Demanda Contínua
Recepção: 05 Maio 2022
Aprovação: 30 Outubro 2022
Resumo: Este trabalho buscou compreender a relação entre a educação democrática, a autonomia e protagonismo juvenil, partindo da hipótese de que um currículo democrático poderia favorecer a construção da autonomia e do protagonismo. Foi realizado uma pesquisa exploratória, do tipo estudo de caso, em uma escola democrática, e uma pequena parte de dados foi coletada em uma escola convencional, para fins comparativos. A análise dos dados foi realizada segundo a metodologia de análise de conteúdo. Os resultados mostram que na escola democrática há evidências de construção de um ambiente que prioriza a busca pela autonomia e o protagonismo juvenil. No entanto, fazem falta mais estudos para arrojar resultados mais conclusivos.
Palavras-chave: Autonomia pessoal, Escola básica, Democracia, Identidade cultural.
Abstract: This work aimed to comprehend the relationship between democratic education and the youth identity formation. It started from the hypothesis that a democratic curriculum could favor the construction of autonomy and protagonism. Theoretical frameworks included the conceptualizations about democratic education, specially from Puig and Araújo. It was conducted exploratory research, a case study, in a democratic school. A small part of data was collected in a conventional school, for comparative purposes. Data analysis was performed using content analysis proposed by Bardin. Results show that in the democratic school there are evidences of construction of an environment that prioritize the search for autonomy and youth protagonism. However, more studies are needed to deliver more conclusive results.
Keywords: Personal autonomy, Basic school, Democracy, Personal identity.
Resumen: Este trabajo buscó comprender la relación entre la educación democrática y la formación de la identidad juvenil. Se partió de la hipótesis que un currículo democrático podría favorecer la construcción de la autonomía y del protagonismo. Los referenciales teóricos incluyeron las conceptualizaciones sobre educación democrática, especialmente de Puig y de Araújo. Fue realizada una investigación exploratoria, de tipo estudio de caso, en una escuela democrática, y una pequeña parte de los datos fue colectada en una escuela convencional, para fines comparativos. El análisis de los datos fue realizado según el análisis de contenido propuesto por Bardin. Los resultados muestran que en la escuela democrática hay evidencias de construcción de un ambiente que prioriza la búsqueda por la autonomía y el protagonismo juvenil. Sin embargo, hacen falta más estudios para arrojar resultados más conclusivos.
Palabras clave: Autonomía personal, Escuela básica, Democracia, Identidad personal.
1 INTRODUÇÃO
ste artigo é resultado de uma dissertação de mestrado (QUEIROZ, 2019) que nasceu da indaga
Este artigo é resultado de uma dissertação de mestrado (QUEIROZ, 2019) que nasceu da indagação sobre a educação convencional apresentada em nosso país e como nossas crianças lidam com ambientes de pouco diálogo e com um adulto dominante dirigindo-os e oferecendo-lhes conteúdo e formas sem a participação de forma ativa de acordo com seus desejos e afinidades. O modelo de escola conteudista parece-nos bastante comum e se apresenta quase como se fosse algo normal, aceitável e deveras correto. E os nossos jovens? Como eles respondem a este modelo de formação? Estamos formando jovens participativos e preparados para fazerem a diferença em nossa sociedade ou apenas jovens dependentes de direcionamento?
Abramo et al. (2000) afirmam que os jovens são o pavio de que as sociedades precisam para dar início aos processos de ruptura. Os autores ainda declaram que os jovens são revolucionários por estarem convivendo com outros jovens, por terem problemas com as gerações passadas e atuais, por questionarem aqueles que os ensinam, o que os diferencia dos adultos que já estão produzindo mecanicamente. Isso nos faz entender o potencial da juventude e o quanto ela é promissora. Sugere-nos a análise de poder que se encontra nas diferentes esferas das relações juvenis e fora delas, seja com seus pais, outros adultos e o ambiente escolar.
Gramsci (1978, p. 141) destaca que a pedagogia moderna sugere uma escola ativa, ou seja, que oferece a colaboração amigável entre professor e o aluno; uma escola ao ar livre e com a necessidade de deixar livre, sob a vigilância, mas não sob controle evidente do professor, possibilitando o desenvolvimento espontâneo do aluno. Assim, a espontaneidade possibilita a construção de identidade de um jovem sem podas, passível de ser autônomo e protagonista já em ambiente escolar, lugar esse onde é possível continuidade no campo das relações socioafetivas iniciadas na família e que seguirão pelos próximos anos de sua formação.
Pensando nisso, saímos em busca de escolas que caminham na contramão do modelo convencional, que apresentam o ensino de forma democrática e com foco no estudante, e que se “vendem” como estimulantes de uma formação de identidade autônoma, protagonista, capaz de contribuir com o desenvolvimento crítico dos estudantes inseridos neste modelo. De aqui em diante, nos referiremos a este modelo como convencional, em vez de utilizar o adjetivo tradicional, uma vez que entendemos que a grande maioria das escolas, dadas as grandes mudanças educacionais dos últimos tempos, não se enquadraria em um modelo tradicional propriamente dito, entendido como aquele que vigorou entre as décadas de 1960 e 1980, antes do surgimento e posterior hegemonia do paradigma construtivista.
Sendo assim, optamos por um estudo de caso em uma escola que se denomina democrática e que segue modelos propostos por autores como Josep M. Puig, ou ainda, algumas características da escola libertária Summerhill, proposta por Alexandre Sutherland Neill, onde os estudantes aprendem com liberdade e participação, excluindo o medo e a tirania da rotina escolar (NEILL, 1969).
Evidentemente que a educação como prática da dominação acredita na ingenuidade dos estudantes e retira-lhes a participação escolar. O que pretende em seu marco ideológico, e que nem sempre é percebido por muitos dos que a realizam, é indoutriná-los, prevalecendo sua acomodação ao mundo da opressão (FREIRE, 1987).
O objetivo geral inicial deste trabalho foi caracterizar uma escola democrática e a relação entre educação democrática e o desenvolvimento do protagonismo e da autonomia juvenil na formação de identidade. A pergunta principal definida para orientar o estudo foi: há relação entre a educação democrática, a autonomia e o protagonismo juvenil na formação de identidade de estudantes inseridos neste modelo de escola? Em outras palavras, uma escola que se reconhece como democrática favorece o desenvolvimento da autonomia e do protagonismo juvenil na formação da identidade dos estudantes? É neste contexto que buscamos compreender a conexão entre as relações de poder envolvidas na criação e manutenção de identidades sociais e a formação das identidades dos jovens em uma escola democrática.
2 AUTONOMIA E PROTAGONISMO JUVENIL NO DISCURSO DAS ESCOLAS DEMOCRÁTICAS
Se desejarmos entender a relação da educação democrática com a formação de identidade juvenil autônoma e protagonista, precisamos conhecer inicialmente os significados dessas duas palavras que são conceitos norteadores deste trabalho.
É evidente pensarmos na ausência de autonomia dos estudantes na educação convencional, em especial, da rede privada e com método apostilado, em que os estudantes são organizados em fileiras, recebem um material conteudista, o que não é de todo mal, mas que, provavelmente, reduz ainda mais a possibilidade de autonomia no aprendizado. A educação convencional, de modo geral, não prioriza os anseios, interesses e necessidades dos estudantes. Geralmente, os estudantes são inseridos em um grande sistema educacional, cobrando-lhes os mesmos resultados e oferecendo-lhes o mesmo prazo para tal. Ou seja, todos são imaginados como sendo “clientes” em busca de um mesmo produto e um mesmo resultado.
Para Duarte (2006), a pessoa autônoma tem condições de decidir pela própria vida através de princípios éticos e ela pode comandar o seu projeto pessoal de forma consciente. Ainda conclui que a autonomia é o conjunto de três dimensões interiores: o autoconhecimento, a autoestima e a autorregulação, tornando esse conjunto um novo paradigma da educação nos campos: emocional, espiritual, social e político.
