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AS CRIANÇAS PRETAS ME CONVIDARAM A OUVI-LAS: reencantando e reiventando o currículo a partir das histórias infantis
THE BLACK CHILDREN INVITED ME TO LISTEN TO THEM: reenchanting and reinventing the curriculum based on children's stories
NIÑOS NEGROS ME INVITARON A ESCUCHARLOS: reencantando y reinventando el currículo a partir de los cuentos infantiles
Revista Espaço do Currículo, vol. 16, núm. 3, pp. 1-21, 2023
Universidade Federal da Paraíba

Artigos

Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 3, 2023

Recepção: 10 Julho 2023

Aprovação: 15 Setembro 2023


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: O artigo apresenta possibilidades de encantamento e reencantamento, partindo de vivências e conversas com crianças da pré-escola, que teve como um dos objetivos da pesquisa: apresentar como as crianças percebem os processos de construção da identidade e de uma autoimagem positiva a partir de livros de Literaturas Infantis Pretas que abordam valores civilizatórios afro-brasileiros e/ou princípios de cosmovisão africana. Nesse sentido, o estudo teve como base metodológica a abordagem qualitativa e, como estratégia de investigação, utilizamos o aporte da etnografia para contemplar a pesquisa com crianças, adotando os referenciais teóricos e metodológicos da Pretagogia e dos Valores Civilizatórios Afro-brasileiros. A pesquisa foi realizada em um Centro de Educação Infantil de Feira de Santana/BA. As crianças comentam as histórias, as imagens, as situações e relacionam com as suas vivências, se reconhecem através dos personagens; as histórias surgem também para romper como um distanciamento das crianças diante de outras culturas, apresentando a elas e valorizando outras formas de existir e produzir conhecimento.

Palavras-chave: Crianças, Literatura infantil, Identidade negra.

Abstract: The article presents possibilities of enchantment and reenchantment, based on experiences and conversations with preschool children, which had as one of the research objectives: to present how children perceive the processes of identity construction and a positive self-image based on books of Black Children's Literature that address Afro-Brazilian civilizing values and/or principles of African cosmovision. In this sense, the study was methodologically based on a qualitative approach and, as an investigation strategy, we used the contribution of ethnography to contemplate research with children, adopting the theoretical and methodological references of Pretagogy and Afro-Brazilian Civilizing Values. The research was carried out in an Early Childhood Education Center in Feira de Santana/BA. Children comment on the stories, images, situations and relate to their experiences, they recognize themselves through the characters; the stories also appear to break the gap between children and other cultures, introducing them to and valuing other ways of existing and producing knowledge.

Keywords: Children, Children's literature, Black identity.

Resumen: El artículo presenta posibilidades de encantamiento y reencantamiento, a partir de vivencias y conversaciones con niños preescolares, que tuvo como uno de los objetivos de la investigación: presentar cómo los niños perciben los procesos de construcción de la identidad y una autoimagen positiva a partir de libros de Literatura Infantil Negra. que aborden valores civilizatorios afrobrasileños y/o principios de la cosmovisión africana. En ese sentido, el estudio se basó metodológicamente en un enfoque cualitativo y, como estrategia de investigación, utilizamos la contribución de la etnografía para contemplar la investigación con niños, adoptando los referentes teóricos y metodológicos de la Pretagogía y los Valores Civilizadores Afrobrasileños. La investigación se llevó a cabo en un Centro de Educación Infantil en Feira de Santana/BA. Los niños comentan las historias, las imágenes, las situaciones y las relacionan con sus vivencias, se reconocen a través de los personajes; las historias también parecen romper la brecha entre los niños y otras culturas, introduciéndolos y valorándolos en otras formas de existir y producir conocimiento.

Palabras clave: Niños, Literatura infantil, Identidad negra.

1 INTRODUÇÃO



- Era uma vez, no Reino Encantado....
- Com licença, senhor narrador!
- Pois não, Pretinha
- Hoje eu vou contar a minha história!
- Hmmmmm... Não sei... Será que podemos mudar assim a forma de contar histórias? Isto nunca me ocorreu!
- Oras, senhor narrador! Há sempre a primeira vez...
- E por que não? Fique à vontade Pretinha!
- Então, vou iniciar na próxima página...

Fonte: BRITO, 2016, p. 4

Pretinha de Ébano é o apelido de Luiza Mahim, personagem do livro “Pretinha de Ébano”, de Kalipsa Brito (2016). Como é apresentado na epígrafe, Pretinha pede licença ao narrador para assumir o seu protagonismo e contar a sua história. Neste artigo, apresentamos o resultado de uma pesquisa que tem esta intenção: ouvir as crianças pretas e suas histórias.

É dessa maneira que temos nos inspirado na proposta de Nilma Lino Gomes (2012) quando aborda sobre a descolonização dos currículos. Se por muitos anos o currículo vem sido produzido por um referencial de pessoas adultas, brancas, com uma concepção da ciência moderna europeia, neste artigo, operamos com uma outra lógica: a de que não são as pessoas adultas que falam sobre as crianças, mas estas são protagonistas e falam por si. Elas têm voz e nós, na pesquisa realizada, ouvimo-las!

Considerando que ainda vivemos tempos de imposição curricular, que valoriza práticas homogeneizadoras, buscamos transgressões (HOOKS, 2019) e insurgências nos cotidianos das escolas e, dessa maneira, inventamos um currículo, escutando crianças negras, pois elas também elaboram currículos na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental. A exemplo disso, temos uma experiência vivida pela autora deste artigo, que marca nossas decisões de compreender as crianças como autoras de suas escolhas e posicionamentos: “Uma de minhas alunas de apenas 6 anos pediu para que eu me abaixasse, pois ela queria sussurrar algo no meu ouvido e a sua fala foi: “Pró[1], não alisa o cabelo, não! Você fica linda com o cabelo cacheado igual o meu!”. Naquele momento, meus pés demoraram de encontrar o chão e inúmeros questionamentos me vieram: como eu poderia continuar sendo um exemplo de adequação a um padrão para as minhas alunas? Mesmo depois de tantas escolhas teóricas, como meu corpo permanecia colonizado, buscando no espelho uma identidade embranquecida que nega minha ancestralidade, um espelho que reflete a branquitude como normativa, única e ideal (CARDOSO, 2010).

A turma da qual a criança fazia parte, o primeiro ano do Ensino Fundamental, tinha apenas três crianças negras e as conversas sobre cabelo, penteados, maquiagens, sempre eram pautadas entre as meninas. Ela tinha cabelos cacheados e quando chegava na escola com o cabelo solto sempre sorria para mim sabendo que o elogio viria.

A partir do questionamento desta pequena menina e das reflexões que ela, com 6 anos de idade me despertou, tomei consciência de que meu corpo era um lugar de conflito. Em teoria, eu conseguia fazer reflexões sobre o meu papel político, mas na prática de educadora, meu corpo ainda seguia preso aos ideais que o colonizou desde o meu nascimento.

A partir dessa percepção, podemos considerar o que Gomes (2003) apresenta quando se refere ao corpo como um “terreno social conflitivo”, logo, o cabelo é símbolo identitário, que comunica e é considerado emblema étnico (GOMES, 2003). Consideramos a construção identitária como um processo fundamental para o entendimento das crianças sobre si, diante das diferenças que permeiam o mundo escolar.

