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Recepção: 31 Outubro 2023
Aprovação: 24 Novembro 2023
Resumo: Este texto se propõe a examinar a invenção da esquizoanálise, de Gilles Deleuze e Félix Guattari e algumas contribuições para a Educação. Para tal discute os conceitos de máquinas desejantes e de Corpo Sem órgãos, presentes no livro O Anti Édipo. O conceito de máquina é usado para evidenciar o maquínico e não se refere ao não humano, tecnológico, mas à produção, às engrenagens que sustentam a realidade. As máquinas desejantes se associam ao conceito de Corpo Sem Órgãos, corporeidade que não pertence a um sujeito, mas sim é atravessada por uma vitalidade intensiva e conectiva. Esse pensamento sustenta a complexidade e a processualidade da realidade se deslocando do domínio da representação para o domínio da experimentação. Altera ainda a forma de abordar a subjetividade, não em sua interioridade, mas a partir das relações que são estabelecidas e seus efeitos. Ao final do artigo, é desenvolvida uma discussão a respeito da Educação e de como a esquizoanálise pode ser uma maneira de pensar a invenção e a resistência em diferentes processos de aprendizagem.
Palavras-chave: Esquizoanálise, Experimentação, Educação.
Abstract: This text proposes to examine the invention of schizoanalysis, by Gilles Deleuze and Felix Guattari and some contributions to Education. To this end, discusses the concepts of desiring machines and Body Without Organs, present in the book The Anti Oedipus. The concept of machine is used to evidence the machinery and does not refer to the non-human, technological, but to the production, to the gears that sustain reality. Desiring machines are associated with the concept of Body without Organs, corporeality that does not belong to a subject, but is crossed by an intensive and connective vitality. This thought sustains the complexity and processuality of reality moving from the domain of representation to the domain of experimentation. It also changes the way of approaching subjectivity, not in its interiority, but from the relationships that are established and their effects. At the end of the article, a discussion is developed regarding Education and how schizoanalysis can be a way of thinking about invention and resistance in different learning processes.
Keywords: Schizoanalysis, Experimentation, Education.
Resumen: Este texto propone examinar la invención del esquizoanálisis, de Gilles Deleuze y Félix Guattari y algunas contribuciones a la educación. Para esto, discute los conceptos de máquinas deseosas y Cuerpo sin Órganos, presentes en el libro El Anti Edipo. El concepto de máquina se utiliza para evidenciar la maquinaria y no se refiere a lo no humano, tecnológico, sino a la producción, a los engranajes que sostienen la realidad. Las máquinas deseadoras están asociadas al concepto de Cuerpo sin Órganos, una corporalidad que no pertenece a un sujeto, sino que está atravesada por una vitalidad intensiva y conectiva. Este pensamiento sostiene la complejidad y procesualidad de la realidad al pasar del dominio de la representación al dominio de la experimentación. Cambia aun la forma de abordar la subjetividad, no en su interioridad, sino desde las relaciones que se establecen y sus efectos. Al final del artículo se desarrolla una discusión sobre la Educación y cómo el esquizoanálisis puede ser una forma de pensar la invención y la resistencia en diferentes procesos de aprendizaje.
Palabras clave: Esquizoanálisis, Experimentación, Educación.
1 APRESENTAÇÃO
Este texto pretende apresentar trajetórias teóricas de dois pensadores franceses – Gilles Deleuze e Félix Guattari –, a fim de contextualizar a invenção que estes realizaram do conceito de esquizoanálise. Em sequência, este artigo se propõe a indicar alguns efeitos de tal conceito para o campo da educação. Assim, acreditamos que a esquizoanálise é um conceito operativo importante quando se discutem práticas de resistência-invenção nos processos educacionais, especialmente aqueles que se configuram nos cotidianos escolares, compreendidos aqui como dimensões férteis em encontros, crises e criações.
A termo “esquizoanálise” surgiu pela primeira vez no último capítulo do livro O Anti Édipo: capitalismo e esquizofrenia(DELEUZE; GUATTARI, 2010) que teve sua primeira publicação no ano de 1972. O Anti Édipo, fruto da primeira parceria entre Deleuze e Guattari, surgiu como um dos efeitos dos protestos de maio de 1968, sendo que estes, inicialmente concentrados em manifestações de estudantes parisienses insatisfeitos com o conservadorismo e autoritarismo do sistema educacional francês, alastraram-se por toda a França, para, em seguida, reunirem diversos segmentos da população. Foi um movimento plural cujas pautas diversas encontraram como ponto comum o pedido pela ampliação dos coeficientes de liberdade, ampliação de direitos (educacionais, políticos, trabalhistas) e participação social, o que produziu uma catarse nacional. Contra o autoritarismo e a formalidade, protestava-se para libertar os territórios educacionais, sociais, econômicos, culturais, na ousadia de deixar a vida se alargar. A perspectiva esquizoanalítica veio, então, atrelada a essa proposta de alargamento das conexões, aspirando dar passagem a mundos que, não rigidificados em hierarquias e lógicas universais, poderiam oportunizar outras formas de viver, pensar, produzir conhecimentos e aprendizagens.
Em nosso percurso de escrita, defendermos a perspectiva de que a esquizoanálise, enquanto um modo de viver-intervir, pode contribuir para ampliar o pensamento educacional para além do enquadramento a um modelo específico de sociedade e realidade, engendrando passagens para um pensamento na complexidade, no movimento e na resistência-criação à altura dos desafios do nosso tempo.
2 CRIAÇÃO E DIFERENÇA
O século XX mal havia começado quando Bergson (2010) publicou A evolução criadora, sustentando, em 1907, que a nossa inteligência não totalizava a complexidade da vida, sendo o universo aberto ao criativo e à constante invenção. Para Henri Bergson, em cuja obra a noção de invenção é central, a deriva criativa da vida não se restringia aos limites de cálculo da inteligência humana e, consequentemente, não se limitava aos enquadramentos lógicos que organizam a estabilidade de um processo cognitivo. Sendo a inteligência e o pensamento apenas uma das emanações do processo de vida e não sua instância totalizadora e explicativa, igualmente a individuação de um vivente não essencializa a experiência vital. O indivíduo seria, pois, um movimento não passível de uma completa contenção em “molduras” conceituais que ambicionam explicá-lo.
