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BRINCANDO DE VIVER: quando um corpo esgotado cria modos de existências no currículo com festas
PLAYING LIVING: when an exhausted body creates modes of existence on the curriculum with parties
JUGAR A VIVIR: cuando un cuerpo agotado crea modos de existencia en el currículum con fiestas
Revista Espaço do Currículo, vol. 16, núm. 3, pp. 1-13, 2023
Universidade Federal da Paraíba

Artigos

Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 3, 2023

Recepção: 31 Outubro 2022

Aprovação: 05 Dezembro 2023


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: :Este artigo mostra que criar novas formas de vida no currículo com festas é criar uma vida outra apesar de todos os poderes que insistem em enclausurar vidas. É abrir-se à alegria de brincar e ao desejo de viver. Assim, o objetivo é analisar como um corpo esgotado cria modos de existências no currículo com festas. Argumenta que um corpo esgotado, em um dia de festa, ao traçar linhas de fuga para sobreviver, experimenta novas formas de vida e brinca de viver, ao experimentar as potencialidades do corpo no currículo. Mostra como um corpo que parecia ter sua vida marcada pelas incertezas e pelas aflições, um corpo esgotado, em um currículo com festas, brinca de viver. Isso porque, ao entrar em devir, percorre novos caminhos, explora, cria novos mundos, brinca de viver, sorri. O corpo esgotado, tão marcado e muitas vezes silencioso e silenciado, salienta que há sempre novos passos a serem dançados no currículo com festas. Mostra que um corpo em devir-criança espanta. Espanta ao sorrir. Porque cria singularidades, momentos. Evidencia que os seus agenciamentos possibilitam linhas de fuga.

Palavras-chave: Devir-criança, Corpo esgotado, Brincar de viver.

Abstract: This article shows that creating new forms of life in the curriculum with parties is creating another life despite all the powers that insist on cloistering lives. It's opening yourself up to the joy of playing and the desire to live. To this end, it aims to analyze how an exhausted body creates modes of existence in the curriculum with parties. We argue that an exhausted body, on a day of celebration, when drawing lines of escape to survive, tries new forms of life and plays at living by experimenting with the potential of the body in the curriculum. We show how a body that seemed to have its life marked by uncertainty and affliction, an exhausted body, on a resume full of parties, plays at living. This is because when entering into becoming, you travel new paths, explore, create new worlds, play at life, smile. The exhausted body, so marked and often silent and silenced, showed that there are always new steps to be danced in the curriculum with parties. He showed that a body becoming a child is amazing. It surprises you when you smile. Because it creates singularities, moments. It shows that their agencies provide lines of escape.

Keywords: Becoming-child, Exhausted body, Play at life.

Resumen: Este artículo muestra que crear nuevas formas de vida en el currículo con partidos es crear otra vida a pesar de todos los poderes que insisten en enclaustrar vidas. Es abrirse a la alegría de jugar y a las ganas de vivir. Para ello, se pretende analizar cómo un cuerpo agotado crea modos de existencia en el currículum con los partidos. Sostenemos que un cuerpo exhausto, en un día de celebración, al trazar líneas de escape para sobrevivir, prueba nuevas formas de vida y juega a vivir experimentando con el potencial del cuerpo en el currículo. Mostramos cómo un cuerpo que parecía tener su vida marcada por la incertidumbre y la aflicción, un cuerpo exhausto, en un currículum lleno de fiestas, juega a vivir. Esto se debe a que al entrar en el devenir se recorren nuevos caminos, se explora, se crean nuevos mundos, se juega a la vida, se sonríe. El cuerpo exhausto, tan marcado y muchas veces silencioso y silenciado, demostró que siempre hay nuevos pasos para bailar en el currículum con fiestas. Demostró que un cuerpo convirtiéndose en niño es asombroso. Te sorprende cuando sonríes. Porque crea singularidades, momentos. Muestra que sus agencias proporcionan líneas de escape.

Palabras clave: Convertirse en niño, Cuerpo exhausto, Juega a la vida.

1 NOTAS SOBRE O TEXTO OU UM CONVITE AO/À LEITOR/A: BRINCAR DE VIVER COM JOÃO EM UM CURRÍCULO COM FESTAS

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Dia 19/04/2023. João entra em sala. A professora rapidamente diz:

— Olha quem resolveu aparecer![1]

João não expressou nada. Nem as outras crianças. Com a cabeça voltada para baixo, seguiu caminhando em direção ao seu lugar. A turma continuou fazendo a atividade. João sentou-se. Quando levantou a cabeça, percebi que lágrimas escorriam sob seu rosto. A auxiliar se aproximou dele. Antes mesmo de ela se referir a ele, ele disse que não era nada. A aula seguiu e João, às vezes, levantava a cabeça e olhava para a turma.[2]

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Dia 25/04/2023. João se aproxima e pede para se sentar comigo. Eu, rapidamente, pergunto à professora e, após sua aprovação, coloco a mesa e a cadeira dele ao meu lado. Já havia tentado trocas com o João. Todas em vão! Até a de olhares! Antes de iniciarmos a atividade, ele me fala que não sabe ler nem escrever. Afirma que é burro e me pergunta se eu vou conseguir ajudá-lo. Respondo que tentarei e reforço que iremos aprender juntos. Para minha surpresa, ele responde que está ali sem saber o porquê. Porque ninguém gosta dele e ele não se importa com nada. Insisto dizendo da importância da vida dele. Mais uma vez, sou surpreendida: “então, por que nem a minha mãe quer saber de mim?” […]

Nesse dia, no horário do lanche, fui até a professora e perguntei a ela sobre João. Contei a ela nossa conversa. A resposta foi bem sucinta: “uma criança cheia de problemas e que, como você viu, não faz nada! Ah! E reclama todos os dias que está com fome. Mora com a avó paterna. Ela trabalha o dia todo e, por isso, ele precisa ficar na integrada[3]. O pai é usuário de drogas e nem sempre aparece. A mãe sumiu no mundo. A avó vive prometendo que irá ligar para ela e nunca liga porque não sabe onde ela está, não tem contato. Enfim, não sabe onde anda. Não é fácil, né? É essa a realidade dele.”

