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TENSÃO ENTRE MEMÓRIA COLONIAL E A MEMÓRIA DECOLONIAL NA CONSTRUÇÃO DO CURRÍCULO ESCOLAR: uma problematizção das heranças coloniais
TENSION BETWEEN COLONIAL AND DECOLONIAL MEMORY IN THE CONSTRUCTION OF THE SCHOOL CURRICULUM: problematizing colonial heritages
TENSIÓN ENTRE LA MEMORIA COLONIAL Y DECOLONIAL EN LA CONSTRUCCIÓN DEL CURRÍCULO ESCOLAR: problematizando las herencias coloniales
Revista Espaço do Currículo, vol. 16, núm. 1, pp. 1-13, 2023
Universidade Federal da Paraíba

Artigos

Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 1, 2023

Recepção: 09 Dezembro 2022

Aprovação: 22 Fevereiro 2023

Resumo: Este artigo tem como coluna argumentativa a ruptura com as metanarrativas epistêmicas e políticas da história e da memória única e, por conseguinte, universal gerada na e pela modernidade-colonial-capitalista-patriarcal-racista, como também o rompimento com a ideia universal de ser humano, de humanidade e de sociedade, por consequência, de cultura, de educação e de currículo. Assim, objetivamos, com este artigo, evidenciar que tal ruptura nos abre caminhos para questionar ideias hegemônicas como civilização, cultura, ciência, conhecimento e principalmente história e memória e suas relações com educação escolarizada e currículo. Seguimos pelo caminho da análise documental, atrelado à pesquisa qualitativa, propomos um diálogo sobre estas rupturas, compreendendo-as como essenciais para a reconstrução-produção de currículos descoloniais. Apoiamo-nos nas Epistemologias do Sul, principalmente, nos Estudos Pós-coloniais e Decoloniais. A Análise das produções do grupo Estudos Pós-Decolonias e Teoria da Complexidade em Educação nos conduziu a concluir que entendero desvelamento da Memória Colonial permitirá a construção da Memória Decolonial enquanto elemento fundante dos currículos e de sua materialização no chão da escola, contribuindo, assim, para o esfacelamento das heranças coloniais, ainda presentes nos currículos.

Palavras-chave: Memória Colonial, Memória Decolonial, Currículo.

Abstract: This article has as its argumentative column the rupture with the epistemic and political metanarratives of history and the unique and, therefore, universal memory generated in and by colonial-capitalist-patriarchal-racist modernity, as well as the rupture with the universal idea of being human, humanity and society, consequently, of culture, education and curriculum. Thus, with this article, we aim to show that such a rupture opens the way for us to question hegemonic ideas such as civilization, culture, science, knowledge and mainly history and memory and their relations with school education and curriculum. We follow the path of document analysis, linked to qualitative research, we propose a dialogue about these ruptures, understanding them as essential for the reconstruction-production of decolonial curricula. We rely on the Epistemologies of the South, mainly on Postcolonial and Decolonial Studies. The analysis of the productions of the group Studies Post-Decolonials and Theory of Complexity in Education led us to conclude that understanding the unveiling of Colonial Memory will allow the construction of Decolonial Memory as a founding element of curricula and its materialization on the school floor, thus contributing , for the shattering of colonial legacies, still present in curricula.

Keywords: Colonial Memory, Decolonial Memory, Curriculum.

Resumen: Este artículo tiene como columna argumentativa la ruptura con los metarrelatos epistémicos y políticos de la historia y la memoria única y, por tanto, universal generada en y por la modernidad colonial-capitalista-patriarcal-racista, así como la ruptura con la idea universal de ​​el ser humano, la humanidad y la sociedad, en consecuencia, de la cultura, la educación y el currículum. Así, con este artículo pretendemos mostrar que tal ruptura nos abre el camino para cuestionar ideas hegemónicas como la civilización, la cultura, la ciencia, el conocimiento y principalmente la historia y la memoria y sus relaciones con la educación escolar y el currículo. Seguimos el camino del análisis documental, vinculado a la investigación cualitativa, proponemos un diálogo sobre estas rupturas, entendiéndolas como esenciales para la reconstrucción-producción de currículos decoloniales. Nos apoyamos en las Epistemologías del Sur, principalmente en los Estudios Postcoloniales y Decoloniales. El análisis de las producciones del grupo Estudios Post-Decoloniales y Teoría de la Complejidad en Educación nos llevó a concluir que comprender el desvelamiento de la Memoria Colonial permitirá la construcción de la Memoria Decolonial como elemento fundante de los currículos y su materialización en el suelo escolar, contribuyendo así, para el desmoronamiento de los legados coloniales, aún presentes en los planes de estudio.