Como afirma Gomes (2005), o processo de construção identitária, de elaboração de visões de mundo se inicia na família e se expande para outras relações que o sujeito estabelece. Pensando a escola como uma das instituições com as quais as crianças têm primeiramente contato, ainda em seus primeiros anos de vida, esta se constitui como um espaço importante para a construção da identidade negra das crianças e, desse modo, as discussões sobre esta temática são essenciais para que o ambiente e as ações, no âmbito escolar, colaborem na construção da identidade destas crianças de forma positiva.

A escola, que em seu cotidiano ainda silencia o racismo, possuindo um discurso que afirma a igualdade de todos os estudantes, torna-se palco para a disseminação da prática do racismo, como afirmam Anete Abramowicz e Nilma Lino Gomes (2010). A criança negra se depara na escola com livros que apresentam imagens e personagens que não se aproximam de suas características ou, se apresentam imagens de pessoas negras, estas se relacionam à dor e ao sofrimento dos negros escravizados, imagens melancólicas que não escondem todo o histórico de resistência e heroísmo do povo negro. Portanto, defendemos a necessidade de refletirmos mais sobre as crianças no contexto da Educação Infantil; seus processos de construção identitária e de sua autoria nas práticas curriculares.

Defendemos que o currículo da Educação Infantil é mobilizado por escolhas e estas são carregadas de intencionalidade pedagógica. Na organização do espaço, tempo e da materialidade que compõem as escolas e centros de Educação Infantil, na forma como as crianças são acolhidas, respeitadas, ouvidas, olhadas, podemos fazer a leitura da concepção de criança e infância que dá subsídio às práticas. Acreditamos na potência de pedagogias da infância, tal como a pedagogia do cotidiano “como uma unidade de inteireza da vida constituída por diversos fios – temporalidades, espacialidades, relações, linguagens – que se estabelecem na escola” (CARVALHO; FOCHI, 2016, p.166).

Desse modo, a partir de uma pesquisa realizada no cotidiano de uma escola na periferia do município de Feira de Santana, Bahia, produzimos dados que apresentamos neste artigo, com a intenção de compartilhar os resultados do seguinte objetivo: analisar histórias infantis pretas com autoria de autores baianos negros que abordam valores civilizatórios afro-brasileiros e/ou princípios de cosmovisão africana e apresentar como as crianças percebem os processos de construção da identidade e de uma autoimagem positiva a partir de livros de Literaturas Infantis Pretas que abordam valores civilizatórios afro-brasileiros e/ou princípios de cosmovisão africana. Para atingir tal objetivo, conversamos com crianças pretas com idade de 4 e 5 anos em rodas de conversas e assim registramos neste artigo a experiência de um currículo reinventado e praticado, que contribuiu para a descolonização dos saberes.

2 CAMINHOS METODOLÓGICOS



O finalzinho
Quem leu primeiro perguntou:
João escolheu fazer um caderno a sua maneira.
Isso aí não é besteira?
E João já respondeu:
Criei um jeito de fazer isso aqui mais divertido.
Entender algumas coisas de um modo mais colorido.

Fonte: (RAMOS, 2016, np

A pesquisa foi de cunho qualitativo e utilizamos as rodas de leituras e conversas com crianças pretas que cursavam a pré-escola (grupo 4) de um Centro de Educação Infantil. Tanto a Pretagogia quanto os Valores Civilizatórios Afro-brasileiros foram conceitos teórico-metodológicos e práticos cunhados por mulheres negras e ativistas comprometidas com a educação, e que nos inspiraram de maneira colaborativa para o desenvolvimento dos caminhos que rompem com o pensamento colonial e eurocêntrico.

A Pretagogia é apontada por Sandra Petit como um “novo referencial pedagógico que vem sendo construído por um grupo de mulheres negras que pesquisam e realizam intervenções pedagógicas no Ceará” (PETIT, 2015, p. 143). A Pretagogia apresenta princípios filosóficos da cosmovisão africana que adotamos, quais sejam: o pertencimento afro; a ancestralidade, que permeia o nosso modo de ser e estar no mundo; a religiosidade, como manutenção cultural; oralidade/tradição oral; o corpo, enquanto produtor de saberes e o entendimento da noção de território (SILVA, 2013).

Os valores civilizatórios afro-brasileiros, apresentados por Azoilda Trindade, são: energia vital; ludicidade; territorialidade; corporeidade; ancestralidade; cooperativismo; oralidade; ludicidade; circularidade; memória e musicalidade. (TRINDADE, 2005).

A autora propõe que os valores apresentados por ela estejam presentes e sejam valorizados no cotidiano da Educação Infantil, assim como em todo percurso de escolarização das crianças e adolescentes.

Ao destacarmos a expressão “valores civilizatórios afro-brasileiros”, temos a intenção de destacar a África, na sua diversidade, e que os africanos e africanas trazidos ou vindos para o Brasil e seus e suas descendentes brasileiras implantaram, marcaram, instituíram valores civilizatórios neste país de dimensões continentais, que é o Brasil. Valores inscritos na nossa memória, no nosso modo de ser, na nossa música, na nossa literatura, na nossa ciência, arquitetura, gastronomia, religião, na nossa pele, no nosso coração. Queremos destacar que, na perspectiva civilizatória, somos, de certa forma ou de certas formas, afrodescendentes. E, em especial, somos o segundo país do mundo em população negra. (TRINDADE, 2005, p. 30).

Tanto a Pretagogia quanto os Valores Civilizatórios Afro-Brasileiros apresentam muitos pontos em comum sobre a valorização da cultura africana e sua manutenção e apreciação. Ao redescobrir os valores civilizatórios afro-brasileiros é possível compreender que vivemos em uma sociedade que os combate, inferiorizando os conhecimentos afro-brasileiros a serviço do racismo. Ao nos conectar com essa herança cultural, passamos a “perceber que não estamos condenados a um mundo euro-norte-centrado, a um mundo masculino, branco, burguês, monoteísta, heterossexual, hierarquizado... Outros modos de ser, fazer, brincar e interagir existem”. (TRINDADE, 2010, p. 14).

Desse modo, desenhamos um percurso metodológico que permitisse alcançar os objetivos propostos por meio de uma lente que ajudasse a observar outros modos de ser, que não esse “euro-norte-centrado”.

2.1 Pesquisar COM crianças

Na pesquisa com crianças a ruptura com a forma de fazer pesquisa tradicional é necessária para que as portas sejam abertas, facultando-se ao novo e às invenções que precisamos nos permitir ao pesquisar com crianças, o que Marlucy Alves Paraíso (2012, p. 40) nomeia de poetizar:

Poetizar na pesquisa em educação e em currículo significa produzir, fabricar, inventar, criar sentidos novos, inéditos. Significa durante todo o trabalho de pesquisa, aguçar os sentidos para ver, sentir, escutar, falar e escrever de modo distinto; significa também entrar no jogo da disputa por produção de sentidos sem jamais perder a poesia. Significa, enfim, buscar invenções que apontem para abertura, a transgressão, a subversão, a multiplicação de sentidos.

A concepção de criança e infância que foi adotada, corresponde diretamente às escolhas metodológicas, pois ao considerar as crianças como atores sociais, buscamos assumir a posição de fazer uma pesquisa com as crianças e não sobre crianças.

O estudo das crianças como atores sociais tendem a privilegiar perspectivas teóricas mas subjetivismo ou interpretivistas, e abordagens micro, fazendo uso de métodos mais qualitativos e metodologias participativas. Nessa vertente, a etnografia se apresentou como a metodologia por excelência para a sociologia da infância. (OLIVEIRA, 2018, p.264).

