mel e da formiga dourada.
A pesquisa destaca a importância da valorização sociocultural das comunidades quilombolas, que reflete na transmissão de saberes e costumes terapêuticos dessas comunidades ao longo de suas gerações, e para a comunidade científica representa a possibilidade de ampliação de horizontes sobre a fauna regional. Assim, a associação do saber popular com o saber acadêmico favorece cultural e cientificamente as práticas terapêuticas que utilizam animais nessas comunidades, por meio de embasamentos científicos ou culturais para práticas e ações de cura com envolvimento de animais.
5. Discussão
O conhecimento e valorização dos saberes e práticas das comunidades tradicionais é recomendado pela Política Nacional de Cultura e pelo Plano Nacional de Cultura (Brasil, 2013). Entre os diferentes tipos de conhecimento, destaca-se aquele relacionado aos sistemas médicos tradicionais (métodos de tratamento em casos de lesões e doenças). O reconhecimento e valorização das práticas e saberes tradicionais e populares das comunidades estudadas também estão relacionados aos princípios de salvaguarda e patrimonialização cultural, partindo do entendimento, de acordo com a “Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural e Imaterial” (Paris, 2003).
O fato de conhecer as formas dos diferentes tipos de tratamentos refere-se não apenas à possibilidade de estudos prospectivos, mas, sobretudo à valorização desse conhecimento. A zooterapia, desde os seus primórdios, tem sido um dos principais meios utilizados por diferentes civilizações (egípcia, greco-romana, hindu, etc.) na busca pela cura de patologias. Segundo Costa-Neto e Alves (2010, p. 16), a zooterapia pode ser definida como o tratamento de doenças humanas a partir do uso de produtos considerados potencialmente medicinais, feitos com partes de um animal, obtendo produtos do seu metabolismo, como secreções e excrementos, ou materiais produzidos por eles, como ninhos e casulos.
A zooterapia no Brasil Colonial era utilizada em larga escala, pois seu uso acontecía tanto pelos indígenas que aqui viviam, quanto pelos portugueses e africanos que chegavam ao Brasil. Almeida (2010), ao estudar as práticas médicas europeias presentes no país nos séculos XVII e XVIII, refere-se aos produtos de origem animal, ainda utilizados no século seguinte. Com o fortalecimento da biomedicina, que se tornou hegemônica no Ocidente, e o crescente uso de medicamentos industriais, os tratamentos tradicionais perdem prestígio e são associados à ideia de ignorância ou a classes pobres ou específicas (indígenas, quilombolas, população rural, entre outros.).
Como exemplo, na década de 1930, durante o 2º Congresso Afro-Brasileiro, Ademar Vidal apresentou a obra ‘Costumes e Práticas do Negro’, que tinha como um dos subtítulos “A estranha medicina dos excrementos”. Neste, Vidal (1940), relata algumas práticas em que excrementos de animais eram usados para curar diversas doenças. O uso da terapia de excretas (uso de excretas para promover a cura de doenças) foi verificado, em 1952, entre os habitantes do município de Piçaburuçu (Alagoas, Brasil), no estudo etnográfico realizado por Araújo (1979). Na obra, o autor, seguindo a ciência de seu tempo, relata a presença de outras técnicas terapêuticas (uso de partes de animais), que ele chamou de medicina rústica.
Ribeiro et al. (2010) e Silva et al. (2010) publicaram estudos sobre o uso de zooterápicos entre os habitantes de comunidades rurais do sul da Bahia e do município de Sumé na Paraíba. Os autores participaram de um grupo de pesquisadores que buscam conhecer o uso da zooterapêutica, na perspectiva futura do uso de alguns dos materiais (como medula, bile, entre outros) citados para serem utilizados em estudos de bioprospecção. Já a pesquisa de Lima e Severiano (2019) na caatinga de Jaçanã (Rio Grande do Norte), apontou a predominancia no uso de gorduras e de galináceos, assim como a utilização de zooterápicos principalmente para o tratamento de doenças do aparelho respiratório, como garganta inflamada, gripe, tosse e asma.
Entre os animais domésticos (Quadro 1), os materiais de origem bovina foram os mais citados, com dez citações: bile, calor animal, chifre, fezes, fígado, leite, medula, pulmão, tecido adiposo e urina. Os achados concordam com o estudo de Vidal (1940), que observou que o gado foi o animal mais frequentemente referido em casos de necessidade de tratamento de doenças.
Entre os 16 entrevistados, nove mencionaram o chifre queimado, raspado e diluido em solução aquosa, indicado em casos de acidentes com farpas (estrepe), hematomas, asma e cólicas (criança e mulher). No estudo de Ribeiro et al. (2010), realizado no sul da Bahia, o corno foi citado no tratamento da dor abdominal, o que indiretamente concorda com a relação corno/cólica encontrado.