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“Mas quem explica o João em dia de festa? Uma criança que literalmente não faz nada todos os dias, que só chora e reclama que está com fome, que nunca sorri. No dia de festa, eu desconheço! É uma alegria que eu não sei de onde vem. Ele brinca! Gente, eu nunca tinha visto aquele menino sorrindo e nem brincando. Só borocoxô. Se você não o conhecesse daria para acreditar? Sério! Pensa em como ele é no dia a dia. Não pode ser a mesma criança!” (Entrevista com a professora, dezembro/2022).

Esses três excertos, extraídos de uma pesquisa de doutorado que procurou investigar como o currículo festivo dos três primeiros anos do ensino fundamental e as relações de poder que ali se estabelecem acionam modos de subjetivação, para, assim, compreender seus efeitos na produção dos corpos, referem-se a uma mesma criança: João. Esse menino chamou a atenção das pesquisadoras desde o início das observações realizadas na turma. Era uma criança triste. Uma criança sem a atenção das outras crianças. Nada parecia fazer sentido para ele. Uma criança que não sabia ler nem escrever. Curvar-se em direção ao seu peito parecia ser sua posição preferida. Uma criança sempre faminta. Os olhos, sempre marejados, escancaravam tristeza. Uma criança que só queria ouvir a voz de sua mãe. João repetia com frequência que ele não sabia o que queria e que brincar ou deixar de brincar era a mesma coisa. Um corpo, aparentemente, esgotado. Esgotado de brincar. Esgotado de ser criança. Esgotado de vida. Esgotado de viver. Foi esse João que nós conhecemos no primeiro mês da pesquisa.

João[4], 7 anos, estudante do 1º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede municipal de Belo Horizonte[5]. Constantemente ouvíamos: “é essa a realidade dele”, para se referir às difíceis condições de vida em que ele estava inserido. Aos poucos, as coisas pareciam explicar aquele corpo esgotado. Um corpo esgotado que “esgota todo o possível e que […] não pode mais possibilitar” (DELEUZE, 2010, p. 67). Não é um corpo cansado por ficar na escola o dia inteiro. Não é um corpo cansado por ter praticamente a mesma rotina todos os dias. Não é um corpo cansado de atividades que lhe mostram que ele não sabe ler e nem escrever. Não é um corpo cansado por não ter um/a melhor/a amigo/a. É um corpo esgotado! É um corpo que “está-se em atividade, mas para nada” (DELEUZE, 2010, p. 69). É um corpo que parecia mesmo ter entendido sua realidade e não ter forças para fazer nada para mudá-la.

A partir do nosso encontro com o corpo esgotado de João, começamos a questionar: que composições podem ser feitas em um currículo por um corpo que frequentemente ouve:[6] “Não sei em que vai dar a vida desse menino”; “Estar aqui e não estar dá no mesmo”? Que composições podem ser feitas por um corpo que “mais falta do que vem” e que, “se bobear, vai acabar o fundamental sem saber ler e escrever” em um currículo com festas? Que composições podem ser feitas por um corpo que “não aprende nada!” e que “não quer saber de nada” no currículo com festas? Que composições podem ser feitas por um corpo que “não ri, que não brinca” e que “até para andar ele escora”? Em síntese: que composições podem ser feitas por um corpo esgotado em um currículo com festas? Um corpo esgotado que em nada parece combinar com o ser criança[7] e que era, a todo instante, cobrado, marcado por isso.

No entanto, lembramo-nos de Deligny (2015, p. 85), quando diz que “de uma coincidência nós fazemos uma confusão”. E é isso que João nos mostra ao compor com o currículo com festas. Uma confusão quando seu corpo abandona o peso de “sua realidade” e, em devir-criança, compõe com o currículo. Ele brinca de viver! Nós, afetadas e atravessadas pelo mundo de invenções de um corpo em devir-criança, acompanhamos os passos de João, e, neste artigo, construímos uma narrativa que contasse a ele como ele foi visto, por nós, nas composições com o currículo com festas. Além disso, mostramos como ele desterritorializou a representação que se tem de criança ao entrar em devir-criança. Nesse movimento, tentamos, quando possível, apresentar os conceitos que nos mobilizaram (inspirados, em grande medida, na filosofia da diferença de Deleuze e Guattari), como se estivéssemos explicando ao João.

Como metodologia, nos propomos a realizar uma investigação narrativa. Além disso, para ver e acionar uma escuta sensível no currículo com festas, de modo que houvesse a contemplação do desconhecido, da descontinuidade, do inusitado, em meio a jogos de poder e tramas discursivas, a observação mostrou-se de fundamental importância. Para a produção das informações, foram realizadas, então, observações, entrevistas com as crianças, professoras, secretária e coordenadoras. Neste artigo, optamos, como metodologia analítica, construir uma narrativa tendo o João como interlocutor.

Assim, acompanhado de João, este artigo analisa como um corpo esgotado cria modos de existências no currículo com festas. Currículo que, como nos ensina Paraíso (2023, p. 9), “sempre tratou e tratará da vida”. Um currículo que “pode se associar às intensidades, e perceber a força de sua conexão com a vida” (PARAÍSO, 2023, p. 148). Inspiradas nessa potência da vida, argumentamos neste artigo que um corpo esgotado, em um dia de festa, ao traçar linhas de fuga para sobreviver, experimenta novas formas de vida e brinca de viver ao experimentar as potencialidades do corpo no currículo.

Criar novas formas de vida no currículo com festas é criar uma existência outra, apesar de todos os poderes que insistem em enclausurar vidas. É abrir-se à alegria de brincar e ao desejo de viver. Para Deleuze, os modos de existência se criam “por suas próprias forças, isto é, pelas forças que sabe captar, e vale por si mesmo, na medida em que faz existir a nova combinação” (DELEUZE, 1992, p. 93). São os movimentos criados no currículo com festas que abrem brechas para os corpos criarem com as multiplicidades do mundo.