Logo, optou-se por fazer uma pesquisa etnográfica, pois seus métodos e instrumentos contemplaram melhor a problemática e os objetivo

[...] a participação do pesquisador no dia a dia dos sujeitos investigados durante longo período de tempo, observando, fazendo perguntas, valendo-se de documentos e outras fontes de dados disponíveis, para lançar luz sobre as questões de interesse na pesquisa. A característica central é, portanto, o tempo prolongado de convivência, observação e envolvimento pessoal do pesquisador no campo. Nas etnografias com crianças, há dois desafios básicos a serem enfrentados: a entrada e a configuração da relação criança-adulto. (OLIVEIRA, 2018, p. 264).

A proposta se deu em ouvir as crianças, não as influenciando, mas ouvi-las diante de suas subjetividades, situações, questionamentos, dúvidas, histórias que surgiram espontaneamente. Para Eloisa Rocha (2008, p. 49): "Ouvir criança exige a construção de moeda de troca, de interação, mais do que de perguntas e respostas, pelas quais se nega que crianças constituem significados de forma independente.". Desse modo, a atenção foi mantida nas falas das crianças, além de observar atentamente as expressões corporais, gestuais e faciais.

Delgado e Muller (2008, p. 141) afirmam que: "A investigação com crianças, pelos inúmeros desafios que nos coloca, deve ser um processo criativo, pois os pesquisadores das infâncias partilham que estudar crianças é algo problemático, principalmente ao considerarmos as distâncias entre adultos e crianças”. Logo, percebeu-se a necessidade de criar e pensar novas maneiras de ouvir e observar as crianças, valorizando, assim, a oralidade e defendendo a necessidade de evidenciar e incentivar a presença cada vez maior desse valor civilizatório afro-brasileiro nas escolas, propondo que as crianças ouçam e também falem, como aponta Trindade (2010) em uma lista as possibilidades do trabalho com os valores civilizatórios afro-brasileiros na Educação Infantil:

ORALIDADE – Muitas vezes preferimos ouvir uma história que lê-la, preferimos falar que escrever... Nossa expressão oral, nossa fala é carregada de sentido, de marcas de nossa existência. Faça de cada um dos seus alunos e alunas contadores de histórias, compartilhadores de saberes, memórias, desejos, fazeres pela fala. Falar e ouvir podem ser libertadores. Promova momentos em que a história, a música, a lenda, as parlendas, o conto, os fatos do cotidiano possam ser ditos e reditos. Potencialize a expressão “fale menino, fale menina”. (TRINDADE, 2010, p. 33).

As ferramentas utilizadas para propor esse diálogo foram pensadas visando a necessidade de ouvir as crianças, potencializando suas vozes e assim a expressão “fale menino, fale menina”, foi a base delimitada para a produção dos dados da pesquisa.

As histórias infantis escolhidas têm como protagonistas crianças e adultos negros e trazem temáticas amplas sobre as vivências culturais, afetivas e identitárias dos seus personagens, levando representatividade e empoderamento às crianças. A seleção dos livros de autores baianos, homens e mulheres negras, aconteceu com a intenção de aproximar as crianças das histórias de vida dos autores, fazendo com que elas possam compreendê-los como reais e não apenas uma ilustração de um mundo distante. Dessa forma, as crianças podem ter a possibilidade de também se projetarem em um futuro no qual elas possam ser o que quiserem, inclusive autores de obras literárias. Neste artigo apresentamos as vivências a partir de duas das obras escolhidas.

A investigação foi realizada na cidade de Feira de Santana, em um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI), localizado em um bairro periférico, com a participação de dez crianças que foram autorizadas por seus pais ou responsáveis, inclusive, para a divulgação da identidade e imagem das crianças.

3 IDENTIDADE NEGRA E LITERATURA INFANTIL PRETA: OUVIR E CONTAR HISTÓRIAS

Em uma sociedade na qual percebemos que o racismo continua a cada dia mostrando mais a sua face, sem vergonha ou dor, a concepção da identidade negra positiva continua recebendo diversos ataques. A construção de uma identidade pautada em uma imagem positiva, tão almejada, segue sendo atacada e o povo negro tem sua autoestima “rasgada pela alienação racial” (MUNANGA, 2003, p. 11).

São essas identidades plurais que evocam as calorosas discussões sobre a identidade nacional e a introdução do multiculturalismo numa educação-cidadã, etc. Olhando a distribuição geográfica do Brasil e sua realidade etnográfica, percebe-se que não existe uma única cultura branca e uma única cultura negra e que regionalmente podemos distinguir diversas culturas no Brasil. Neste sentido, os afro-baianos produzem no campo da religiosidade, da música, da culinária, da dança, das artes plásticas, etc. uma cultura diferente dos afromineiros, dos afro-maranhenses e dos negros cariocas. As comunidades quilombolas ou remanescentes dos quilombos, apesar de terem alguns problemas comuns, apresentam também histórias, culturas e religiões diferentes (MUNANGA, 2003, p. 15).

Logo, corroborando com este teórico negro, acreditamos na existência de identidades plurais, pois quando se fala em identidade negra, deve-se considerar os diferentes processos de identidade cultural negra, reconhecendo o pluralismo entre os grupos, assim como aponta Gomes:

Enquanto sujeitos sociais, é no âmbito da cultura e da história que definimos as identidades sociais (todas elas, e não apenas a identidade racial, mas também as identidades de gênero, sexuais, de nacionalidade, de classe, etc.). Essas múltiplas e distintas identidades constituem os sujeitos, na medida em que estes são interpelados a partir de diferentes situações, instituições ou agrupamentos sociais. (GOMES, 2005, p. 42).

Nesse processo, é possível assumir diferentes identidades sociais, o que em parte pode ser perigoso, pois as identidades podem cobrar lealdades diferentes. Assumimos identidades transitórias, que vêm e vão (GOMES, 2005; LOURO, 1999). Com base nisso, acredita-se que a identidade negra é construída gradativamente, assim como acontece em outros processos identitários. É por acreditar que esse processo se inicia na infância, que defendemos a existência de estudos como o que apresentamos neste artigo e, inspirados em Gomes (2005), defendemos que é possível refletir sobre a relação da escola/creche na construção identitária de crianças negras:

Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina aos negros, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo é um desafio enfrentado pelos negros e pelas negras brasileiros(as). Será que, na escola, estamos atentos a essa questão? Será que incorporamos essa realidade de maneira séria e responsável, quando discutimos, nos processos de formação de professores (as), sobre a importância da diversidade cultural? (GOMES, 2005, p. 43).

Nesse contexto, a escola é reconhecida como um local que pode interferir nos processos de construção de uma identidade negra positiva. Gomes (2002, p. 39) distingue as escolas enquanto espaços que “[...] interferem na construção da identidade negra. O olhar lançado sobre o negro e sua cultura, no interior da escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las e até mesmo negá-las” (GOMES, 2002, p. 39).

Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2000, p. 39), “a marcação da diferença é crucial no processo de construção das posições de identidade”. Paraíso (2010, p. 593) corrobora com o autor quando aponta que: “costumamos “esquecer”, anular as diferenças para identificar as coisas, sintetizar, dizer o que é “essencial” a um currículo”. Esses autores permitem refletir sobre quais identidades são investidas e, nessa perspectiva, a autora questiona os currículos, instigando a reflexão sobre as identidades que são provocadas a partir de currículos eurocêntricos que não problematizam as diferenças.

Antonio Flávio Moreira e Vera Candau (2003, p. 50) afirmam que: “A problemática da discriminação é certamente complexa e precisa ser trabalhada com base em uma dimensão multidimensional, no entanto, questionar o “silêncio” que a aprisiona é fundamental”. O silenciamento não pode continuar existindo; é preciso enfrentar a visão colonial, mesmo sabendo que assumir esta postura pode não ser uma tarefa fácil.