As fezes bovinas foram mencionadas por sete informantes: misturada com o pássaro anu e em bebida infundida para coqueluche; diluída em água de banho para varicela e aplicada fresca nas axilas para reduzir o odor. Vidal (1940, p. 36), menciona em seu estudo o uso de fezes bovinas para o "budum das axilas", porém, eram também utilizadas cozidas com hortelã ou manjericão. O uso de fezes frescas foi citado por Araújo (1979), para queimaduras, o que difere do indicado por nossos entrevistados.
A medula (tutano) foi mencionada por seis entrevistados, sendo indicada para casos de fraqueza e para estimular a criança a andar. No estudo de Silva et al. (2010) o mesmo foi citado para picadas de abelha. Ribeiro et al. (2010) indicam o uso da bile para casos de conjuntivite. Entre os cinco entrevistados que o referiram, foi indicado (uso seco, tópico) para casos de hematomas, presença de farpas, picadas de insetos e dor de dente.
Lévi-Strauss (1989), ao discutir as características do "pensamento selvagem", chama a atenção para o fato de que os processos lógicos que constituem o pensamento dos chamados povos civilizados são os mesmos encontrados nos chamados “selvagens” ou povos míticos. Lévi-Strauss afirma que o pensamento selvagem é também um pensamento desinteressado e reflexivo. O pensamento selvagem não está centrado apenas em coisas úteis, ou pré-lógicas, ou uma simples etapa constitutiva do chamado pensamento civilizado, mas, ao contrário. O pensamento das sociedades tradicionais é herdeiro de um processo de acumulação de conhecimentos e métodos, ou seja, de uma tradição científica paralela à ciência ocidental.
Compreender as práticas tradicionais como portadoras de uma lógica/intencionalidade, nos leva a compreender que as ações zooterápicas aqui descritas se relacionam diretamente com o conceito de espaço geográfico pois os saberes e práticas/técnicas apresentadas podem ser pensadas “[...] como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações [...]” (Santos, 1996, p.19). Esse conjunto seria a noção ontológica de espaço para Milton Santos, e dentro dessa noção de espaço existem suas categorias analíticas internas como: a paisagem, configuração territorial, a divisão do trabalho e suas territorialidade, espaço produzido e produtivo, noção de região e lugar; a ideia de tecnoesfera e psicoesfera e da racionalidade do espaço (Santos, 1996, p.19).
Compreende-se que os estudos aqui apresentados dialogam com a noção de espaço e com a ideia de técnica como algo que envolve os processos sociais e a interação sociedade e natureza, mas relação essa baseada numa interação entre humanos e não humanos: “A ideia de técnica como algo onde o “humano” e o “não humano” são inseparáveis, é central” (Santos, 1996, p.20). As práticas zooterápicas indicam essa íntima relação entre humanos e não humanos, pois os próprios animais, nessa relação dialética preconizada pela técnica, podem ser pensados como “objetos possuidores de uma condição técnica”.
Objetos naturais e objetos fabricados pelo homem podem ser analisados conforme seu respectivo conteúdo, ou, em outras palavras, conforme sua condição técnica, e o mesmo pode ser dito das ações, que se distinguem segundo os diversos graus de intencionalidade e racionalidade. (Santos, 1996, p.20-21).
Fica evidente que as práticas zooterápicas consideram os animais como “objetos técnicos” pois são analisados/pensados por seu “conteúdo”, expressado no uso dos mesmos para responder as condições do processo saúde e doença da comunidade. Ao serem pensados como “medicamentos” revelam sua condição técnica, elaborada pela racionalidade/intencionalidade da comunidade como fruto do seu processo social e histórico. Assim a compreensão da zooterapia enquanto técnica/ação indica a relação entre o ser humano e o meio/natureza vivido pelas comunidades estudadas, pois:
[...] a principal forma de relação entre o homem e a natureza, ou melhor, entre o homem e o meio, é dada pela técnica. As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz, e, ao mesmo tempo, cria espaço. (Santos, 1996, p.25)
6. Conclusões
Os dados coletados neste trabalho, à primeira vista, podem parecer estranhos ao leitor não familiarizado com o assunto. A primeira questão que pode ser levantada é que a descrição do uso de animais ou insetos no tratamento de doenças não corresponderia a uma visão lógica, principalmente por serem práticas voltadas ao restabelecimento da saúde. O recurso ao irracional qualitativo para as práticas, ainda recorrentes nas sociedades tradicionais, é uma ocorrência comum desde os primeiros contatos entre europeus e povos indígenas ou negros. Nesse sentido, é preciso abrir um espaço de reflexão teórica sobre o pensamento que permeia as sociedades, atualmente chamadas de tradicionais.
As informações sobre o uso de animais, inteiros, suas partes ou produtos, bem como de alguns insetos, em processos de cura, demonstram uma lógica de classificação baseada em uma estrutura de analogia/semelhança. Nesse sentido, o uso terapêutico de alguns animais está associado aos seus hábitos ou alguma característica que eles possuem. Por exemplo, acreditava-se que a banha do lagarto (teiu) é útil contra picadas de cobra, porque este animal pode caçar cobras, matá-las, então essa característica do teiu se traduz em seu uso terapêutico (banha) contra picadas de cobras. Se analisarmos os princípios lógicos em que se baseia, percebemos que se reduzem ao semelhante que produz o semelhante, ou que um efeito se assemelha à sua causa e que as coisas que estiveram em contato continuam a agir umas sobre as outras.