Sustentando a vida em sua complexidade, o referido autor fez uma provocação ao universo filosófico do início do século XX quando argumenta que “o que mais faltou à filosofia foi a precisão. Os sistemas filosóficos não são talhados na medida da realidade que vivemos” (BERGSON, 2006, p. 3). Isso porque, para ele, centradas na razão, na inteligência e na conservação, as filosofias não se comprometiam com a vida como movimento e duração. Segundo o filósofo, as ciências falariam mais sobre condições desencarnadas e reversíveis conjunturas que podem ser planificadas, focadas no estável, no permanente, e não sobre a vida como processo não reversível e, por conseguinte, aberto à transformação e invenção. E como a ciência moderna ambiciona a previsão e o cálculo de redundâncias, tornar-se-ia difícil a apreensão de processos criativos, pois é:
a fixidez que nossa inteligência procura [...] Ainda que anote o momento da passagem, ainda que pareça se interessar, então, pela duração, limita-se, ao fazê-lo, a constatar a simultaneidade de duas paradas virtuais [...] Mas é sempre com imobilidades, reais ou possíveis, que ela quer lidar (BERGSON, 2006, p. 9, grifo nosso).
Aqui entramos, pois, em uma problematização sobre a realidade: esta se constitui por estados fixos passíveis da métrica de uma lógica a-histórica, ou a própria realidade e o tempo se fazem por movimento, fluxo, variação? Se for estado fixo, a realidade se sustenta sobre pilares imóveis, concretados em uma ordem universal; se for movimento, a realidade, como duração, comunga com transformações e emergências de novidades, sendo os estados e os pontos de fixidez um derivativo do movimento e não a sua explicação.
Pensando a vida como duração pura, Bergson (2006) defende esta segunda perspectiva, tendo como principal questão a produção de problemas nesse real que não pode ser apreendido somente pela intelectualidade. Seria nesta produção de problemas que se oportunizaria o abalo de tudo aquilo que fosse concebido como estático. Os problemas novos, por sua vez, colocariam em movimento mundos novos, pois:
pôr o problema não é simplesmente descobrir, é inventar. A descoberta versa sobre aquilo que já existe, atual ou virtualmente; era, portanto, certo que haveria de surgir cedo ou tarde. A invenção confere ser àquilo que não era, ela poderia não ter surgido nunca (BERGSON, 2006, p. 54-55).
Assim, a realidade em que transitamos, e em que nos organizamos como rotina e repetição, não é uma condição eterna e/ou pré-estabelecida, correspondendo ao efeito de um projeto previamente concebido pela mente de um deus ou por uma ordem naturalizada. Ao contrário, nossa realidade é uma expressão emergente da efervescência inventiva da vida; vida esta que está sempre em vias de partejar outras inéditas realidades e consequentes possíveis a elas atrelados. Bergson (2006) denominou de “virtual” a essa condição inventiva e problematizadora de realidade, conceito utilizado por Gilles Deleuze para instrumentalizar o seu estudo sobre a concepção de diferença.
O virtual, virtualis no latim medieval, vem a significar virtude, força, potência. Segundo Deleuze (1999, p. 78), “é próprio da virtualidade existir de tal modo que ela se atualize ao diferenciar-se e que seja forçada a atualizar-se, a criar linhas de diferenciação para atualizar-se”. Desse modo, o virtual diz respeito a uma reunião de forças presentes nas situações. Para Deleuze (1996), a partir de Bergson, o virtual seria a própria multiplicidade e a atualização do virtual se configuraria como diferença, emergência do inédito. O virtual não é ilusório – não se definindo pela não existência na realidade, mas pelo que existe em potência e não em ato –, é uma realidade que se opõe ao atual, que se organiza como uma reposta-problema a essa potência. Nó de forças que se desgarra das situações no momento em que estas se realizam; em que estas “acontecem”. Assim, o que acontece; o que se atualiza; em nada se assemelha ao virtual, uma vez que este não é uma instância representável, mas uma nuvem de potência a engendrar uma dimensão problemática que força a atualização-acontecimento de inéditas expressões. O que se atualiza se apresenta como diferença e a vida passa igualmente a ser considerada como contínua produção e formação de diferença (DELEUZE, 1999).
Em obras subsequentes ao seu estudo sobre Bergson, em especial Diferença e Repetição(DELEUZE, 2006a) e Lógica do Sentido(DELEUZE, 1998), Deleuze continuou a trabalhar o conceito de diferença. No primeiro, ele, retomando a concepção de diferença como movimento não totalizável, contesta a dialética hegeliana como modelo explicativo da vida. Nesse questionamento, sustenta que o elemento último do processo dialético de diferenciação não seria uma síntese final a afirmar a fixidez da Ideia Absoluta, mas a própria diferença, que não é expressão substantiva, mas processo de multiplicada diferenciação a não estabilizar definitivas identidades. Contra a lógica identitária, a diferença vem se afirmar nela mesma, escapando das contradições hegelianas e das hierarquias platônicas.
O desacordo com a dialética em muito marca o trabalho de Deleuze, que, em sua crítica a Hegel afirma “[...] a diferenciação nunca é uma negação, mas uma criação, e que a diferença nunca é negativa, mas essencialmente positiva e criadora” (DELEUZE, 1999, p. 82). Em Diferença e Repetição ele mergulha ainda mais nessa perspectiva ao considerar que:
É preciso que a diferença se torne o elemento, a última unidade, que ela remeta, pois, a outras diferenças que nunca a identificam, mas a diferenciam. É preciso que cada termo de uma série, sendo já diferença, seja colocado numa relação variável com outros termos e constitua, assim, outras séries desprovidas de centro e de convergência. É preciso afirmar a divergência e o descentramento na própria série. Cada coisa, cada ser deve ver sua própria identidade tragada pela diferença, cada qual sendo só uma diferença entre as diferenças. É preciso mostrar a diferença diferindo (DELEUZE, 2006a, p. 94).
Essa composição na diferença fez com que o filósofo realizasse, em Lógica do Sentido, aproximações com a psicanálise e, em especial, com a questão da esquizofrenia. Neste livro, Deleuze (1998) considerou que na esquizofrenia não havia mais fronteiras entre superfície e profundidade, e que corpos das mais diversas naturezas se interpenetravam e se misturavam na produção de um arranjo original. Enquanto o sujeito neurótico, para a psicanálise, seria prisioneiro de uma repetição que almejaria estabelecer uma ordem e uma coerência identitária para seu mundo, o esquizofrênico transbordaria as ordenações estabelecidas, e ao transbordar
[...] um deslizamento se produz e mesmo um desabamento central e criador, que faz com que estejamos em um outro mundo e com uma outra linguagem. Com espanto, reconhecemos sem esforço: é a linguagem da esquizofrenia (DELEUZE, 1998, p. 86).