Nas partes que se seguem, portanto, mostramos como um corpo esgotado atende ao pedido da vida e percebe que “agora é hora de brincar de viver” no currículo com festas. Em seguida, analisamos o que acontece quando um corpo esgotado “responde sim à sua imaginação” e, por fim, apresentamos as considerações finais.

2 “QUEM ME CHAMOU?”: corpo esgotado brincando de viver no currículo com festas

Quem te chamou, João, foi a vida! Esta que te evocou depois que você esgotou todo seu corpo, fragmentou em átomos, o esvaziou por completo, abrindo-o para o fluxo da vida. Quem te chamou, João, foram os bons encontros que são possibilitados quando permitimos o nosso corpo bailar em uma intensidade que dissipa as lembranças e as histórias. Quem te chamou, João, foram os acontecimentos no currículo. João, quem te chamou, foram os repousos que fazem criar no currículo com festas. Foi a criação! A criação de novos modos de existência!

Quem te chamou não foi a professora. Pelo menos, agora, não. Essa que, por mais que você já reconheça a voz, insiste em perguntar “Quem me chamou?” toda vez que ela te chama. Eu cheguei a pensar que era por existir um desejo de que essa voz viesse de outro corpo. Talvez de um corpo infantil, já que seu olhar era sempre direcionado às crianças da turma. Mas não! Era sempre dela, minha ou da monitora.

Quem te chamou, João, foi o currículo com festas. Esse que insistia em escancarar que muitas coisas eram possíveis em sua vida, mesmo faltando lápis, borracha, cola, tesoura, lápis de cor, régua. Faltava, segundo sua professora, um esforço para aprender, para enturmar, para estar ali. Afinal, João, você nem sorria! Isso foi ela quem disse. Faltava também um cuidado com você, uma criança de 7 anos. Uma criança que chegava com os olhos ainda remelentos, sem café, com a roupa amarrotada e com a mochila praticamente vazia. Nós conversamos muito com a Raquel[8]. Ela se preocupava muito com você. Nós, depois de muito procurarmos saber sobre você, chegamos a pensar que faltava vida em sua vida.

Imediatamente lembramo-nos da Butler (2019). Butler é uma estudiosa que fala de vidas vivíveis. Ela fala que “onde uma vida não tem nenhuma chance de florescer é onde devemos nos esforçar para melhorar as condições de vida” (BUTLER, 2019, p. 43). E eu concordo com ela! Lembramos também, João, da Marlucy. Ela é uma pesquisadora de currículo. Não desse currículo que você conhece como conjunto de matérias que você precisa aprender. Ela fala que o currículo é “o coração da escola” e que “não há escola sem currículo” (PARAÍSO, 2023, p.7). Se não há escola sem currículo e se pensarmos que não há escola sem vida, já que quem dá vida a uma escola são, também, os corpos que a frequentam, não há currículo sem vida. E, mais, quando ela afirma que o “currículo circula, percorre, move-se, atravessa vários espaços, desloca-se, desdobra-se e conecta-se com vidas” (PARAÍSO, 2023, p. 8), começamos a caminhar junto a você, com seus passos lentos e movimentos esgotados. Sentimos necessidade de entender como, no currículo com festas, você brincou de viver, como sua vida foi conectada ao currículo. Afinal, você nos disse, em nossa conversa na biblioteca, que, para você, festa é brincar e que o que não pode faltar em uma festa é você e as pessoas, ou seja, vida. Você nos fez lembrar a música “Brincar de viver” de uma cantora chamada Maria Bethânia. Olha só:

Quem me chamou?

Quem vai querer voltar pro ninho?

E redescobrir seu lugar

Pra retornar e enfrentar o dia a dia

Reaprender a sonhar

Você verá que é mesmo assim

Que a história não tem fim

Continua sempre que você responde: Sim

À sua imaginação

À arte de sorrir cada vez que o mundo diz: Não

Você verá que a emoção começa agora

Agora é brincar de viver

Não esquecer: Ninguém é o centro do Universo

Assim é maior o prazer

Você verá que é mesmo assim

Que a história não tem fim

Continua sempre que você responde: Sim

À sua imaginação

À arte de sorrir cada vez que o mundo diz: Não

E eu desejo amar

Todos que eu cruzar pelo meu caminho

Como sou feliz, eu quero ver feliz

Quem andar comigo, vem

Você verá que é mesmo assim

Que a história não tem fim

Continua sempre que você responde: Sim

À sua imaginação

À arte de sorrir cada vez que o mundo diz: Não

Começamos a observar os agenciamentos inesperados que eram feitos no currículo com festas. Você mostrava que a sua história não estava dada, que aquela não era a sua “realidade”. Mostrava-me, como dizem Deleuze e Guattari (2017), que produzia agenciamentos que podem ser entendidos como “um estado preciso de mistura de corpos em uma sociedade, compreendendo todas as atrações e repulsões, as simpatias e as antipatias, as alterações, as alianças, as penetrações e expansões que afetam os corpos de todos os tipos, uns em relação aos outros”. É questionar e mostrar que as coisas não são dadas, não estão definidas. Mesmo porque seu corpo, ao chocar com as forças múltiplas no currículo com festas, produzia! Ele criava, ele sonhava. Ele brincava de viver.

Na festa da família, em maio, você surpreendeu a todos/as. A Jéssica[9] chegou a dizer que “não era possível ser a mesma criança”. Sabe por quê? Porque, como disse a Jéssica, você “sorria, brincava com todo mundo, não derramou uma lágrima e finalmente levantou a cabeça”. Você desconcertou, inquietou, enlouqueceu toda e qualquer força que insistia em te entristecer, em matar sua sede de viver. Como você mesmo disse: você arrasou! Nós nos lembramos de ter dito a você que amamos encontrar esse João. E que era esse João que gostaríamos de encontrar todas as vezes que fôssemos à escola. Você respondeu com um sorriso e saiu correndo em direção aos brinquedos. Seu corpo preferiu a multiplicidade e a improvisação. Afinal, como bem lembrou a Raquel, você “não ensaiou nada, não participava das conversas sobre a festa”. Ela achava que você não sabia “nem por onde se passava o que estava acontecendo na escola”.

