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AS TEORIAS DE CURRÍCULO NOS DOCUMENTOS EDUCACIONAIS BRASILEIROS
CURRICULUM THEORIES IN BRAZILIAN EDUCATION POLICIES
TEORÍAS CURRICULARES EN LAS POLÍTICAS EDUCACIONALES DE BRASIL
Revista Espaço do Currículo, vol. 17, núm. 1, e66076, 2024
Universidade Federal da Paraíba

Demanda Contínua

Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 17, núm. 1, e66076, 2024

Recepção: 09 Março 2023

Aprovação: 13 Novembro 2023


Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Attribution-ShareAlike 4.0.

Resumo: As teorias de currículo incorporam as políticas educacionais, as quais são recontextualizadas de forma híbrida. Este artigo objetiva analisar como as teorias de currículo se difundem em documentos educacionais brasileiros, mais especificamente, na Base Nacional Comum Curricular e no Documento Curricular Referencial da Bahia. Para isso, utilizou-se a abordagem do Ciclo de Políticas de Stephen Ball e colaboradores como método de análise das políticas supracitadas. Assim, foi possível perceber as influências de três teorias curriculares (tradicional, crítica e pós-crítica) nos textos dos documentos educacionais que orientam a produção dos currículos escolares. Os resultados mostram uma tendência da Base Nacional a se fundamentar em aspectos da teoria tradicional e, algumas vezes, da teoria crítica, enquanto o Currículo Bahia tem uma perspectiva curricular mais voltada para as teorias crítica e pós-crítica. É importante ponderar que o Currículo Bahia é um texto secundário da Base Nacional, ainda assim, apresenta elementos que divergem da política nacional.

Palavras-chave: BNCC, Currículo Bahia, políticas educacionais.

Abstract: Theories of curriculum incorporate the educational policies, which are recontextualized in hybrid forms. This article aims to analyze how theories of curriculum are disseminated in Brazilian educational documents, more specifically, in the Brazilian National Common Core Curriculum (Base Nacional Comum Curricular - BNCC) and in the State of Bahia Reference Curriculum Document (Documento Curricular Referencial da Bahia - DCRB). Hence, the Policy Cycle approach by Stephen Ball and collaborators was used as a method of analysis of the aforementioned policies. Thus, it was possible to discern the influences of the three theories of curriculum (traditional, critical and post-critical) in the texts of educational documents, which advise the production of school curriculum. The results show a tendency for BNCC to be based on traditional theory and, sometimes, on critical theory; while the DCRB has a curricular perspective more focused on critical and post-critical theories. It is important to consider that the DCRB is a secondary text of the BNCC; even so, it presents some elements that diverge from the national policy.

Keywords: BNCC, State of Bahia curriculum, education policies.

Resumen: Las teorías curriculares incorporan las políticas educacionales, las cuales son recontextualizadas de modo híbrido. Este artículo tiene como objetivo analizar cómo las teorías curriculares son difundidas en los documentos educativos brasileños, más específicamente en la Base Nacional Común Curricular (BNCC) y en el Documento Curricular de Referencia de Bahia (DCRB). Este artículo tiene como objetivo analizar cómo las teorías curriculares se propagan en los documentos educativos brasileños, más específicamente en la Base Nacional Común Curricular (BNCC) y en el Documento Curricular de Referencia de Bahia (DCRB). Para lo cual, se utilizó como método de análisis de las mencionadas políticas el enfoque del Ciclo de Políticas de Stephen Ball y colaboradores. Así, fue posible discernir las influencias de las tres teorías curriculares (tradicional, crítica y pos-crítica) en los textos de los documentos educativos, los cuales orientan la producción de los currículos escolares. Los resultados exponen una tendencia de la BNCC a basarse en la teoría tradicional y, en ocasiones, en la teoría crítica; mientras que el DCRB tiene una perspectiva curricular más centrada en las teorías críticas y pos-críticas. Es importante considerar que el DCRB es un texto secundario de la BNCC, aun así, presenta elementos que se distinguen de la política nacional.

Palabras clave: BNCC, curriculum Bahia, políticas educacionales.

Introdução

O objetivo do presente artigo é analisar como as teorias de currículo se difundem em documentos educacionais brasileiros, mais especificamente, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e no Documento Curricular Referencial da Bahia (DCRB), também denominado de Currículo Bahia. Os estudos curriculares têm apontado a amplitude de construções acerca do currículo e pontuam que existe uma gama de conceitos e definições que permeiam este dispositivo escolar. O currículo é inerente ao ambiente educativo, cuja produção e desenvolvimento possibilitou o estabelecimento de normas e finalidades próprias para a escola, assim como o seu aperfeiçoamento enquanto instituição (Costa, 2021).

O currículo é produzido para a escola, no entanto, essa relação é caracterizada por uma via de mão dupla, pois a escola também o produz. Tomando como exemplo a temática da diversidade, é possível observar que ela permeia a escola além do currículo prescrito, seja em relação às vivências, ou mesmo às finalidades e concepções atribuídas. Assim, a pluralidade que envolve o currículo se solidifica por meio das diversas teorizações que têm ele como objeto (Silva, 2019). Diante da inquestionável importância do currículo para o processo educativo, torna-se relevante discutir as diversas concepções que o envolvem, afinal, nelas estão perspectivas e enfoques defendidos por variados autores do campo educacional. Nesse sentido, as teorias de currículo que servem de base para a elaboração das políticas educacionais, posteriormente, influenciarão na construção dos currículos escolares (Costa, 2021).

As políticas educacionais também passam por transformações para se adequarem aos variados contextos, pois, nem sempre, a perspectiva de sociedade e as projeções escolares são representadas nas políticas educacionais que vão organizar e orientar o processo educativo. Atualmente, no Brasil, uma das políticas educacionais mais recentes e influentes é a BNCC, homologada nos anos de 2017 (Educação Infantil e Ensino Fundamental) e 2018 (Ensino Médio), a qual propõe orientar e alinhar todas as políticas e ações educacionais no território brasileiro. Esta política foi decomposta em outros documentos oficiais de forma a atender as subjetividades locais, como é o caso do DCRB, na Bahia, entretanto, a configuração central da política nacional é mantida, mesmo na produção dos textos secundários.