Buscando uma “lógica” do sentido e do acontecimento, ele flertava, então, não apenas com a dimensão da psicose, mas igualmente com o conceito de estrutura ao propor uma “linguagem da esquizofrenia”, considerando que que só há estrutura daquilo que é linguagem; consequentemente, só há estrutura do inconsciente no momento em que este “fala” através de uma linguagem, que é a dos sintomas (DELEUZE, 2006b).
Neste ponto, consideramos significativo indicar a importância da linguística na construção do conceito de estrutura aqui apresentada, especialmente no que se refere às considerações de Ferdinand de Saussure. Este, em seu Curso de Linguística Geral – que começou a ser ministrado no mesmo ano em que Bergson publicou A evolução criadora – instituiu as bases do estruturalismo quando criou o conceito de Langue como sendo a essência invariante da linguagem. Para Saussure, a Langue é o sistema que torna possível todas as línguas, correspondendo ao que as línguas particulares possuem em comum no mais abstrato nível de análise. Assim, enquanto as línguas são acidentais, a Langue é um sistema essencial (BOUISSAC, 2012). Desta forma, a Langue, sendo diferente de todas as línguas – mas igualmente comum a todas elas – não significaria o mesmo que fala ou linguagem, mas estas últimas, em suas múltiplas variações verbais e não verbais, só seriam possíveis a partir de sua constituição nas regras invariáveis da Langue.
Este culto ao permanente e ao imutável, que se reatualiza no estruturalismo de Saussure, manteve a doxa dominante à qual Bergson ergueu sua oposição. Mas, vigorosa em sua investigação de uma constância universal, a concepção de Saussure foi apropriada, não sem questionamentos e alterações, por várias trajetórias de pensamento: como a psicanálise de Jacques Lacan, em seu primeiro momento; a antropologia estrutural de Lévi-Strauss e a psicogenética de Jean Piaget. Em especial no campo da psicanálise, Lacan propôs inicialmente uma compreensão estruturalista do inconsciente, colocando em diálogo o conceito de inconsciente freudiano com a linguística inspirada em Saussure. Segundo Roudinesco (2008, p. 371), primeiramente Lacan postulou que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”; depois: “a linguagem é a condição do inconsciente” e enfim: “o inconsciente é a condição da linguística”. Nesta última proposição, a estrutura do inconsciente, como a Langue, seria inferida pelas linguagens dos sintomas, e dentre estas estaria a linguagem da esquizofrenia.
A perspectiva estruturalista, tendo seu ponto de confluência em um significante universal a ser a pedra de toque de todas as mutações – início e fim de toda diferença – comungaria com a perspectiva de que a realidade, em sua essência, já estaria previamente totalizada nas regras transcendentes e a-históricas de um invariante funcional: fosse ele a Langue, o Complexo de Édipo, as regras do parentesco, Deus, o raciocínio lógico-matemático, dentre outros, de acordo com o domínio no qual se aplicasse a ideia de estrutura. Deleuze (2006b) sabia que:
a ambição científica do estruturalismo não é quantitativa, mas topológica e relacional. [...] O estruturalismo não é separável de uma filosofia transcendental nova, onde os lugares prevalecem sobre aquilo que os preenche. Pai, mãe, etc, são antes lugares numa estrutura. [...] O verdadeiro sujeito [do estruturalismo] é a própria estrutura (DELEUZE, 2006b, p. 225).
Contudo, se Deleuze conversava com o estruturalismo era para, mergulhando naquele oceano conceitual e no manipular das ferramentas daquele mar, tentar “escapar” da sua fixidez, pois sempre foi um filósofo do movimento e da complexidade, desde que considerou Bergson um filósofo de primeiro plano (DOSSE, 2010). Assim, compreendemos que na apropriação particular que Deleuze fez dessa abordagem de pensamento, se o sujeito da estrutura era um invariante universal, este invariante seria a própria diferença, uma vez que a estrutura não deixava nunca de se (de)compor em diferença, em acontecimento, sendo totalidade não totalizável (DELEUZE; GUATTARI, 2010). Entendemos, pois, que Deleuze fecundou o estruturalismo com reflexões a respeito da vida e da diferença já presentes em suas leituras-reflexões sobre Bergson, indicando que, se toda estrutura é atravessada em singularidades e acontecimentos, ela é igualmente movimento que possibilita o inventivo.
Nesse contexto, houve um progressivo interesse de Deleuze pela questão da esquizofrenia, a qual ele assumia não necessariamente como descrição nosológica, mas como processo de multiplicação na diferença. E foi graças a tal interesse que, entre 1968/69, ele se viu conduzido a um encontro com Félix Guattari; um psicanalista não médico que trabalhava em uma instituição psiquiátrica chamada La Borde. Por intervenção de um amigo comum a ambos, tal encontro se deu nas dependências dessa clínica, alocada em um castelo localizado nas redondezas de Paris/França e adaptado com fins de servir a uma proposta mais laboral e coletiva de se lidar com a saúde mental (DOSSE, 2010). Guattari lá trabalhava auxiliando em sua administração e, à época daquele primeiro encontro, diferentemente de Deleuze, ele estava totalmente afastado do âmbito acadêmico.
3 MILITÂNCIA E TRANSVERSALIDADE
Pierre-Félix Guattari, diferente de Gilles Deleuze que possuía uma robusta carreira acadêmica, fez uma trajetória universitária irregular, tendo se matriculado em Farmácia (abandonando-a após três anos de curso) para, em seguida, iniciar uma licenciatura em Filosofia na Universidade de Sorbonne. Durante sua licenciatura, estudou e admirou Jean-Paul Sartre, assistiu às aulas de Maurice Merleau-Ponty e de Gaston Bachelard; no entanto, a sua maior filiação teórico-filosófica se deu a partir de seu encontro com os trabalhos do psicanalista Jacques Lacan. Foi por este analisado clinicamente e realizou uma formação psicanalítica na doutrina lacaniana.