Defendendo a perspectiva de uma educação antirracista que não permita o silenciamento das questões raciais, nos inspiramos em Boaventura de Sousa Santos (2002, p. 246), que aponta como objetivo da sociologia das ausências: “transformar objectos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças”, em oposição ao currículo colonial ainda predominante nas escolas. Para isso, deve-se partir da perspectiva de transformação do silêncio em presença, resistência que rompe o currículo colonial.

As crianças foram colocadas, historicamente, em uma posição em que seu direito de fala não existia. Quem nunca ouviu de um mais velho a frase “Isso é conversa de adulto” ou “Criança não interrompe adulto que está falando”? Com isso, são sempre os adultos que falam sobre eles e elas; constantemente se ouve falar de uma criança ideal, aquelas crianças dos comerciais de fraldas, de pele branca e com características europeias, cabelos lisos e olhos claros. Oliveira (2015) aponta que a própria história da infância remete a uma discriminação quanto às crianças negras, sendo as mesmas triplamente excluídas pela sua condição etária, racial e social.

Com base neste fragmento, compreende-se que o silêncio das crianças negras é produzido por uma série de ausências, embora seja possível encontrar maneiras de transformá-las em presenças. Se ser criança é um território a ser colonizado, pode-se falar, então, de ação descolonizadora da infância e, ampliando tal conceito, assumir a infância como inauguração; não como simples ausência ou falta, mas como a possibilidade de criação e invenção (AQUINO, 2015, p. 102). É refletindo sobre a possibilidade de criação e invenção que podemos pensar em uma pesquisa com crianças negras, acreditando que por meio do diálogo possamos aprender e, para isso, é preciso descolonizar o olhar sobre as infâncias e as crianças.

Os clássicos infantis de caráter eurocêntrico apresentam às crianças uma realidade bem diferente daquela que elas vivenciam em seu cotidiano. Crianças brasileiras, baianas, feirenses não encontram em sua vizinhança grandes castelos, cavalarias, bosques frios ou macieiras. As histórias amplamente divulgadas não são mais novidade para as crianças, porém com suporte delas, se pode continuar a reforçar uma história única, da princesa branca que é salva por um príncipe branco em um cavalo branco e são felizes para sempre. Chimanda Ngozi Adichie (2019) aponta o perigo de uma história única para a construção identitária de crianças negras e a felicidade de se encontrar em obras literárias.

Para Aza Njeri (2019, p. 11) “a literatura é uma das formadoras do imaginário social sendo, portanto, necessário pensar no papel que desempenha também como formadora de identidade, cultura e sua via refletora da sociedade, seu bem cultural”. Desse modo, corroboramos com Adichie e Njeri, pois reconhecemos que a literatura tem um grande potencial diante das construções identitárias e admite-se o seu papel enquanto agente político, além de constatar o seu papel social emancipador (NJERI, 2019).

A escolha de um livro e o momento de contar a história são ações políticas carregadas de intencionalidades e, por isso, pode-se considerar que a literatura infantil preta apresenta inúmeras possibilidades de encontro, não somente estético, mas também cultural e territorial. Como apontam Débora de Araújo e Lucimar Dias (2019, p. 10):

Entendemos que a literatura, ainda que a despeito de uma suposta desvalorização por parte de crianças maiores, é um dos aportes culturais mais acessíveis e acessados no espaço escolar. Assim, ela pode contribuir efetivamente para a proposta de ampliação dos repertórios culturais, de interpretações sobre o mundo e sobre si mesmas. Além disso, a educação literária, com ênfase na formação leitora crítica, pode fomentar na criança o seu protagonismo [...] a literatura infantil, quando bem selecionada, representa um produto cultural que estabelece mediação entre o real e o ficcional, de modo a contribuir para que as crianças pretas possam experienciar sua humanidade tantas vezes negada no plano real.

É preciso ter atenção ao selecionar as literaturas infantis, mesmo aquelas que apresentam personagens negros, já que algumas carregam estereótipos que podem causar impactos significativos na vida das crianças negras e em suas construções identitárias (OLIVEIRA, 2020). Desta forma, é importante se atentar para os conteúdos das histórias, suas narrativas e ilustrações, compreendendo assim que uma literatura bem selecionada contribui para que as crianças possam se encontrar de forma positiva (ARAÚJO; DIAS, 2019).

Andreia Souza (2001) alerta que, durante a escolha dos livros, o educador/professor deve “conhecer os conceitos de raça, etnia, preconceito, discriminação” (SOUZA, 2001, p. 213), pois ao ler livros com abordagens diversificadas sem conhecimento e consciência sobre a temática, os professores poderão durante a leitura/contação de histórias reforçar um imaginário estereotipado do negro.

Desse modo, pode-se considerar a educação literária como aliada nas práticas e ações pedagógicas de valorização da cultura, história e diversidade étnico-racial, compreendendo o potencial da Educação Infantil de ser o pontapé inicial para a formação de leitores/as (ARAÚJO; DIAS, 2019). Ao iniciar esse processo já se sentindo valorizados e reconhecidos nas obras apresentadas a elas e eles, o sentimento em relação à leitura poderá ser despertado de forma positiva e a literatura infantil, nessa perspectiva, está para além de assumir apenas uma função didatizante, a serviço do ensino de conceitos (ARAÚJO; DIAS, 2019).

Oliveira (2020), escritora e ativista do Movimento Negro Unificado, aponta que vem elaborando em sua trajetória o que chama de Literatura Negro-Brasileira do Encantamento, tendo como enfoque central as crianças. A autora parte dos Direitos Humanos e de dados sistematizados em documentos oficiais nacionais e internacionais para defender legalmente que o trabalho na escola contemple as relações étnico-raciais, mais especificamente a Lei 10.639/03.

A autora questiona sobre a impossibilidade de as crianças negras encontrarem um significado positivo na vida se elas não conseguem se encontrar nos personagens do universo literário. A mudança é o movimento que a autora faz para a escrita de suas histórias, construídas através do resgate da ancestralidade africana.

É por meio do resgate da ancestralidade africana em minhas histórias que busco tecer a teia de reconexão das crianças e jovens negros com a autoestima ancestral para que se respeitem e respeitem, sobretudo, as tradições culturais africana e afrobrasileira, afinal, a Ancestralidade é capaz de provocar as suturas psíquicas necessárias para que suas identidades negras, fragmentadas pelas vivências racistas, sejam reconstruídas de forma saudável. (OLIVEIRA, 2020, p. 8).

Oliveira (2020) aponta a literatura como possível território de ludicidade e de encontros, sendo que a literatura da autora traz como proposta o encantamento das crianças pelos seus próprios corpos negros que, muitas vezes, são socializados em contextos violentos e racistas. Desta forma, ela defende que literaturas que “retratem histórias reais vivenciadas nos cotidianos infantis de todas as crianças, negras e não-negras - são fundamentais para a elevação da autoestima e promoção do bem-estar físico, mental, psíquico e espiritual de todas as crianças” (OLIVEIRA, 2020, p. 10).

Compreende-se, nesse viés, a literatura infantil como agente que pode colaborar para que a formação identitária das crianças seja positiva ou não. O silenciamento não pode continuar existindo e é preciso enfrentar a visão colonial, mesmo sabendo que assumir esta postura pode não ser uma tarefa fácil. Logo, admite-se a literatura infantil como potência e possibilidade didática para uma outra prática em sala de aula, assumindo um papel político e ético diante de construções identitárias positivas e psicologicamente saudáveis, além de um instrumento de diálogo com as crianças a respeito das temáticas trabalhadas.