Palabras clave: Memoria Colonial, Memoria Decolonial, Currículo.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este artigo tem como coluna argumentativa a ruptura com as metanarrativas epistêmicas e políticas da história e da memória única e, por conseguinte, universal gerada na e pela modernidade-colonial-capitalista-patriarcal-racista, como também rompimento com a ideia universal de ser humano, de humanidade e de sociedade, por consequência, de cultura, de educação e de currículo. Tal ruptura nos abre caminhos para questionar ideias hegemônicas como civilização, cultura, ciência, conhecimento e, principalmente, história e memória e suas relações com educação escolarizada e currículo. Por isso, começamos a escrever este texto discutindo a relação entre história e memória na construção da sociedade moderna-colonial-patriarcal-capitalista-racista eurocentrada e/ou nortecentrada. Destacamos a ideia do Ocidente enquanto uma narrativa auto-afirmativa civilizatória que, em seu nome, pode cometer todo tipo de atrocidade em prol da bandeira da ordem e do progresso em função do desenvolvimento econômico capitalista (DUSSEL, 2005).

O pensamento que apresentamos distancia-se da monocultura epistêmica da modernidade (SANTOS, 2010, 1998), aliando-se a uma espécie de arco-íris epistemológico que constitui um caleidoscópio interpretativo da vida. Esta que se produz na relação de inúmeras variáveis que se inter-relacionam em movimentos difusos e em teias complexas (MORIN, 1998). A vida por sua natureza sócio-histórica, política, cultural, espiritual e biológica não se prende ou se restringe a uma única intervenção/interpretação. A vida escorrega por quaisquer tentativas de interpretação monolítica e universalizadora. A vida, como cenário da história e da memória, é disputada na sua materialização, na sua dinâmica de invenção e de interpretação. Em última instância argumentativa, firmamos este texto no afrontamento de quaisquer ideias universais de homem e de mulher e de suas respectivas possíveis identidades (de raça, de gênero, de sexo, de classe, de etnia, de território, etc.) e as relações que estabelecem entre si e com os diversos contextos.

Frisamos que este texto é fruto da análise dos resultados da pesquisa “Cenários Curriculares e Práticas Docentes: tratos pedagógicos às diferenças identitárias nas escolas campesinas, indígenas e quilombolas” em diálogo com aquelas desenvolvidas por membros do Grupo Estudos Pós-Decoloniais e Teoria da Complexidade em Educação. Apontamos, dentre as investigações, as teses: “A Interculturalidade no currículo da formação de professoras e professores indígenas no Programa de Educação Intercultural da UFPE/CAA - Curso de licenciatura Intercultural” (ALMEIDA, 2017); “Referenciais epistêmicos que orientam e substanciam práticas curriculares em uma escola na comunidade quilombola de Conceição das Crioulas-PE” (SILVA, 2017); “Tensões entre avaliações e educação do campo: disputas nas fronteiras da validação do currículo” (TORRES, 2018); Educação das relações étnico - raciais e prática curricular de enfrentamento do racismo na UNILAB” (FERREIRA, 2018); “As marcas da memória hegemônica e vivida na prática docente de professoras negras do território campesino”(SILVA, 2022); “Recontextualizações dos princípios da educação escolar do campo, indígena e quilombola nas fotografias dos livros didáticos: disputas entre visualidades colonial e transgressor” (SANTOS, 2022); e as dissertações: “Patriarcalização e Despatriarcalização nas imagens de mulheres nos livros didáticos da educação do campo do Brasil e da Colômbia” (SANTOS, 2017); “As marcas da memória hegemônica e da memória vivida nas imagens da mulher negra nos livros didáticos do território campesino do Brasil e da Colômbia: um olhar através dos Estudos Pós-coloniais e do Feminismo Latino Americano Negro” (SILVA, 2018); “Escola, território de direito: expectativas da comunidade campesina sobre a escola com turmas multisseriadas do campo” (SILVA, 2021);“ Rituais e atos pedagógicos performáticos da jurema sagrada do terreiro de umbanda em Alhandra-PB” (SILVA, 2020); “Os saberes campesinos nas práticas docentes em escolas do campo no município de Riacho das Almas-PE: um olhar através dos paradigmas da educação do campo” (OLIVEIRA, 2020); “A prática docente em escolas quilombolas no município de Lagoa dos Gatos: uma análise a partir da abordagem do Pensamento Decolonial (SILVA, 2020); “Educação das relações étnico-raciais na prática docente do ensino médio de uma escola no território campesino de Passira-PE: um olhar para o enfrentamento do racismo” (MOURA, 2021); “GEPERGES AUDRE LORDE e processos emancipatórios: professoras e o enfrentamento do racismo em espaços escolares” (SILVA, 2021.

Partimos do pressuposto de que a consolidação da sociedade moderna-colonial-patriarcal-capitalista-racista eurocentrada/nortecentrada somente foi possível por criação de mecanismos de disseminação de seus elementos argumentativos como constituintes “naturais” e normativos da memória coletiva e individual colonial-capitalista-patriarcal-racista. Memória esta que se travestiu de uma nova narrativa histórica que balizou a modernidade. A reinvenção do mundo a partir e através da invenção mútua da América Latina, da África e da Europa reconstituiu a memória coletiva da humanidade, restringindo-a aos interesses de uma centralidade geopolítica, epistêmica e corporal “europeia” (GROSFOGUEL, 2010, 2007). De um lado, a criação das novas normas que regulamentavam o que é ciência, conhecimento científico e seu lugar político e epistêmico de produção/socialização possibilitou instituir uma história contada no prisma do eurocentrismo. Por outro lado, essa nova regulamentação político-epistêmica (des)instituiu quaisquer formas outras que pudessem requerer o status de ciência, de conhecimento científico e de lugar político e epistêmico de produção/socialização e, consequentemente, desautorizou sujeitos outros coletivos e individuais a assumirem a posição de enunciadores/narradores de suas histórias e produtores epistêmicos.