Mas, apesar de suas incursões psicanalíticas e filosóficas, Guattari se sentia pouco adaptado ao meio universitário e tomou a decisão de também abandonar o curso de Filosofia. Tal decisão foi potencializada pelo convite que recebeu do psiquiatra Jean Oury para integrar a equipe da clínica La Borde. Jean Oury – médico que aprendera a psiquiatria trabalhando com François Tosquelles no hospital de Saint-Alban[1] – fundou esta instituição em 1953, acreditando que a loucura deveria ser tratada se subvertendo a relações hierárquicas instituídas entre cuidadores-pacientes, de forma que as mesmas de desenvolvessem de maneira mais aberta e flexível possível, inclusive com mudanças nos lugares institucionais nas práticas de cuidado desenvolvidas na clínica.
Quando, em 1955, Oury chamou Guattari para colaborar em La Borde, propôs que ele atuasse como um facilitador de grupos, animador de reuniões, estruturador de debates, fomentador de instalações coletivas (assembleias, ateliês, grupos de trabalho), atividades que conversavam com sua militância anterior em diferentes movimentos sociais (GUATTARI, 1992). Sobre sua atuação, Guattari dizia que esta se dava:
[...] na qualidade de um militante que introduzia um estilo político na instituição: não como propagandista de ideias políticas, mas como um indivíduo que havia sido muito ativo durante o movimento dos Albergues da Juventude, que havia se esforçado para lutar contra as estruturas esclerosadas de distintos grupelhos e que tratava de desenvolver certo tipo de política de massas no difícil contexto da luta contra a guerra na Argélia. Eu ficava desgostoso com o caráter manipulador das intervenções dos psiquiatras e dos psicólogos nas instituições, e quis levar tão longe quanto possível o jogo da democracia, o jogo da autogestão nas instituições, fossem quais fossem as dificuldades que resultassem disso (GUATTARI, 1987, p. 100-101, tradução nossa[2]).
Ao frisar o interesse de Félix Guattari no deslocamento do sujeito clássico, portador de uma lógica identitária, para modos de subjetivação coletivos e políticos, Sauvagnargues (2008) conta que, em seu percurso com a loucura, Guattari aderiu às críticas à psiquiatria tradicional e às instituições asilares. Certamente em seu convívio com as práticas grupais e institucionais desenvolvidas em La Borde, aprendeu a conhecer a psicose e o impacto que ela poderia ter sobre o trabalho institucional e vice-versa, uma vez que acreditava que era necessário tratar a instituição para cuidar da loucura.
Em meio a suas ações na La Borde, no Grupo de Reflexão acerca da Psicologia Institucional (GTPsy[3]), na Federação dos Grupos de Estudo e de Investigações Institucionais (FGERI[4]), no Centro de Estudos, de Investigação e de Formação Institucionais (CERFI), dentre outros, o militante, mais do que se comprometer a um enraizamento institucional, preocupava-se com o movimento de inventar articulações que ele posteriormente qualificaria como sendo “micro espaços de liberdade” (Guattari, 1987). Dedicava-se, pois, a ativar diferentes arranjos coletivos, o que o levou a se envolver, graças a suas relações com Jean Oury, com o movimento institucionalista.
Em suas atividades de prática-intervenção nesse campo, Guattari criou conceitos caros a tal movimento, como os de “análise institucional”, “transversalidade institucional”, “transferência institucional”, “analisador”. A expressão “análise institucional” foi inclusive sugerida por Guattari durante uma sessão de GTPsy, entre os anos de 1964/1965, na tentativa de diferenciar sua proposta da concepção de Psicoterapia Institucional, mais focada numa lógica de “desalienação” das relações sociais de uma instituição específica como, por exemplo, um hospital. Essa expressão, com a qual ele jamais teve apego, foi usada por Georges Lapassade para denominar as intervenções feitas por ele e René Lourau, fundando uma corrente institucionalista com esse nome.
Para Guattari (1987), uma análise institucional só teria sentido se deixasse de ser material de um especialista ou de um grupo analítico localizado e se tornasse um dispositivo composto não apenas de indivíduos, mas igualmente de componentes heterogêneos articulados ao funcionamento social, econômico, político, libidinal e estético de uma produção de realidade. Assim, uma análise institucional se faria na ampliação dos graus de transversalidade de um grupo específico, seguindo as redes de significação que o organizam para além do problema de uma situação dada. De acordo com Simonini e Romagnoli (2018, p. 919-920):
[...] Guattari propôs a [análise da] transversalidade como uma ferramenta conceitual no processo de seguir outras tramas que vitalizam grupos. Transversalidade esta que, por sua vez, se oporia tanto à verticalidade grupal (com suas estratificações piramidais e hierárquicas), quanto às dinâmicas horizontalizadas, onde um setor tende a se organizar nas contingências de seu campo situado, no cultivo, por exemplo, de uma “coesão grupal” a propor uma política identitária. Para além da verticalidade hierarquizante e da horizontalidade niveladora de perspectivas, a transversalidade já remeteria a uma dimensão mais conectiva, colocando em análise estratos diversos e descontínuos a atravessar um determinado sujeito ou grupo. Diante disso, Guattari, em suas primeiras aproximações do tema, considera que a transversalidade tem a ver com o quanto um grupo consegue “observar” seu funcionamento como mais complexo do que mera submissão a uma hierárquica autoridade ou limitado a arranjos horizontalizados de uma estabilidade identitária.
Considerando essa concepção transversal dos processos institucionais e psíquicos, Guattari não se furtava em estabelecer contatos com urbanistas, arquitetos, sociólogos, psicólogos, psiquiatras, psicossociólogos, pedagogos, cineastas e igualmente filósofos. E foi, pois, em meio a esses modos de fazer-pensar a sustentarem diferentes composições na diversidade e crítica a estruturas universais e transcendentes, que ele e Deleuze se aproximaram. No primeiro encontro que tiveram, Guattari (2016) expôs a Deleuze que, apesar de estar há muito tempo envolvido com a psicanálise lacaniana, achava reacionário o seu fundamento no estruturalismo a-histórico, questionando a ambição dos lacanianos em querer abranger com interpretações universalistas todos os campos de saber, em especial as relações entre psicanálise/psicose, psicanálise/campo social, psicanálise/política. O filósofo se interessou pelas ideias de Guattari e perseguindo a invenção, os processos e os fluxos transversais, aqueles dois pensadores da diferença decidiram trabalhar juntos em um livro, fazendo acontecer “entre” eles passagens para um pensamento da complexidade e da exterioridade, sustentado pela imanência.