Ao selecionar as histórias contadas para as crianças nesta pesquisa, percebemos que um forte elo as unia: a presença, principalmente, da ancestralidade, um dentre muitos dos valores civilizatórios afro-brasileiros apontados por Trindade (2010) e entre os princípios da cosmovisão africana para a Pretagogia, de Petit (2015) e Costa e Silva (2013). A presença da ancestralidade nas histórias infantis nos ensina sobre a necessidade de preservação da memória e respeito a quem veio antes de nós, quem sobreviveu às lutas pela vida e contra o apagamento cultural, deixando grandes ensinamentos (TRINDADE, 2010).

Na perspectiva de muitas culturas, e também da africana, o processo de aprendizagem se dá por toda a vida, sendo importante considerar aqui a valorização da pessoa desde o seu nascimento até a velhice. O respeito aos mais velhos é um valor que precisa ser transmitido às crianças, sendo também um valor de destaque nas culturas afro-brasileira e africana. A ancestralidade é um princípio que norteia a visão de mundo das populações africanas e afro-brasileiras. Os que vieram primeiro, os mais antigos, os mais velhos são referências importantes para as famílias, comunidades, indivíduos (SANTANA, 2006, p. 41).

Santana (2006) defende a importância dos ensinamentos sobre o respeito das crianças aos mais velhos, apontando os mesmos como referências não somente para as crianças, mas para todas as famílias e comunidades. Nas histórias que selecionamos, as crianças trazem em suas narrativas ou, a partir de suas histórias, a importância de seus mais velhos e do respeito à vida em comunidade; logo, não somente os vínculos sanguíneos são evidenciados, mas também a sua origem africana, povos africanos e figuras que lutaram contra a escravização.

A população negra carrega em seus saberes inúmeras histórias, rezas, cantigas, cuidados, cheiros e dizeres, passados dos mais velhos para os mais novos. Fazemos parte de linhagens que envolvem os antepassados e os mortos e, nesse sentido, a apropriação da ancestralidade implica, sobretudo, “em valorizar os antepassados, a história dos mais velhos e o aprendizado dos seus ensinamentos; é ainda o que nos fornece uma identidade coletiva, propiciando um sentimento de pertencimento” (PETIT, 2015, p. 122). É esse sentimento que aparece nessas histórias infantis que, cheias de afetividade, apresentam como a ancestralidade colabora para a construção das identidades dos personagens.

4 REENCANTANDO POR MEIO DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS: CAMINHOS E ENCONTROS COM A MEMÓRIA ANCESTRAL

“Tóim, cadê você?” (Figura 01) - da autora e ilustradora Tamires Lima (2014), foi escolhido por ser uma obra genuinamente baiana, por ter sido escrita por uma professora negra, com formação em duas universidades públicas da Bahia.


Figura 01
Capa do livro “Tóim, cadê você?”
Fonte: Lima (2014).

Tamires, no livro, conta a história de Lu, menina que reclamava com seu cabelo até que ele fugiu. Com a ajuda de sua avó, Flor, Lu aprende que seu cabelo crespo, apelidado de Tóim, é lindo e após pedir desculpas, a menina e seu cabelo tornam-se amigos inseparáveis. Com uma abordagem sobre autoestima, a temática da história perpassa a cabeça de muitas crianças negras que já sentiram ou sentem dificuldade de aceitar o seu cabelo crespo devido a diversos fatores que os fazem acreditar que o seu tipo de cabelo não é bonito.

A figura da avó, mulher africana, vinda de Angola, enquanto a pessoa que ensina a menina a reconhecer a beleza de seu cabelo é extremamente importante, pois mostra como um adulto de referência, uma griô rica de sabedoria, pode reforçar a imagem positiva para uma criança, principalmente ela sendo uma mulher negra que, possivelmente, já esteve no lugar da sua neta.

No livro “Tóim, cadê você?” a personagem principal da história sofre por causa de comentários racistas sobre o seu cabelo crespo e começa a fazer de tudo para escondê-lo e deixá-lo baixinho, até que um dia seu cabelo se sente triste pela maneira como está sendo tratado e decide fugir.



Mas um dia ele cansou de obedecer.
No dia que a menina o chamou de RUIM,
Tóim se magoou e fugiu. Afinal das contas,
aquela foi a maior grosseria do mundo que se
podia fazer com um cabelo tão generoso.
Depois que ele fugiu, Lu ficou desesperada e foi
perguntar a sua vó Flor o que fazer, careca não
podia ficar. Ela conhecia bem Tóim, pois lhe fazia
penteados maravilhosos que aprendeu em Angola,
quando ainda morava na África, a terra-mãe.
Vó Flor soltou seus cabelos e mostrou vários
penteados conhecidos na Bahia. Ela ensinou que
existe a cultura de usar trancinhas longas e curtas,
tererês, conchinhas e cocós para deixar a cabeleira mais
bonita mostrando que o cabelo crespo é lindo.

Fonte: LIMA, 2014, p. 9

Os saberes de Vó Flor aparecem na história para fortalecer a identidade da menina de forma positiva, levando-a a reconhecer a beleza do seu cabelo crespo. A história conta que as experiências da avó com os cabelos crespos vêm de suas vivências em Angola “quando ainda morava na África, terra-mãe”. Ao fazer referência ao mais velhos e seus saberes e ensinamentos, ao continente Africano como “terra-mãe” e Angola, a história abre inúmeras possibilidades de exploração desses elementos durante a contação, o ensinamento sobre a importância do ouvir os mais velhos e suas experiências, a ancestralidade ao trazer a “terra-mãe”, abrindo caminhos para o diálogo sobre a África como o berço das civilizações.

Além disso, também se pode apresentar imagens do continente africano para as crianças, mostrando a sua grandeza, os diferentes países e as diferenças culturais que existem entre eles, desconstruindo um imaginário que permeia muitos adultos que ainda entendem África como uma só realidade e não como um continente com cinquenta e quatro países e inúmeras diferenças culturais.

Iniciamos o momento de contação da história sentados em roda, com a apresentação do livro às crianças e foi perguntado quem elas achavam que era “Tóim”, o nome que aparece no título. Uma das meninas falou que poderia ser o avô da menina que aparece na capa e, assim, continuou-se a apresentação com o objetivo de descobrir com eles e elas.

A fotografia da autora e ilustradora da história foi mostrada e foi dito às crianças que ela nasceu em Recife, porém veio estudar aqui na Bahia, em Feira de Santana, na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), mesma universidade de estudo da pesquisadora. Também foi lido um trecho no qual a autora do livro fala que foi um prazer ter escrito a história e João, um dos meninos da turma, pontuou:

- Pró, pró, eu também tenho um caderno lá em casa que eu escrevo. (João, diário de campo).

Comemoramos com a turma, dizendo a elas que já tínhamos ali um escritor, assim como a autora da história, e as outras crianças também falaram que gostariam de escrever um livro.

Trazer a autoria da história como uma realidade para o futuro das crianças era realmente um dos nossos objetivos ao apresentarmos para a turma uma autora negra, nordestina, que estudou em uma universidade em nossa cidade. A proximidade torna-se uma realidade possível quando uma das crianças afirma que já escreve em sua casa e, por isso, destacamos a importância desse repertório de possibilidades para as crianças, permitindo que eles e elas possam visualizar seu futuro de forma positiva.