É a inauguração dos alicerces da instituição/imposição da história única da humanidade. Desse modo, instituíram-se na exterioridade do norte global corpos sem história e sem memória, consequentemente, sem identidade e sem território. Esses corpos sem história/memória/identidade/território são enredados por aqueles que se auto-denominaram de narradores políticos e epistêmicos da história da humanidade. Percebemos aqui a racialização (QUIJANO, 2005) da história através, principalmente, do racismo epistêmico (GROFOSGUEL, 2016) institucionalizado e disseminado na e pela modernidade (colonial-patriarcal-capitalista-racista), fundamentalmente no sistema educacional, científico e midiático.

Nesse cenário, histórico e político, de invenção simultânea da América Latina, da África e da Europa, também se institui o não-Lugar e o Lugar respectivamente. Assim também se forjaram ou foram forjados os corpos instituídos sem história/memória/identidade/território válidos, por conseguinte, incapazes de tecerem suas narrativas. Estes corpos são originários do Não-Lugar. O Não-Lugar é descrito, enredado pelos sujeitos oriundos do Lugar. O Lugar é o território dos corpos com história/memória/identidade/território válidos e capazes de produzir suas narrativas, sendo assim, estes sujeitos são empoderados, do alto de seu Lugar, para definir o Não-Lugar e seu espaço na geopolítica mundial (o Não-Lugar tem um espaço que justifica, quase naturalmente, o espaço do Lugar). Desta forma, a Europa se auto-denomina de Lugar e institui a América Latina, em particular, de Não-Lugar (periferia, terceiro mundo, subdesenvolvido, etc.). O Lugar é território da memória e o Não-Lugar é território desprovido de memória própria, por isso terá que ser preenchido pela memória do Lugar e de seus habitantes. A América Latina passa ter seu registro na memória histórica “oficial” quando da chegada dos invasores, oriundos do Velho Mundo, e o que existia antes é enredada também pelos invasores. Em razão disso, há a relação entre Velho Mundo e Novo Mundo, em que o primeiro é repleto de história e memória e o segundo, por ser “novo”, passa a ser enredado pelo mundo da experiência válida.

A invasão da Abya Yala[1] não foi apenas espacial e política, mas, sobretudo, uma invasão epistêmica e cultural que se valeu ao longo do tempo de um certo extrativismo epistêmico. Houve na América Latina e na África apropriações dos conhecimentos de seus povos pelos invasores, sem o reconhecimento da autoria, ao contrário, tais conhecimentos foram plagiados e naturalizados como de autoria dos invasores. Desse modo, falar em termos de epistemologias outras é disputar território invadido, é lutar pela retomada e ocupação epistêmica e autoral por meio da transgressão da história e da memória oficial moderna. A luta pela retomada/ocupação epistêmica/autoral se processa pela evidenciação do epistemicídio (SANTOS; MENESES, 2010) que ocorreu no cenário em que se deu o expansionismo imperialista do pensamento eurocêntrico. Este fato revela uma epistemologia violenta, sanguinária, firmada no extermínio do diferente, astuta na difamação do que não lhe seja igual. A invasão epistêmica, provavelmente, representou para o território invadido a dor visceral de ter seus modos de vida e a representação que lhe advém subalternizados, silenciados e até hoje perseguidos. A epistemologia da modernidade-patriarcal-colonial-capitalista-racista constituiu-se em uma epistemologia da conquista, do extrativismo e extremamente violenta, uma epistemologia da morte.

Essa epistemologia conquistadora se encobre do discurso civilizatório, do progresso, da razão que ilumina, da ciência moderna enquanto verdade única e universal. Toda atrocidade que se pode produzir é em nome de uma humanidade (eurocentrada), de um projeto de sociedade (ocidental) que a todos conduziria à ordem e ao progresso, em última instância ao desenvolvimento. Dessa forma, a Europa evoca para si mesma o direito de ser o centro do mundo e de lá narrar sua história e anexar os enredos lendários dos outros continentes por meio de sua memória bem delineada. Não podemos esquecer que todo esse processo é fundamentado na histeria religiosa da cristandade. O expansionismo mercantilista e a consolidação do capitalismo sempre tiveram a benção da cristandade, seja ela católica ou protestante.