É imperioso destacar que a produção destes documentos é permeada por disputas de poder e de fixação de discursos, portanto, eles não podem ser considerados neutros. São atravessados de objetivos e de finalidades a serem alcançados que, na maioria das vezes, dizem respeito a grupos hegemônicos. Destarte, enfatiza-se a importância de compreender como as teorias curriculares são incorporadas nos documentos educacionais, visto que elas imprimem concepções e finalidades ao processo educativo.

Percurso metodológico

Este texto é um recorte de uma dissertação de mestrado, intitulada Os contextos de influência e produção da Base Nacional Comum Curricular: um enfoque na disciplina escolar ciências, que objetivou analisar os contextos de influência e de produção de texto da BNCC, com isso, teceu discussões sobre o campo do currículo, da cultura e dos conhecimentos escolares (Costa, 2021).

O corpus da pesquisa é composto por documentos públicos oficiais elaborados com o intuito de orientar as produções curriculares, assim, foi realizada a análise documental da BNCC e do DCRB. Estes dados foram examinados sob a perspectiva da abordagem teórico-metodológica do Ciclo de Políticas de Stephen Ball e colaboradores. Tal abordagem se constitui em cinco contextos interligados: a) contexto de influência, b) contexto da produção de texto, c) contexto da prática, d) contexto dos resultados ou efeitos, e) contexto da estratégia política. Apesar de ser constituído em cinco contextos, não há uma divisão real, pois eles se entrelaçam (Costa, 2021; Mainardes, 2006). Cabe destacar que a utilização dessa abordagem possibilita a análise holística das políticas educacionais.

Nesta investigação, a análise se desenvolveu no contexto da produção desses textos orientadores, isto é, do Ciclo de Políticas (que diz respeito ao texto materializado para o público geral), debruçando-se sobre os discursos e as finalidades consumadas no texto escrito das políticas educacionais, mas, sem desconsiderar o contexto de influência (o qual diz respeito aos discursos que idealizaram as políticas educacionais), que também se faz presente e atuante nos documentos produzidos.

Para apresentar os resultados obtidos, o presente artigo está estruturado em três seções. A primeira, busca discorrer acerca das teorias de currículo no contexto brasileiro, para isso, caracteriza as teorias tradicional, crítica e pós-crítica do currículo, ao mesmo tempo que as relaciona com algumas conjunturas históricas da educação brasileira. A segunda seção apresenta os documentos educacionais brasileiros — a BNCC e o DCRB —, para tanto, destaca a configuração dos referidos documentos e descreve, brevemente, o processo de produção de seus textos. Por fim, a terceira seção aborda como as teorias de currículo se fazem presente nos dois documentos, além disso, pondera sobre as finalidades e as características que estas políticas apresentam ao ter como fundamento as teorias supracitadas.

Teorias de currículo no contexto brasileiro

Ao discutir sobre algumas teorias de currículo (tradicional, crítica e pós-crítica), é importante esclarecer como cada uma delas se configura e de que forma elas influenciam na construção das políticas educacionais e dos currículos brasileiros. Dessa forma, é importante destacar que a caracterização destas três teorias supracitadas não às estabelece de forma definitiva, afinal, além de serem distintas entre si, no seio de cada teoria, há autores com diferentes pontos de vista. Entretanto, tais autores possuem ideias que os assemelham o suficiente para serem incluídos na mesma categorização de teoria curricular. Diante disso, é interessante considerarmos as mudanças que ocorreram na concepção de escola, de currículo e das finalidades educacionais, nas variadas perspectivas teóricas (Costa, 2021). Vale ressaltar que a elaboração de uma teoria não substitui a outra, elas coexistem e disputam os espaços nas políticas educacionais e nos currículos.

Com base nas leituras de Silva (2019) e a fim de proporcionar uma observação mais clara e de fácil comparação entre as teorias de currículo, tais perspectivas foram organizadas, conforme demonstrado, a seguir, no Quadro 1:

Quadro 1
Teorias de currículo e suas expectativas quanto ao processo de escolarização

Fonte: reproduzida com base em Costa (2021, p. 27) e (Silva, 2019).

A concepção de escola apresentada na teoria tradicional, geralmente, resume esta instituição como reprodutora de conhecimentos e valores que são produzidos e legitimados por um grupo hegemônico, normalmente, fundamentado no rigor do método científico. É interessante pontuar que, para esta teoria, a escola não é produtora de conhecimentos e cultura. Portanto, somente a cultura considerada homogênea tem lugar no currículo tradicional e as demais são desconsideradas, vale ressaltar que os valores hegemônicos mudam em diferentes conjunturas. Neste contexto, o currículo tem função de organização e de sistematização para atingir determinados objetivos tecnicistas, tanto que o foco principal está em alcançar a eficiência e a racionalidade. Silva (2019, p. 17) caracteriza as teorias tradicionais em função das seguintes palavras: “[...] ensino, aprendizagem, avaliação, metodologia, didática, organização, planejamento, eficiência e objetivos”.

Os estudos curriculares no Brasil ascendem concomitantemente ao início da industrialização norte-americana. Em razão de a sociedade brasileira receber influências estadunidenses, estas refletiam também na estrutura educacional. O principal foco dos currículos brasileiros naquele contexto era decidir o que ensinar, assim, no início da era republicana, o movimento Escola Nova começou a desenvolver estudos curriculares no Brasil, cujas principais referências foram John Dewey e William Kilpatrick (Lopes; Macedo, 2011).

O currículo escolanovista contrastou com os preceitos tradicionais daquele período, entretanto, como pode ser observado no Quadro 1, ora apresentado, apesar das ideias progressistas, os estudos de John Dewey eram fundamentados em uma perspectiva tradicional do currículo, pois, ainda que menos coercitivos, seus pensamentos contavam com mecanismos de controle social para atingir os objetivos projetados (Lopes; Macedo, 2011). Diante disso, ainda que diferisse em alguns preceitos, a fundamentação, na época, concebia a escola como o instrumento para o alinhamento entre o desenvolvimento econômico e a equidade social e essa instituição era vista como instrumento para êxito no processo civilizatório.