Em um dos trechos da história está escrito: “Mas o que Lu tem de maior é um cabelo enoooorme que pode dar a volta ao mundo”. Nesse momento, um dos meninos fez uma interferência, dizendo: - Meu pai disse que tem que cortar o cabelo, não pode ficar assim grande! Então, foi pontuado que as pessoas podem cortar os cabelos, mas têm outras que preferem não cortar; algumas usam grande; outras raspam a cabeça; depende de como achar melhor.

No decorrer da história, foi lido o trecho em que as amigas da personagem principal, Lu, ficavam falando que seu cabelo parecia um guarda-chuva, todo armado, e Jorge se manifestou falando: “isso aí não é legal” (Jorge, caderno de campo).

É possível compreender, portanto, que o menino conseguiu identificar que a prática racista das colegas de Lu em relação ao seu cabelo não era positiva.

Quando foi lido o trecho “Ela ensinou que existe a cultura de usar trancinhas longas e curtas”, perguntamos à turma: “Alguém aqui usa trancinhas?”. E as meninas logo levantaram as mãos e balançaram suas tranças. Nessa perspectiva, é possível reconhecer que por meio da literatura infantil, as meninas e meninos negros têm a possibilidade de se encontrarem em suas subjetividades, corpos, cabelos, cultura e modos de existir.

Com a continuidade da história, Pedro comentou na roda: “O cabelo de Lu parece com o de Princesa”. Após ao comentário do menino, foi questionado às crianças se eles e elas tinham o cabelo parecido com o cabelo de Lu e uma das meninas, Raíssa, afirmou: “parece o meu”. A oportunidade de se reconhecer em um personagem é possível para Raíssa quando partimos de uma história que tem como personagem principal uma menina negra. Situações assim, de identificação diante de uma figura negra, somente poderão acontecer se a criança em questão tiver uma oportunidade como essa de encontrar uma imagem positiva de si e, nesse sentido, o ambiente escolar deve ser o local para que isso aconteça, contribuindo assim para a construção de uma autoimagem positiva de si e de seu grupo étnico (AUTORA, 2017).

Assim, concordamos com Trinidad (2012), quando a mesma afirma que a Educação Infantil tem o objetivo de proporcionar às crianças um desenvolvimento humano e social e, para isso, a mesma deve respeitar as especificidades dos educandos.

Após a contação da história, foi apresentado às crianças um cartaz com diferentes tipos de cabelos para conversar com eles e elas sobre a temática (Figura 02). Em sua maioria, as crianças apontaram os cabelos das crianças brancas como mais bonitos e apenas duas crianças, em todo o grupo, afirmaram gostar dos cabelos das crianças negras. Crianças negras muitas vezes se mostram desconfortáveis e revelam desejo de mudar a sua cor de pele e ou cabelo (BENTO, 2012).


Figura 02
Cartaz Diferentes tipos de cabelo e livro “Tóim, cadê você?”
Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2019).

Desde bem pequenas as crianças já constroem seus autoconceitos e iniciam sua construção identitária e, nesse contexto, o cabelo cacheado e crespo é um dos elementos que mais marca os corpos dessas crianças e suas construções. Nilma Lino Gomes (2003) apresenta o corpo como um “terreno social conflitivo” e aponta que:

Ao longo da história, o corpo se tornou um emblema étnico e sua manipulação tornou-se uma característica cultural marcante para diferentes povos. Ele é um símbolo explorado nas relações de poder e de dominação para classificar e hierarquizar grupos diferentes. O corpo é uma linguagem e a cultura escolheu algumas de suas partes como principais veículos de comunicação. O cabelo é uma delas. O cabelo é um dos elementos mais visíveis e destacados do corpo. Em todo e qualquer grupo étnico ele é tratado e manipulado, todavia a sua simbologia difere de cultura para cultura. Esse caráter universal e particular do cabelo atesta a sua importância como símbolo identitário (GOMES, 2003, p. 174).

Sendo o corpo considerado um terreno conflitivo, compreende-se que o melhor caminho para que as crianças construam suas identidades de forma positiva é construir um cenário nos ambientes familiares, assim como no ambiente escolar, em que elas possam ser comtempladas através do que lhes é apresentado como belo. Ou seja, em uma sociedade colonizada e completamente branconcêntrica, precisamos sempre procurar estratégias para alcançar tais objetivos, uma vez que a mídia entrega um ideal padrão de beleza que dificilmente consegue alcançar o grupo.

Após a nossa conversa, as crianças ficaram com o livro, fizeram o reconto e também ficaram observando as imagens (Figuras 03 e 04).


Figura 03
Arthur e Julia revendo o livro “Toim, cadê você?”
Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2019).


Figura 04
Raissa e Rayssa revendo o livro “Toim, cadê você?”
Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2019).

A obra “Sinto o que sinto: e a incrível história de Asta e Jaser” (Figura 06), de Lázaro Ramos (2019) - ator, apresentador, dublador, cineasta e escritor de literatura infantil brasileira - foi uma das histórias infantis selecionadas. O livro é a quarta publicação do autor para o público das crianças e surge após as obras “A Velha Sentada” (2010), “O Caderno de Rimas do João” (2014) e “O Caderno Sem Rimas da Maria” (2018).

A história tem como protagonista Dan, um garotinho que percebe que nem sempre é fácil lidar com sentimentos e, assim, ele vivencia diferentes situações, enfrentando várias emoções. É na família que ele encontra o conforto para compreender melhor suas emoções e com seu avô ouve a história de seus ancestrais: os povos do Vale do Rio Omo.


Figura 06
Capa do livro “Sinto o que Sinto”
Fonte: Ramos (2019).

“Sinto o que Sinto” tem como proposta demostrar que sentimentos como desânimo, raiva, inveja, tristeza, arrependimento, assim como paixão e alegria, fazem parte de nosso cotidiano e não é necessário escondê-los para que se resolvam, pois o afeto pode ajudar a solucionar o turbilhão de sentimentos. Dan encontra a felicidade quando descobre sobre a sua ancestralidade no colo de seu avô Afonso, que fala a ele sobre a importância de ouvir e contar histórias.

O livro é uma apresentação do Mundo Bita, realizado pela Carochinha Editora. O Mundo Bita é uma animação infantil conhecida das crianças e Dan é um dos personagens dos vídeos musicais. A história apresenta a música “Sinto o que Sinto”, que o Mundo Bita também lançou como animação.

O livro “Sinto o que sinto: e a incrível história de Asta e Jaser” é divido em duas partes: na primeira parte quem conta a história é Dan, um menino que está aprendendo a lidar com os sentimentos através de um grafite que vê em um muro na volta da escola para casa e transforma seus sentimentos em música e canta, tocando bateria. A musicalidade enquanto valor civilizatório afro-brasileiro retira Dan de suas angústias e o faz transformá-las em melodia. Conforme diz Trindade (2005), “A música é um dos aspectos afro-brasileiros mais emblemáticos. Um povo que não vive sem dançar, sem cantar, sem sorrir e que constitui a brasilidade com a marca do gosto pelo som, pelo batuque, pela música, pela dança” (TRINDADE, 2005, p. 34).

Além das inúmeras possibilidades de crítica social trazidas pelas composições, a musicalidade é carregada de risos, gingados, paixões, lamentações, alegrias e liberdade do corpo. Muitas crianças cantarolam antes mesmo de falar; na sala de aula as músicas fazem parte das rotinas.

Porém, não foi apenas a música que ajudou Dan a vencer a suas dúvidas em relação aos seus sentimentos; a afetividade colaborou para que “o seu coração ficasse quentinho”.

Com o barulho, Diana, a mãe do nosso baterista, se aproximou pedindo que ele fizesse silêncio, pois já era tarde.