Como trabalhar a autonomia? Como ofertar um ambiente de diálogo e com a escuta apurada? Como movimentar a participação e dar voz aos estudantes? Temos indícios de que a autonomia juvenil está aliada à participação efetiva desses jovens na educação e que a sua rotina escolar deve ser gerida de forma horizontal, por meio de trocas entre estudantes e docentes. De acordo com Paulo Freire:
Saber que devo respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do educando e, na prática, procurar a coerência com este saber, me leva inapelavelmente à criação de algumas virtudes ou qualidades sem as quais aquele saber vira inautêntico, palavreado vazio e inoperante. De nada serve, a não ser para irritar o educando e desmoralizar o discurso hipócrita do educador, falar em democracia e liberdade, mas impor ao educando a vontade arrogante do mestre (FREIRE, 1996, p. 62)
Entendemos que a autonomia não deve ser um discurso sem intenção de prática, e sim uma constante na educação. Reconhecer o estudante como capaz de organizar seus estudos, ser conhecedor de suas demandas, ser crítico e capaz de sugerir e votar mudanças no ambiente escolar, seja em reunião de sala ou assembleias, demonstra o respeito à autonomia e um movimento reverso pelo respeito à juventude.
Uma das hipóteses que orienta este trabalho é a de que a palavra “protagonismo” segue os passos da palavra “autonomia” e vice-versa. Percebemos que um educando autônomo será protagonista de sua vida e que um educando protagonista será autônomo em suas atividades e decisões. É quase que uma equação. Outra das hipóteses é a de que um currículo democrático poderia favorecer a construção da autonomia e do protagonismo.
Os jovens se relacionam de forma intensa nos meios em que estão envolvidos, seja no convívio familiar, comunitário ou na escola. E é muito comum que sua participação na escola seja importante e cativante, pois é lá que eles se reconhecem como seres autônomos, sem grandes interferências dos pais. É dentro das escolas que esses educandos são convidados a participarem de forma ativa de suas vidas e é aí que dizemos que protagonismo é pura participação, é fazer, é concretizar, é se inserir. Os jovens não nascem protagonistas, eles vão treinando habilidades de participação e vão se colocando mais próximos do protagonismo, através de atitudes e de palavras (COSTA, 2006).
A voz dos estudantes deve ser um ponto primordial na práxis educativa. Não há possibilidade de protagonismo juvenil sem o pilar da escuta dentro das instituições. Quem fala quer ser ouvido e quem ouve quer, democraticamente, devolver sua opinião ou crítica. É a construção do saber participativo, que concebe trocas e prioriza as relações.
É preciso existir um ambiente democrático para que se dê o protagonismo juvenil. Não há como construir uma identidade protagonista se os ambientes escolares e sociais são autoritários e permeados pela censura. É preciso promover um ambiente de escuta e, sobretudo, de confiança no jovem, para que ele se sinta encorajado a participar dos temas de sua vida sem que ele seja menosprezado ou diminuído em suas participações. Uma parte do protagonismo juvenil está intimamente ligada ao fato de que os jovens precisam sentir-se parte daquela comunidade. É importante que se reflita sobre a forma em que se pensa em fazer esse convite para ser desafiador e interessante.
Um ponto importante, no estudo da organização prática da escola unitária, o que diz respeito à carreira escolar em seus vários níveis, de acordo com a idade e com o desenvolvimento intelectual-moral dos alunos e com os fins que a própria escola pretende alcançar. A escola unitária ou a de formação humanista (entendido este termo, ‘humanismo’, em sentido amplo e não apenas em sentido tradicional) ou de cultura geral deveria se propor a tarefa de inserir os jovens na atividade social depois de tê-los levado a um certo grau de maturidade e capacidade, à criação intelectual e prática a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa (GRAMSCI, 1978, p. 121).
Em tal sentido, uma escola numa perspectiva humanista pode favorecer a construção da autonomia e do protagonismo juvenil, mas existem algumas diferenças entre uma escola libertária (sustentada pelo paradigma humanista) e uma escola democrática. Em tal sentido, nos parágrafos seguintes caracterizamos brevemente o paradigma humanista em educação, a educação libertária proposta dentro desse paradigma, por um dos seus expoentes, A. S. Neill, diferenciando-a da educação democrática.
3 O PARADIGMA HUMANISTA EM EDUCACAO E A EDUCACAO LIBERTÁRIA DE A. S. NEILL
É muito possível que o Paradigma Humanista seja o grande percurso dos interessados na educação democrática, pois a atenção ao educando como um todo, como um ser complexo e único, repleto de ramificações que estão interligadas e funcionam em conjunto, fazem com que o domínio socioafetivo e as relações interpessoais sejam enfoque na prática democrática. O Paradigma Humanista surgiu por volta de 1950, como uma reação social contra a desumanização pela repressão sexual e militar após a 2ª guerra mundial, e traz o domínio socioafetivo e as relações interpessoais como grandes pilares desse movimento.
O Humanismo nasce trazendo a ideia dos seres humanos como totalidades, dinâmicos e que se relacionam e se modificam constantemente. A grande problemática do Humanismo é justamente lidar com o ser humano de forma integral, levando em consideração que a personalidade humana está em constante formação e que se deve levar em conta o contexto interpessoal e social em que o ser humano está inserido. O movimento tem como fundamento epistemológico o Existencialismo, que defende que a formação de identidade se dá nas decisões que a pessoa vai tomando no decorrer de sua vida (HERNANDEZ, 1997).
Há pressupostos teóricos no Paradigma Humanista que ficam bastante claros de se distinguirem: 1. O ser humano é uma totalidade que excede a soma de suas partes; 2. O homem naturalmente tende à autorrealização; 3. O homem é um ser em um contexto humano; 4. O homem está ciente de si mesmo e de sua existência; 5. O homem tem o poder de decidir; 6. O homem é intencional (HERNÁNDEZ, 1997).
As projeções de aplicação ao campo educacional reacendem a crítica ao currículo existente em meados dos anos 60, nos Estados Unidos. Estudantes já seguiam um momento de protestos contra o currículo uniforme e desumanizante, e alegavam que esse seria um motivo para falhas no desenvolvimento social e acadêmico dos alunos, como pontua Hernandez (1997).
Faz-se necessário entender que o Humanismo promove uma relação abrangente entre educador e educando, incluído conhecer o aluno e possibilitar que ele se autorrealize e se reconheça como livre para realizar suas escolhas e abordar com segurança os processos afetivo e emocional. Neste sentido, é possível perceber a concepção de ensino pelo Paradigma Humanista, que sugere que o educador ajude os alunos para que eles possam decidir o que eles são e/ou que querem chegar a ser, levando em consideração que todos os educandos são diferentes; promova a auto realização do aluno em todas as esferas da personalidade; fomente a aprendizagem significativa, recriando o clima de liberdade total e promova uma educação baseada no desenvolvimento de uma consciência ética, altruísta e social. Os esforços didáticos devem estar encaminhados com a finalidade de conseguir que as atividades dos alunos sejam autodirigidas, fomentando a aprendizagem e a criatividade, não limitando nem colocando restrições na entrega dos materiais pedagógicos, mas proporcionar aos alunos todos os materiais possíveis (ROGERS, 1978).
O Humanismo reafirma que os educandos são seres completamente únicos e diferentes dos demais; eles são seres com iniciativa, com necessidades pessoais de crescimento, capazes de autodeterminação e com a potencialidade de desenvolver atividades e de resolver problemas de forma criativa (ROGERS, 1978), são seres que participam cognitivamente das aulas, possuem afetos e têm vivências particulares, além de serem pessoas totais, não fragmentadas.
3.1. A escola libertária Summerhill
Alexandre Sutherland Neill foi um educador e escritor escocês de grande importância para a educação humanista da época e até os dias de hoje. As ideias de Neill possuem similaridades com as de Rogers, pois os dois defendem uma escola sem medo e autoritarismo, prezando a confiança e empatia pelo aluno, reservando ao professor a oportunidade de facilitar o ensino, estando disponível para suas demandas, de forma transparente, humana, atenciosa, empática e confiante. Neill se coloca contra o método engessado das instituições de ensino e confere ao aluno a responsabilidade por sua vida escolar.
A democracia é vivenciada em escolas como a Escola Summerhill, fundada em 1921 por Neill, e denominada escola libertária. Lá ninguém diz o que os estudantes devem vestir, ficam em liberdade, ninguém organiza o que eles deixaram fora do lugar e não sofrem inspeções. Quando a escola foi fundada, a ideia inicial era que a escola se moldaria aos alunos e não o contrário. A função da autonomia em uma escola libertária (como a Summerhill) não é apenas fazer leis, mas discutir os fatos sociais da comunidade. As regras são feitas ao início de cada novo período escolar, relativas à hora de dormir, por exemplo, através de votação. Primeiro eles decidem quem vai para a cama primeiro, e isso leva em consideração a idade. Depois, decidem sobre o comportamento geral. São eleitas as comissões de esporte, as dos bailes, as de teatro, nomeiam-se os fiscais do horário de recolher, e os do centro da cidade, que são os que fazem o relatório de possível comportamento vergonhoso de alunos fora dos limites da escola (NEILL, 1970).