Nessa direção, a história e a memória alicerçadas e alimentadas pela epistemologia eurocentrada promovem a sacralização da Europa como centro do mundo e profaniza os demais continentes, colocando-os na periferia considerada profana e selvagem, que deve cultuar os deuses epistêmicos e religiosos do eurocentrismo. A Europa emerge/impõe-se como projeto civilizatório a ser seguido e idolatrado. A idolatria é fundamental para evitar-se quaisquer tipos de questionamento, ressaltando que a idolatria tanto é religiosa como epistêmica. A Europa se posiciona e se impõe como centro do sistema mundo moderno e os demais continentes passam a ter a função na geopolítica moderna-patriarcal-colonial-racista de gravitar ao seu redor. Inaugura-se no processo de invenção/invasão da América Latina e invenção/imposição da Europa uma espécie de fundamentalismo epistêmico a ser nutrido e a se nutrir da história e da memória moderna-patriarcal-colonial-capitalista-racista nas relações cotidianas.

A Europa toma para si a identidade da conquista, uma identidade devoradora de mundos, faminta de consumir memórias e histórias. A epopeia da conquista/invasão/destruição da América para construir sua história e memória fez da Europa o escritor oficial da história da humanidade sem a permissão de todos os outros humanos não oriundos do Velho Mundo. Sob a batida da conquista e a bênção da cristandade, os espanhóis e portugueses, inicialmente, dizimaram civilizações e escreveram com sangue dos povos originários e da diáspora africana uma versão da história apagando memórias outras.

Com isso temos a atual divisão epistêmico-político e cultural dos territórios constitutivos da geopolítica mundial. Tal divisão deu e dá sustentação e legitimidade a determinados grupos sociais a reconfigurarem a memória da humanidade, tomando como metodologia o esquecimento e a instituição dos sujeitos que podem tecer a história, costurar os enredos e produzir narrativas, ou seja, quem é sujeito histórico e quem é assujeitado pela história, isto é, enredado por aqueles de “direito”.

Diante do exposto, organizamos o texto, além da introdução e das considerações finais, em duas seções. Na primeira, apresentamos a memória enquanto um dos elementos fundantes para o estabelecimento da dominação colonial, através da construção de hierarquias epistêmicas, raciais, de gênero e territoriais. Na segunda abordamos as influências da Memória Colonial nos currículos, bem como apontamos possibilidades para a construção-produção de currículos descolonias fincados na Memória Decolonial.

2 MEMÓRIA COLONIAL E PERMITIDA: DISPUTAS EM PROL DA MEMÓRIA DECOLONIAL

Nesta seção apresentamos a Memória Colonial e a Memória Decolonial, baseando-nos no diálogo das pesquisas acima mencionadas. A tensão entre as duas Memórias evidencia os mecanismos utilizados na imposição e na manutenção das hierarquias fundadas, principalmente, por meio da racialização e da racionalização dos povos originários e da escravização dos povos africanos. Nessa direção, a memória é utilizada como instrumento de dominação e o esquecimento é a fonte primordial para o processo de dominação colonial, que atravessou os territórios e os corpos dos povos subjugados. Também destacamos que está imposição colonial não obteve sucesso pleno, visto às resistências e os arranjos que foram sendo tecidos para preservar a memória coletiva e individual desses povos, feitos inferiores, via construção da Memória Decolonial.

A Memória Colonial possui como matéria prima o esquecimento, mas não qualquer esquecimento. O esquecimento passa a ser um mecanismo político e epistemológico de dominação por vários motivos:

  1. 1. A determinação de quem tem a condição de sujeito histórico somente é possível com a determinação de quem não é sujeito histórico. Este último, por sua “condição ontológica” inventada encontra-se desprovido de história, passa a ser personagem coadjuvante da história dos protagonistas (sujeitos históricos). Assim, os povos originários da Abya Yala e da África são diluídos na condição de índios e de negros (QUIJANO, 2005, 2007). E na condição de negros e índios, por exemplo, suas histórias são apagadas e estes são alocados na história dos brancos. Por isso que a mutualidade de uma dita descoberta foi tornada unilateral: se povos originários da Abya Yala não conheciam os Portugueses e Espanhóis e vice-versa, desta forma a possível descoberta seria mútua. No entanto, a condição de descobridor e a ação de descobrir ficaram restritas ao branco (sujeito é o que descobre) e a condição de não sujeito e a passividade de ser descoberto foi imposta ao índio e ao negro (assujeitados ao descobrimento e a diáspora). No caso dos negros a situação é mais perversa, estes não foram descobertos, mas “meramente” traficados, sequestrados, negociados na condição de mercadoria. Sendo colocados na condição de mercadoria, obviamente, não teria história a contar, pois ter história é uma condição do ser humano e não de mercadorias e nem de selvagens;
  2. 2. A determinação de sujeito histórico traz consigo o “direito” de pertencer a um território histórico, locus que se produz história. Nesse sentido, a inventada América Latina passa a ter história a partir e através da presença do branco. O Mundo Novo, a América, é um anexo do Velho Mundo, a Europa. As terras “descobertas” tornam-se uma extensão geográfica a ser explorada, um almoxarifado natural da Europa. América Latina é o Não-Lugar que o branco europeu “faz história” e “tece memória”. É como se o território da Abya Yala somente passasse a existir enquanto “lugar humano” com a chegada dos brancos. O dia da invasão é o ponto zero de uma dita humanidade neste continente;
  3. 3. A definição de sujeito histórico que pertence a um determinado território histórico traz consigo a condição de contar o que é permitido da história do outro, que, por sua vez, possui a condição de coadjuvante da história do sujeito histórico. Desta maneira, negros e índios sofrem de uma assepsia histórica e passa a figurar na história do branco. Negros e índios não são sujeitos de enunciação e sim anunciados nas notas de rodapé da história branca;
  4. 4. A importância dos negros e índios, enquanto sujeitos sem história e memória, é serem figurantes e justificar o “heroísmo civilizatório” dos brancos. Cria-se uma normalidade e normatividade da história pela relação entre civilizados e não-civilizados, de quem descobre e de quem foi salvo ao ser descoberto. Contudo, a salvação não regenera a condição de negros e índios de sujeitos sem história, o máximo de sua condição é ser parte da “paisagem” da história branca. Negros e índios são elementos exóticos da história oficializada e possui papel de figurantes de uma memória passada, de lembranças cristalizadas no pretérito, por esse motivo que as imagens predominantes de índios e negros nos livros didáticos remetem aos nativos da Abya Yala e da África do período colonial.