- Mãe, é que eu tô cantando sobre sentimentos.

- Bom assunto. Mas compriiiiiiiiiido! Já está na hora de acalmar o coração e ir pra cama. Hoje, pra embalar seus sonhos, vô Afonso quer contar uma história que descobriu. (RAMOS, 2019, p. 22).

E assim, o autor inicia a segunda parte da história, com o Vô Afonso contando para Dan a história de Asta e Jaser, casal que viveu às margens do Rio Omo, na Etiópia. Ao trazer a história dos ancestrais africanos, o avô de Dan faz um resgate da cultura e dos saberes através da história contada. A Pretagogia aponta como parte da cosmovisão africana a tradição oral, valorizando todos os saberes que são passados por meio da oralidade, das vivências e por todas as formas de falas e vibrações dos seres da natureza.

A contação de histórias está presente no cotidiano das turmas de creche e pré-escola, porém, em sua maioria, elas não contemplam as crianças pretas; o contar a história do seu povo, de crianças e adultos que se parecem esteticamente e socialmente com as crianças, ainda é um obstáculo a ser superado nas escolas, mesmo com uma ampla divulgação de obras como as aqui citadas. Ainda é possível constatar que a escola segue insistindo no uso de clássicos que se distanciam muito da realidade das crianças. E por que não contar as histórias das crianças? De suas famílias? De seus ancestrais?

Lázaro Ramos traz a história de um avô que apresenta ao seu neto a história de seus ancestrais, ressaltando a inteligência, a coragem, a habilidade de contar histórias, de fazer contas e cozinhar, assim como a beleza do casal em uma linda história de amor. Ao finalizar a história, Vô Afonso revela ao seu Neto o motivo daquela história ser tão importante:



Vô Afonso enfim revelou:
- Dan, essa é a história do seu tatara-tataravô.
- Como você descobriu? - Quis saber Dan.
- Eu descobri porque perguntei. Perguntei a pessoas
E a livros. Por isso Danzinho, sempre que puder, escute as histórias.
Vô Afonso então mostrou a foto do povo que viv
No rio omo.
E sabe o que Dan sentiu?
Orgulho
Dos olhos da criança começaram a sair lágrimas, mas a boca tinha também um largo sorriso.
Felicidade
E, assim, Dan descobriu que podia sentir duas coisas ao mesmo tempo. Abraçou vô Afonso e proclamou:
- Sinto muito, mas eu sinto o que sinto!

Fonte: RAMOS, 2019, p. 46

Ancestralidade, a figura do ancião negro, a memória, oralidade e afetividade são valores civilizatórios afro-brasileiros, princípios da cosmovisão africana que podem ser explorados, bem como alvo de reflexão a ser realizada com as crianças a partir da conversa sobre a história de Dan neste livro.

Chamamos atenção aqui para a afetividade, refletindo sobre a importância não somente do diálogo sobre afetividade com as crianças negras, mas também das demonstrações de afeto e acolhimento no ambiente escolar para com elas. Logo, não é uma conversa para acontecer apenas com as crianças, mas com professores e professoras, gestão e toda comunidade escolar, pois precisamos refletir sobre afetividade e acolhimento.

Compreendendo que o racismo se faz presente nas relações que são construídas no ambiente escolar, os profissionais de educação também são agentes reprodutores do racismo no ambiente escolar. Desde a Educação Infantil, diversas pesquisas indicam a existência de um tratamento diferenciado dado para crianças negras e brancas e apontam as possíveis consequências do racismo na escola. Como afirma Eliane Cavalleiro (2006):

No caso particular do sistema de ensino, tendo em vista que o racismo opera de maneira tanto consciente quanto inconsciente, as pesquisas acadêmicas indicam os profissionais da educação como agentes reprodutores da discriminação e do racismo no espaço escolar, desde aqueles que atuam em educação infantil, até mesmo aqueles que atuam em níveis escolares mais elevados. Não por outro motivo, a subjetividade e a afetividade nas relações estabelecidas no cotidiano escolar são aspectos a serem levados em conta quando da análise das desigualdades no desempenho escolar e das taxas de acesso e permanência entre crianças negras e brancas no cotidiano escolar. (CAVALLEIRO, 2006, p. 82).

“Sinto o que sinto” abre inúmeras possibilidades para reflexão com as crianças, principalmente para lidar com suas emoções, aprendendo a dar nome aos seus sentimentos, identificando suas emoções e também comunicando com o mundo essas emoções, sejam elas positivas ou negativas, com seus familiares e também na escola. Porém, é necessária afetividade para ouvir, compreender e possivelmente ajudar as crianças a lidar com suas emoções.

Além de trazer uma bonita amizade entre avô e neto em um momento de emoção para ambos, “Sinto o que sinto” apresenta a história dos ancestrais de Dan; é esse o motivo de suas lágrimas, de orgulho e felicidade. É recorrente nos relatos negros e negras, o incômodo provocado pela história do povo negro presente nos livros didáticos, com as imagens que podemos visualizar facilmente em nosso imaginário: como pessoas escravizadas, como se essa condição tivesse sido dada naturalmente, ocultando a história de sequestro desses povos e de suas lutas.

A história de Asta e Jaser desperta nos leitores sentimentos como os de Dan, de orgulho por suas raízes, reconhecimento através de personagens inteligentes, habilidosos e destemidos. Além de lindas ilustrações, o livro apresenta também fotografias de crianças que vivem às margens do Rio Omo e mais informações sobre a região.

Consideramos mais conveniente dividir as histórias em dois momentos lúdicos para garantir a interação das crianças, uma vez que uma contação de histórias muito longa poderia ficar enfadonha para as crianças.

Na história, o autor parte de palavras para introduzir as questões sentimentais do menino Dan e suas vivências em casa e na escola. Foram anotadas as palavras – escola, timidez, raiva, inveja, tristeza, paixão, arrependimento, alegria, desânimo e curiosidade - e apresentamos às crianças ao longo da contação da história, com a intenção de compreender qual o conceito delas para as crianças. Então, foi perguntado às crianças se elas conheciam essas palavras e recebi algumas devolutivas:

- Na escola eu gosto de fazer atividade, ouvir música e brincar. (Jorge, diário de campo).

- Eu gosto de fazer meu nome ( Davi, diário de campo).

- Eu gosto dos brinquedos, gosto de brincar, dos jogos, das músicas. (Pedro, diário de campo).

- Eu gosto de fazer o dever. ( Júlia, diário de campo).

- Gosto de brincar. (Raíssa, diário de campo).

- Pró! Eu sei o que é raiva, é quando você está estressado e fica com uma vontade esmagar tudo. (Júlio, diário de campo).

- Inveja eu acho que é quando uma pessoa tem uma coisa e a outra fica pedindo. (Raíssa, diário de campo).

- Tristeza eu acho que quando a gente fica com vontade de comer comida. (Luis, diário de campo).

- Tristeza é vontade de chorar. (Pedro, diário de campo).

- Minha mãe ta com o pé doendo. Ela ficou triste! (Júlia, diário de campo).

- Alegria é quando a gente fica feliz de coração. (Júlio, diário de campo).

Em outro momento lúdico, nos reunimos em mais uma roda para que eu contasse a segunda parte da história, “A incrível história de Asta e Jaser”, em que o avô conta para Dan a história de seus ancestrais, povos que vivem às margens do Rio Omo. Inicialmente relembramos a história contada no momento anterior para que as crianças que faltaram no dia pudessem acompanhar.