Seu corpo experimentou e escapou, driblou, titubeou, esquivou de tudo que queria alimentar “sua realidade” na escola. Você teve força para desaprender da memória tudo aquilo, e queria fazer da sua vida uma série de encontros tristes! Naquele momento só havia espaço para o acontecimento. O acontecimento é “o critério da diferença” (PARAÍSO, 2010, p.592). E a diferença é justamente a criação, a vida. Ela é, como nos ensina Paraíso (2010, p. 592), “o motor da criação; é a possibilidade de no meio, no espaço-entre, começar a brotar hastes de rizoma. Diz respeito àquilo que está ainda em vias de se formar […]” (PARAÍSO, 2010, p. 592). É quando você mostra que a sua realidade pode ser outra e outra… Ou seja, é quando você se permite brincar de viver experimentando. Lembra-se de como você entrou para a apresentação? Você entrou correndo e pulando para a apresentação do coral. Quando cantava, você levantava os braços, fechava os olhos, balançava o corpo de um lado para o outro. Foi lindo! Você parecia entrar em cada uma das palavras das músicas.

Lembramo-nos, ainda, de conversar com as crianças da turma a seu respeito. A Raquel já havia nos antecipado que não ia adiantar muito. Nós insistimos! Perguntamos a ela quem era você. A resposta do Ian[10] foi a que mais nos marcou: “Uai! Aquele menino pequenininho que não conversa e que só chora” […]”. “O que quando você vem senta com você”. “A Jéssica fala que não sabe nada”. Acreditamos que elas diziam isso por ouvir das professoras. Nós, por exemplo, ouvimos inúmeras vezes das professoras que você “não queria saber de nada. Que estava na escola porque não tinha com quem ficar”. Dissemos a elas para te chamar para brincar. A Bianca falou que achava que você “não sabia”. “Que ela nunca tinha visto você brincar”. As crianças também pareciam ter aprendido que aquela era a sua realidade. Uma criança que não sabe nem brincar.

O brincar que é tão importante para o desenvolvimento cognitivo, afetivo e social da criança é aqui entendido como aquilo que possibilita à criança experimentar diferentes modos de estar no mundo. O brincar, João, é entendido como algo que “tem início a partir de uma vontade” (PEREIRA, 2005, p. 23). Por isso mesmo ele é considerado uma atividade involuntária. O brincar é criação. São nesses momentos que as crianças fazem conexões e trilham caminhos incertos. Para Abbot (2006, p. 94), inclusive, o brincar “é a maneira de a criança aprender e que negligenciar ou ignorar o papel do brincar como um meio educacional é negar a resposta natural da criança ao ambiente e, na verdade, a própria vida”. Em sala, por mais que o currículo tenha sede de outros momentos, as crianças encontravam brechas para brincar. Mas, você, aparentemente, sempre se manteve indiferente àqueles momentos. E na hora do recreio você sempre se sentava na arquibancada, e por lá ficava, com o olhar às vezes direcionado às crianças, às vezes voltado para seus polegares que movimentavam enquanto os demais dedos estavam entrelaçados. Talvez por isso as crianças, como a Bianca, por exemplo, pensassem que você não sabia nem brincar. Sua vida parecia mesmo sufocada.

Mas nos dias de festa você fazia, no currículo com festas, o que Deleuze e Guattari (1992) nos convidavam: “liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 222). Isso é um ato de muita coragem. É criar modo de existência! É encontrar fugas e traçar linhas para sobreviver e fazer viver em meio a tanto sufocamento. Você resistia ao que alimentava sua tristeza e traçava linhas de fuga outras no currículo com festas de modo a brincar de viver.

As linhas de fuga são as rupturas, as quebras, as rachaduras que são feitas em diversos espaços, inclusive no currículo com festas. Naquele momento o corpo esgotado abandona o território e funda outro. É quando seu corpo esgotado em seu movimento de tristeza se abre para “redescobrir seu lugar”. Lugar esse que também não é fixo. É o momento que seu corpo esgotado trai a lógica na qual estava inserido. Trai a “sua realidade” imposta e reforçada em diversos momentos. É muito mais que uma fuga! É uma experimentação com as multiplicidades do currículo com festas. Ela cria mundos como na festa junina, por exemplo. Lembra-se da festa junina? Todo mundo já tinha chegado e estava na fila aguardando a finalização da apresentação anterior. Você foi o último. Já estavam organizando para a Raquel ajudar no momento de troca das peneiras. E aí você entra pulando e sorrindo com sua peneira debaixo dos braços. Fala “oi” e corre para seu lugar na fila – o último e com uma distância significativa do penúltimo. A Jéssica arregala o olho e te pede para não ficar com “aquela cara” na hora da apresentação. Quando anunciam a apresentação, você se junta à meninada e entra sorrindo para todos que estavam ali. Quando cantou[11] “Peneira (paneira de lá) Peneira (paneira de cá) Peneira (paneira de lá) Peneira (paneira de cá)”, você pulou e agachou com a peneira, sendo que vocês ensaiaram para jogar para a direita e para a esquerda de modo que elas se misturassem no alto. Algumas crianças trocaram olhares e sorrisos com você. Mas a Jéssica chamou sua atenção e elas pararam. E você? Você repetiu a mesma coisa na segunda vez. Ela só disse: “Não é possível!”.

Você entrar correndo, sorrindo e dizer “oi”, João, já foi motivo para arregalar olhos. Arregalar olhos em um currículo que está acostumado a te ver sempre cabisbaixo, silencioso e arrastado pelo corpo. Quantas vezes você entrou em sala e nós nem lhe vimos? Só percebia quando a Jéssica te perguntava que horas você ia entrar na aula. O único som era o do zíper da mochila abrindo. Não parecia mesmo possível te ver daquele jeito, João! Sentimos que o currículo, que “é o coração da escola”, “que faz a escola pulsar, sonhar, desejar, planejar, discutir, disputar, lutar, fazer alianças, decidir, conquistar, ensinar, possibilitar o aprender” (PARAÍSO, 2023, p. 7), possibilitou, também, que você reaprendesse a sonhar. Lembra-se, na entrevista, quando nos disse que até sonhava com os dias de festas? Sonhava que a festa era muito animada e você sempre se divertia.