O esquecimento é a mola motora da memória colonial que é apresentada como história da humanidade. Isto é, história humana por ser vivida por sujeitos que se auto-classificavam como humanos, que representavam e instituíam o padrão de ser humano. História da humanidade passa a se tratar das histórias dos únicos que poderiam ser chamados de sujeitos genuinamente humanos. Tudo que acontecessem fora do padrão humano e da dita humanidade sofreria com a borracha voraz do esquecimento. Assim o “humano” tem cor (branco), tem sexualidade (hétero), tem gênero (masculino), tem religião (cristão), tem território (Europa)...

Por esse motivo, a Memória Colonial é uma memória colonizadora invade as memórias outras numa saga devastadora, devorando famintamente os elementos constitutivos do vivido dos povos que foram colocados na condição de assujeitados pela história-memória dos sujeitos históricos moderno-colonial-patriarcal-racistas. Devorar histórias e memórias é o processo violento do esquecimento colonizador que se transformavam em silenciamentos físicos (assassinados) e psíquico (catecismos). A catequese é um exemplo da violência realizada pelo esquecimento e pelo silenciamento. Quem escapava da morte caia nos braços violadores da catequese. O homem branco cristão hétero europeu cria um deus a sua imagem e semelhança para justificar a sua condição de um novo deus terreno. Não é por acaso que Jesus, o messias, é embranquecido: cabelos claros e longos, homem branco de olhos azuis.

Nesta linha de pensamento, um elemento fundamental e fundante da modernidade-colonial-patriarcal-racista é a memória que dá lastro a história. Por isso a urgência e a necessidade de definir os sujeitos de memória, isto é, os sujeitos históricos para que estes procedessem com a assepsia cultural, política, epistêmica, social e psíquica, produzindo uma higienização da memória e da história. A higienização da memória e da história coletiva possibilitou instituir uma forma de pensar-agir moderno-colonial-patriarcal-racista. Pensar-agir moderno que representa um futuro que chegou, a civilização no seu ápice, ou seja, um Pensar-agir que supera todas as outras formas não modernas. Pensar-agir Colonial porque autoriza a ação colonizadora dos sujeitos de memória e de história. O Pensar-agir Moderno somente foi e é possível porque o Pensar-agir Colonial devastou com civilizações outras. O Pensar-agir Patriarcal representa a energia masculina que se autointitulou de força, de desbravamento, de razão suprema. É um Pensar-agir forjado no falseamento da masculinidade superiora que tudo pode, que em última instância é a própria representação de deus. Sendo deus, a tudo está autorizado, inclusive a colonizar para modernizar. O Pensar-agir Racista cinicamente institui, impositivamente, uma classificação da humanidade em supostas raças humanas, tendo a raça branca e todo aquilo que lhe faz parte como padrão da classificação humana.

A Memória Permitida está presente na Herança Colonial (MIGONOLO, 1996, 2008b). Contudo, no bojo da Herança Colonial está presente também a Memória Decolonial. A Memória da ancestralidade, a Memória dos escombros, a Memória das ruínas, a Memória militante. A Memória Decolonial resiste ao silenciamento, ao apagamento, à assepsia, à higienização, à violência. Mas não só resiste, se reinventa nas tensões e nos conflitos cotidianas. Em vista disso, a Memória Decolonial é propositiva de utopias outras, de pluri-transutopias. O Bem Viver dos povos indígenas e o aquilombar das comunidades quilombolas são vivências que nos apresentam caminhos outros para as humanidades, projetos outros de sociedade.

A Memória Permitida é fruto da colonização do ser, da criação do ser inexistente, da invenção do outro que não tem enraizamento, não tem memória e não possui história. A colonização do ser é inventar o outro como sombra de quem é. A colonização do ser é estripar as entranhas do outro para alimentar um vazio de sentido de si mesmo e nutrir um ego-imperialista-triunfante do colonizador de ser. Segundo Mignolo, a colonização do ser “consiste nada menos que en generar la idea de que ciertos pueblos no forman parte de la historia, de que no son seres” (2005, p. 30).