A educação libertária de Neill caracterizada aqui é um modelo bastante criticado pela educação democrática, uma vez que a educação democrática acredita na importância da hierarquia nas instituições e nas regras a serem cumpridas sem que possam ser ignoradas pela vontade do estudante, por exemplo. Dessa forma, na próxima seção caracterizaremos o modelo democrático de gestão escolar, possibilitando-nos entender as principais diferenças dos dois modelos.
4 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA E PARTICIPAÇÃO ESCOLAR
A maioria dos professores e escolas se considera democrática e não se questiona sobre a base conceitual da palavra (Araújo, 2002). Entendemos que o significado literal de democracia seja simples de compreender: governo (kratos) pelo povo (demos), e que educação e democracia sempre estiveram entrelaçadas, mesmo no seu início na pólis de Atenas, pois era um desejo saber qual seria o melhor tipo de educação para preparar o povo (demos) e ter a sua efetiva participação no governo (kratos) da sociedade. (BIESTA, 2013)
Segundo Puig (2000), a escola deve preparar o estudante para a democracia, propiciando práticas pedagógicas que respeitam os valores e o espírito de esse sistema de governo, expressando em formas educativas adaptadas às peculiaridades de cada situação escolar. Ele ainda diz que uma escola será democrática quando suas práticas e valores respeitarem os princípios democráticos, evitando copiar formas específicas de condução da democracia política, e completa que a escola democrática deve preparar o estudante para a vida democrática com fórmulas que a prefigurem, sem imitar a democracia política. A educação democrática não é uma forma de educação totalmente livre, em que os educandos decidem livremente o que preferem estudar, mas sim, devem seguir regras pré-definidas, que são chamadas de combinados. Esses combinados também estão relacionados com uma hierarquia organizacional não agressiva, ou seja, há a relação entre educando e professor de forma horizontal.
Na escola democrática os estudantes encontram espaço favorável para participação, respeitando o caráter simétrico e assimétrico das relações entre estudantes e professores. Isto é, há limites pré-estabelecidos entre as partes, visando manter a organização com políticas claras e com um conjunto de valores daquela instituição de ensino.
4.1 ASSEMBLEIA ESCOLAR: o núcleo da educação democrática
As escolas democráticas priorizam as relações humanas e as maneiras democráticas de se tomar decisões; com isso, o uso de assembleias escolares torna-se uma prioridade nas relações de diálogo. É possível encontrarmos diferentes formas de resolução de conflitos em nossa sociedade: algumas formas mais autoritárias, com alguém que decida pelo grupo, outras nem tanto, mas que nem sempre priorizam o bem comum e a coparticipação responsável.
Araújo (2004) apresenta alguns pressupostos que podem assentar as bases das assembleias escolares e sua importância na construção da vida coletiva e pessoal: a democracia social e escolar; o protagonismo e a participação social; os valores morais e éticos; o entendimento sobre como estratégias de resolução de conflitos podem contribuir para a formação ética e psíquica das pessoas e para a transformação das relações interpessoais na escola. Dessa forma, é importante entendermos que as assembleias escolares não são importantes apenas para a formação de identidade juvenil, mas para a transformação das relações de todos os participantes do processo, uma vez que elas têm a capacidade de melhorar o trabalho e a convivência escolar de todos os envolvidos.
Uma das formas de participação do alunado na escola pesquisada é a assembleia escolar. Momento em que os estudantes e educadores se reúnem para discutir temas diversos, pensar soluções para problemas, buscar saídas para resoluções de conflitos e todo e qualquer assunto que seja pertinente e que compreenda tratar-se de algo que tenha importância para a comunidade escolar.
Há na escola dois tipos de assembleia, a assembleia geral, que acontece com todos os integrantes da escola. Pode ocorrer em uma grande sessão ou dividida por temas de interesse, séries, entre outros. Normalmente, a divisão acontece quando os temas são bastante específicos de alguma faixa etária ou quando são muitos temas a serem deliberados, não havendo tempo hábil para contemplar todos os assuntos pré-estabelecidos. A assembleia geral acontece em um espaço maior, onde todos podem se sentar em uma grande roda, contribuindo para que todos se vejam e consigam interagir. Há uma pessoa específica para organizar a pauta e a ordem em que os temas serão discutidos. Outra é responsável por anotar os nomes e a ordem das pessoas que levantam a mão comunicando a intenção de participar. Outro estudante é responsável por anotar os votos dos temas deliberados. E há também um estudante responsável por anotar tudo o que se passa na assembleia, para então escrever a ata da assembleia, o que caracteriza uma mediação feita pelo próprio grupo. Outra forma de assembleia e que contempla a todos os estudantes da escola, incluindo os menores do ensino fundamental I, são as assembleias de classe. Esses pequenos grupos se reúnem para discutir temas relacionados a sua sala de aula. A organização e funcionamento seguem o modelo das assembleias gerais, como forma de preparo e treino para grandes assembleias. Nestes espaços menores, os educandos são convidados a deliberar assuntos de seu grupo menor, mas que nem por isso são menos importantes ou mais simples que as assembleias gerais. Os temas para uma assembleia são pré-estabelecidos antes dela se iniciar. Esses temas são marcados pelos estudantes em uma lousa e depois são filtrados pela comissão de assembleia, e podem ser bem variados, desde a discussão sobre o uso de celular na escola, limpeza e cuidado com o espaço, descuido de materiais, preconceito, entre os mais diversos temas que possam surgir.
As assembleias gerais costumam acontecer com uma periodicidade de 15 dias, mas isso não é regra, uma vez que ela pode acontecer em um intervalo menor por conter temas importantes a serem deliberados. Já as assembleias de classe podem ocorrer a qualquer momento à medida que necessitem discutir e resolver problemas do grupo pequeno. Além disso, o clima deve ser aberto para toda a comunidade escolar, possibilitando o diálogo e a participação efetiva de todos os membros. Os estudantes precisam reconhecer a escola como um espaço de pertencimento e de participação, tornando-se parte da vida da instituição.
O modo mais comum de se compreender a relação entre a democracia e a educação é aquele em que o papel da educação é visto como o de preparar as crianças – e os “recém-chegados” de forma mais geral – para sua futura participação na vida democrática. Nessa abordagem, o papel da educação democrática é considerado triplo: (1) ensinar sobre a democracia e os processos democráticos (o componente conhecimento), (2) facilitar a aquisição de habilidades democráticas como deliberar, tomar decisão coletiva, e lidar com a diferença (o componente habilidades) e (3) sustentar a aquisição de uma atitude positiva em relação `a democracia (a componente disposição ou valores). (BIESTA, 2013) A participação escolar não deve se ater apenas ao discurso da participação, do espaço para a escuta, evitando cair em verbalismos sem significação, como alerta Puig (2000). É preciso trazer a participação e a intervenção para o campo escolar.
5 CONTEXTO DE PESQUISA: caracterização da escola
A escola escolhida para a pesquisa está localizada na zona rural da cidade de Cotia, grande São Paulo, é de iniciativa privada e se autodenomina como uma escola democrática. Possui cerca de 163 estudantes divididos em mais ou menos 130 famílias moradoras de Cotia, Itapevi, Jandira, São Paulo e região. As famílias possuem renda mensal entre 5 e 15 salários-mínimos e a escola possui muitos estudantes bolsistas, o que sugere uma importante diversidade social. A escola iniciou suas atividades há 31 anos, oferecendo apenas a educação infantil, o ensino fundamental há 21 anos e, em 2019, o ensino médio. Seu surgimento, características e trajetória permitem aproximá-la de outras pré-escolas particulares criadas na cidade de São Paulo a partir de meados da década de 1970, por iniciativa de educadoras e famílias de classe média intelectualizadas, identificadas com a esquerda e os movimentos em defesa da cidadania, que recusavam tanto os costumes tradicionais como o padrão de modernização estabelecido pela ditadura no Brasil. As primeiras experiências desse tipo foram caracterizadas por Daniel Revah no artigo “As Pré-Escolas Alternativas”:
Apesar de se tratar de escolas, durante vários anos, as questões educacionais foram sobrepujadas por uma outra questão bem mais abrangente, ligada às principais preocupações desse segmento das camadas médias. Nessas pré-escolas, mais do que uma “educação alternativa”, procurava-se gestar uma nova forma de vida, uma “vida alternativa”, isso é, um modo de ser e viver que pretendia-se, fosse inteiramente diferente do que então predominava. Além das crianças, portanto, os próprios adultos viam-se imersos num processo em que eles estavam se reeducando, avaliando e mudando os seus próprios comportamentos e valores, mudanças que, aos poucos, foram quase compondo um estilo de vida. (REVAH, 1995, p. 53)
A escola defende a educação participativa e se autodenomina uma escola democrática, praticando os conceitos de uma educação humanista, com foco na compreensão do estudante e no desenvolvimento da autonomia e do protagonismo juvenil. O modelo democrático de gestão apresentado pela instituição, que inclui uma proposta pautada nos campos de diálogo, na defesa pela participação efetiva dos estudantes nas mais diversas fases da rotina escolar, a liberdade e incentivo à formação crítica dos estudantes foram algumas das importantes características que nos fizeram escolhê-la como lócus da coleta de dados, sendo um objeto de pesquisa capaz de auxiliar-nos na busca de respostas para nossas indagações. A escola mantém iniciativas com o intuito de atender as demandas de uma instituição que se desenha de forma horizontal, mas que, nestes moldes, precisa manter as relações entre professor-estudante bem delimitadas, assim como acontece nas relações pai, mãe e filhos, em que deve haver respeito, diálogo, liberdade, sem que os lugares se igualem, pois é importante que os jovens compreendam, de forma responsável, os diferentes papéis sociais. No ano de 2017 a escola foi premiada como uma das 18 escolas transformadoras no Brasil, segundo o Instituto Ashoka e a ONG Alana.
