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POR ENTRE LINHAS E EXPERIMENTAÇÕES ESTÉTICAS COM COTIDIANOS ESCOLARES: resistências e produções de mundos
BETWEEN THE LINES AND AESTHETIC EXPERIMENTATION WITH EVERYDAY SCHOOL LIFE: resistance and the production of worlds
ENTRE LÍNEAS Y EXPERIMENTACIÓN ESTÉTICA CON LA VIDA COTIDIANA ESCOLAR: la resistencia y la producción de mundos
Revista Espaço do Currículo, vol. 16, núm. 3, pp. 1-12, 2023
Universidade Federal da Paraíba

Artigos

Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 3, 2023

Recepção: 29 Outubro 2023

Aprovação: 14 Dezembro 2023


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: A proposta deste texto é circular algumas experiências em torno dos cotidianos escolares. O texto está composto por situações (experiências e imagens) vividas em escolas de Educação básica da Rede Pública, aliados a manifestações artísticas (músicas e poemas) do dia a dia. Partiremos de uma perspectiva em que forma e conteúdo se compõem no texto, sendo organizado, no que aqui chamaremos de ‘heterotopias escolares’ e estas organizadas em 1 – cotidianos; 2 - experimentações–estéticas; 3 – resistências; 4 – produções de mundos. Estas heterotopias estão compostas a partir de expereimentações e estas por linhas e linhas de fuga que procuram agenciar linhas de força. O texto também se alia a perspectivas conceituais vinculadas à Filosofia da Diferença.

Palavras-chave: Cotidianos escolares, Espaço escolar, Tempo escolar.

Abstract: The purpose of this text is to circulate some experiences around everyday school life. The text is made up of situations (experiences and images) lived in public primary schools, combined with artistic manifestations (songs and poems) from everyday life. We will start from a perspective in which form and content are composed in the text, being organised into what we will call 'school heterotopias' and these are organised into 1 - everyday life; 2 - aesthetic experimentation; 3 - resistance; 4 - production of worlds. These heterotopias are made up of experiments, and these are made up of lines and lines of flight that seek to create lines of force. The text also draws on conceptual perspectives linked to the Philosophy of Difference.

Keywords: Everyday school life, School space, School time.

Resumen: El objetivo de este texto es hacer circular algunas experiencias en torno a la vida escolar cotidiana. El texto se compone de situaciones (experiencias e imágenes) vividas en escuelas primarias públicas, combinadas con manifestaciones artísticas (canciones y poemas) de la vida cotidiana. Partiremos de una perspectiva en la que forma y contenido se componen en el texto, organizándose en lo que llamaremos "heterotopías escolares" y que se organizan en 1 - vida cotidiana; 2 - experimentación estética; 3 - resistencia; 4 - producción de mundos. Estas heterotopías se componen de experimentaciones, y éstas se componen de líneas y líneas de fuga que buscan crear líneas de fuerza. El texto también se basa en perspectivas conceptuales vinculadas a la Filosofía de la Diferencia

Palabras clave: La vida cotidiana en la escuela, El espacio escolar, El tiempo escolar.

1 PARA COMEÇAR

A proposta deste texto é circular algumas experiências em torno dos cotidianos escolares. Para isso, evocaremos algumas cenas de escolas e, para além daquilo que efetivamente ocorre na escola, nos propomos trazer algumas situações que nos remetem a ideias de rotina, como imagens presentes em poesias, músicas, e em outras tantas manifestações do dia a dia. Estas ideias que em um primeiro momento serão apresentadas aproximando-as a uma perspectiva etimológica do cotidiano pensado como quotidianus, ou seja, diariamente. Esses cotidianos, por sua vez, aqui serão atravessados por experimentações que, articuladas ao modo apresentado por Deleuze e Guattari (2020), procuram escapar aos modelos interpretativos, conectam-nos a possibilidades de linhas de fuga, estas mesmas que, esteticamente, podem nos ajudar a criar resistências e mundos possíveis. Assim as possíveis linearidades dos ditos ‘tempos’ do dia a dia, dão lugar aos jogos compositivos de nossas experiências habituais.