Mostramos uma das páginas do livro às crianças da turma e perguntamos o que elas estavam vendo, e Júlia respondeu: - Crianças de várias cores! Após o comentário perguntamos a eles e elas se ali na turma também era assim, se existiam diferentes cores de pele e então Davi afirmou: - Sim, porque eu sou marrom. E Júlio rebateu: - Eu sou branco. Já Pedro falou: - Eu sou preto, Pró. João disse: - Eu sou moreno. E Pedro, em dúvida, me perguntou: -Eu sou moreno, pró?

Assim, as crianças começaram a conversar sobre os tons de pele e, nesse momento, Arthur levantou os braços falando: -Aqui é preto ô, aqui é marrom! O debate sobre a condição racial que surge a partir da história provoca nas crianças dúvidas e curiosidade, mas a conclusão com a afirmação racial mostra o quanto é revelante incluir nas práticas pedagógicas literaturas que contemplem a temática.

Ao terminarde contar a história e, no final, foi mostrado às crianças as fotografias (Figura 07) e, nesse momento, um dos meninos apontou e falou - Deus é mais, é um bicho. Parece um macaco. As crianças começaram a rir, concordando com o colega e iniciaram uma algazara. Foi explicado a todos(as) que aquela era uma criança que tinha como parte da sua cultura pintar os corpos e que, além desses povos, existem outras crianças que pintam os corpos. Combinamos que seria trazido algumas fotos desses outros povos e culturas para que eles pudessem ver.


Figura 07
Observando o livro da história “Sinto o que sinto – e a incrível história de Asta e Jaser”
Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2019).

O comentário, assim como a maneira como as crianças olham as imagens, com estranhamento, demonstra que o espanto se dá quando é oriundo de um rompimento do padrão de beleza branca. Nos livros infantis, as princesas, heróis ou personagens principais sempre estão inseridos em um padrão de brancura. As crianças negras sentem dificuldade de identificar-se com personagens negros e a ausência de debates sobre a temática na escola somente reforça as dificuldades que implicaram diretamente na construção da identidade da criança. Como aponta Gomes (2002):

A escola pode ser considerada, então, como um dos espaços que interferem na construção da identidade negra. O olhar lançado sobre o negro e sua cultura, no interior da escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las e até mesmo negá-las (GOMES, 2002, n.p.).

Em outro momento lúdico, como havia prometido, foram levadas as imagens e conversado com as crianças sobre os diferentes grupos étnicos, as diferentes culturas que pintam suas peles (Figura 55). As crianças observaram as imagens com bastante curiosidade e também compararam as fotografias com as ilustrações e fotografias que o autor apresenta no livro trabalhado anteriormente. Através das literatura infantis pretas podemos iniciar diferentes diálogos com as crianças negras e brancas. As literaturas infantis pretas são apenas um trecho de um longo caminho a ser trilhado para que possamos alcançar uma realidade em que as crianças transbordem o princípio do axé, a energia vital (TRINDADE, 2005). “Imaginem se nosso olhar sobre nossas crianças de Educação Infantil forem carregados da certeza de que elas são sagradas, divinas, cheias de vida” (TRINDADE, 2005, p. 33). Que por meio desse olhar apresentado por Azoilda Trindade, as crianças possam ver o seu reflexo, como um espelho, nas literaturas, nas paredes das escolas, no currículo do cotidiano percebendo a sua divindade e potencialidade de existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS OU (IN)CONCLUSÕES

A oralidade, circularidade e ancestralidade caminhou conosco nos momentos de realização das atividades, seja nas contações, nas rodas de diálogo, na interação das crianças e na presença dos ensinamentos dos mais velhos nas histórias escolhidas para serem contadas. Reconhecemos que as histórias podem se tornar aliadas durante o processo de construção das diferentes identidades raciais das crianças, uma vez que quando bem selecionadas poderão contribuir para que as crianças possam encontrar sua humanidade tantas vezes negada (ARAÚJO; DIAS, 2019).

As literaturas infantis pretas foram “suleadoras” do diálogo com os meninos e meninas negras e mostraram-se potentes por suas inúmeras possiblidades de encontro e identificação. As crianças comentam as histórias, as imagens, as situações e as relacionam com suas vivências; se reconhecem através dos personagens, afirmando “Eu sou preto!”, demostrando orgulho da sua cor. As Histórias Infantis Pretas surgem também para romper com um distanciamento das crianças diante de outras culturas, apresentando a elas e valorizando outras formas de existir e de produzir conhecimento.

No decorrer do processo de pesquisar com crianças pretas, tendo como enfoque central as construções das identidades negras e suas dificuldades diante de uma sociedade imersa em desigualdades raciais e sociais, compreendendo o meu papel diante da pesquisa, assim como os dos/as pesquisadores/as que são referências para que eu pudesse realizá-la. Surgem como denunciadores de uma realidade que ainda fere e nega o direito das crianças negras de compreenderem a escola com um espaço que pertence a elas em todos os sentidos, uma escola que reflita a sua imagem.

Precisamos continuar pesquisando, ouvindo as crianças, compreendendo o que reproduzem nas brincadeiras e através das suas culturas de pares, para que em nossas práticas possamos resgatar valores que lhes foram negados. Compreendo que a mudança das práticas não é uma tarefa fácil.

Mesmo parecendo repetitivo, continuaremos afirmando a necessidade de um olhar sensível para a pluralidade das infâncias. Tenho esperança de que, durante nossa trajetória no campo da educação, possamos ver e colaborar para que aconteça uma mudança nas práticas de forma mais efetiva e que, assim, as novas gerações de pessoas negras possam construir uma memória de afeto sobre a escola. Consideramos que “Não há mudança sem sonho, como não há sonho sem esperança” (FREIRE, 1992, p. 91).

Esperamos que esse artigo, e as ideias que surgirem a partir de suas (in)conclusões, possam chegar até professores atuantes, professores em formação e pesquisadores e que possa colaborar para suas formas de ouvir as crianças e compreender seu repertório cultural, sobretudo neste momento que a Lei 10.639-03, neste ano, está completando vinte anos e ela deve cada vez mais estar sendo praticada no currículo do cotidiano escolar, descolonizando-o.

Que os professores compreendam a necessidade de adotarem uma postura antirracista, afrocentrada, decolonial, caminhando assim para a construção de um currículo para todas as crianças em suas diferentes singularidades, fortalecendo suas identidades de forma justa para todos.

Uma das interrogações que surgiu quando iniciamos a pesquisa ainda seguirá aqui: O que ainda temos de aprender com as crianças? Consideramos que dificilmente essas aprendizagens tenham um ponto final, pois compreendemos que ao optar por ouvi-las, elas podem nos levar a muitas possibilidades de aprendizagem e estudos. Ao olharmos a partir dessa lente não adultocêntrica e descolonizada, encontraremos diversos caminhos que nos levarão a tentar compreendê-las e colaborar para que suas construções aconteçam cada vez de uma forma mais positiva, percebendo a potencialidade de sua existência.

Deixamos também um questionamento para os leitores deste artigo: O que você tem a aprender com as crianças? E com a sua própria criança? [i]

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Notas

[1] Pró: maneira afetiva em que professoras são chamadas no estado da Bahia.
[2] Conceito cunhado no livro publicado por Sandra Petit, intitulado “Pretagogia: pertencimento, corpo-dança afroancestral e tradição oral Africana na formação de professoras e professores” (PETIT, 2015).
[3] Os valores civilizatórios afro-brasileiros foram apresentados por Azoilda Trindade no texto “Africanidades brasileiras e educação” (TRINDADE, 2013).


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