A Memória Permitida é fundada em narrativas elaboradas pelos sujeitos considerados na modernidade colonial como históricos, sujeito de direito que são de fato sujeitos de privilégio. Estes sujeitos construíram cercados, muralhas epistêmicas vigiadas politicamente. Estes aldeamentos epistêmicos nos enclausuram em uma caverna que produziu uma cegueira histórica enraizada numa memória sequestrada. O aldeamento epistêmico dificulta a produção de teorias, categorias e conceitos oriundos das ancestralidades como também nega teorias, categorias e conceitos que resistiram e resistem a ação conquistadora colonial até o presente. O aldeamento epistêmico produz ciência por imitação e não por imaginação. A imaginação como atitude criadora da ciência somente é possível, na modernidade-colonial-patriarcal-racista, por imitação da coreografia interna do aldeamento epistêmico. O sujeito pode ser imaginativo desde que não ultrapasse os limites da fronteira do aldeamento epistêmico. Desse modo, a ciência moderna se tornou o mais do mesmo. Um rosário de procedimentos metodológicos firmados na memória e na história colonial-moderna-patriarcal-racista.

Os órgãos da santa inquisição do aldeamento epistêmico, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Cnpq), entre outros, têm a missão de evitar e de criminalizar atos de sacrilégio epistêmico. Fazer ciência somente é possível na modernidade-colonial-patriarcal-racista se estiver circunscrita na memória e história permitida colonial. Por isso que histórias outras e conhecimentos outros sofrem da tentativa contínua de apagamentos da “memória humana”, não podendo, assim, servir de referência para produção e socialização de ciência.

Nesta perspectiva, a única ancestralidade permitida de ser referendada e referenciada é a europeia. Por exemplo, a ancestralidade epistêmica reconhecida tem seu “panteão” firmado e restrito as fronteiras eurocentradas: na condição de filósofos referenciamos Sócrates, Platão, Aristóteles em seu nascedouro; na sociologia Karl Marx, Durkheim, Max Weber e assim por diante. Logo, é comum ouvir que o berço da civilização e do pensamento racional é a Grécia. A ancestralidade permitida inclusive nos livros didáticos e acadêmicos, predominantemente, é a fonte de nossa memória coletiva e individual. Assim, as ciências modernas e os currículos escolares possuem uma mono-ancestralidade.

Contudo, mesmo com um jardineiro de tesouras afiadas, a diferença colonial (MIGNOLO, 2011) se fez resistência. A poda epistêmica eurocentrada não conseguiu realizar plenamente a assepsia sobre os povos outros reféns do imperialismo eurocêntrico. As histórias e as memórias dos povos outros não se transformaram em fósseis. Ainda resistem nos escombros produzidos pela modernidade e reconstroem suas memórias, histórias e identidades na luta cotidiana de enfrentamento do sofrimento injusto, abissal: “[que] É o sofrimento sem importância sociopolítica [para a modernidade-colonial-patriarcal-racista], sofrimento infligido a povos e sociabilidades que habitam o outro lado da linha” (SANTOS, 2018, p. 170). Assim, a diferença colonial significa a tensão intersectiva entre a imposição do sofrimento injusto aos sujeitos-corpos historicamente racializados, casos dos povos originários da Abya Yala e sequestrados da África, e a alegria e a esperança na/da luta desses mesmos povos. Ressaltamos que, segundo Santos (2018, p. 173), “a esperança e a alegria são as condições prévias existenciais da resistência”.

Todo esse processo de reprogramação da memória e da história da denominada humanidade através do imperialismo eurocêntrico, de um lado, invade os cotidianos por meio das inúmeras instituições e esferas clássicas da modernidade como a mídia, política, igreja, em especial para minha reflexão, o sistema educacional; por outro lado, as memórias e histórias decoloniais resistem cotidianamente a reprogramação nas rachaduras institucionais. Esse movimento de tensões, de intersecções e de ambivalências constituem a diferença colonial.

Salientamos, aqui, o sistema educacional porque nos referimos as ações sincronizadas e institucionais desenvolvidas majoritariamente da escola à universidade que vêm produzindo epistemicídios, extrativismos e racismos epistêmicos. Contudo, na esteira da esperança e da alegria, ações são desenvolvidas no seio/chão da escola visando à denúncia do sofrimento injusto e abissal, a resistência aos efeitos desse sofrimento e na proposição de práticas educativas decoloniais, como é o caso da educação anti-racista, seja ela manifestada na educação do campo, na educação quilombola, na educação escolar indígena, etc. ou ainda, na educação feminista que denuncia o sofrimento injusto produzido pelo patriarcado e a anuncia práticas de despatriarcalização.

A própria organização do sistema educacional utiliza-se da lógica da racionalização e da racionalização que são alicerces e pilastras da modernidade-colonial-patriarcal-capitalista-racista. Faz uso da racialização quando distribui a oferta da educação por meio do critério de classificação de classe, de raça, de gênero, etc. As análises críticas que nascem do seio do pensamento reverso da modernidade já denunciam a escola dualista, a violência simbólica que a escola burguesa impõe. Mesmo na organização interna da escola percebo racialização quando temos a oferta do ensino seguindo um padrão de classificação: turmas A, B, C, D...; a hierarquia de excelência (PERRENOUD, 1999) no currículo quando temos disciplinas de prestígio e de pouco prestígio, das exatas às humanidades. Evidenciamos que o sistema de avaliação tende a validação dos conhecimentos e aprendizagens seguindo a mesma lógica da racionalização e racialização do currículo e da organização do sistema educacional como um todo.