Para tal, nosso esforço foi o de compor um corpo, para o texto, que possa também apresentar o modo que olhamos para os cotidianos e especificamente para os cotidianos escolares, ou seja, ele como povoamento, como conjuntos de fragmentos e cenas que por vezes são, como cacos de histórias e de experiências vividas, desconectando-se de qualquer possibilidade interpretativa de uma narrativa que possa ser explicada, sendo assim, são como dês-narrativas que escapam a qualquer possibilidade de uma reflexão, se aproximando de uma ideia que aqui chamaremos de uma (re)flexão acerca dos cotidianos. Guardando certa analogia com uma atividade física, pois as flexões são exercícios, exercícios que neste caso se apresentam como exercícios do pensamento. Aquilo que demanda esforço do corpo, movimento do corpo, um modo de pensar com o corpo, com todo corpo.

Sendo assim, e longe de uma perspectiva que oferece certa linearidade ou uma narrativa organizada por um enredo pré-definido, o texto que apresentamos aqui é composto a partir de duas ideias presentes e relevantes no universo do cinema, as ideias de campo e de extracampo. Grosso modo aqui definiremos o campo como aquilo que a câmera mostra e o extracampo como aquilo que a câmera não mostra, aquilo que escapa as escolhas e aos recortes que fazemos da realidade. Neste cenário, e procurando trazer uma ideia da e de escola como espaço povoado por muitos espaços, por muitos modos de estar neste(s) espaço(s), e ainda exercitando um texto, uma escrita que ensaia uma ideia de cotidiano como aquilo que compõem os fragmentos vividos nos muitos espaços, muitos topos daquele espaço, o texto será apresentado em algumas notas que estão organizadas no que aqui escolhemos chamar de heterotopias escolares (1 – cotidianos; 2 - experimentações–estéticas; 3 – resistências; 4 – produções de mundos). Estas heterotopias estão permeadas por linhas e linhas de fuga ambas permeadas por reticências, estas por sua vez criam indicativos que, como um movimento de experimentações na e da leitura, não precisam ser seguidas, lidar conforme aqui estão organizadas/apresentadas. Salientamos ainda que para povoar estes exercícios, algumas situações e ou citações são, muitas vezes, maiores que as habituais, se fazem aqui presentes por termos optado por uma perspectiva compositiva e neste sentido, subtrair cada um desses excertos correria o risco de perder a força que pretendemos

2 HETEROTOPIAS ESCOLARES 1 – COTIDIANOS

2.1 linhas.

Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã, me sorri um sorriso pontual e me beija com a boca de hortelã/ Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar, e essas coisas que diz toda mulher, diz que está me esperando pro jantar e me beija com a boca de café [...] Seis da tarde, como era de se esperar, ela pega e me espera no portão [...] (BUARQUE, 1971)

2.2 linhas..

São 13h e estamos no pátio da escola quando bate o sinal. A campainha é como um elemento químico que coloca as substâncias em movimento e em seus devidos lugares. As crianças correm próximas as suas respectivas professoras e grande parte delas fazem filas próximas à escada que leva ao andar superior do prédio e às salas de aula. Algumas crianças continuam correndo pelas quadras da escola até serem chamados (a atenção) pelas inspetoras. Nas filas, as crianças continuam brincando, e algumas, próximas às professoras, falam coisas que em meio a tanto barulho fica difícil entender. Aos poucos, as filas se formam, as crianças vão ficando em silêncio e começa a peregrinação até a sala de aula.

Ao entrarmos, a agitação começa novamente. Às 13h15, a aula ainda não começou, pois algumas crianças estão em volta da professora, que está em sua mesa conversando sobre muitos assuntos. Algumas ‘disputam’ a atenção da professora, enquanto outras perambulam pela sala, ainda outras ficam sentadas em seus lugares. Às 13h20 as crianças começam a se organizar, porém a professora parece envolvida com algumas crianças próximas a sua mesa e com alguns papéis que tira da bolsa. Aos poucos a classe vai ficando em silêncio, e a maior parte das crianças estão sentadas em seus lugares como quem ‘espera alguma coisa’.

Por volta das 13h30, a professora pega um papel e começa a passar em recado para os alunos sobre um passeio ao ‘Parque do Gugu’. Nesse momento, as crianças começam novamente a falar, dando a impressão de que não prestam atenção em nada, um aluno que chamaremos, ..., de P., sentado ao lado do pesquisador, diz:

A aula ainda não começou.