As crianças que pareciam não perceber sua presença no currículo da sala de aula trocaram olhares e sorrisos com você, e, quando a apresentação era anunciada, você ampliava o passo para se juntar às outras crianças e entrava olhando para as pessoas que ali estavam. Pelo menos era para elas que seu olhar estava direcionado. E aí nos perguntamos: o que há no currículo com festas que seja capaz de permitir um corpo esgotado, despedaçado, experimentar a potência da vida? João, você criou no momento da dança! Você burlou os passos ensaiados, e mais; a preocupação em relação ao seu atraso era justamente por causa do momento das peneiras.

Se em diferentes momentos você evidenciava que seu corpo era capturado pela tristeza, pela chateação, pela desilusão, pela insegurança porque, ainda com 7 anos, enfrentava problemas diversos, porque era responsabilizado por não se esforçar e por isso, não aprendia a ler e nem a escrever, porque a você era atribuída a culpa de ser assim, uma criança que não acha graça de nada, que só quer ficar de cabeça baixa, e, por isso mesmo, não tem nenhum/a amigo/a, porque a você foi destinada uma vida sozinho, você mostrou que essa captura não é permanente. Pelo contrário. Você mostrou que esse corpo atravessado por afetos tristes, no encontro com os signos da festa, se deixa experimentar, entrar em um devir-festa[12]. Um encontro capaz de liberar as forças a favor da vida e que te permite “retornar e enfrentar o dia a dia”. Você experimenta e faz a vida proliferar no currículo com festas.

Os encontros a favor da vida são aqueles que Deleuze e Parnet (1998) chamaram de “bom encontro”. O bom encontro é aquele que, na relação, aumenta nossa potência de existir. O bom encontro possibilita a nossa capacidade de afetar e ser afetado. Um exemplo de bom encontro, João, foi a apresentação da festa junina. Lembra-se de quando você criou com a peneira? Você teve sua potência de agir aumentada e criou no currículo com festas.

Já o signo é entendido como “aquilo que encontramos no mundo, mas escapa à representação” (LÓPEZ, 2008, p. 56). Para Deleuze, o signo é formado por duas partes: designa um objeto e, ao mesmo tempo, significa algo diferente (DELEUZE, 2010, p. 26). O signo é um acontecimento. Assim, ao encontrar com os signos da festa, o corpo esgotado cria. Entra em devir. Os signos, João, é como se fosse a abertura de novos mundos e nesses novos mundos os corpos se desdobram em diferentes maneiras de sentir, de pensar, de agir, de criar.

Por se tratar de mundos desconhecidos, a festa emite signos que são capazes de trair a verdade já fixada a respeito do seu corpo esgotado e te levar para outro mundo. Assim, instauravam-se desassossegos onde, até então, tinham-se estabelecido ideias fixadas e pensamentos que operaram sobre seu corpo e que o alimentavam de tristeza. No entanto, você mostra que, de alguma forma, estava conectado à vida. Aquilo que fazia seu coração pulsar diferente. Você me disse que nas festas seu coração pula. E pula mesmo, João!

Na feira cultural vocês tinham que falar sobre os sentimentos. Lembra? Vocês assistiram ao filme Divertida Mente e dali surgiu a ideia de o explorarem para a feira. Você não fez. Mas a Jéssica disse que “a tristeza era ideal para alguém falar a respeito”. Esse alguém era você. E, apesar de não ter feito, no dia da festa você mostrou o encontro do corpo esgotado compondo com os signos da festa. Surpreendeu a todos/as, inclusive a mim, falando sobre vários dos sentimentos que estavam lá representados pelos desenhos de seus/suas colegas. E não só falou como teve sua atenção chamada pela professora por não deixar os/as colegas falarem. Você mostrou que o currículo com festas é também “invenção que se faz no caminhar”, é “força que escapa às determinações” (PARAÍSO, 2023, p. 7). Você se divertia entre as pessoas, chamava pelos/as colegas e insistia em ganhar a atenção. Não dava mais para segurar. Seu corpo insistia em dizer que: “Agora é brincar de viver”. Nem a Jéssica te pediu mais para parar.

Você brincava de viver perdidamente. Você mostrava que um corpo esgotado tem vontade de viver. Lembramo-nos de Deligny (2015) ao nos deixar estonteadas com a pergunta: como existir aos olhos daqueles que não nos olham? O autor nos convida a ser contra o culto do fazer. Fazer esse que é sempre direcionado a uma finalidade. Ele nos convida a agir, no sentido de movimento sem intencionalidade, sem direção, que consiste em tecer (DELIGNY, 2015). Em um mundo com tantos quereres e olhos vigilantes a eles, Deligny (2015) coloca-se na posição de “não querer” justamente para dar lugar aos suspiros. E foi isso que você fez no currículo com festas ao dançar com a alegria das forças insurgentes. Você voltou-se para aquilo que fazia sentir o vivo, a vida, o vivido.

Por mais que seu corpo fosse invadido de verdades por toda parte, na hora de ler um trecho da atividade que você não conseguia ler e, às vezes, não conseguia localizar, nos momentos de ensaio que você não levantou a cabeça, na fila para o lanche em que você ouvia com frequência “essa cara é de fome mesmo? Se for, já pode ficar feliz”, nos momentos de prova que ficavam em dúvida se te entregavam ou não, nas idas à secretaria por não estar de uniforme e não levar os materiais, nos momentos de recreio que ficava um pouco em sala por não ter feito o para casa, no apressar para voltar à sala sempre ao som de “ê, menino! Sei não, viu?”, nas aulas de educação física em que você era sempre o primeiro a ser queimado, você abre seu corpo para outras existências. Ao brincar de viver no currículo com festas, você descentralizou as representações e investiu em rastrear a imaginação com as potencialidades de seu corpo. Afinal, quem te chamou, João, foi a vida!