É no contexto da Ditadura Civil-Militar (entre 1964 e 1985) que a teoria tradicional teve maior relevância na educação brasileira. Nessa conjuntura, viu-se a necessidade de expansão da escolarização, pautada na urgência de produzir mão de obra especializada para trabalhar nas fábricas, entretanto, o aumento da rede de ensino não foi subsidiado pelo governo, o que acarretou uma crise na educação (Nascimento; Fernandes; Mendonça, 2010). A influência progressivista nos estudos curriculares foi enfraquecida e a crise impulsionou acordos entre Brasil e Estados Unidos da América (EUA), com isso, a educação passou a integrar uma concepção tradicional mais tecnicista, ainda que tenham permanecido alguns traços da concepção progressivista, a educação foi, então, vinculada profunda e diretamente ao mercado de trabalho (Leme; Brabo, 2019).

Observa-se, nesse contexto, o ápice da teoria tradicional na educação brasileira, todavia, é importante enfatizar que, atualmente, os preceitos dessa teoria ainda se fazem presentes nos currículos, uma vez que o processo de reprodução de conhecimentos e valores ainda se pautam em uma visão tradicional de escola (Macedo, 2006). É importante frisar que, ao tomar como fundamento a teoria tradicional do currículo, questões educacionais importantes foram deixadas de lado, isso fez com que a prática dos professores se tornasse mera reprodução dos conteúdos, sem deixar espaço para reflexão crítica (Costa, 2021). Como consequência, tanto por parte dos professores quanto dos alunos, a educação se tornou acrítica e mecânica, questões filosóficas foram substituídas pelo “como fazer” (Leme; Brabo, 2019).

No auge da teoria tradicional nos currículos, globalmente, surgiram diversos grupos que se posicionavam contra a educação tecnicista, o movimento de reconceptualização, liderado por William Pinar, destacou-se nos EUA (Silva, 2019). Este movimento foi um marco para a transformação dos velhos paradigmas, problemas e antagonismos que envolviam o ensino (Costa, 2021). Além disso, o que era concebido como currículo — que na concepção da teoria tradicional eram as normas que engessavam o processo educativo — não se enquadravam mais com as novas ideias concernentes à educação que emergiam na Europa (Silva, 2019). Portanto, essa teoria começou a perder lugar para outras perspectivas.

Essas manifestações abriram espaço para a promoção e consolidação de outra teoria de currículo, a teoria crítica. Nessa perspectiva, como é possível observar no Quadro 1, a escola é percebida como produtora de saberes, é acrescida certa vitalidade que tira a inércia promovida pela teoria tradicional. Outra característica é que diversos autores críticos buscavam problematizar elementos externos ao ambiente escolar, introduzindo no campo educacional as discussões acerca das relações de poder, além de questionarem sobre quais os interesses que dominam os currículos escolares (Costa, 2021).

A emancipação dos sujeitos pela educação é uma das pautas presente nas discussões da teoria crítica e, por meio disso, os indivíduos podem conhecer a própria história e transformá-la, no âmbito individual e, mais amplamente, influenciar e transformar a estrutura da sociedade em que vive (Leme; Brabo, 2019). Segundo Costa (2021), o foco dessa teoria está na utilização do conhecimento para a emancipação e libertação daqueles que são oprimidos por aqueles que detêm o poder. Silva (2019, p. 17) resume as teorias críticas como “[...] ideologia, reprodução cultural e social, poder, classe social, capitalismo, relações sociais de produção, conscientização, emancipação e libertação, currículo oculto e resistência”.

No Brasil, principalmente por causa do processo de redemocratização, os ideais das teorias críticas do currículo se expandiram nas pesquisas e discussões do campo entre os anos de 1980 e 1990. Buscava-se um distanciamento dos posicionamentos tradicionais e conservadores que se alargaram durante o período da ditadura. De acordo com Macedo (2006), as pesquisas relacionadas ao currículo se expandiram e a influência de Marx e Gramsci amplificaram as teorias críticas no Brasil.

Com isso, são desenvolvidas duas linhas curriculares de teoria crítica no Brasil: a primeira visa à transformação social por intermédio do currículo, a qual pela criticidade desmistifica os conteúdos curriculares, essa linha se refere às ideias apresentadas por José Carlos Libâneo, na Pedagogia Crítico-Social; já a segunda linha entende o currículo como um texto político fruto da sociedade, a qual deve se opor a ele. Desse modo, o currículo é construído pelo diálogo entre professores e alunos e não tem significado em si, mas pela contextualização. Essa tendência foi apresentada como Educação Popular por Paulo Freire (Lopes; Macedo, 2011). Ambas as linhas se expandiram e se consolidaram no campo do currículo, dentro e fora do Brasil. Enquanto teorias críticas, elas tencionaram a soberania dos ideais das teorias tradicionais, no entanto, não os suprimiram como um todo.

A década de 1990 foi marcada por muitas reformas curriculares. A acentuada influência dos EUA no período ditatorial permaneceu e pode ser reconhecida na produção e na implementação das diversas políticas educacionais neoliberais dessa década (a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB nº 9394/1996, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica – DCN, e os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN). De acordo com Leme e Brabo (2019, p. 95), ocorreram algumas mudanças na educação motivadas pelas políticas públicas “[...] voltadas aos valores da democracia, dos direitos humanos e da formação cidadã, entretanto, com a interferência dos valores neoliberais”.

Dentre tais políticas, os PCN se destacaram na elaboração de currículos e materiais didáticos em todo o território nacional, apesar da não obrigatoriedade, eles se tornaram uma forma de padronização. A proposta destes parâmetros era o estabelecimento de uma educação básica de qualidade que ultrapassasse a memorização dos conteúdos e concedesse uma formação integral dos estudantes, capacitando-os para viverem em sociedade (Nascimento; Fernandes; Mendonça, 2010). Dado o contexto de avanço do neoliberalismo na década de 1990, os PCN são envoltos em uma premissa neoliberal, porém, foi por meio destes parâmetros que temas característicos, que constituem as teorias pós-críticas, começaram a ter espaço no currículo brasileiro. Assim, nos PCN, os Temas Transversais acenderam as discussões sobre orientação sexual, pluralidade cultural etc., as quais — conforme Quadro 1, apresentado anteriormente — são objetivos da escolarização no contexto das teorias pós-críticas.