O Projeto Político Pedagógico (PPP, daqui em diante) da escola pesquisada é um documento de 35 páginas, que diz que a instituição oferece um ambiente intelectualmente desafiador e seguro, acreditando que priorizar a participação dos estudantes nas decisões favorece a cooperação, as relações interpessoais e a aprendizagem, além do emprego da democracia. O documento contém dados de identificação da escola, área de jurisdição (Diretoria de Ensino de Carapicuíba), identificação da mantenedora e tipos de ensino mantidos pela escola, sendo eles: Educação Infantil, Ensino Fundamental I, Ensino Fundamental II, e Ensino Médio. Apresenta também a Missão, espaço que a escola reservou para apresentar o que deseja alcançar com o seu trabalho, como segue:
A escola tem como missão formar crianças e adolescentes capazes de progressivamente gerir seu próprio aprendizado e desenvolvimento, tornando-se cidadãos e plenos, responsáveis e comprometidos com o bem-estar social. - Contribuir para o desenvolvimento integral da criança e do adolescente, em seus aspectos físico, afetivo, psicológico, intelectual e social (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2019, p. 4).
O PPP destaca que desde sua fundação, a escola preocupou-se com as práticas educacionais de participação ativa dos educandos e famílias, inserindo o diálogo e a participação. Também apresenta a atuação da escola em fóruns de discussão e trabalho entre educadores, como a articulação e participação na Rede Nacional de Educação Democrática (desde 2012). São apresentados os objetivos gerais e específicos da instituição, em que a escola afirma destinar-se à formação da criança, do adolescente e do jovem. Busca o desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de autorrealização e preparação para o exercício consciente da cidadania, variando em conteúdo e métodos, de acordo com as fases de desenvolvimento dos estudantes da instituição. O PPP apresenta também que a escola possui algumas propostas pedagógicas utilizadas para a manutenção e incentivo das ações protagonistas e de desenvolvimento da autonomia juvenil.
6 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Antes de iniciarmos a coleta de dados para essa pesquisa, efetuamos os procedimentos para submissão, avaliação e acompanhamento de pesquisa e de desenvolvimento envolvendo seres humanos no Brasil, nos termos do item 5, do Capítulo XIII, da Resolução CNS n° 466, de 12 de dezembro de 2012, conforme instruções do Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos – CEP, obtendo a autorização da Universidade onde foi sediada a pesquisa.
Sob o ponto de vista teórico conceitual, a presente pesquisa é classificada como exploratória, sendo efetivada através de um estudo de caso em uma escola da região metropolitana de São Paulo que se assume como democrática, e que foi caracterizada acima.
Como ferramenta de coleta de dados utilizamos entrevistas com estudantes utilizando a técnica do grupo focal, entrevistas individuais com corpo docente, observações da rotina escolar, análise do PPP da escola, coleta de dados das redações na escola democrática, coleta de dados das redações em uma segunda escola de modelo convencional.
Fizemos duas sessões de grupo focal, sendo a primeira contendo 5 (cinco) participantes com duração de 44 minutos, ocorrida em 27 de outubro de 2017 e a segunda sessão de grupo focal em 30 de novembro de 2017, com 10 (dez) participantes e duração de 52 minutos. Grande parte dos estudantes participou ativamente da entrevista, mas ficou bastante claro que os estudantes começam de forma tímida e vão se soltando com o decorrer da entrevista. Eles iniciam a entrevista com respostas curtas e vão adquirindo confiança aos poucos, aumentando o discurso e contribuindo com mais dados. Realizamos também entrevistas individuais com o corpo pedagógico da escola com a intenção de conhecer as especificidades do currículo da escola, suas estratégias para oferecer um ambiente democrático, sua forma de trabalhar e lidar com as questões do dia-a-dia.
Foram duas entrevistas com docentes, uma delas com a duração de 41 minutos em 30 de outubro de 2017 e outra com duração de 58 minutos em 01 de fevereiro de 2018. Nestas entrevistas tivemos a possibilidade de ouvir o que o corpo docente espera da formação de identidade juvenil nesta escola, o trabalho que eles realizam em torno da autonomia, do protagonismo juvenil e da responsabilidade e como eles acreditam que a liberdade dos estudantes dentro da escola afeta positivamente o aprendizado.
Além das entrevistas, fizemos observações da rotina dos estudantes e funcionários da escola e que serviram de ferramentas para compor nossa análise, além de aplicação de redações em dois colégios distintos, uma na escola democrática estudada nesta pesquisa e outra em uma escola convencional, na mesma região, com estudantes de oitavos e nonos anos, ou seja, de mesma faixa etária. O objetivo foi colher informações sobre como os estudantes dos dois colégios conceituam o que é ser jovem no Brasil hoje, identificando a capacidade de construção de análise crítica acerca do tema, localização de possíveis indícios de protagonismo, autonomia e responsabilidade, segundo as categorias construídas neste trabalho para a análise de dados coletados.
A partir dos dados dessas duas escolas distintas foi possível comparar informações e realizar uma análise comparativa, oferecendo-nos formas mais claras e objetivas de perceber possíveis diferenças entre os estudantes das duas escolas, considerando as diferentes culturas escolares. Cabe afirmar que essa foi a única forma de coleta de dados para análise comparativa entre as escolas, uma vez que a escola convencional apenas participou das redações, não havendo coleta de outros dados, tais como entrevistas com estudantes ou docentes, ou mesmo observação das diferentes rotinas da escola, como aconteceu com a escola democrática, que é o nosso objeto de estudo.
O tratamento dos dados obtidos e as interpretações foram feitas por meio da análise de conteúdo, que fornece ferramentas adequadas para este estudo de caso específico. Optamos por tratar os dados a partir da análise de conteúdo, segundo Bardin (2016), pois encontramos uma base teórica bastante interessante no que tange à análise de conteúdo e à linguística, e à análise de conteúdo e análise documental. Definimos os materiais que nos forneceriam os dados a serem utilizados para a análise, e posteriormente fizemos uma leitura flutuante com o intuito de identificar temas emergentes, organizando-os de forma singular e definindo categorias para este processo. Surgiram, dessa forma, três categorias de análise: autonomia, responsabilidade e protagonismo. Após a definição das categorias e com base na bibliografia utilizada, iniciamos o processo de construção das listas de indicadores para cada uma das categorias, que nos daria subsídio para a análise dos dados coletados. O esquema analítico completo é mostrado no quadro 1 a seguir.
Para preservar as identidades das pessoas envolvidas na pesquisa, utilizamos siglas para identificação dos entrevistados e dos autores das redações. Dessa forma, as siglas utilizadas foram: D1, D2: docente 1, docente 2, para identificar os docentes entrevistados; E1, E2, ...: estudante 1, estudante 2, e assim sucessivamente, para identificar os estudantes entrevistados; RD1, RD2, ...: redação 1 da escola democrática, redação 2 da escola democrática, e assim sucessivamente; RC1, RC2, ..: redação 1 da escola convencional, redação 2 da escola convencional, e assim sucessivamente. A continuação, apresentamos a análise e discussão dos principais resultados por categoria.