Já são 13h35, e ao andar pela sala vemos que algumas crianças escrevem em seu caderno o ‘cabeçalho’, colocado na lousa pela professora:

“Piracicaba, 30 de outubro de 1998” (LEITE, 2007, p. 29).

2.3 linhas...


Imagem 1
La Pendule por Robert Doisneau (1956)
Fonte: https://www.artnet.fr/artistes/robert-doisneau/la-pendule-lywaRQ7jMWTuxmaHFPOP_A2

2.4 linhas de fuga.

Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio. Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou: tem hora que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra eu posso conviver com os lagartos e com os musgos. Assim: tem hora que eu sou quando um rio. E as garças me beijam e me abençoam. Essa era uma teoria que a gente inventava nas tardes. Hoje eu estou quando infante. Eu resolvi voltar quando infante por um gosto de voltar. Como quem aprecia de ir às origens de uma coisa ou de um ser. Então agora eu estou quando infante. Agora nossos irmãos, nosso pai, nossa mãe e todos moramos no rancho de palha perto de uma aguada. O rancho não tinha frente nem fundo. O mato chegava perto, quase roçava nas palhas. A mãe cozinhava, lavava e costurava para nós. O pai passava o seu dia passando arame nos postes de cerca. A gente brincava no terreiro de cangar sapo, capar gafanhoto e fazer morrinhos de areia. Às vezes aparecia na beira do mato com a sua língua fininha um lagarto. E ali ficava cubando. Por barulho de nossa fala o lagarto sumia no mato, Folhava. A mãe jogava lenha nos quatis e nos bugios que queriam roubar nossa comida. Nesse tempo a gente era quando crianças. Quem é quando criança a natureza nos mistura com as suas árvores, com as suas águas, com o olho azul do céu. Por tudo isso que eu não gostasse de botar data na existência. Por que o tempo não anda pra trás. Ele só andasse pra trás botando a palavra quando de suporte. (BARROS, 2010, p.131).

2.5 linhas de fuga..

Eu vi o menino correndo eu vi o tempo /brincando ao redor do caminho daquele menino. Eu pus os meus pés no riacho / e acho que nunca os tirei. O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei. Eu vi a mulher preparando outra pessoa / o tempo não parou pr'eu olhar para aquela barriga. A vida é amiga da arte / é a parte que o sol me ensinou / o sol que atravessa essa estrada que nunca passou. Por isso uma força me leva a cantar / por isso essa força estranha / por isso é que eu canto não posso parar / por isso essa voz tamanha. Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista / o tempo não para e no entanto ele nunca envelhece. Aquele que conhece o jogo / do fogo das coisas que são / é o sol / é a estrada / é o tempo / é o pé / e é o chão .... (VELOSO, 1978)

2.6 linhas de fuga ...


Imagem 2
Vranski
Fonte: Arquivo do Grupo Imago (2019)

3 HETEROTOPIA ESCOLAR 2 – EXPERIMENTAÇÕES

3.1 linhas.

En un párrafo muy conocido y reiteradamente citado, Benjamin dijo aquello de que los hombres que regresaban de las trincheras de la Primera Guerra Mundial carecían de palavras para expresar la experiencia vivida. Que el lenguaje se había quebrado. Que los individuos habían sido expropiados de su propia experiencia. Que aquellos que supuestamente habían vivido con una intensidad única, los había dejado mudos, sin palabras, para narrar lo acontecido. (FOSTER, 2009, p.121).

3.2 linhas..

Na sala de aula as crianças conversavam e brincavam enquanto a professora escrevia na lousa a seguinte tarefa:

Formar frases: (embaixo do ‘enunciado’ uma lista de palavras, e dentre elas a palavra ‘cravo’). Após algum tempo, um dos alunos levantou-se, dirigiu-se ao pesquisador e disse:

- César, de que ‘CRAVO’ ela está falando? Do ‘CRAVO’ flor ou do ‘CRAVO’ (nesse momento, o aluno, fez um gesto pressionando seu rosto com dois dedos indicadores).

Procurando contemplar a dúvida do aluno e conhecendo a dinâmica dialógica da sala de aula, foi respondido:

- Olha, eu também não sei, acho melhor você perguntar para a professora.

O aluno dirige-se à professora e pergunta-lhe sobre o cravo. Porém, imediatamente ouviu:

- É lógico que é do cravo flor.

(LEITE, 2007, p.56-57)

3.3 linhas...

Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia. Não encho mais a casa de alegria. Os anos se passaram enquanto eu dormia. E quem eu queria bem me esquecia. Será que eu falei o que ninguém ouvia? Será que eu escutei o que ninguém dizia? Eu não vou me adaptar, eu não vou me adaptar, eu não vou me adaptar, eu não vou me adaptar. Eu não tenho mais a cara que eu tinha. No espelho essa cara já não é minha. Que quando eu me toquei, achei tão estranho A minha barba estava desse tamanho. (ANTUNES, 1986).

3.4 linhas....


Imagem 3
VranskiVranski
Fonte: Arquivo do Grupo Imago (2010)

3.5 linhas de fuga.

Em nossas experimentações com crianças de Educação Infantil e com produções de imagens produzidas por elas, fomos tomando contato com uma perspectiva de pesquisar, e pensar, e trabalhar, e escrever junto a estas experiências com as crianças e produções de imagens realizadas por elas em escolas não seja outra coisa que estar submerso nelas e com elas, em nossa própria infância e, nos coloca diante de uma série de não saberes. Nos coloca diante de modos de pensar e operar com a própria pesquisa, nos lança para fora das perspectivas mais usuais de pesquisar, pensar, escrever em um trabalho acadêmico. Estas experimentações com as crianças estão sempre sendo povoadas de um caráter do que aqui chamaremos de estético, entendemos o estético como algo que se relaciona a uma zona de indistinção, que de forma geral, escapa aos sistemas vinculados a esquemas cognitivistas, podendo assim criar campos que possam atingir o intensivo, um certo modo rizomático de produção de algumas experimentações com os espaços e a vida. O que poderíamos dizer que o estético então tem algo a ver com sensações que criam espaços para as experimentações imanente de uma vida, uma vida que em seu cotidiano escape aos resultados e se embrenhe nos fluxos de uma existência. Fazer pesquisa, uma pesquisa muitas pesquisas fragmentárias, estilhaçadas, restos, farrapos, restos esfarrapados, sensações e pensamentos interrompidos pela presença do outro – outro conhecido ou não – pela presença do tempo entrecortado pelos nossos próprios valores e signos acerca da infância e da criança, uma pesquisa, uma escrita, um texto entrecortado, um texto-entre, e com isso, balbuciando, quem sabe, parte da experiência, recortes de cotidianos em que o rosto da infância mostra através do trabalho com crianças e produções imagéticas possibilidades de experimentações estéticas com o outro.

E assim as pesquisas, o estar na e principalmente com a escola, caminha e ganha corpo, como se no dia a dia, no cotidiano na escola não tivesse começo, meio e fim, que fosse permeado por uma linearidade cronológica, ou dito de outro modo, quase como em uma perspectiva acadêmica, uma pesquisa e uma escrita que tenha introdução, problema, desenvolvimento e conclusão. Mas, quem disse que somente esse tipo de pesquisa, ou os modos de estar com a escola, linearizados por certas cronologias curriculares, que povoam as escritas dos cotidianos escolares, pode ser considerado como algo que problematiza, que põe a pensar? Então, mesmo que algumas vezes nos arriscássemos a pensar a escola e seus cotidianos, a infância, o currículo, como algo a ser descrito e dito, nos perguntávamos quem disse que escola, cotidianos, infância e currículos podem e precisam serem descritos, antecipados, prescritos?

Talvez assim, os cotidianos e as vidas dentro da escola, permeados pelas imagens produzidas por e com crianças, altere os próprios cotidianos pela alteridade do olhar do outro. Pela alteridade da infância, a escola que apresenta como pura curvatura, pura interrogação, uma escola, um cotidiano escolar sempre provisórios, inseguros e que se afastem de uma pretensão de um saber, de uma pretensão de saber, escapando de toda altivez, apresentando na sílaba, na respiração, nos gaguejos, um não sei, um não sei de origem, mas um não sei também de destino.

3.6 linhas de fuga..

3.6 linhas de fuga..

[...] em uma situação de sala de aula duas crianças, Ramon (R) e Mássimo (M), brincavam com as palavras ‘na vida’:

R – na vida

M – nas vidas

R – na vidas

M – na vids

R – nas vida

M – nasvis

R – nas visis

M – navis

E assim passaram boa parte do tempo brincando. Após terem sido chamados pela professora a prestar atenção para que começassem a escrever, intitulam o texto de navís. Após algum tempo o título muda para ‘as guerras dos navís’ e ainda após a intervenção da professora, ‘a guerra dos navios’. (LEITE, 1998, p. 31-32)

3.7 linhas de fuga...