A partir dos dados coletados em nosso processo de pesquisa de campo, poderíamos utilizar vários exemplos que representam uma ordem lógica e classificação onde se relacionam o comportamento e as características do animal ou inseto e seu uso terapêutico. O uso de peles de coelho, por exemplo, coletadas de suas camas e usadas em crianças que têm dificuldade para dormir. Nesse caso, podemos observar a óbvia semelhança entre o ninho do coelho e sua pelagem (contato) e o "ato de produzir" sono na criança. Outro exemplo é o uso do caldo de caxinguelê para crianças fracas ou muito quietas, que andam pouco; a justificativa para usar esse animal para esse fim é que esse animal é muito ativo, está sempre em movimento. Mais uma vez, observamos a semelhança entre o comportamento do animal e o objetivo a ser alcançado.
No entanto, o uso terapêutico da formiga de ouro expressa um conjunto de fatos que apresentam bem a lógica do pensamento tradicional. A formiguinha dourada é usada como patuá (amuleto), sendo costurada em uma bolsa e pendurada no pescoço da criança que tem chiado no peito. A formiga é capturada viva, mas para ter sua funcionalidade terapêutica, deve ser capturada descendo o caminho onde está e nunca subindo. A justificativa para o uso da formiga contra o chiado em crianças se justifica pelo fato de que quando pegamos a formiga ela produz um chiado. Ao colocar o patuá no pescoço, recomenda-se o uso de um cordão fino. O patuá deve cair com o tempo, sem se preocupar em procurar onde caiu. O uso terapêutico da formiguinha amarela se estrutura em uma lógica binária, semelhança e contato. A lógica binária é expressa na polaridade para cima e para baixo, descrita na direção em que a formiga estava no momento de sua captura, acreditando que o fato de a formiga estar descendo o caminho ajudará no desaparecimento do chiado. A semelhança, ou seja, a analogia entre o silvo da formiga e o chiado do peito da criança, nos leva a uma lógica homeopática: semelhante cura semelhante; e é através do contato com o patuá que a criança será tratada.
Esperamos ter demonstrado a lógica subjacente a essas práticas zooterapêuticas. Essa lógica não depende das evidências científicas ocidentais sobre a eficácia do uso da formiga como auxiliar no tratamento do chiado, mas de outros fatores que estruturam o uso terapêutico da formiga dourada, a exemplo dos aspectos de aplicação, observação, associação e propósito e classificação. A questão não é se de fato a formiga vai tirar o chiado do peito da criança, mas entender, refletir. Em outras palavras, o que está em jogo não é a razão prática do uso da formiga, mas os requisitos intelectuais necessários para explicar o uso da formiga a partir de uma lógica analítica.
É nesse sentido que Lévi-Strauss afirma que as espécies animais e vegetais não são conhecidas porque servem para alguma coisa, mas porque foram pensadas antes de serem usadas, ou seja, servem para serem pensadas. E esse pensamento tenta organizar o universo onde se vive, traduzindo socialmente a natureza com a qual se relaciona. Nesse sentido, este estudo, buscando compreender e descrever o uso de animais e insetos na saúde das comunidades quilombolas do Alto Jequitinhonha, encontrou uma forma de pensar o mundo e organizá-lo.
Essa organização do mundo, enquanto “visão de mundo”, perpassa os pressupostos teóricos levantados nas obras de Miltom Santos como o conceito de psicoesfera: “A psicoesfera, resultado de crenças, desejos, vontades e hábitos que inspiram comportamentos filosóficos e práticos, as relações interpessoais e a comunhão com o Universo (Santos, 1994, p.32 apud Bernardes, 2020). E também a noção de “lugar” enquanto síntese das dinâmicas sociais na interação com o meio e com as escalas geográficas.
Por fim, e com base nos dados investigados e analisados neste trabalho, concluímos que as práticas e saberes tradicionais das comunidades quilombolas podem ser entendidos como patrimônio cultural imaterial e constituidores de espaços geográficos e de lugares, onde se realizam o viver dessas comunidades. O artigo revela as interdependências entre as práticas e os saberes da comunidade com a cultura e a natureza. Acreditamos ter apresentado neste estudo os elementos fundamentais para pensar a salvaguarda das práticas e saberes das comunidades investigadas, demonstrando suas particularidades, bem como seus aspectos universais que contribuem para a criatividade humana e a diversidade sociobiocultural que caracteriza o viver humano.
Agradecimentos
À FAPEMIG, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, pelo apoio financeiro ao projeto de pesquisa (CVZ - APQ-02120-09). À equipe do grupo Jequi pelo suporte nas atividades de campo da pesquisa.
Referências
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