3 MEMÓRIA DECOLONIAL ENQUANTO FUNDAMENTO DE CURRÍCULOS DECOLONIAIS

Alicerçando-nos nas análises das pesquisas foco deste trabalho, questões emergem aos nossos olhos na trilha da Memória e do Currículo Decoloniais. Por exemplo, historicamente foram feitas perguntas ao campo do currículo de várias ordens: a) epistêmica: que conhecimentos deve-se ensinar? b) didático-pedagógica: como ensinar e avaliar os conhecimentos selecionados? c) política: quem seleciona o conhecimento e a quem interessa o conhecimento selecionado? d) cultural: que costumes, crenças e modos de vida de forma geral o conhecimento selecionado, ensinado, aprendido e avaliado certifica? Podemos também fazer as perguntas de outro jeito: a) epistêmica: que conhecimentos têm ficado de fora do currículo? b) didático-pedagógica: que formas de ensinar e avaliar os conhecimentos selecionados têm sido suprimidas? c) política: quem não seleciona o conhecimento e a quem interessa o conhecimento não selecionado? d) cultural: que costumes, crenças e modos de vida de forma geral o conhecimento selecionado não valida?

A exclusão epistêmica no currículo escolar é a base da negação de memórias outras e histórias silenciadas. Assim, o currículo tanto na sua dimensão teórica, como na sua dimensão política-prática tem sido tecido nos territórios do eurocentrismo, seja de origem dos chamados clássicos da teoria curricular, ou dos nativos fiéis tradutores do pensamento eurocentrado. Não dizemos, com isso, que não devemos dialogar com as teorias e as experiências do norte global, mas que tomemos nossas experiências como a referência para pensar-sentir-fazer o currículo em diálogo horizontal com as teorias ditas clássicas. Não se trata de negar a produção teórica do norte global, mas, sobretudo, de assumir, enquanto sujeitos do sul global, a autoria e a autonomia epistêmica e política no direcionamento do diálogo sul e norte na elaboração das teorias curriculares.

Ressaltamos que as formas de ensinar baseadas nas ciências modernas, sejam de matriz tradicional ou crítica, suprimiram ou negaram inúmeras maneiras de ensino e de aprendizagens que tinham/têm sua origem e vivência nos modos de vida que a Memória Colonial silenciou e a história oficial tentou pagar. As práticas educativas outras podem ainda ser percebidas nos terreiros de religiões afro-indígenas, nas aldeias de povos originários, nas comunidades quilombolas, campesinas (LEMOS, 2012; SILVA; TORRES; LEMOS, 2012) e nas periferias. Tais práticas educativas são oriundas das epistemologias não ocidentais e dos modos de vida não urbanocêntricos. Nos lugares em que a modernidade-colonial-patriarcal-capitalista-racista não teve seu apogeu, formas outras de sobreviver são sustentadas em práticas educativas coletivas e solidária, distantes das lógicas individualistas e competitivas que substanciam as práticas educativas performáticas do sistema escolar oficial.

Os processos de seleção (exclusão) de epistemes, conhecimentos, valores, crenças, enfim, modos de vida alimentaram-se e alimentam a Memória Colonial. Esta memória infiltrou-se na sociedade em um movimento circular em que ela se sobrepõe as demais memórias e se alimenta dessa dinâmica. Para isso, o sistema educacional, o currículo escolar, a didática e a avaliação educacional foram fundamentais. Agiram de maneira sincrônica, não perfeitamente, compondo um sistema mundial educacional.

Contudo, o sistema mundial educacional que foi se constituindo de teorias, políticas de financiamento, de currículo e de avaliação não foi linearmente difundido na sociedade. Nos territórios do Sul Global, tal sistema exerceu crueldades de diversas formas. Uma delas foi negar epistemologias e conhecimentos dos povos originários, ao mesmo tempo tal sistema regulou e regulamentou que tipos de epistemologias e conhecimentos os sujeitos outros podiam e podem ter acesso. Nossas/os acadêmicas/os medem seus méritos pela capacidade de repetir em suas referências teóricas os chamados clássicos modernos que têm sua natalidade no Norte Global. Tanto os currículos da educação básica quanto da educação superior seguem o alinhamento epistêmico eurocentrado (SILVA, 2014; SILVA, SARTORE, SANTOS, 2019; SILVA e SANTOS, 2020; SANTOS e SILVA, 2020, 2018).

O currículo é mais do que uma arena de teorias, é território de disputas civilizatórias, de projetos societais. O currículo representa guerras discursivas e materiais em movimentos de legitimação e de deslegitimação de grupos sociais, na lógica moderna-colonial-capitalista-patriarcal-racista, de destituir o outro da condição humana e, por conseguinte, da condição de sujeitos curriculantes.