3.7 linhas de fuga...

Não somos mais / Que uma gota de luz / Uma estrela que cai / Uma fagulha tão só/ Na idade do céu/ Não somos o / Que queríamos ser / Somos um breve pulsar / Em um silêncio antigo / Com a idade do céu / Calma! / Tudo está em calma / Deixe que o beijo dure / Deixe que o tempo cure/ Deixe que a alma / Tenha a mesma idade / Que a idade do céu / Não somos mais / Que um punhado de mar / Uma piada de Deus / Um capricho do sol / No jardim do céu / Não damos pé / Entre tanto tic-tac / Entre tanto Big Bang / Somos um grão de sal / No mar do céu [...] (DREXLER, 2010).

3.8 linhas de fuga....


Imagem 4
Brabruska
Fonte: Arquivo do Grupo Imago (2019)

4. HETEROTOPIA ESCOLAR 3 – RESISTÊNCIAS

4.1 linhas.

4.1 linhas.

As crianças estavam bastante agitadas porque nós havíamos combinado com a professora a realização de uma atividade, que seria conduzida por nós. Em um determinado momento, após um dos pesquisadores ter contado uma história, instala-se um verdadeiro caos na sala de aula, pois algumas crianças falavam, agitavam-se, e iam em nossa direção; outras crianças gritavam, brincavam e algumas começam a produzir o texto. Enquanto isso, a professora ficava sentada em uma carteira no meio dos alunos. Após o início das produções de textos, andamos pela sala com o intuito de auxiliar os alunos, porém, em um determinado momento, ouvimos (a professora dizer):

- Você viu como não é fácil lidar com essas crianças precisa ter pulso forte, colocar de castigo, reprimir mesmo, ficar em cima, eles se perdem e ai não vamos conseguir controlá-los (LEITE, 2007, p.86).

4.2 linhas..

Caminhando contra o vento / Sem lenço, sem documento / No Sol de quase dezembro / Eu vou / O Sol se reparte em crimes / Espaçonaves, guerrilhas / Em cardinales bonitas / Eu vou / Em caras de presidentes / Em grandes beijos de amor / Em dentes, pernas, bandeiras / Bomba e Brigitte Bardot / O Sol nas bancas de revista / Me enche de alegria e preguiça / Quem lê tanta notícia? / Eu vou / Por entre fotos e nomes / Os olhos cheios de cores / O peito cheio de amores vãos / Eu vou / Por que não? Por que não? / Ela pensa em casamento / E eu nunca mais fui à escola / Sem lenço, sem documento / Eu vou / Eu tomo uma Coca-Cola / Ela pensa em casamento / E uma canção me consola / Eu vou / Por entre fotos e nomes / Sem livros e sem fuzil / Sem fome, sem telefone / No coração do Brasil / Ela nem sabe, até pensei / Em cantar na televisão / O Sol é tão bonito/ Eu vou / Sem lenço, sem documento / Nada no bolso ou nas mãos / Eu quero seguir vivendo, amor / Eu vou / Por que não? Por que não? /Por que não? Por que não? / Por que não? Por que não? (VELOSO, 1967)

4.3 linhas...

A escola possui seus espaços, seus ambientes, que abrigam as diversas atividades que ali são necessárias, ou ainda, poderíamos dizer que necessitam de seus espaços para serem praticadas. Ela também tem suas atividades marcadas por intencionalidades e por ações que escapam a qualquer objetivo, apenas acontecem, como acontecem coisas na vida que escapam aos planos, metas, propósitos. Ela possui sua arquitetura, ou seja, espaços, possui uma estética que a organiza e muitas vezes a define, neste contexto, e no seu dia a dia possui suas artes e técnicas que organizam essas atividades humanas que lá são e estão presentes. Nesta arquitetura, povoada por demandas daquilo que hoje chamamos de equipe gestora, das Políticas Públicas, das famílias, das professoras e dos professores, a escola possui seus povoamentos no extracampo dos nossos estudantes, alunas e alunos, entre outros tantos agentes que ocupam os espaços desta complexa arquitetura. Para fora dela deixamos mulheres e homens, crianças e pessoas que nos dizem que aquele lugar é muito mais que aquilo que acontece e ou não acontece nos seus limites arquitetônicos, as experiências daquele cotidiano. Permeada pela intensidade de mulheres e homens, de adultas, adultos e crianças, a gestão vai sendo fissurada por nossas afeições e escolhas, as Políticas Públicas escapam a suas normatividades reguladoras e regulatórias, as professoras e os professores se descompassam pelas mulheres e homens que vivem seus afetos e suas afetações, as crianças fissuram os escalonamentos curriculares e as verdades postas nos fundamentos. A dureza da arquitetura escolar, pulsa com os aquecimentos das vidas e das intensidades que ali se fazem presente.,