3 QUANDO UM CORPO ESGOTADO RESPONDE SIM À SUA IMAGINAÇÃO ELE SORRI

“Hoje está tão doendo!”. Era isso que você me dizia todas as vezes que as lágrimas escorriam e eu te abraçava. E isso acontecia depois de alguma cobrança em sala de aula. Nós nem perguntávamos mais o que era, pois já sabíamos a resposta. Aquela sempre na ponta da língua: “saudade da mamãe”. João, nós arriscamos a dizer que você só não disse isso quatro vezes nesse tempo todo que nos encontramos; nas três festas escolares e no dia da entrevista. Foi naturalizado! Talvez banalizado! Sua dor foi lida e traduzida em “falta de interesse”. Talvez porque o currículo se sinta na obrigação de contar histórias. Histórias pensadas, planejadas, estudadas, de vidas interessadas. Lembre-se de que “ele é determinante para a escola se movimentar, acontecer, existir, e é fundamental para a sociedade que se deseja construir” (PARAÍSO, 2023, p. 7)?

A saudade de sua mãe parecia ter esgotado qualquer possibilidade de alegria em sua vida… Isso porque “o esgotamento desata aquilo que nos liga ao mundo, que nos prende a ele e aos outros, que nos agarra às suas palavras e imagens, que nos conforta no interior da ilusão de inteireza […] da qual já desacreditamos há tempo, mesmo quando continuamos a ela apegados” (PELBART, 2016, p. 261-262). Esse esgotamento mostra que apenas um corpo que não vive a inteireza é que se permite a sentir a pureza da vida, sentir o coração pular de modo único, não havendo palavras para capturar as forças do pulsar da vida. E, de fato, onde tem vida tem coração pulsando, ou melhor, pulando! Lembramos de ter iniciado nossa entrevista com um pedido: “Fala-nos sobre o João”. “Uai, sou eu. Vocês sabem quem eu sou”. Respondemos que gostaríamos de te conhecer mais um pouquinho. Queríamos saber as coisas que você gostava de fazer, sua música preferida, suas brincadeiras prediletas. Você resumiu: “Eu? Eu fico aqui na escola todo dia”. Insistimos: “E em casa? O que você faz?” “Eu… tomo banho, eu durmo, eu fico com a minha avó”. É, João, parecia que sua vida infantil era capturada por uma rotina que diminui a potência de existir do seu corpo…

A vida que, segundo Deleuze (2010), é feita de acontecimentos, que é potência, parecia resumida e era narrada em momentos rotineiros. Rotina que muitas vezes em nada combina com um corpo com sede de explorar o mundo. No entanto, quando te pergunto o que você sente quando está em alguma festa, você ri. Você sorriu! Seu corpo cresceu! Paraíso (2019, p. 132) fala que o riso “é a arma contra as tristezas que despotencializam”. E eu percebi a importância disso à medida que ia te ouvindo com sorriso no rosto e lembrando de você nas festas: “Eu pulo! Eu não! Meu coração pula! Eu também porque eu fico feliz. Eu fico com muita vontade de brincar, correr. Eu gosto igual a festa das crianças que teve brinquedo, cachorro-quente, refrigerante e bolo. Eu imagino só coisas legais. Imagino coisas de criança. Por isso que eu pulo”. Rapidamente te perguntei o que seriam coisas de crianças. “É brincar, pular. Toda vez que eu pulo eu sinto diferente. O coração fica igual um tambô…pulando. Você gosta?”. Sua pergunta deve ter sido mobilizada pelo meu riso. Mas o meu riso era por te ver no corpo em devir-criança!

O riso que “é resistência de quem não aceita ser devorado/a” (PARAÍSO, 2019, p. 132) escancara, João, que no currículo com festas há espaço também para a criação de um corpo em devir-criança. Um corpo em devir-criança é aquele que possibilita experimentar a imaginação, criar, vivenciar outros modos de estar no mundo. Um corpo que imagina, inventa, experimenta, que foge as capturas que impuseram um único modo de viver a sua vida. Um corpo que não precisa ser cobrado a todo o momento: sorri, menino! Que brinca! Que pula! E assim, você, através do riso e de um corpo em devir-criança, faz instaurar modos de existências em um currículo com festas “sempre que você responde: sim à sua imaginação. À arte de sorrir (esteja) cada vez que o mundo diz: Não”.

Você mostra que é no entrecruzamento entre modos de existências que algo pode ser gestado. Um mundo outro. Você se lança às multiplicidades desse mundo. Na verdade, você pula com seu corpo esgotado para lá. Você cria possíveis. Existências possíveis! Um modo de existência faz existir, João! Faz existir vida. Vida essa que é sentida ao pular. Por isso você sente uma coisa diferente. Ao pular, você sente a vida que pulsa em seu coração. Que pulsa igual a um tambô. E, ao sentir a vida, você sorri!

Quanta força há nesse riso! Quanta vida! Fui observando e entendendo que o riso surgia como efeito de um encontro em uma festa em um corpo em devir-criança que responde sim à sua imaginação. Um corpo em devir-criança que, ao brincar de viver em um currículo com festas, sorri. E, ao sorrir, trava lutas contra as forças que apequenam sua potência de agir porque afirma a vida. A vida que quer ser vivida. A vida que deu às costas “à sua realidade”. A vida que era grande demais para se reduzir aos passos ensaiados e preocupados com as peneiras.

No dia da festa junina, que você atrasou, o Marcos[13] disse que chegar você chegaria. A questão era como. Ninguém sabia! A Jéssica rapidamente falou que você era uma caixinha de surpresa e que ela só desejava que você não chegasse com aquela “cara que fica em sala”. Mais uma vez, você mostrou que a “cara que fica em sala”, uma cara capturada pela tristeza, não compunha com aquele momento. Você entra pulando e sorrindo e reforça que “sim, o riso é força que mobiliza” (PARAÍSO, 2019, p. 132). Naquele momento, seu corpo estava conectado à potência da vida. Você não estava com “cara que fica em sala”, não porque a Jéssica pediu, mas porque você mostrava que não queria se separar da vida. Um corpo em devir-criança que sorri e brinca de viver.