A invenção da sociedade moderna-colonial-capitalista-patriarcal-racista baseada e constitutiva da classificação hierárquica racial da colonialidade (SILVA; FERREIRA; SILVA, 2013) instaurou uma guerra genocida de identidades individuais e coletivas que, historicamente, intencionou devorar física e simbolicamente modos de vida. Estes modos de vida se reconstituem cotidianamente na dinâmica da negação imposta e de sua restauração. Essa dinâmica fronteiriça está presente e constituem também o currículo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das análises dos resultados das pesquisas, foco deste artigo, destacamos que o currículo estruturado epistêmico e politicamente na contemporaneidade não representa, majoritariamente, um artefato de justiça cognitiva, ao contrário, transformou-se um aparelho promotor da injustiça cognitiva ao se estruturar a partir e através do genocídio e epistemicídio de populações do sul global. A imposição da memória e da história colonial como verdade universal gera em suas entranhas epistêmicas, políticas e pedagógicas injustiças que silenciam modos de vida outros. Além de produzir as injustiças, as encobrem com o verniz da normalidade, da naturalidade da própria estruturação e conteúdo curricular. Uma das funções da escola moderna é naturalizar as violências cometidas pelo eurocentrismo, tornando-as atos civilizatórios. Nessa perspectiva, “el currículo legitima las estructuras sociales, económicas, políticas y culturales hegemónicas y, por supuesto, las desigualdades materiales y simbólicas que las constituyen” (PLÁ, 2016, p. 55).

A Memória Decolonial como elemento denunciador, insurgente e reestruturador do currículo moderno-colonial produz possibilidades outras de trilhas e atos curriculares por meio de ecologias de saberes. As ecologias de saberes se constituem no currículo tanto na elaboração de suas teorias como de sua materialização. Exemplos de ecologias de saberes podemos observar nas escolas do e no campo, indígenas, quilombolas, de terreiro de matriz africana entre outras, quando as mesmas constituem suas educações escolares e não escolares firmadas em pedagogias específicas, diferenciadas, interculturais e interepistêmicas. Esta perspectiva de currículo tem como referência o diálogo entre as experiências (convivências) locais, interlocais e translocais.

Nessas experiencias (convivências), a ancestralidade é um elemento fundante das epistemologias desses povos citados acima, por conseguinte, de suas cosmovisões que orientam também a organização da vida escolar. Um currículo alicerçado na ancestralidade resgata a Memória Decolonial como referência política, epistêmica e didático-pedagógica. A ancestralidade é a indissociabilidade de um tempo contínua que não cabe na cronologia moderna. Assim a temporalidade curricular referendada na ancestralidade vai se estruturar e materializar em tempos outros, em que o ancestral e o sagrado dialogam com a contemporaneidade, com seus desafios e possibilidades.

Outro elemento importante é o sagrado como dimensão indissociável da vida e, consequentemente, da escola. O sagrado nessa perspectiva possibilita, por exemplo, a decolonialidade da mãe natureza (WALSH, 2005, 2008, 2010) e na escola um currículo que não se alicerça na dicotomia entre razão e espiritualidade. Um currículo fundado numa razão sensível, onde a amorosidade (FREIRE, 2005), o cuidar de si, do outro e do ambiente são atitudes para aprendizagens de vida e na vida. Um currículo desenhado na poesia, na prosa, no conto...que emerge do cotidiano, da problematização das vivências e convivências...

Os caminhos e as trilhas na direção de currículos decoloniais alimentados pela Memória Decolonial precisam de processos formativos iniciais e continuados de professores e professoras que se amplifiquem nos diálogos com saberes e práticas oriundos de territórios e de povos que, historicamente, foram silenciados. As instituições formadoras, como as de educação superior, e as instituições contratantes, como secretarias municipais e estaduais de educação, necessitam fazer parcerias horizontais com os movimentos sociais (tais como os movimentos do campo, negros, indígenas, dos povos da floresta, dos quilombolas, etc), que há tempo dialogam com experiências outras epistêmicas e políticas. Essas parcerias contribuem para construção de práxis formativas docentes que rompam com modelos eurocentradas, brancocêntricas, urbanocêntricas, etc e possibilitem olhares e práxis curriculares sensíveis e comprometidas com a exterioridade da modernidade.

Nos movimentos de enfrentamento do currículo, como artefato de esquecimento das ancestralidades outras e sacralização da ancestralidade nortecêntrica, podemos sentir-pensar-construir (pelas bordas, rachaduras e escombros da modernidade-colonialidade) em currículos insurgentes constituídos pelos pensamentos de fronteira nas tensões das diferenças e feridas coloniais. Assim, somos intimados, na urgência dos desafios da contemporaneidade, a ir além das normativas curriculares teóricas e das legislações atuais.

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Notas

[1] Os Movimentos Indígenas do continente americano usam o termo Abya Yala como um dos nomes da América. Este termo é da língua kuna e significa terra madura, terra viva ou terra em florescimento (PORTO-GONÇALVES, 2009). Outras denominações também são usadas como Tawantinsuyu e Anahuac (MIGNOLO, 2008a).


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