E como um primeiro fruto dessa parceria, em março de 1972 publicaram O Anti Édipo. O livro provocou certo “incômodo” nos meios acadêmicos de seu tempo – especialmente no campo psicanalítico – antes mesmo de ser impresso. Os psicanalistas pressentiam que o ataque que estava por vir, pelas mãos de Deleuze e Guattari, tinha o objetivo de golpear com força o sistema lacaniano, então dominante na França tanto no âmbito psiquiátrico quanto psicanalítico. E Deleuze não escondia tal movimento de contestação, e, em seu curso ministrado semanalmente na Universidade de Paris VIII a um grande público constituído de estudantes, profissionais diversos e curiosos, ele “alegremente” despedaçava o essencial da doutrina freudiana, criticando a universalização do Complexo de Édipo e o denunciando como sendo um novo imperialismo do Um(ROUDINESCO, 1995). Provocativo e enfatizando os movimentos e seus efeitos, anunciou, por exemplo, no início de sua aula de 15 de fevereiro de 1972 – um mês, portanto, antes da publicação de O Anti-Édipo –, que:
Seria catastrófico se eu chegasse com uma teoria do inconsciente. Para mim, o problema é muito prático: como funciona o inconsciente? E digo que nunca funcionou em termos edipianos, em termos de castração ou em termos de pulsão de morte; e eu digo que é a psicanálise que te injeta tudo isso. Há uma operação pela qual a psicanálise pertence fundamentalmente ao capitalismo e, mais uma vez, não está no nível ideológico, está no nível da prática pura (DELEUZE, 1972, s/p, tradução nossa[5]).
E a informação de que Deleuze estava construindo, junto com o “desconhecido” Félix Guattari, um potencial ataque ao estatuto de poder da psicanálise, não passou despercebida a Lacan, que entrou em contato com seu ex-analisando e ainda “discípulo”, a fim de convidá-lo para uma reunião em seu escritório. Naquela reunião, Guattari foi questionado: “o que você tem feito nesses dois últimos anos? Nós perdemos o contato. Eu não estou querendo te repreender, você ainda é parte da École[6]. Eu aceito divergências, foi por isso que eu fundei a École, mas[...]” (GUATTARI, 2006, p. 343, tradução nossa). Na verdade, ele estava interessado em ler previamente o manuscrito de O Anti-Édipo. Diante da negativa de Guattari, Lacan, não satisfeito, convidou-o para um jantar a fim de que pudessem conversar mais sobre aquela obra que estava por sair. E aquele jantar – uma experiência tensa que selou a separação entre aqueles dois homens – se iniciou com o seguinte questionamento de Lacan: “então, o que é a esquizoanálise?” (GUATTARI, 2006, p. 344, tradução nossa[7]).
4 QUANDO O VIRTUAL SE ATUALIZA: sobre máquinas, corpos e relações
Em O Anti-Édipo, Deleuze e Guattari (2010) apresentaram ao universo filosófico e psicanalítico de seu tempo a ideia de esquizoanálise e os conceitos de “máquinas desejantes” e “corpo sem órgãos” (CsO). Nesse mesmo movimento, problematizaram os processos de controle instaurados pelo capitalismo e sua relação com os reducionismos da subjetividade realizados por uma psicanálise que a aprisionava à estrutura invariante do Complexo de Édipo. Confrontaram, dessa maneira, o modelo psicanalítico ao inserir no fluxo do inconsciente uma eterna re(a)presentação da cena edípica, instituída como uma metáfora universal da constituição do eu (DELEUZE; GUATTARI, 2010). São propostas de O Anti-Édipo: 1) desprezar a ideia de uma estrutura universal do sujeito psíquico; 2) combater a hegemonia do simbólico como uma totalidade incriticável e invariável, bem como a supremacia das relações de produção atrelada ao econômico; 3) propor uma nova “ontologia”, a das máquinas desejantes, 4) e uma nova clínica, a esquizoanálise.
Nesse contexto, opondo-se às verdades totalizadas em ideias universais, os autores criaram conexões com as relações e as singularidades vitalizando realidades moventes, processos maquínicos, engrenagens de tramas intensas amparadas por fluxos “esquizos”. Apostando no intensivo de tais fluxos, o processo da esquizoanálise se propõe a duas tarefas fundamentais: raspagem e produção de dispositivos (DELEUZE; GUATTARI, 2010). A raspagem, também chamada de curetagem, refere-se ao processo de crítica ao modus vivendi atual, com o intuito de desvelar os mecanismos de controle e de reprodução através da identificação assídua do que se repete, das formas e dos modelos instituídos que tentam despotencializar a vida que, é em si, criação. Por outro lado, a fabricação de dispositivos concerne à articulação de forças para a produção de outras maneiras de viver e de pensar que burlem programas, metas, ideais e que estão comprometidas com o entendimento da vida como processo de produção; e produção inclusive de antiprodução.
Contra o estruturalismo e sua lógica representacional, a abordagem esquizoanalítica não busca interpretar, mas colocar em agenciamento diferentes regimes de expressão na produção da realidade não como fixidez e repetição, mas como diferença em multiplicação. Ou seja, a esquizoanálise persegue a vida que se exerce como experimentação. E é contra a ideia de representação, que traz consigo a ambição de espelhar uma estrutura totalizadora, que o conceito de diferença assume, em O Anti-Édipo, uma nova roupagem: se realiza nas máquinas desejantes. As máquinas desejantes são agenciamentos em que o processo produtivo da realidade se realiza. Não devem ser explicadas, entendidas do ponto de vista do seu interior, mas devem ser abordadas a partir da exterioridade das suas forças e das suas relações. Ativam diferenças que não se curvam à função repressiva da categorização e também não se esgotam quando representadas e/ou interpretadas, continuando a buscar conexões, a estabelecer agenciamentos a partejarem diferenças tantas vezes inéditas e assustadoras por não terem sido previamente mapeáveis.
É importante pontuar que, para Deleuze e Guattari (2010), a noção de máquina não se limita ao “não humano” e nem se restringe aos mecanismos de artefatos tecnológicos, mas se abre a processos e a conexões singulares que se produzem em determinadas circunstâncias. Para os autores, as conexões maquínicas não têm determinação mecânica, mas fazem parte de uma trama intensiva de engendramento de mundos; maquínico é o processo de funcionamento da realidade, pois a esta se configura em (des)arranjos contínuos a estabilizarem ordenações sempre temporárias. Nessa produção argumentam que tudo são máquinas, e não por força de uma metáfora, mas sim pelo processo em si que configura a vida: conectivo e criativo. No entanto, se tudo são máquinas, o que diferencia as máquinas técnicas das máquinas desejantes não é uma diferença de regime de funcionamento, mas de natureza, uma vez que:
[...] as máquinas técnicas só funcionam, evidentemente, com a condição de não estarem desarranjadas; seu limite próprio é o desgaste, não o desarranjo [...] Ao contrário disso, as máquinas desejantes não param de se desarranjar enquanto funcionam, e só funcionam desarranjadas: o produzir se enxerta sempre no produto, e as peças da máquina são também o combustível (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 49).