4.4 linhas....


Imagem 5
Presqui
Fonte: Arquivo do Grupo Imago (2010)

4.5 linhas de fuga.

Eis-nos aqui: em lugar de ser, o aracniano imutável em suas formas, sua ‘arquitetura’ – para retomar o termo de Karl von Frisch, mais compreensível quando se trata da cabana dos castores, da colmeia ou do cupinzeiro do que quando se trata da teia de uma aranha, embora a teia seja também um lar.

É correto dizer ‘em lugar de ser’, pois embora o ser tenha lugar, se esse lugar é varrido pela sombra volivoante, em lugar de ser não há nada que permita ao ser existir como ser; ele se tornou ‘eu sou’, volivoando e convolando em núpcias, o que não está ao alcance do ser infinito.

[....]

Em contrapartida, o aracniano do agir pode pendurar-se no gnomo, cuja sombra então gira em vão; pendurar-se e tramar a teia longe do tempo que, na forma de uma sombra, passa e repassa com a mesma obstinação com que a trama do agir se trama, imutável em sua forma.

É curioso ver com que abnegação uma criança autista pode agir. Também aqui é preciso escolher bem, no vocabulário, a palavra mais próxima, exceto pelo fato de que abnegação fala do sacrifício de si mesmo, e de um sacrifício voluntário; onde se encontra o ‘vol’, que em francês é voo e roubo.

[....]

Isso poderia expressar-se como agir sem finalidade [...] (DELEGNY, 2018, p. 46 – 47)

4.6 linhas de fuga..

Em entrevista ao site ‘lunetas’, publicada em 11 de outubro de 2017, na ocasião do lançamento de seu disco destinado ao público infantil “Sem você Não A”, o cantor e compositor Tom Zé faz algumas interessantes e importantes provocações que nos colocam diante de algumas temáticas que nos interessam aqui. Tomamos como ponto de partida a ideia do artista que é direto ao dizer que a “criança merece alegria, reflexão participativa. Os adultos que não se esquecem disso viram grandes arquitetos, engenheiros, sapateiros. Ou artistas”

Ao tratar diretamente sobre o álbum lançado naquele momento, Tom Zé diz que as letras inventam as palavras. As palavras inventam as ideias e as ideias inventam o futuro. No referido disco a letra “A” foge do abecedário, provocando uma grande confusão, a partir da qual não conseguimos mais escrever a vida como antes fazíamos. “Esta fábula não começa com ‘Era uma vez…’, porque ela acontece no Abecedário, terra onde vivem os habitantes do alfabeto. Nesta história, não há reis nem rainhas, não tem princesas, sapos ou fadas. As protagonistas são mesmo as letras. No Abecedário, não há personagens mais ou menos importantes. São todos iguais. As maiúsculas sabem que precisam das minúsculas; e as vogais, das consoantes. “Elas bem entendem que letra nenhuma escreve nada de fundamental sozinha” diz Tom Zé. Para o cantor e compositor a curiosidade cura a humanidade e junto a isso, o que temos é na necessidade de ter que lidar de outra forma com aquilo que de certa forma está posto, por exemplo a fuga do ‘A’, temos que em um ato criativo, criar o novo, criar um outro mundo, resistindo ao que está posto. Como um ato de resistência, não negamos o mundo, assim como a criança não nega os objetos que a ela são apresentados, lidamos com mundo. Um sapato velho, ou um carrinho, ou um pente sobre a mesa, tudo isso podem ser ferramentas com as quais, em um ato criativo e compositivo pode criar o novo, deslocando seus usos frequentes, criando na própria ação uma outra possibilidade para o mundo.