Você ganhou a atenção até de seus colegas! Lembra-se do César? A Jéssica teve que tirá-lo de perto de você na hora das peneiras na festa junina. Ela colocou cada um em uma ponta. De nada adiantou. A força do riso era contagiante. Ele só queria olhar para você. Naquele encontro de corpos que se contagiaram pela potência do devir-criança, vocês brincaram com os olhares e riram em um momento de passos marcados e insistidos. Em meio à ordem, normas e pedidos para que parassem, você mostrou que sabia brincar de viver toda vez que respondia sim à sua imaginação. Você mostrou que o currículo é “território de possibilidades, de construção de possíveis; espaço de palavras diversas e lugar de experiências” (PARAÍSO, 2023, p. 12), um lugar para um corpo em devir-criança experienciar.

A coordenadora lembrou-se da ausência do seu riso na semana das crianças. Ela falou que lhe chamou a atenção o fato de você não rir nem com as coisas engraçadas que eram apresentadas pelos palhaços. Os palhaços são aqueles especialistas em despertar risos, João. Ou, pelo menos, essa é a sua fama. Como era possível? Quem não ri ainda que um pouquinho de uma palhaçada? Não sei se você se lembra, mas naquele momento a quadra era tomada por risos de todos os lados. Para você, parecia terrível. Como se não bastasse, na volta para a sala, a professora de Matemática te falou que gostaria muito de saber o que te faz sorrir e melhorar a cara. A zona de vizinhança, né, João? Aquela que é “uma relação não localizável arrastando os dois pontos distantes ou contíguos, levando um para a vizinhança do outro” (DELEUZE; GUATTARI, 2017, p. 96). O que ela não sabia era que seu corpo esgotado gritava pela criação de novos territórios que permitissem experimentar as potencialidades do corpo em devir-criança. Um corpo que ri e era tão desejado no currículo com festas.

Ao mesmo tempo, percebemos que o currículo com festas se perdeu, tropeçou no riso e no brincar. O corpo esgotado que não sorri e não brinca, quando faz isso é pedido para prestar atenção e fazer o combinado. Foi pedido para parar e deixar o/a colega também falar na Feira Cultural. Na festa da família, teve que ficar na fila de trás porque não parava de pular e estava atrapalhando os/as colegas que estavam atrás. O riso e o brincar que era tão cobrado, João, compuseram com o currículo com festas. Isso porque era a ausência dos mesmos que alimentaram a sua realidade em diversos momentos, a sua história que com sete anos já parecia ter começo e fim. Era aí que a força do riso se manifestava. No “fato de que ele abre possibilidades, proporciona agenciamentos, potencializa, desconcerta, inquieta” (PARAÍSO, 2019, p. 132).

Era possível desconcertar um currículo e inquietá-lo fazendo exatamente o que ele demandava? Sim! Criando. Mas como se a criação é também tão desejada nesse currículo? A criação que se deseja é uma criação orientada. Por isso, um corpo esgotado que é a todo instante julgado por não criar, quando cria tentam silenciá-lo. Mas aí já não tem mais jeito. Nessa direção, Carneiro e Paraíso (2018) nos mostram que o riso “pode sim criar um movimento de abertura” (CARNEIRO; PARAÍSO, 2018, p. 1020). No currículo com festas você evidencia mais uma vez isso, ao ser perguntado sobre como seu corpo fica em uma festa. Você disse que ele fica feliz. Pulando e sorrindo. Reforça que é até difícil de parar. Parar a vida não é fácil mesmo, João. Ainda mais uma vida infantil em vias de criação.

Foi isso o que aconteceu com seu corpo em devir-criança em vias de desterritorialização no currículo com festas. A desterritorialização é o movimento que seu corpo faz ao abandonar tantas forças que aprisionam a vida. É “a operação da linha de fuga” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 224). Seu corpo em devir-criança surge dos acontecimentos que o desterritorializam no currículo com festas e o lançam a outro território e não de um encontro previsto, como imaginou a Jéssica. Para ela, já era previsto você ficar desse jeito nas festas porque você não tinha que copiar e fazer nada. Então, não precisava de corpo mole.

Nós diríamos que o que você nos mostra é que o currículo tem mesmo “uma relação intrínseca com a vida, porque é um território de criação de possíveis e o que a vida quer é criar possibilidades de perseverar” (PARAÍSO, 2023, p. 147). Dentro dessa possibilidade de perseverar criada pela vida, você segue caminhos diferentes no currículo com festas. E o caminho que você quer trilhar é o caminho que te possibilita processos criativos, que luta contra a chegada de mais problemas para a sua vida infantil que nem brinca.

A fala da Jéssica ficou reverberando em nossos pensamentos naquele dia. Um corpo mole! Se tinha uma coisa que seu corpo não parecia ser era mole. Era um corpo enrijecido. Um corpo impedido de experimentar o devir-criança. Um corpo rompido e fechado para qualquer possibilidade de ser afetado. Um corpo que tinha a tristeza desenhada pelos contornos das lágrimas no rosto. Um corpo que, além de sua estrutura, tapava o coração com a cabeça à frente. Fechava o órgão que é uma espécie de bomba no corpo humano. Uma bomba essencial para se viver, sobreviver. O acesso a ele estava difícil. Talvez você estivesse tentando impedir que mais afetos de tristezas o adentrassem. Um corpo nada mole!

Isso ficou evidente quando no ensaio da Feira Cultural o Marcos falou com a Jéssica e com a gente que você já era o desenho da tristeza. João, como criar diante de tanta afirmação e reafirmação do que seu corpo pode e não pode? Mas, com agenciamentos, nem sempre compassados, você vai dizendo sim à sua imaginação no currículo com festas. Em nossa conversa, você nos fez lembrar exatamente da Feira Cultural. Nesse dia em que era esperado que seu corpo esgotado representasse a tristeza. No entanto, você mostrou que em nada parecia com a Tristeza do filme. A Tristeza que é marcada por não ter energia para nada. E se tem uma coisa que você disse ter, na entrevista, ao justificar o porquê de ser difícil parar de brincar e pular na festa, é energia.