Nesse sentido, as teorias pós-críticas problematizam as metanarrativas modernas e têm seu foco nas questões relacionadas aos grupos denominados minoritários, em que a escola se torna protagonista na luta contra a desigualdade e nas discussões acerca das diferenças, dada a busca por mudanças em todo o contexto social que produz esses contrastes. Para isso, apresentam a ideia do multiculturalismo. Diferente da cultura hegemônica, que é apresentada nas teorias tradicionais, estas perspectivas trazem à discussão a variedade de culturas que são produzidas e distintas entre si. A presença da cultura no currículo deve demonstrar que não há uma cultura que seja superior às demais, deve-se, portanto, problematizar as hierarquizações e produzir um currículo que atenda às diferenças (Silva, 2019).

As perspectivas dessa teoria buscam debater a questão sobre como é possível reconhecer a diversidade e, ainda assim, propor uma homogeneização cultural. As diferenças devem ser abordadas em consonância com os aspectos sociais que as produzem, ou seja, não é suficiente afirmar a existência da desigualdade de gênero, é necessário falar sobre todo o arcabouço social, institucional e estrutural que mantém tal desigualdade, por isso, o currículo é um espaço que torna possível tais discussões. Apesar de não ser um fenômeno recente, desde os anos 2000, têm sido reivindicadas, com maior intensidade no campo educacional, diversas demandas que extrapolam a sala de aula. Sobre as teorias pós-críticas, Silva (2019, p. 17) designa os seguintes descritivos: “[...] identidade, alteridade, diferença, subjetividade, significação e discurso, saber-poder, representação, cultura, raça, gênero, etnia, sexualidade, multiculturalismo”.

Apesar de ser parcialmente representada em algumas abordagens nos PCN, até o início dos anos 2000, as teorias pós-críticas não se destacavam nas discussões de currículo no Brasil. No entanto, essas perspectivas curriculares têm se expandido e ganhado espaço nos últimos anos por intermédio da expressão e afirmativa dos grupos minoritários que têm se mobilizado cada dia mais (Costa, 2021).

A produção das políticas educacionais e dos currículos é fundamentada nos conceitos e nas finalidades projetados para a escola, nessa conjuntura, muitos discursos, perspectivas e agendas entram em contestação, afinal, o currículo é um campo de disputas. Lopes e Macedo (2011) afirmam que, para a definição de currículo, é preciso considerar as finalidades educacionais as quais ele se propõe, tal como o contexto social no qual os objetivos escolares são produzidos. A história do currículo no Brasil revela que, ao longo dos anos, ocorreram inúmeras permanências e rupturas com as diversas teorias de currículo. Desse modo, as mudanças de contextos, governos e projeções sociais foram as alavancas para as transformações curriculares, consequentemente, do sistema educativo.

Documentos curriculares brasileiros do século XXI

Diante do apresentado na seção anterior, diretrizes e documentos educacionais foram auxiliadores no processo de organização do currículo no Brasil, consequentemente, fundamentaram também a prática escolar. Vale ressaltar que as políticas educacionais operam de duas formas distintas, como prescrição (que são os documentos escritos) e na sala de aula (na interação entre os sujeitos escolares), no entanto, em ambos os casos há influências entre os contextos, de modo que constantemente um é moldado pelo outro. Para Ball (2001), a elaboração de políticas é um processo de “bricolagem”, troca de ideias, inserção de situações de outros contextos, utilização de abordagens já testadas, de diversas teorias, de tendências e de tudo o mais que possa surgir.

Dessa forma, Ball (2001) propõe duas importantes formas simultâneas de análise das políticas educacionais, política como texto e política como discurso. Na perspectiva da política como texto, elas são representações das múltiplas influências, disputas, intenções e negociações do processo de formulação da política, e estes textos podem ser interpretados de diversas formas, a depender dos sentidos dados aos conceitos; já na perspectiva da política como discurso, são estabelecidos os limites em relação às interpretações dadas aos textos, visto que certos discursos tendem a persuadir a forma de pensar e agir, limitando outras possibilidades (Lopes; Macedo, 2011; Mainardes, 2006).

Assim, as políticas curriculares não se resumem aos documentos oficiais escritos, afinal, por meio dos sujeitos, a escola também é capaz de produzir textos políticos, principalmente, aqueles derivados da ressignificação de tais políticas; entretanto, a esfera governamental detém a maior influência nessa produção, além dos organismos que desenvolvem vínculos com o governo para influenciar no seu processo de elaboração (Costa, 2021). Normalmente, o currículo é instituído pelo governo que prescreve as diretrizes e, posteriormente, a unidade escolar gerencia as suas atividades cotidianas (Lopes; Tiroli; Santos, 2023). Na esfera macro, nas atuais políticas educacionais ainda subsistem aquelas implantadas em outros períodos históricos, a exemplo de alguns elementos do período da Ditadura Civil-Militar brasileira que ainda se fazem presentes na elaboração dos currículos no Brasil (Leme; Brabo, 2019). Isso revela a grande influência das teorias tradicionais nas concepções de escola, de currículo e de educação (Macedo, 2006).

Considerando que houve continuidade das políticas educacionais e curriculares herdadas dos anos 1990, promovidas na era FHC (governo de Fernando Henrique Cardoso), a BNCC foi o primeiro grande projeto de intervenção curricular promovido pelo governo de esquerda, em seus 12 anos de gestão. Durante a era Lula não ocorreu nenhuma grande proposta educacional voltada para a produção curricular. Somente na segunda gestão da era Dilma que a Base Nacional começou a ser formulada. Apesar de ser uma interferência notável, não significa que ocorreram rupturas significativas com os ideais neoliberais presentes nas políticas anteriores. O projeto de uma base nacional agregou uma série de interesses distintos, os quais foram representados por intermédio de diferentes organismos, como a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) e, obviamente, a iniciativa privada, principalmente, por meio do Movimento pela Base Nacional Comum (Costa, 2021).