4.7 linhas de fuga...

4.7 linhas de fuga...

Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto de palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água, pedra, sapo. Entendo bem os sotaques das águas. Dou respeito às coisas desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior que o mundo. Sou apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse formato de canto. Por que eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso palavras para compor meus silêncios. (BARROS, 2015, p.149)

4.8 linhas de fuga....


Imagem 6
Brusqui
Fonte: Arquivo do Grupo Imago (2019)

5 HETEROTOPIAS ESCOLARES 4 – PRODUÇÕES DE MUNDOS

5.1 linhas de força

Essa heterotopia poderia ser apenas o povoamento de uma série de imagens rápidas e de corpos em movimentos presentes nas milhares de imagens encontradas nos arquivos imagéticos de pesquisa do Grupo Imago – UNESP Rio Claro. Poderia ser também a reprodução, por empréstimo, de imagens e linhas presentes no livro Aracniano de Fernand Delegny, ou transcrições de poemas de Manoel de Barros, poderia ser tantas outras coisas que se colocam no em nosso cotidiano nos dizendo, de alguma forma, que o cotidiano pode também ser pensado como o jogo compositivo de nossas experiências e experimentações com a própria vida.

Estar na escola, viver e experimentar o cotidiano que ali se faz presente, povoar o mundo com universo plural que habita a vida das crianças, ou as dificuldades e alegrias veladas de uma vida ‘varejista’ de uma professora ou um professor, que roda em torno do vivido, das demandas, das exigências, dos movimentos das crianças, dos moldes das Políticas Públicas e das possibilidades daquilo que é fuga no dia a dia na escola com as crianças e com outras e outros colegas de trabalho. Os meandros de uma prática composto por um conjunto de vozes disfônicas de mães, pais, professoras, professores, coordenadores, coordenadoras, direção, crianças... Vozes que fazem emergir sons de sentidos inaudíveis como os que escutamos quando andamos pelos corredores de uma escola. Vozes que nos dizem que não há começo e fim para as dificuldades e possibilidades de uma vida escolar, mas que o caminho se dá pelos meios, meios que alinhavam um tecido a outro, conectam olhares a ruídos e ruídos a cheiros, estes por sua vez induzem nos modos de tatear o cotidiano. Experimentações que acionam os órgãos e almejam os sentidos, mas encontram ‘não sentidos’, não sentidos de uma vida a ser vivida, experimentada. Experimentações que possam povoar nossas re-existências e bordar a produção de novos mundos.

São linhas, linhas de fuga, linhas de força...

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Arnaldo. Não vou me adaptar. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/titas/discografia/volume-dois.html1986. Acesso em: 7 dez. 2023.

BARROS, Manoel. Memórias Inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. Editora Planeta, São Paulo SP. 2010.

BARROS, Manoel. Meu quintal é maior do que o mundo: antologia. Editora Objetiva, Rio de Janeiro RJ. 2015.

BUARQUE, Chico. Cotidiano. Álbum Construção. 1971.Disponível em https://www.vagalume.com.br/chico-buarque/. Acesso em: 7 dez. 2023.

DELEGNY, Ferdinand. Aracnianos e outros textos. N-1 edições, São Paulo SP. 2018.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é Filosofia. Editora 34. São Paulo SP. 2020.

DREXLER, Jorge. O último dia. Paulinho Moska ao vivo no Rival. 2010.

FOSTER, Ricardo. Los rostros de la alteridad.In: SKLIAR, Carlos; LARROSA, Jorge. Experiencia y alteridad en educación. Homo Sapiens Ediciones. Buenos Aires Argentina. 2009.

LEITE, César Donizetti Pereira. Escritas e Sujeitos: histórias de inter-constituição. Cabral Editora Universitária. Taubaté SP. 1998.

LEITE, César Donizetti Pereira. Labirinto: infância, linguagem e escola. Taubaté, SP: Cabral Editora Universitária, 2007.

VELOSO, Caetano, Força estranha. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/roberto-carlos/discografia/roberto-carlos-1978.html. Acesso em: 7 dez. 2023.

VELOSO, Caetano. Alegria, alegria. Disponível em: https://open.spotify.com/intl-pt/album/1gFe2X7p2FNN1G2sUH3Skt. Acesso em: 7 dez. 2023.



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