A esquizoanálise está, pois, comprometida no acompanhar vias de intensificação de máquinas desejantes que, em seus (des)arranjos, estão no “fundamento” de todos os processos de organização e de produção de realidade, assim como o delírio está na base de todo investimento social inconsciente. Tais (des)arranjos das máquinas desejantes são potências esquizos a se ativarem no que escapa dos assujeitamentos, no que foge das capturas aos modelos vigentes, no que transgride as estatísticas, instaurando a vertigem da instabilidade, mas também e, sobretudo, a abertura tantas vezes angustiante e sem garantias à invenção.
Por este viés, a esquizoanálise se propõe à raspagem das instâncias paranoicas da sociedade que se organizam na dimensão das máquinas molares e visíveis: sistemas de controle, formatações estatísticas e generalizantes que anseiam padrões universais, multidões montadas em palavras de ordem e ideários pré-definidos. Tal curetagem, na qualidade de crítica e clínica esquizoanalítica do naturalizado e “já-estabelecido”, coloca o movimento na diferença como sendo criação – a exemplo do que defendeu Bergson (2010) – da qual Deleuze e Guattari (2010) se apropriam para salvaguardar a vida como processo inventivo, uma vez que esta não se exerce mediante coordenadas previstas em esquemas, roteiros e tampouco estruturas universais. A abertura da esquizoanálise à inventividade e à experimentação é a condição de sensibilização dessa abordagem tanto às máquinas desejantes quanto aos processos de produção de realidade, uma vez que:
A tese da esquizoanálise é simples: o desejo é máquina, síntese de máquinas, agenciamento maquínico – máquinas desejantes. O desejo é da ordem da produção, toda produção é ao mesmo tempo desejante e social (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 390).
Nesse cenário, um alerta se faz necessário: para os autores, o que é inventivo não é o “esquizo” como entidade capturada pela psiquiatria, mas o processo esquizofrênico em sua dimensão conectiva e, portanto, desejante e intensiva. Desse modo, eles não romantizam o sujeito esquizofrênico como um revolucionário incompreendido, mas sim o veem como uma criatura aprisionada em um desabamento, em uma paralisia. Por sua vez, interessa a Deleuze e Guattari abordar o “esquizo” como “portador de fluxos desterritorializados e descodificados, processualidade pura” (PÉLBART, 2000, p. 161). Assim, eles não atrelam o processo esquizofrênico àquele associado a uma subjetividade produzida pela Classificação Internacional de Doenças (CID), pelos hospitais psiquiátricos e/ou pela indústria farmacêutica. Ao contrário, eles se aproximam do “esquizo” não como sujeito psiquiatralizado, mas como dimensão de produção, de junção de heterogeneidades, de sustentação das diferenças que, de fato, constituem a vida em seus distintos regimes de funcionamento produtivo. Por isso que a esquizoanálise é, pois, análise nas linhas do desejo; desejo este que não é falta, que não é carência, mas conexão, agenciamento maquínico que está em contínua possibilidade de inaugurar novas coordenadas de sentido e realidade.
No rastro das tramas maquínicas a configurarem o campo de intervenção da esquizoanálise, Andoka (2012) afirma que o conceito de máquina desejante se articula com o conceito de corpo sem órgãos (CsO), cujo conteúdo é essencialmente intensivo. O CsO – desenvolvido por Deleuze e Guattari (2010) a partir de referências múltiplas, como um poema de Antonin Artaud[8], como o corpo tântrico dos hinduístas, como o ovo cósmico da comunidade Dogon – se refere à apresentação de um corpo intensivo, com fluxos que se cruzam em diversos eixos. Nesse sentido, a exemplo das tarefas da esquizoanálise, o CsO tem duas vertentes: uma crítica, pois se opõe ao organismo (forma organizada na qual a vida se encontra estancada em órgãos) e uma afirmativa, que se define através da experimentação do que pode um corpo entendido em articulação com o plano de imanência, no qual encontra-se justaposto um funcionamento reprodutivo e um funcionamento inventivo, formas e forças (ANDOKA, 2013). O que, por sua vez, “[...] nos possibilita entender o corpo não como essência, mas como resultado de uma conjunção de forças e circunstâncias, permitindo até mesmo outros modos de individuação que não remetam à ideia de identidade ou de sujeito” (DINIS, 2008, p. 357).
Igualmente, Andoka (2012) considera que essa relação de forças é necessária para migrar a subjetividade da instância da representação e inscrevê-la em um plano de imanência, desconstruindo, assim, a ideia de um sujeito essencializado em uma consciência racional reflexiva. Desse modo, esses dois conceitos – máquinas desejantes e corpo sem órgãos (CsO) – rompem com a visão de um sujeito portador de uma interioridade em racionalizável constância, para inscrever a subjetividade na experiência de composição em conectividades intensivas que escapam de lógicas deterministas, embora, no funcionamento organizativo de uma realidade, estas possam se exercer.
É diante de tais considerações que, a partir da proposta esquizoanalítica de Deleuze e Guattari, Andoka (2012, s/p) considera que:
[...] as máquinas formam uma rede dinâmica de produção com diferentes níveis de conexão entre elas, e assim é mais justo de considerar que a realidade é constituída por uma multiplicidade[9].
Multiplicidade sustentada por um plano de imanência, o qual se opõe à ideia de transcendência, uma vez que esta concebe a existência de formas superiores, seja de pensamento, seja de existência, reduzindo a heterogeneidade da vida a uma unidade que, como vimos, é “objeto” de raspagem e desconstrução pela esquizoanálise (CARVALHO, 2005). Para escapar, portanto, da ideia de transcendência, de modelos que determinam a realidade, Deleuze e Guattari (1995) reafirmam o conceito de multiplicidade; o que faz com que, junto a estes autores, intervir de maneira esquizoanalítica é pensar por imanência, assumindo a vida e a realidade como multiplicidade, em si e por si. Nessa direção, a subjetividade, como agenciamento maquínico, passa a ser apreendida em suas relações e em seu campo de efeitos, encontros, afetamentos, enfim, de multiplicidades, não remetendo somente a sua interioridade, mas também às máquinas desejantes.