Dessa forma, o contexto da produção de texto da BNCC foi alicerçado por diversos textos políticos e acontecimentos históricos (Figura 1, a seguir), educacionais ou não, que permitiram a consolidação dos discursos ao longo do processo de produção escrita.


Figura 1
Cronologia dos acontecimentos que culminaram na BNCC
Fonte: Reproduzida de Costa (2021, p. 91).

Inicialmente, a BNCC não se apresenta enquanto obrigatoriedade, mas introduz, em seu texto, um documento norteador da produção. Todavia, ela se caracteriza como mais uma tentativa de padronização do currículo brasileiro, uma vez que se propõe a ajudar “[...] a superar a fragmentação das políticas educacionais, enseje o fortalecimento do regime de colaboração entre as três esferas de governo e seja balizadora da qualidade da educação” (Brasil, 2018, p. 8).

Como pode ser observado na Figura 1, ora apresentada, a projeção de uma base nacional é identificada desde a Constituição Federal de 1988, esse contexto de influência perpassa por uma série de documentos, discussões e grupos que projetam suas expectativas sobre o sistema educacional. No entanto, o contexto de produção do texto da BNCC se deu ao longo de três anos, nos quais diferentes versões foram propostas e reformuladas. Nesse período, uma série de acontecimentos nos campos social e político interferiam nos contextos de influência e de produção de texto da referida política (Costa, 2021).

A complexidade do processo de produção da política educacional confirma a existência de disputas por espaço e pela consolidação de discursos. Após todo o processo de elaboração do documento, em 20 de dezembro de 2017, o Ministério da Educação (MEC) homologou a BNCC para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental (Brasil, 2018), além disso, estabeleceu que, em até dois anos após a homologação, os currículos destes segmentos da educação deveriam estar fundamentados de acordo com as formulações ali descritas. Posteriormente, em 14 de dezembro de 2018, foi homologada a parte da Base Nacional referente ao Ensino Médio (Costa, 2021).

Cabe destacar que a BNCC propaga os valores e os interesses do mercado de trabalho e intenciona a formação de indivíduos que atendam a estas demandas. Além disso, ainda estão presentes em seu texto os discursos e influências dos movimentos neopentecostais, os quais têm ganhado cada vez mais espaço na sociedade brasileira, consequentemente, a BNCC tece fortes vínculos com eles. De acordo com o texto da BNCC, após a homologação do documento, ele deve servir de alicerce para a construção dos currículos das redes de ensino públicas e privadas de todo território nacional, de forma que o plano normativo propositivo do documento seja executado no plano da ação do contexto da prática. É nesse momento da trajetória da política educacional que as releituras começam a acontecer de maneira mais substancial.

Sob a ótica do Ciclo de Políticas, os textos derivados da política nacional são denominados de textos secundários (subsídios, orientações, manuais, diretrizes), pois são importantes para que a política seja posta em ação no contexto da prática. A elaboração dos textos secundários é realizada para auxiliar na implementação da política. A sua produção é feita mediante releituras dos textos primários, dessa forma, estes textos nem sempre estarão em consonância com a política principal.

Para este artigo, o texto secundário da BNCC foi o Documento Curricular Referencial da Bahia para a Educação Infantil e Ensino Fundamental. Este documento

[...] foi construído em colaboração permanente entre Municípios e Estado com a participação de diversos segmentos de nossas Redes de Ensino, alicerçando uma consistente integração, capaz de promover o aperfeiçoamento do Sistema de Educação Básica e, consequentemente, efetivar o sucesso da escolarização de cada cidadão baiano (Bahia, 2019, p. 8).

O Currículo Bahia defende que os currículos devem ser uma produção do cotidiano de cada território, esse posicionamento é relevante ao considerar que a Bahia é o quinto maior estado do Brasil e se caracteriza por suas singularidades geopolíticas, socioeconômicas, de territórios, de culturas e de especificidades identitárias (Costa; Carmo, 2022).

A produção do DCRB foi realizada por meio da interação de diversos órgãos, grupos e entidades, alguns em áreas específicas e outros em áreas mais gerais. Dentre os principais grupos estão a Secretaria da Educação do Estado da Bahia (SEC) e órgãos como Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME/BA), MEC, Conselho Estadual de Educação do Governo do Estado da Bahia (CEE), União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME), Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), Fundação Lemann, Projeto Faz Sentido, Fundação Getúlio Vargas, além da colaboração das Universidades, Institutos Federais e faculdades da Bahia (Bahia, 2019).

Apesar de ser um texto secundário da BNCC, de acordo Costa e Carmo (2022), o DCRB apresenta mudanças em suas propostas para a elaboração dos currículos na Bahia em relação ao texto nacional, diferenças que vão desde a forma de escrita do texto, até o estabelecimento de determinados conhecimentos que foram excluídos do texto primário. Entretanto, é importante enfatizar que os elementos fundamentais da BNCC (como a organização curricular por competências e habilidades, os intensos discursos neoliberais, além da forte relação com o mercado de trabalho) não foram excluídos, mesmo com o processo de releitura da política, assim, estes elementos também estão presentes no documento baiano.

Entrelaçamentos das teorias curriculares nos documentos educacionais

Esta seção se dedica a identificar elementos das teorias de currículo na BNCC e no DCRB, dessa forma, é possível verificar algumas projeções de escola, de currículo e de educação presentes nos referidos documentos. Vale ressaltar que o currículo não pode ser considerado neutro ou unificado, pois ele é um campo de disputas entre diversos discursos, assim, para que as relações de poder existam, o antagonismo é necessário. Isso é corroborado por Lopes, Tiroli e Santos (2023, p. 10) ao afirmarem que “[...] o currículo é marcado pelas relações políticas, econômicas, culturais e sociais, desencadeando, portanto, um processo de relações de poder, e por isso mesmo não pode ser considerado neutro”.