7 ANÁLISE E DISCUSSÃO
No que se segue, apresentamos a conceituação de cada categoria de análise, os principais resultados por categoria, bem como uma discussão sobre os principais achados. A íntegra da análise pode ser encontrada na dissertação de mestrado.
7.1 Autonomia
A autonomia no âmbito educacional está relacionada às possibilidades do estudante se relacionar de forma livre e pessoal, fazendo escolhas conscientes e responsáveis, conhecendo previamente as implicações de suas escolhas e, consequentemente, contribuindo para a formação de sua identidade, sem esquecer das contribuições. Freire (1993) afirma ainda que educandos que percebem a alegria e esperança produzem bons feitos no campo da autonomia. A esperança é capaz de reunir grupos para ensinar, aprender, inquietar e, desta forma, preservar a manutenção da autonomia juvenil no âmbito educacional.
Além disso, o respeito à autonomia deve ser uma prática da escola não apenas oferecendo propostas educacionais que possibilitem a autonomia, mas respeitando a autonomia daqueles estudantes que ali estão inseridos. E é desta forma também que o professor deve contribuir com a autonomia juvenil. Nunca se pretendendo dono do conhecimento ou superior ao estudante, mas como parte do processo e como pessoa em constante evolução. Assim, buscamos encontrar indícios de autonomia nas falas dos estudantes dentro da escola, considerando que autonomia é também um exercício constante de autoconhecimento.
O entrevistado E4 afirma:
A autonomia no âmbito educacional está relacionada às possibilidades do estudante se relacionar de forma livre e pessoal, fazendo escolhas conscientes e responsáveis, conhecendo previamente as implicações de suas escolhas e, consequentemente, contribuindo para a formação de sua identidade, sem esquecer das contribuições. Freire (1993) afirma ainda que educandos que percebem a alegria e esperança produzem bons feitos no campo da autonomia. A esperança é capaz de reunir grupos para ensinar, aprender, inquietar e, desta forma, preservar a manutenção da autonomia juvenil no âmbito educacional.
Além disso, o respeito à autonomia deve ser uma prática da escola não apenas oferecendo propostas educacionais que possibilitem a autonomia, mas respeitando a autonomia daqueles estudantes que ali estão inseridos. E é desta forma também que o professor deve contribuir com a autonomia juvenil. Nunca se pretendendo dono do conhecimento ou superior ao estudante, mas como parte do processo e como pessoa em constante evolução. Assim, buscamos encontrar indícios de autonomia nas falas dos estudantes dentro da escola, considerando que autonomia é também um exercício constante de autoconhecimento.
O entrevistado E4 afirma:
Eu me sinto protagonista porque eu realmente mudei aqui, porque aqui as coisas estavam tão fluidas que se eu não quisesse fazer alguma coisa eu não faria. Eu acabei ficando com medo. Quando eu percebi que eles estavam falando sobre a revolução francesa no oitavo e no nono ano isso me assustou e eu imaginei o que outras escolas estariam aprendendo, aí eu comecei a ter autonomia e a estudar outras coisas em casa. Eu acho que se eu voltasse para uma outra escola eu continuaria aprendendo de forma autônoma, por minha conta. (E4)
O entrevistado E4 apresenta uma crítica ao conteúdo estudado em sua série, que pode ser caracterizado dentro do indicador senso crítico desta categoria, já que ele faz uma construção minuciosa sobre um assunto que deveria ter sido estudado em séries anteriores. Demonstra sua preocupação com o ritmo da escola e aproveita para complementar que buscou sua autonomia para estudar conteúdos que acredita serem essenciais para a fase em que ele está agora, o que sugere sua capacidade em organizar os seus estudos. Isso ocorre mesmo quando ele se depara com alguma incompatibilidade, seja por deficiência de conteúdo oferecido ou por necessidade própria, sendo isso compatível também com o indicador de leitura e pesquisa autônoma desta categoria. Ele enfatiza que a autonomia adquirida neste colégio faz com que ele a aplique em outros momentos de sua vida, inclusive se ele estiver em uma outra escola. Em sua fala, sugere que a autonomia esteja sendo adquirida, pois afirma ter percebido que precisava ser deste modo, que não seria positivo aguardar que a escola o dirigisse.
Outro aspecto dessa fala é que o fato desse estudante alcançar as características acima ocorreu por sentir medo de estar atrasado nos estudos, o que demonstra uma certa fragilidade nas questões de conteúdos oferecidos pela escola. É preciso pensarmos que um currículo flexível também é capaz de proporcionar um gap nas questões básicas de conteúdos apresentados.
Perguntamos aos estudantes se eles achavam que teriam alcançado a autonomia que têm hoje caso estivessem em outra escola. O entrevistado E1 respondeu que: “Não, eu não teria alcançado. Eu estaria como um estudante normal, não me esforçando muito. Alguém me direcionando e eu só seguindo e não me esforçando muito. Essa escola me fez dar essa caminhada.” (E1). Nessa fala, o entrevistado afirma que a autonomia adquirida neste colégio não seria alcançada em uma escola convencional, já que ali ele não tem um professor que o direciona o tempo todo, fazendo com que ele se sentisse acomodado e não buscasse conhecimento fora do que foi oferecido. Aqui, de acordo com o indicador de Leitura e Pesquisa Autônoma, podemos pensar que esse estudante se viu em um ambiente que o convida a ser ativo na busca pelo conhecimento. Percebeu-se fora da forma confortável de receber o conteúdo preparado pelo professor e foi em busca de conhecimento por si só, reconhecendo que o ambiente desta escola sugere a autonomia nos estudos.
Em entrevista com um docente do colégio em que perguntamos sobre as principais características do colégio que contribuem com formação da autonomia dos estudantes, respondeu:
[...] um ponto importante é não enxergar a sala de aula como o único local de aprendizagem. A ideia é explorar o espaço, dar uma volta, escolher lugares agradáveis, aprender e anotar os diferentes tipos de arvores que temos, por exemplo. E não ficar restrito na sala de aula e que sim, em qualquer lugar da escola se educa. Outro ponto é o trabalho interdisciplinar que a gente faz, seja por tema ou por projeto, seja por diálogo dos professores da aula. Outro ponto é a possibilidade de escolha. Há um determinado tema e ele quer fazer um recorte x. Ok, pode fazer, é um recorte e ele pode escolher. Isso acontece nas eletivas também, o aluno escolhe o que quer estudar e essa escolha eu acho importante. O trabalho interdisciplinar, o trabalho por projeto, a exploração do espaço, a possibilidade de participação, de protagonismo. A gente ouve muito falar de protagonismo por aí, mas se o aluno não tem voz não é protagonismo, é apenas para inglês ver. (D1)
Deste modo, percebemos que há preocupação da escola com os contextos de liberdade, autonomia e protagonismo dos estudantes, e que essa preocupação não se limita ao método aplicado, mas também ao conjunto de ferramentas que valorizam o processo da busca pelo aprendizado, sendo o currículo flexível um diferencial no modelo desta escola. As diversas formas de participação do estudante são priorizadas, mas há uma preocupação em preparar um ambiente propício para as descobertas.
Oferecer uma estrutura física ampla, repleta de espaços ao ar livre ou fechados, salas de aula, bibliotecas, ateliês, quadra, gramado, entre outros, torna a escola um ambiente agradável e flexível, já que os estudantes possuem a liberdade de estudarem pelos diversos cantos da escola.
Foi possível verificar essa informação em nossas observações feitas na escola, uma vez que encontramos, por diversas vezes, estudantes com seus livros, cadernos e computadores, espalhados pela escola, em suas aulas de Projeto Pessoal e Projeto Interdisciplinar, por exemplo. Além disso, as atividades interdisciplinares unem o corpo docente e os estudantes, facilitando as relações entre as diversas áreas. Atribuir ao estudante a possibilidade de relacionar-se de forma horizontal, mesmo que eles saibam da hierarquia entre aluno e docente, é promover uma educação mais humana e democrática, objetivando a voz entre todos os envolvidos, o que nos sugere que essa fala está bastante ligada ao indicador Relações Interpessoais desta categoria.
É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos. (FREIRE, 1996, p. 26)
Partiremos para a análise da categoria reponsabilidade, considerando que um sujeito autônomo e protagonista necessita possuir boas noções de responsabilidade, sendo capaz de reconhecer regras, arcar com escolhas, com a liberdade e com o criticismo ao se deparar com as mais diversas situações da vida.