Silva e Carvalhaes (2016), ao estudarem a necessidade de abordar a subjetividade em processo, discorrem sobre os efeitos de padronização e de assujeitamento quando se considera a dimensão subjetiva como somente individual e com vínculos secundários no que se refere ao campo sociocultural. Risco que pouco corremos na esquizoanálise. Produtos das relações, a subjetividade se liga a situações, a acontecimentos, a dimensões institucionais, não se separando do social, comportando dimensões maquínicas e intensivas (GUATTARI, 1992). Desloca-se por conexões com forças exteriores a ela, por agenciamentos com o que nos tira de nós mesmos e nos torna outros; passagem entre o que está estabelecido e o que pode vir a ser.
Retornando ao Anti Édipo, temos que naquele primeiro livro que compuseram juntos – e em outros em que estenderam a parceira – Deleuze e Guattari se propuseram esquizoanalistas a criar conceitos junto aos quais pretendiam abrir a possibilidade de pensar de uma diferente maneira a vida e as relações dela emergentes. Não cultivaram um posicionamento de obediência e nem de reprodução às ideias já existentes, ao alegarem que o pensar deve servir para criar mundos e não para representar. A proposta por eles apresentada, devir de um encontro, atualização de um virtual, se propõe a fazer vibrar quem dela se aproxima, convocando muito mais à dimensão da experimentação e dos afetamentos do que à esfera da compreensão e da representação.
5 AGENCIAMENTO ESQUIZOANÁLISE-EDUCAÇÃO
Nesse texto apresentamos brevemente a esquizoanálise em seus aspectos históricos e conceituais que antecederam sua emergência e que igualmente instrumentalizaram sua elaboração. Como vimos, a esquizoanálise, rascunhada experimentalmente em O Anti-Édipo, não se propõe a explicar, interpretar ou conduzir, uma vez que toda explicação interpretativa carrega consigo a ambição de oferecer forma e sentido (tantas vezes totalizantes) a uma experiência. Assim sendo:
O esquizoanalista não é um intérprete, ainda menos um encenador, ele é um mecânico, um micromecânico. Não há escavação ou arqueologia no inconsciente, não há estátua [...]. Em cada caso, trata-se de achar quais são as máquinas desejantes de alguém, como elas funcionam, com que sínteses, com que entusiasmos, com que falhas constitutivas, com que fluxos, com que cadeias, com que devires (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 448-449).
Dessa maneira, pensar a esquizoanálise na Educação não é uma atitude comprometida em achar uma solução de conserto, mas abrir as vias de problematizações para que novos arranjos, conexões/rupturas sejam ativados. Se isso pode significar uma concessão ao caótico, também oportuniza a possibilidade do arranjo inédito e potencialmente libertário de novas terras. A grande questão é como fazer funcionar condições para a invenção de uma “nova terra”, de novas sensibilidades e resistências nas mais diversas composições que podem ser ativadas nos cotidianos das escolas. Neste contexto, entendemos por resistência o movimento de fabricar vias de acesso nas quais não há caminhos prontos; o inventar de uma diferente maneira de respirar quando os poros conhecidos estão obstruídos; o insistir em outra suavidade frente à desesperança de um presente sem saída e de um futuro sem perspectiva.
Resistir é, pois, cultivar não a alegria do tolo, a agressividade do desiludido ou o comodismo do covarde, mas a ousadia “esquizo” de desenhar linhas de fuga na tela em que um sistema molar e paranoico (cognitivo, econômico, educacional, político, social, cultural, dentre outros) presentifica sua opressão. Nessa direção, a esquizoanálise se aproxima da dimensão artística e dos processos de aprendizagem, na medida em que é produção de mundos, invenção de estéticas, intensificação de sensações na composição de experiências em devir quando das núpcias entre entidades improváveis que, se por um lado podem viabilizar monstruosidades, por outro podem também fazer nascer um novo encantamento. Como conta o romancista Julian Barnes:
Você junta duas pessoas que nunca foram juntadas antes. Às vezes é como aquela primeira tentativa de atar um balão de hidrogênio a um balão de fogo: você prefere cair e pegar fogo ou pegar fogo e cair? Mas às vezes funciona, e algo novo é criado, e o mundo se transforma (BARNES, 2014, p. 75).
Proposta de experimentação de novas coordenadas de subjetivação e os possíveis universos que emergem desse processo, a esquizoanálise, enquanto movimento a seguir vetores de criação e de aprendizagem, coloca sempre em questão a estabilidade de verdades que se pretendem eternas em suas garantias. Fazer, por exemplo, esquizoanálise nos processos de aprendizagem que ganham existência em uma escola, envolve seguir as linhas de intensificação que atravessam os currículos, os encontros dos docentes e dos discentes nos diferentes lugares do fazer institucional. É seguir também o uso que fazem dos documentos, a ocupação dos espaços, as dinâmicas com a comunidade no entorno da escola, assim como também os tensionamentos econômicos, políticos, artísticos, psicológicos, psiquiátricos e pedagógicos que ganham forma e força nos agenciamentos cotidianos das instituições escolares. Praticar uma postura esquizoanalítica é, pois seguir as intensificações dessas linhas que compõem modos de produzir realidades nas escolas e os conhecimentos subjacentes a tais produções de mundo.
Nesse sentido, a esquizoanálise convida à multiplicidade, uma vez que ela se faz não sobre os sujeitos, mas no seguir as linhas de subjetivação que produzem os sujeitos. Consequentemente, só se faz esquizoanálise no movimento de seguir os arranjo e conexões que ganham intensidade em meio às dinâmicas nos cotidianos, uma vez que este é igualmente um processo que se constitui nas tramas em multiplicidade; tramas estas que estabilizam constâncias formadoras de efeitos de realidade, mas de uma realidade nunca totalizável. Assim, os cotidianos escolares, construídos sempre em tramas na multiplicidade – em que entram em agenciamento arquiteturas, histórias, documentos, leis, afetos, conflitos, musicalidades, corpos, expressões, currículos, estéticas, sexualidades etc. – não são objeto de moralização, mas de análise processual. Pois, nas escolas, arranjos tantas vezes imprevistos (e até mesmo impensáveis) oferecem passagem a mundos legítimos que, por sua vez, podem tanto não ser assumidos como viáveis ou “digeríveis” pelos praticantes institucionais, quanto também podem abrir passagem a novas sensibilidades e maneiras de pensar. É nesse sentido que Guattari salientou que uma análise esquizoanalista é semelhante à intervenção de um “mecânico”, não no conserto de uma máquina técnica, mas no seguir os fluxos em agenciamentos, em devir, das máquinas desejantes.