Assim, ainda que um determinado grupo esteja à frente da decisão de escolha de algum conjunto de conteúdo e normas, implicitamente, outros conteúdos e normas estarão presentes e, em muitos casos, estes serão tensionados em sala de aula. Destaca-se que muito embora as teorias tradicionais do currículo defendam uma suposta neutralidade, há intenções subjacentes em todo o discurso, inclusive os de isenção. Segundo Costa (2021, p. 25),

[...] é possível perceber que a seleção curricular busca atender às necessidades ou anseios de determinados grupos da sociedade, estes têm autoridade para selecionar, definir e legitimar os conteúdos a seres ministrados, demonstrando poder e controle na sociedade. No entanto, eles não representam o coletivo, mas uma parcela daqueles que detém maior influência, ou seja, ainda que muitas culturas estejam impressas no currículo, as relações de poder fazem com que algumas se sobressaiam.

O discurso de neutralidade está presente no texto da BNCC, principalmente, na área de Ciências da Natureza, defendendo a concepção positivista de Ciência neutra. Segundo Costa (2021, p. 143), “A BNCC não é neutra, tampouco imparcial”. Com o discurso de neutralidade, a BNCC se aproxima dos ideais das teorias tradicionais do currículo, uma vez que, como destacado no Quadro 1, apresentado anteriormente, na teoria tradicional, a escolarização apresenta critérios supostamente neutros na seleção dos conhecimentos, os quais devem se basear somente em preceitos epistemologicamente validados pela comunidade acadêmica.

Nesse sentido, é possível usar como referência, para sustentar o argumento anterior, o fato de que a área de Ciências da Natureza na BNCC se fundamenta em eixos formativos semelhantes aos passos do método científico positivista, são eles: a) definição de problemas; b) levantamento, análise e representação; c) comunicação; e, d) intervenção (Brasil, 2018). Essa referência positivista foi estabelecida na versão final do documento, pois, nas primeiras versões, os eixos formativos que fundamentavam a referida área eram pautados em discussões e conteúdos mais significativos, considerando a ciência sob um ponto de vista político, social e humano (Costa, 2021). Diante disso, é possível ver a transição do texto da Base Nacional entre diferentes princípios das teorias de currículo.

Segundo Nascimento, Fernandes e Mendonça (2010, p. 241), para uma formação integral e humana dos estudantes são necessárias “[...] rupturas com uma concepção positivista de ciência – e de ensino de ciências – como acumulação de produtos da atividade científica e a construção de uma didática e uma epistemologia próprias, provenientes do saber docente”. Perante a análise feita por Costa e Carmo (2022), em relação à seleção de conhecimentos, o texto do DCRB rejeita a perspectiva de uma escola neutra, visto que reconhece a importância dos múltiplos conhecimentos, debates e temáticas, os quais advêm de conhecimentos científicos e também dos conhecimentos tradicionais, dessa forma, se aproxima mais das perspectivas pós-críticas de currículo, visto que considera a diversidade de discursos e contextos. De acordo com Costa (2021, p. 131, grifo da autora), no DCRB “[...] há mais uma diferença marcante com a BNCC, ao considerar os aspectos identificados pelos segmentos da comunidade escolar, o DCRB considera a cultura escolar, ou seja, é necessário dar importância aos conhecimentos e culturas produzidos no seio da escola”.

Ao abordar a questão da diversidade, vale pontuar que, no texto da política nacional, essa temática é citada, porém, não é explorada ou desenvolvida. Por exemplo, é apresentado um subtítulo numa seção denominada “Base Nacional Comum Curricular: igualdade, diversidade e equidade”, nessa seção são discutidas de forma breve as questões de igualdade e equidade, no entanto, a diversidade somente aparece no subtítulo da seção, não há discussões sobre o tema no texto da BNCC (Brasil, 2018, p. 15). Mais uma vez, a ausência de politizações sobre diversidade e o discurso de homogeneidade, presentes na política nacional, enfatizam seus princípios relacionados com a teoria tradicional de currículo, dado que prioriza a hegemonia de determinados conhecimentos e cultura.

Por outro lado, o referencial baiano afirma a importância da escola como produtora de conhecimentos e culturas, pois, “[...] considera as diversas identidades que caracterizam a Bahia, atribuindo às escolas o desenvolvimento de competências voltadas à contextualização, ao aprofundamento e à construção das pluralidades e singularidades dos seus territórios” (Bahia, 2019, p. 21, grifos nossos). Além disso, o DCRB realça a autonomia das escolas na elaboração e no desenvolvimento de temas integradores que sejam indispensáveis em seus respectivos territórios (Costa, 2021). De acordo com Lopes e Macedo (2011), pensar uma cultura geral é excluir as múltiplas produções e identidades que não se identificam com o que se tem universalizado. Dessa forma, o DCRB, ao permitir a discussão e o desenvolvimento de currículos que atendam as especificidades, apresenta uma forma de ser diverso, ainda que não abranja toda pluralidade. As discussões de pluralidade e de diversidade filiam este documento com as teorias curriculares críticas, ao considerar a escola como o local de (re)construção dos conhecimentos, também, pós-críticas, ao valorizar as culturas e as identidades.

Apesar de ser um documento prescritivo, a BNCC também declara que as decisões curriculares devem ser apoiadas na “[...] autonomia dos sistemas ou das redes de ensino e das instituições escolares, como também o contexto e as características dos alunos” (Brasil, 2018, p. 16). Com isso, se aproxima, parcialmente, das teorias críticas do currículo, as quais consideram o contexto e o processo de escolarização que será desenvolvido, porém, os entrelaçamentos mais profundos com as teorias tradicionais não permitem que a BNCC discuta as relações de poder e controle, princípios das teorias críticas. É interessante salientar que para uma formação humana e integral é necessário que os professores compreendam os avanços científicos e tecnológicos de forma crítica, com o debate sobre as desigualdades, as causas e as relações com o sistema capitalista, assim como as relações de poder (Nascimento; Fernandes; Mendonça, 2010).

A Base Nacional abre espaço para que na elaboração dos currículos escolares sejam acrescidos temas contemporâneos, para tanto, apresenta 14 exemplos de temas considerados relevantes como: direitos da criança e do adolescente, educação para o trânsito, educação ambiental, educação alimentar e nutricional, educação em direitos humanos, educação das relações étnico-raciais e ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena etc. (Brasil, 2018). São temas relevantes e que deveriam estar presentes e serem abordados no conteúdo básico de uma política educacional voltada para a produção curricular, uma vez que são essenciais para uma formação integral e humana dos estudantes, porém, a maioria deles não é discutida na BNCC, outros são minimamente abordados, muitos deles associados às perspectivas teóricas críticas ou pós-críticas de currículo.