7.2 Responsabilidade
Neste trabalho, ao falarmos de responsabilidade trataremos de uma característica bastante presente no estudo da formação da identidade juvenil em uma escola democrática, pois para que um estudante se estabeleça de forma autônoma e se sinta protagonista de sua vida escolar precisa ser responsável por suas conquistas e insucesso. Ser responsável, neste caso, é reconhecer o que se espera dele no processo de aprendizagem, saber de suas atribuições e corresponder ao que sugere a busca pelo conhecimento. Ser responsável por suas escolhas é arcar com elas até o final, mesmo que encontre dificuldades para finalizar a tarefa. Saber que suas escolhas refletem em resultados e que os jovens devem estar preparados para essas consequências. Reconhecer o momento de não deixar uma oficina para beber água ou até mesmo de deixá-la, por não estar dedicado àquilo naquele momento pode ser um indício de responsabilidade consciente.
Nesta categoria, veremos diversas apresentações da palavra responsabilidade que, segundo Escámez e Gil (2003), é um fenômeno que pode apresentar-se em quatro situações diferentes. A primeira é quando a pessoa é responsável por algo ou tem a responsabilidade de algo. A segunda é quando a pessoa assume a responsabilidade de alguma coisa ou fato. A terceira é quando a pessoa se torna responsável por alguma coisa. A quarta é quando alguém atua responsavelmente. Afirmam ainda que as três primeiras manifestações são independentes entre si, o que significa, por exemplo, que o estudante pode ser responsável pela sua vida escolar e não ser de fato responsável. Ou ainda, que cabe muito bem ao nosso estudo, mesmo o estudante sendo responsável por sua vida escolar, não assume essa responsabilidade ou se recusa a fazer algo, responsabilizando-se, portanto, por agir assim.
Percebemos o que um estudante pensa sobre o significado da palavra responsabilidade ao questioná-los se eles se sentem responsáveis pela vida escolar. Na opinião deste estudante:
Eu me sinto, mas eu não sou. (rs) Eu sei que quem está fazendo a escola sou eu, meus pais já fizeram a escola deles. Então, eu tenho que fazer a minha. Não dá para achar que eu tenho que fazer só o que a minha mãe manda. (E10)
Nesse depoimento, é possível perceber uma confusão entre ser e sentir-se responsável pela vida escolar. Primeiro afirma que se sente responsável, mas que não o é, e conclui com uma risada. O ponto principal da fala fica evidenciado no restante do texto, ao afirmar que os pais já concluíram os seus estudos e que agora a tarefa é dele e não dos pais, demonstrando que conhece a importância de ser responsável com seus estudos e de que só ele pode fazer isso. Afirma, ainda, que não deve fazer apenas o que a mãe solicita, deixando implícito que ele deve ser protagonista em suas tarefas escolares e se antever aos pedidos da mãe, buscando realizar suas atividades sem que um adulto o solicite. Isso já ocasionaria uma ação responsável por deixar subentendido que reconhece as consequências de seus atos escolares. Percebe-se que esse estudante apresenta um indicador de responsabilidade que em nossa tabela chamamos de Liberdade Responsável.
Quando perguntamos se a escola oferece a opção de troca do tema a ser estudado, buscando saber mais sobre como os estudantes lidam com suas escolhas, que definimos como um indicador desta categoria, o entrevistado E6 respondeu que: “Depende do tema. Se a gente não gosta daquele tema a gente pode conversar com o professor e pedir para mudar o tema. Talvez ele não mude o tema, mas a gente pode tentar.”
Parece que a escola trabalha com flexibilidade e oferece ao estudante a possibilidade de diálogo. Mas parte da formação da identidade autônoma e protagonista exige que a responsabilidade esteja presente. Sugere-se que, mesmo que o estudante tenha intenções de trocar um tema a ser estudado, é importante que se responsabilize por suas escolhas e arque com isso, finalizando projetos iniciados, como sugerimos em nosso indicador Escolhas dentro dessa categoria.
Um docente da escola contribui sobre a relação da responsabilidade no caminho de conquista da autonomia.
Eu acho que só a partir do momento em que eles se sentem responsáveis é que o aprendizado e toda a vivência terão mais significados. Não acho que seja automático dar a autonomia para eles e achar que isso acontecerá. É um trabalho, um percurso, e como educador precisamos favorecer momentos e ensinar o que é ser autônomo, que é diferente de liberdade. Isso é um trabalho que demanda e precisamos estar sempre atentos para que isso aconteça, se isso entrar no automático sem uma supervisão muitas vezes isso não acontece. (D2)
Este docente evidencia a sua preocupação em supervisionar os estudantes em seu processo de formação de identidade autônoma. Conclui que os estudantes devem alcançar a responsabilidade para então conhecerem a autonomia, e que a liberdade é diferente da autonomia. Parece que esse professor, seguindo nosso indicador de Liberdade Responsável, acredita que para alcançar a autonomia, o estudante precisa participar das atividades com atenção e comprometimento, sem dispersar, que faz coro com a visão de Escaméz e Gil (2013, p. 19), quando apresentam as capacidades ou competências básicas de uma pessoa responsável que, no âmbito cognitivo, incluem a capacidade de deliberação, de julgar as próprias ações, atendendo às circunstâncias em que são produzidas, a capacidade de analisar as consequências das ações e a capacidade de compreender que as próprias ações repercutem na vida das pessoas de hoje e das que estão por vir. Já no âmbito avaliativo-afetivo, a capacidade de autonomia para tomar as próprias decisões, a capacidade de resistir às pressões internas ou externas, que vão contra as decisões tomadas, e para assumir essas decisões, e a capacidade de comprometer-se com o bem-estar do mundo. No âmbito comportamental, eles citam a capacidade de realizar ações que decidam naquela sociedade em que vivem e a capacidade de articular esses meios.
A capacidade de articulação exige doses de responsabilidade, como definimos no indicador Análise crítica Responsável, uma vez que os discursos ocorrem em contornos sociais que apresentam grande diversidade cultural.
Compreendemos que o caminho para alcançar a responsabilidade em sua totalidade é um processo constante de autoconhecimento, escolhas e experiências. Alguns estudantes a percebem em um ritmo diferente de outros. E isso se deve ao desenvolvimento pessoal de cada um. Por isso, é possível que algum estudante se sinta mais responsável com a liberdade que possui e que outros ainda não saibam lidar com isso.
Um outro ponto importante que percebemos em muitas redações do colégio convencional é a queixa por se sentirem muito pressionados a apresentarem resultados positivos em seus estudos e vida social. Isso nos fez pensar que o indicador de Liberdade Responsável se apresenta de forma contrária, como por exemplo, uma possível alta exigência de responsabilidade em torno desses jovens do colégio convencional.
Esses estudantes comentam que os pais exigem tanto o resultado positivo nos estudos que eles chegam a afirmar que o preço pago na escola exige que o rendimento desse estudante seja ainda maior, fazendo valer o esforço das famílias em patrocinarem estudos caros, como vemos abaixo na fala desse estudante.
Para a maioria dos jovens o que mais procuram é um bom emprego, mas o mercado de trabalho mudou e está mais exigente, alguns estudantes observam e consideram seus próprios amigos competidores para a entrada na faculdade e mercado de trabalho. Para os que estudam em colégio ou universidades particulares é comum ter uma pressão sobre o dinheiro que é investido para que ele possa provar que não é desperdício. (RC2)
Na fala, além da cobrança da família por um resultado positivo considerando o alto investimento que eles fazem, percebe-se que o próprio estudante reconhece que essa pressão ultrapassa os limites familiares e influencia as relações cotidianas. Assim, passam a tratar seus colegas como competidores nos futuros empregos ou vestibulares, desde já, nas relações da idade jovem, excluindo possibilidades de construções coletivas e priorizando a concorrência e o individualismo tão precocemente.
Daí a importância de pensarmos com responsabilidade e criticidade um modelo de estudo que preze o coletivo e não o individualismo e concorrência acirrada que o capitalismo já nos oferece de forma exorbitante.
Por meio dos dados analisados, vimos que o trabalho coletivo e a construção de relações em grupo para a formulação de soluções em conjunto são bastante incentivadas nas escolas democráticas, o que nos sugere que a responsabilidade é construída em sociedade e de forma mais leve, que serve de contraponto à cobrança excessiva de resultados sofrida pelos estudantes do colégio convencional que ocasionam relatos de sofrimento mental. Cabe-nos, também a tarefa de pensarmos nas necessidades amplas dos sujeitos, pois a atenção ao estudante como um ser complexo e único permite-nos afirmar que as relações interpessoais prevaleçam na prática democrática.