Assim, uma “mecânica” esquizoanalítica no campo educacional se ativaria no seguir as linhas de subjetivação que se intensificam no multiplicar de perspectivas, saberes e experiências. Tal fato, coloca em relação elementos distintos e diversos como as relações de gênero; modelos estéticos a configurarem maneiras de viver; ancestralidades; musicalidades autorizadas, proibidas e inclassificáveis; expressões do corpo contidas ou incentivadas; frustrações amorosas; questões salariais; políticas educacionais; as possibilidades arquiteturais da instituição; as práticas disciplinares; as configurações e tensões das famílias e seus desdobramentos nas escolas; os processos de inclusão, com toda uma complexa discussão sobre o diferente e sobre a diferença: todo um debate sobre os modos de existir daqueles que geram estranhamentos nos processos educacionais e que forçam as instituições ou a expulsar esses “estrangeiros”, ou a neutralizá-los em uma zona de violenta indiferença, ou a criar novas práticas com aqueles que se compõem em temporalidades, ritmos e rotinas outras que não as hegemonizadas em uma escola e, consequentemente, em uma sociedade.
Assumindo a realidade como agenciamentos a estabilizarem produções de verdade, a esquizoanálise pensada no campo da Educação se engendra, pois, na perspectiva de que não existe um mundo totalmente finalizado que não encontre uma linha de fuga, sua desterritorialização, sua aceleração em processos imprevistos. O que faz da esquizoanálise um modo de viver/pensar/praticar que sustenta o desejo como agenciamento, como experimentação – que se assemelha à produção artística, no sentido de oferecer espaço de legitimidade a diferentes estéticas muitas vezes contrastantes – e criação de realidades sempre coletivas. Consequentemente, uma postura esquizoanalítica nos cotidianos escolares envolve a abertura a novas sensibilidades de aprendizagem a colocarem questionamentos sobre como pensamos as avaliações, os currículos, a própria escola enquanto instituição e as maneiras como nos produzimos alunos, professores, funcionários, pais e, principalmente, como pensamos os ideais de futuro, de progresso e realização social.
Portanto, não existiria um projeto esquizoanalítico de sociedade ou mesmo um “currículo esquizoanalítico”, uma vez que tais abordagens se constituiriam em um contrassenso à esquizoanálise, já que substituiriam uma perspectiva em processos, núpcias, agenciamentos, por outra perspectiva que se filiaria à constituição de um modelo, de um ideal. Contudo, se não existe um currículo esquizoanalista, isso não suprime a perspectiva de realização de uma análise esquizoanalista dos currículos, realizada no ato de seguir as redes de relações, afetos, políticas, sensibilidades, saberes, gêneros, ritmos[...], e os vetores de produção de realidades aos quais elas se associam.
Assim, uma análise esquizoanalítica dos currículos os colocaria na vizinhança dos movimentos tanto identitários quanto dos que se compõem em diferença, no promover agenciamentos entre dimensões que não estão necessariamente em anastomose: de uma aula sobre artigo definido (“o”, “a”) se pode produzir conexões com os pronomes neutros; com as construções de gênero; com os territórios de identidade a construírem constâncias; com a diversidade sexual; com a produção de violências diante do diferente; com os racismos; com os genocídios e limpezas étnicas; com as tensões religiosas; com a política de cotas; com o bullying; com a produção social da pobreza; com os valores estéticos que participam da instituição de modelos de beleza...
Seguir as linhas de intensidade e efeitos dessas conexões seria promover uma esquizoanálise dos currículos e dos saberes neles comprometidos e/ou ignorados.
Por sua vez, tal abertura ao plano das conexões não torna os processos avessos às formulações teóricas e às construções de metodologias e práticas, pois o que está em cena é o fato de se entender a vida como processo. Se, em uma analogia, podemos pensar a existência como um oceano de possibilidades, há a necessidade de se construir embarcações para singrar tal mar. A produção de teorias (de currículos, de avaliações, de comportamentos, de políticas, etc) é como um barco no mar a oferecer territórios de estabilização nas práticas cotidianas; contudo, tais teorizações não podem perder a perspectiva de que o “solo” sobre o qual se sustentam é a própria incerteza do oceano. Como considerou Guattari (1987, p. 140) “a elaboração teórica é tanto mais necessária e deverá ser tanto mais audaciosa quanto o agenciamento esquizoanalítico tomar a medida de seu caráter essencialmente precário”.
A esquizoanálise, em seu agenciamento com a Educação, é também um convite ao precário. Composta em vetores de subjetivação, a esquizoanálise se apresenta simultaneamente como crítica, invenção, incerteza e experimento no ativar de um bricolage entre diversas áreas de conhecimento – Ciências Formais, Ciências Naturais, Ciências Humanas, Artes, Saberes Populares, dentre outras – para defender a vida como arranjo na diferença em seu sentido mais amplo. Portanto, a esquizoanálise, insistindo em uma análise sociopolítica, remete a diversos processos de subjetivação em relações micropolíticas inventivas.
Mais do que uma proposta em que pretende reconstruir o passado para se explicar uma lógica totalizadora do viver; mais do que propor ideais e modelos de um “mundo melhor” – sejam eles individuais ou coletivos – o pensamento esquizoanalista é prospectivo, produtor de problemas, agenciado em nuvens de virtualidade na oportunidade-risco de invenção de campos de possíveis, de experimentações e de novos territórios de subjetivação a organizarem outras trajetórias existenciais e, consequentemente, outras realidades, outras aprendizagens, outros projetos e currículos... sempre em vias de diferenciação.
O que está, portanto, ativado em uma postura esquizoanalítica não é a segurança de um projeto definido em seu método e objetivos a alcançar, mas a aposta de deixar aberto um mundo a conexões e encontros. O que está ativada é a coragem de ousar na possível vertigem dos movimentos que podem fazer pensar-sentir outras possibilidades em nós mesmos, em nossas relações, em nossos encontros e nas maneiras como praticamos as escolas que nos inventam e se reinventam sem pedir licença ou autorização.
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Notas