O DCRB apresenta seis temas propostos pela Base Nacional e propõe outros temas integradores para serem abordados na Educação Básica de forma transversal (Bahia, 2019). As temáticas acrescidas pelo Currículo Bahia como tema integrador foram: questões de gênero e sexualidade, relações étnico-raciais e direitos humanos, temas contemporâneos fundamentais em uma construção de currículo pós-crítico. Afinal, um dos principais objetivos da escolarização, nas perspectivas pós-críticas, é discutir as desigualdades e as diferenças (raça, gênero, sexualidade, etnia, cultura), além das lutas por poder, considerando o contexto sociocultural. Para o documento baiano, as discussões de gênero e sexualidade, tal como das relações étnico-raciais são fundamentais, visto que estes temas são inerentes ao ser humano, além disso, o documento demarca posição no combate à discriminação e aos preconceitos estruturais existentes na sociedade (Bahia, 2019). Dessa forma, possibilita que o ensino possa atender as necessidades em função das diferenças.

De acordo com Costa e Carmo (2022, p. 15), a elaboração dos currículos, nessa perspectiva pós-crítica, com estes temas integradores “[...] amplificará o espectro de conhecimentos relevantes para a formação de sujeitos conscientes de si e da sociedade, cientes dos direitos e deveres que lhes apetece, críticos e diplomático no que diz respeito às diferenças ideológicas, étnicas-raciais, de gênero e sexualidade, econômicas e sociais”.

Um dos elementos fundamentais na configuração da Base Nacional é a materialização da pedagogia das competências e habilidades como orientação para o ensino, por ser um elemento estruturante da nova política educacional, por isso, ela permanece intacta em seus textos secundários, portanto, faz-se presente no DCRB. Essa organização curricular tem seus fundamentos na teoria da eficiência, a qual determina que os currículos devem ser administrados com a finalidade de moldar os indivíduos para que estes alcancem uma formação eficiente (Costa, 2021). Tal abordagem está diretamente relacionada com as teorias tradicionais, porquanto como ela é caracterizada por Silva (2019), seus principais fundamentos estão na eficiência e na racionalidade, em que o foco do ensino deve ser conhecer as habilidades necessárias para determinadas ocupações profissionais e desenvolvê-las.

Cabe considerar que, quando a escola se apropria da noção de competências, sua finalidade se relaciona com o mercado de trabalho (Ramos, 2006). Essa perspectiva tecnicista de educação está presente tanto no texto da BNCC quanto no DCRB, portanto, características de um currículo tradicional estão vigentes nos dois documentos educacionais. Essa abordagem gera uma mobilização para a manutenção da produção de capital humano, cuja intenção é gerar mão de obra que seja adequada para o mercado de trabalho, características típicas de políticas educacionais neoliberais.

Nesse sentido, o ensino por competências dialoga intimamente com as teorias tradicionais do currículo, dado que a finalidade social da educação, nesse contexto, é satisfazer as exigências profissionais da vida adulta. Para isso, promove o ensino com memorização de conteúdo e sem reflexão crítica, ignorando as conjunturas sociais, políticas, econômicas etc. que permeiam a existência e a vivência dos indivíduos no campo particular e público.

As teorias tradicionais partem de uma premissa utilitarista da educação, o conhecimento se torna válido em face dos produtos que ele desenvolve para a sociedade capitalista. De acordo com Ball (2001), o atual mercado de trabalho incentiva a competitividade, de modo que a individualidade se sobressai em relação aos valores humanos. O estilo tecnicista das teorias tradicionais propõe produzir trabalhadores para as indústrias, nesse sentido, não há preocupação em problematizar as desigualdades sociais existentes, tanto no ambiente de trabalho quanto na sociedade em geral (Costa, 2021).

Na BNCC, as relações com o mercado de trabalho e uma visão utilitarista do ensino é mais intensa e explícita, porém, elas também se fazem presentes no documento baiano, uma vez que o Currículo Bahia “[...] vai ao encontro das necessidades e demandas do mundo do trabalho, da produção, das culturas, das diversas existencialidades e da configuração sociotécnica da contemporaneidade” (Bahia, 2019, p. 35). As políticas educacionais neoliberais do século XXI apresentam uma característica interessante, dado que procuram relacionar o saber técnico (já exigido anteriormente) com determinadas características subjetivas dos indivíduos (Ramos, 2006). Nessa perspectiva, segundo Ball (2001), há uma reconfiguração institucional que depende dos vínculos entre setor privado e escola para se estabelecer. Assim, os documentos educacionais que cumprem a agenda neoliberal são importantes para satisfazer os interesses do capital sem questioná-los, afinal, questionar os ensinamentos da escola e a estrutura da sociedade não representa as teorias tradicionais do currículo, visto que são as demais teorias que questionam a sociedade e tensionam sua estrutura.

As teorias tradicionais buscam a eficiência no ensino do conteúdo, tal eficiência pode ser comprovada por intermédio de instrumentos que avaliarão o alcance dos objetivos propostos, assim, outra abordagem que realça a íntima relação da BNCC com esta teoria do currículo é o vínculo do ensino com as avaliações gerais, nacionais e internacionais. Dessa forma, as habilidades promovidas pelo documento nacional deverão ser examinadas pelas referidas avaliações com o objetivo de ranquear o processo de ensino e aprendizagem.

Nesse quesito, o DCRB se posiciona de forma diferente à Base Nacional, pois, neste documento, as avaliações internas e externas têm o propósito de conferir a eficácia das políticas educacionais implementadas, ao invés de avaliar o ensino (Bahia, 2019). Esse posicionamento pode se relacionar com as teorias críticas de currículo, visto que elas partem de problematizações e reflexões sobre a relação da escola com a sociedade. Ao considerar as avaliações como parâmetros para as políticas educacionais ao invés de classificar os indivíduos, o Currículo Bahia propõe a problematização da produção de políticas e sua efetividade. Ainda assim, é imperioso pontuar que existem avaliações de larga escala (como o Sistema de Avaliação Baiano de Educação – SABE) realizadas nas escolas da Educação Básica da Bahia que seguem as mesmas premissas das avaliações nacionais (como a Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB).