7.3 Protagonismo
Percebemos que muitas vezes a palavra direcionamento apareceu nos dados analisados. Isto parece se dever ao fato de que os estudantes de uma educação democrática aderem à perspectiva da liberdade para organizar suas atividades, pesquisar, escolher o tema de seu projeto pessoal, transitar pelos espaços físicos da escola quando desejarem, entre outros. O direcionamento dos professores torna-se algo secundário neste modelo educacional, uma vez que o corpo pedagógico sugere que o estudante tome para si as responsabilidades de sua vida escolar e que busque informações quando achar necessário e com quem achar necessário, contribuindo para o despertar do protagonismo juvenil.
Se o estudante se sente liberto para participar, sugerir e aceitar ou não o que lhe é imposto, supõe-se que esse estudante tem grandes chances de tornar-se independente e seguro para conhecer a si mesmo e decidir pelo que lhe parece justo e agradável.
Ao iniciarmos nossa busca por dados desta categoria, percebemos a fala abaixo:
[...] eu consigo trabalhar de boa, mas tem várias outras pessoas que não. Na minha outra escola a gente tinha um conteúdo que não era tão bom quanto o daqui, mas eles diziam que a gente precisava aprender aquele conteúdo. Aqui não, aqui eles te dão um monte de coisas que você pode aprender e não te empurram muito para o que você tem que aprender. (E1)
O estudante relata que consegue desenvolver-se bem, mesmo sem o direcionamento do professor e que já estudou em uma escola convencional onde havia um direcionamento constante. Esse direcionamento, segundo ele, contribuía para a acomodação, já que se estudava apenas o que era sugerido e cobrado pelo professor. Atribuímos essa fala ao indicador da categoria Protagonismo Jovem na Escola. O estudante demonstra não se incomodar com a falta de direcionamento e pela proposta de que ele seja responsável pela busca efetiva de conhecimentos de forma autônoma, pois tem liberdade para estudar o que desejar. Ele aproveita para fazer uma crítica ao fato de que a falta de direcionamento incide na falta de cobrança, facilitando para uma produção pequena de quem ainda não é autônomo o suficiente para ser protagonista no ambiente escolar.
Em uma outra fala percebemos que o entrevistado apresenta dificuldade na falta de direcionamento, o que nos mostra que ainda não se sente autônomo o suficiente para seguir sem um direcionamento. Como apresenta o indicador Desenvolvimento desta categoria de análise, cabe pensarmos que se esse estudante não alcançar a autonomia nos estudos, dificilmente sentir-se-á protagonista na vida escolar.
Na fala: “Eu sou uma pessoa que tem muita dificuldade em trabalhar livremente. Por exemplo, eu vou muito mal no projeto pessoal, em monografia eu também morro de dificuldade. Eu vou melhor quando o professor fala: faz isso!” (E13), é possível perceber que a falta de direcionamento pode afetar o rendimento do estudante que ainda não alcançou a autonomia. Surge, então, a necessidade de a escola atentar-se aos estudantes com tais características, que não são definitivas, mas que são uma forma inicial de percorrer o caminho até o protagonismo. Fica subentendido que esse estudante não se sente protagonista de sua vida escolar por faltar de autonomia, principalmente quando afirma sentir muita dificuldade de trabalhar livremente e que prefere que o professor lhe diga o que fazer. Neste caso, o estudante ainda depende muito da ajuda do professor para o acompanhá-lo nesse caminho. É uma necessidade pessoal, mas que deve ser verificada e atendida, como forma de dar suporte ao estudante em um momento específico, fortalecendo a busca pela autonomia e o reconhecimento do protagonismo juvenil nas questões escolares.
Já este outro entrevistado, oferece-nos uma contribuição bastante positiva no campo do protagonismo juvenil quando questionado se sente falta de um direcionamento nos estudos: “Eu sinto falta às vezes, mas eu prefiro ficar mais sozinha do que com o professor. Eu prefiro fazer minhas coisas sozinha e procurar o professor se eu precisar. ” (E6)
Retomando a entrevista com um docente sobre quais ferramentas a escola utiliza e que facilitam o processo da autonomia e protagonismo juvenil, faremos uso dessa resposta que, inclusive, foi utilizada anteriormente na análise da categoria autonomia por também possuir indícios pertinentes.
Outro ponto é o trabalho interdisciplinar que a gente faz, seja por tema ou por projeto, seja por diálogo dos professores da aula. Outro ponto é a possibilidade de escolha, tem um determinado tema e ele quer fazer um recorte x. Ok, pode fazer, é um recorte e ele pode escolher. Isso acontece nas eletivas também, o aluno escolhe o que quer estudar e essa escolha eu acho importante. O trabalho interdisciplinar, o trabalho por projeto, a exploração do espaço, a possibilidade de participação, de protagonismo. A gente ouve muito falar de protagonismo por aí, mas se o aluno não tem voz não é protagonismo, é apenas para inglês ver. A corresponsabilização etc. (D1)
Percebe-se que a escola possui um pacote de ferramentas que os estudantes acreditam ser importantes para o alcanço da autonomia e do protagonismo juvenil. Os diferentes espaços e as mais diversas possibilidades de escuta e trocas são, de fato, boas possibilidades para desenvolvimento da participação efetiva desses jovens no ambiente escolar. Este docente apresenta-nos uma leitura interessante do termo protagonismo ser utilizado de forma generalista, sem que haja a preocupação de respeitar a participação efetiva dos estudantes. Destaca, portanto, a preocupação da escola em observar e incentivar o processo de autoconhecimento, capaz de oferecer aos estudantes muitos ganhos no âmbito do protagonismo, nunca deixando de lado a escuta generosa. Puig (2000) indica esses elementos como uma forma de acolher os educandos, ouvindo-os e dando-lhes espaço para a ação cooperativa, não apenas no diálogo, mas na prática das ações.
Na redação de um estudante de uma escola convencional, é possível identificar indícios de que o protagonismo ainda é algo subjetivo, de acordo com o indicador O Jovem na Sociedade, ou que esse estudante responsabiliza os adultos por sentir que os jovens não têm condições de praticar ações de mudança na sociedade sozinhos, como veremos abaixo:
É importante pensar na colaboração geral para um país mais inclusivo e chamar a atenção para problemas como ainda ter o preconceito existente num número tão assustador. Guiar os jovens a fazerem isso, já que sempre escutam que são o futuro do país, mas nunca são informados de como fazê-lo. Antes de tudo, a situação social, econômica e política precisa melhorar. (RC1)
No trecho acima, o estudante destaca a consciência da capacidade de mudança social existente na juventude e também a existência de um discurso que convida os jovens para essa mudança, mas destaca que esses jovens dependem da instrução de adultos para essa construção.
Levando em consideração que os estudantes da amostragem estão no oitavo ou nono ano do ensino fundamental 1, supõe-se que possuem capacidade suficiente para a construção de projetos de mudança de status quo, seja em seu grupo escolar, bairro ou cidade, não necessitando de um adulto para a criação de novas ideias ou projetos simples em seu território. Aqui não falamos de projetos complexos, mas da participação juvenil na sociedade com projetos simples, oferecendo ideias para a melhoria das relações. O protagonismo pressupõe que esses jovens se sintam parte importante da sociedade e não apenas como coadjuvantes ou como alguém que poderá referenciar-se no futuro, tornando o protagonismo como algo a ser vivido em algum momento da vida, algo subjetivo, como é o caso de um texto de um estudante da escola democrática no qual encontramos um trecho que nos apresenta a possibilidade de analisarmos o sentir-se protagonista na construção da sociedade:
Mas na situação que estamos hoje, não tem nem como culparmos os deputados e políticos, e não temos como aceitar essa situação caótica. Eu sinto que nós podemos participar mais da política e não é a questão de que um deputado pode mudar o país, é a questão de que nós podemos mudar tudo. (RD23)
É possível perceber que esse estudante considera que a mudança social cabe a todos nós e não apenas ao Estado. Esse trecho apresenta a capacidade protagonista que esse estudante carrega, uma vez que se refere o protagonismo como algo que deve ser uma constante, como se tivesse internalizado esse conjunto de ações, e não como algo a fazer no futuro; tampouco esperar que apenas as autoridades cumpram ações em prol do coletivo. Fica clara a importância que atribui à construção da sociedade como parte efetiva dela.