Por fim, a análise do estilo da escrita do texto dos documentos educacionais também permite aproximá-los das teorias de currículo. Na abordagem do Ciclo de Políticas, considerando estilos de textos propostos por Roland Barthes, os textos são caracterizados em dois estilos de escrita, a readerly (que é prescritiva) writerly (que é dialógica) (Mainardes, 2006). Na análise empreendida, foi possível notar que o texto da BNCC apresenta uma escrita impessoal e prescritiva, portanto, readerly, de modo que se dirige ao leitor para ditar orientações e determinar como executar a proposta educacional. Busca-se a eficiência na execução da política na íntegra, sem questionamentos e problematizações de seu conteúdo ou finalidade.

De forma contrária, o estilo de escrita do texto do DCRB apresenta uma escrita dialógica, característica de um texto writerly. Nesse caso, o currículo é apresentado como ponto de diálogo, no qual a construção se dá mediante os diferentes pontos de vista e especificidades. A dialogicidade é um dos pontos principais das teorias críticas de currículo, pois é por meio da comunicação dos variados setores e sujeitos sociais que a produção de conhecimento, assim como a formação individual e coletiva vão se desenvolver. Entretanto, como apontado por Costa e Carmo (2022), devido aos discursos estruturantes da política nacional (como a pedagogia das competências), em determinados momentos, o Currículo Bahia se caracteriza com uma escrita readerly, apesar de priorizar o diálogo com o leitor.

Assim, não obstante à promoção de um discurso inovador, a política nacional reproduz características e finalidades educacionais retrógradas, anteriormente vivenciadas no contexto educacional brasileiro. Apesar de em alguns aspectos ser possível contemplar elementos de teorias críticas do currículo, a configuração desta política educacional prioriza o panorama tradicional. As prescrições contidas no texto da BNCC direcionam para a produção de um currículo fechado para atender os anseios de uma agenda neoliberal que tem como foco principal a produção de capital humano voltado aos interesses do sistema capitalista (Costa, 2021).

O texto derivado da política nacional, o DCRB, transita entre as teorias tradicionais, críticas e pós-críticas. Sendo que, a parte que se refere às teorias tradicionais são aquelas retiradas na íntegra do discurso da política nacional, ainda nesse caso há um pouco de transgressão das prescrições da BNCC, pois o texto do Currículo Bahia demarca a “[...] abertura e flexibilidade para que as escolas e seus educadores possam conjugar outras experiências curriculares, pertinentes e relevantes, tendo como critério para a escolha pedagógica dessa conjugação modelos curriculares pautados em pedagogias ativas e de possibilidades emancipacionistas [...]” (Bahia, 2019, p. 31).

Em relação à manifestação das teorias críticas e pós-críticas no DCRB, estas se relacionam com a busca de uma aprendizagem significativa e com sentido para os estudantes (Bahia, 2019). De acordo com Lopes e Macedo (2011), as teorias pós-críticas enfatizam a valorização das diversas culturas e identidades. No caso do referencial curricular baiano, é adotado como critério das escolas a escolha da perspectiva que melhor se adeque às particularidades de cada realidade. Além disso, as questões da diversidade e da luta pela emancipação e formação crítica estão veementemente presentes ao longo do texto.

Considerações Finais

É possível considerar que os textos secundários mantêm determinados aspectos estruturais, visto que são derivados de uma política educacional primária. Tais aspectos, normalmente, não são passíveis de mudança. Porém, em diversos outros aspectos é possível ocorrer a recontextualização e a manifestação de outros princípios que, algumas vezes, são contrastantes com a política primária.

Diante do exposto, conclui-se que a Base Nacional se estrutura com perspectivas, majoritariamente, de um currículo tradicional. Aspectos prescritivos, foco na eficácia, busca por uma homogeneidade, discursos de uma suposta neutralidade, além do forte vínculo com o mercado econômico. Além disso, coloca a política nacional como orientadora de um currículo tradicional que tem como principal objetivo a produção de mão de obra para o mercado de trabalho.

É necessário ressaltar que na BNCC aparecem algumas marcas de um currículo crítico, quando aponta a importância de se considerar os contextos dos sujeitos no processo educativo, porém, isso é realizado sem nenhuma associação com a problematização, característica dessa teoria. Portanto, é uma inclusão vazia de questionamentos e de reflexões que poderiam tensionar a estrutura social, as desigualdades e promover a formação crítica dos estudantes. Inclusive, essa liberdade no pensar e agir é tolhida também do contexto da prática docente, dado que as prescrições da BNCC restringem a autonomia dos professores, os quais precisam encontrar lacunas na política nacional para subverter as normativas impostas.

O currículo Bahia apresenta uma manifestação das teorias críticas e pós-críticas de currículo, o que pode ser observado desde a forma como o seu texto é escrito, atraindo o leitor ao diálogo e à reflexão para a construção curricular conjunta. Alguns elementos das teorias tradicionais também estão presentes, porém, são partes estruturais da BNCC que não podem ser ignoradas nos textos secundários. Ainda assim, é possível observar que mesmo nos aspectos fundamentais, como a pedagogia das competências e habilidades, é possível notar certa maleabilidade por parte do Currículo Bahia que não ostenta um caráter prescritivo. Dessa forma, por meio de princípios das teorias crítica e pós-crítica, o DCRB incentiva a elaboração de currículos diversos, a promoção de espaços problematizadores, os quais constroem e reconstroem os conhecimentos, as culturas e permitem a manifestação da diversidade, além do questionamento dos sistemas sociais e econômicos.

Referências

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Notas

Como citar MERCÊS, Jéssica Gomes das; CARMO, Edinaldo Medeiros. As teorias de currículo nos documentos educacionais brasileiros. Revista Espaço do Currículo, v.17, n.1, e66076, 2024. DOI: 10.15687/rec.v17i1.66076

Autor notes

1 Mestra em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/3820111863053465
2 Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Docente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/8962147589802605


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