Depois de um longo percurso em torno das análises, passaremos agora para as conclusões desta pesquisa, apresentando as reflexões e considerações finais.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo dessa pesquisa, buscamos explorar um campo ainda pouco difundido no nosso país,
Ao longo dessa pesquisa, buscamos explorar um campo ainda pouco difundido no nosso país, que é a investigação das práticas pedagógicas nas escolas ditas democráticas. Essa proposta de pesquisa nos aproximou de um modelo de ensino focado em promover a participação efetiva dos estudantes nas atividades educacionais. Tal modelo busca promover relações horizontais de troca entre docentes e estudantes, de modo que os estudantes não sejam meros receptores dos conhecimentos transmitidos pelos professores, mas possam participar das decisões sobre o quê e como estudar. Buscou-se reconhecer indícios de autonomia e protagonismo nos estudantes inseridos neste modelo de gestão escolar.
Iniciamos este estudo com a hipótese de que os jovens estudantes de uma escola democrática teriam chances de uma formação de identidade autônoma e protagonista. Concluímos que o espaço que uma escola democrática ocupa em nossa sociedade é um espaço de trocas, de respeito e de diálogo. Observamos que um ambiente escolar mais livre, onde os estudantes são convidados a se conhecer e a contribuir com suas opiniões, estimula a formação da identidade, mesmo que ainda em fase inicial, como ocorre no ensino fundamental. Além disso, as práticas observadas na escola democrática criam oportunidades para que os jovens participem das decisões relativas à gestão da escola, que façam propostas e busquem, por meio do diálogo nas assembleias e em outros momentos, encontrar soluções para os problemas que surgem no cotidiano. Contudo, a partir da análise comparativa das redações, não podemos afirmar que um estudante de um colégio democrático é mais autônomo ou tem uma formação de identidade protagonista mais evidente que um jovem de uma escola convencional. Nossos dados não são suficientes para tal afirmação. No entanto, podemos afirmar que os jovens da escola democrática apresentaram preocupação com a atuação coletiva, disposição para participação escolar, planejamento e conclusão de projetos cooperativos, além de interesse em projetos pessoais, participação de assembleias, deliberação de agendas, entre outros espaços de diálogo que a escola democrática oferece.
Há, porém, algumas exceções, como vimos em alguns relatos de estudantes que se queixam de colegas que não estão interessados, ou ainda, a recusa na entrega de atividades importantes. A pesquisa identificou que alguns estudantes percebem uma defasagem entre o currículo seguido pela escola democrática e o das escolas convencionais, o que os leva a considerar que precisam buscar por conta própria os conhecimentos que não fazem parte do programa seguido em sua escola. Se, por um lado, essa necessidade sentida por parte dos estudantes pode ser compreendida como um incentivo para os estudantes se tornarem mais autônomos, por outro lado pode deixá-los sentindo-se sós na tarefa de buscar por si próprios a complementação de seu currículo desde a educação básica. Para aqueles que tem a intenção de seguir os estudos no ensino superior e precisam para isso enfrentar a barreira do vestibular, essa situação pode configurar-se como uma desvantagem. Essa desvantagem se evidencia ainda na comparação das redações realizadas pelos estudantes das duas escolas.
Foi possível constatar que a escrita dos jovens da escola democrática apresenta uma quantidade maior de problemas e um nível de elaboração inferior em relação à escrita dos jovens da escola convencional que nos cedeu suas produções. Por outro lado, consideramos igualmente importante citarmos a recorrência de queixas presentes nas redações dos estudantes da escola convencional com relação à cobrança exorbitante por resultados positivos, seja nas séries atuais da escola ou em vista da aproximação do vestibular. Em seus textos, esses estudantes apresentaram trechos com reclamações da pressão dos pais e mães, inclusive relataram que as famílias chegam a cobrar que o rendimento escolar seja compatível com o valor monetário investido nos estudos dos filhos. Os estudantes dessas escolas destacam temas como preconceito e homofobia, além da concorrência acirrada já na fase atual, reconhecendo no colega um possível adversário futuro, sugerindo-nos um possível contraste entre os trabalhos coletivos incentivados na escola democrática e a cobrança pelo rendimento pessoal na escola convencional.
Finalmente, a análise do conjunto das redações permite afirmar que os jovens das duas escolas estão cientes da importância do exercício da democracia participativa e entendem que os espaços devem ser ocupados com responsabilidade e respeito às regras. Assim, percebem a importância do protagonismo e da autonomia juvenil para uma vida futura capaz de transformar, por suas ações, a sociedade. Apesar de algumas diferenças nas redações, não é possível afirmar que uma ou outra escola forma jovens mais participativos e responsáveis.
Consideramos que a contribuição mais importante, mais evidente na comparação entre as redações elaboradas pelos estudantes das duas escolas está relacionada ao peso da responsabilidade que os jovens sentem por si próprios e pelos destinos da humanidade, um aspecto comum observado. Contudo, também foi possível perceber diferenças, que mereceriam um estudo mais detalhado. Os estudantes da escola convencional parecem pensar a responsabilidade sobretudo individualmente: é preciso dar conta das próprias obrigações e tirar boas notas, essa é a sua obrigação como estudante. Em sua experiência, o bom funcionamento da escola é responsabilidade dos adultos, sua obrigação como estudante é a de conhecer e obedecer às regras estabelecidas. Já os estudantes da escola democrática tendem a pensar a responsabilidade coletivamente, em termos de interdependência. Entendem que todos devem se responsabilizar conjuntamente pelo bom funcionamento da escola, o que inclui a obrigação de participar na formulação das regras de convivência e até a gestão dos espaços, das rotinas e dos recursos materiais da escola.
Na escola democrática, há uma maneira bem disciplinada de aprender o comportamento adequado em uma assembleia, mas, por outro lado, os estudantes devem inventar seu próprio modo de fazer as coisas no que se refere ao estudo, o que pode deixá-los um pouco desamparados em comparação aos estudantes da escola convencional, os quais provavelmente obtêm muita instrução em termos de procedimentos eficazes de estudo: como organizar o tempo, como ler um texto, como fazer um resumo, como elaborar uma boa apresentação etc. Há todo um conhecimento pedagógico acumulado a esse respeito, que é mais fácil de obter quando um professor que sabe se propõe a ensinar do que de descobrir por tentativa e erro. Nesse sentido, parece-nos que os estudantes da escola democrática ficam em desvantagem, o que em alguns casos eles mesmos percebem, e pôde ser percebido na qualidade dos textos.
Consideramos que se os estudantes da escola convencional vão mais longe em suas produções escritas, não é porque sejam mais inteligentes ou responsáveis, mas simplesmente porque foram instruídos e, como estão dispensados da responsabilidade de participar da gestão da escola, podem se concentrar no estudo. É uma pena que ao mesmo tempo sintam-se submetidos à pressão de se tornarem estudantes competitivos em busca do sucesso profissional em um mundo supostamente meritocrático. Em razão disso, talvez percam a chance de se encantar com a beleza da inteligência e da criatividade humanas incorporadas na cultura.
Os estudantes na escola democrática, por sua vez, envolvidos que estão com as questões do dia a dia, das regras de convivência e do funcionamento da escola, correm também o risco de não se deixarem encantar pelas riquezas de uma tradição cultural que, se não é deliberadamente transmitida, é improvável que seja espontaneamente “descoberta”. Na escola democrática foi possível presenciar muitos eventos em que o diálogo se fez presente. Os jovens participam de assembleias, deliberam temas importantes, formam comissões de estudantes para questões como eventos, visitas, entre outros, sendo eles os responsáveis por essas áreas. Questionam com muita frequência as propostas levantadas pelos professores. Participam de projetos individuais e em grupos, além de tratarem de temas da atualidade e de poderem fazer escolhas de acordo com suas preferências.
Concluindo, percebemos na escola democrática indícios suficientes para considerar que esses estudantes estão em um ambiente que prioriza a constante busca pela autonomia e protagonismo juvenil e que alguns jovens já se apropriam desses termos em seus discursos. Se esse colégio forma jovens mais autônomos e protagonistas que outras escolas não podemos afirmar, consideramos que isso exigiria um estudo mais aprofundado do que se passa em um conjunto maior de escolas ditas democráticas e outras que não se apresentam dessa forma. Mas, em tempos nos quais a autonomia dos estudantes está se tornando uma necessidade para a aprendizagem, haja vista o cenário de ensino remoto imposto pela pandemia, o estudo que apresentamos aqui tentou trazer alguma contribuição para o debate em torno da construção da autonomia juvenil, das condições nas quais ela pode ser promovida, especialmente no que diz respeito aos modelos curriculares de escola.
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