Na Feira você pulou tanto que a Jéssica apostou com o Marcos que você não iria à aula durante bons dias. Afinal, um menino que não faz nada ficar desse jeito cansa mesmo. Você deixou o currículo com festas estarrecido. Seu corpo em devir-criança foi na contramão de tudo que era esperado por ele. A alegria tinha que ser planejada, controlada. Mas como controlar a alegria de brincar de viver experimentada? Foi nesse dia, inclusive, a primeira vez que eu presenciei você brincando de viver no currículo com festas. Foi nesse dia que você se esquivou de forças ameaçadoras que estavam sendo impostas, construídas e alimentadas em seu corpo. E, João, você foi à aula na segunda-feira!

Não tem quem não fique impressionado! É até engraçado ver aquele rostinho que quase nunca ri. Todo mundo com o olho arregalado. A secretária citou você ao falar o que achou das festas naquele ano. Ela reforçou ainda que a gente não sabe o que pode acontecer em uma festa. Uma festa é mesmo imprevisível! Ela é invenção! E assim, como o riso, ela é força que mobiliza. Mobilizou seu corpo. Corpo que queria viver e brincar e sorrir e festejar. Um corpo que não queria mais brincar só. Um corpo que tinha adquirido forças para expandir, para criar. Um corpo que movimentava o currículo com festas deixando-o confuso, sem direção, sem rumo. Um corpo infantil que, assim como outros, está sempre à espreita. Que evidenciou que a alegria estava em se perder no percurso. A vida estava lá de mãos dadas com você. Ela te ajudava nesse percurso ziguezagueante. Ela te sacudia para te lembrar de que o bonito no currículo com festas era quando seu coração pulava igual a um tambô. Afasta-se aqui a ideia de bonito como representação, como imagem. Mais que isso, o bonito está nas sensações provocadas pelos diferentes batuques de um tambô. Pelos ritmos distintos que neles são criados. Pelo som que cria. Pelo som que dá vida a notas frias em um papel. Por contribuir na marcação de tempos. Tempos outros. Vidas outras. Como a sua, João, em um currículo com festas. Com seu corpo em devir-festa. Quem se arrisca a dizer o destino, a história de um corpo em devir-festa?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

João, nós buscamos, com esta narrativa, mostrar como um corpo que parecia ter sua vida marcada pelas incertezas e pelas aflições, um corpo esgotado, em um currículo com festas, brinca de viver. Observamos, à medida que você ia compondo com o currículo com festas, que um corpo, ao entrar em devir, percorre novos caminhos, explora, cria novos mundos, brinca de viver, sorri. O seu corpo esgotado, tão marcado e muitas vezes silencioso e silenciado, mostrou que há sempre novos passos a serem dançados no currículo com festas.

Você nos mostrou que um corpo em devir-criança espanta. Espanta ao sorrir. Isso porque você criou singularidades, momentos. Você evidenciou que os seus agenciamentos possibilitam linhas de fuga. São as forças que se abrem e te fazem esquivar das forças que insistem em entristecer. Evidenciou que o devir-criança é a força que resiste aos poderes, e para resistir você criou. Talvez, por isso mesmo, há um espanto. O espanto do devir!

Você driblou as expectativas que eram levantadas a seu respeito. Você mostrou que a vida, mesmo sufocada, tem sede de movimentos. Você nos mostrou que seria um grande equívoco não acreditar que um corpo em devir-criança no currículo com festas esbarra no inacreditável. Você escapou do corpo mole, do corpo que não quer nada, do corpo que escora, do corpo preguiçoso. Você escapou daquilo que tirava sua vontade de viver. Você brincou de viver! Que composição incrível, João!

REFERÊNCIAS

ABBOT, Lesley. “Brincar é bom!” Desenvolvendo o brincar em escolas e sala de aula. In: MOYLES, Janet. A excelência do brincar. Porto Alegre: Artmed, 2006. p. 94-107.

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

CARNEIRO, Gláucia Conceição; PARAÍSO, Marlucy Alves. Cartografia para pesquisar currículos: um exercício ativo e experimental sobre um território em constante transformação. Práxis Educativa, v. 13, n. 3, p. 1003-1024, 2018.

DELEUZE, Gilles. Sobre teatro: um manifesto de menos – O esgotado. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2017.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.

DELIGNY, Fernand. O aracniano e outros textos. Tradução de Lara de Malimpesa. São Paulo: n-1 edições, 2015.

LÓPEZ, Maximiliano Valerio. Acontecimento e experiência no trabalho filosófico com crianças. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Currículos: teorias e políticas. São Paulo: Editora Contexto, 2023.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Diferença no currículo. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 40, n. 140, p. 587-604, 2010.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Uma vida de professora que forma professora/es e trabalha para o alargamento do possível no currículo. Curitiba: Brazil Publishing, 2019.

PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 edições, 2016.

PEREIRA, Eugenio Tadeu. Brincar e criança. In: CARVALHO, Alysson et al. (org.). Brincar(es). Belo Horizonte: UFMG, 2005. p. 17-28.

Notas

[1] Já havia duas semanas que João não ia à aula. A escola tentou entrar em contato, mas não obteve notícias.
[2] Todos os trechos em itálico foram retirados do diário de campo ou de entrevistas com a docente.
[3] O Programa Escola Integrada (PEI) é um programa em que os/as estudantes do ensino fundamental da rede municipal de ensino de Belo Horizonte realizam atividades diversificadas, no contraturno, que contribuem efetivamente para seu desenvolvimento.
4] Todos os nomes aqui apresentados são fictícios.
[5] Este artigo é um recorte de uma pesquisa de doutorado intitulada Currículo festivo: relações de poder e modos de subjetivação nos três primeiros anos do Ensino Fundamental. Com essa pesquisa buscou-se analisar como o currículo festivo dos três primeiros anos do ensino fundamental e as relações de poder que ali se estabelecem acionam modos de subjetivação, para, assim, compreender seus efeitos na produção dos corpos.
6] Essas são falas proferidas pelas professoras em diferentes momentos.
[7] Ser criança implicava compor com o mundo das brincadeiras, da imaginação, da liberdade.
[8] Nome fictício da monitora.
[9] Nome fictício dado à professora regente da turma.
[10] Ian é o nome fictício dado a uma das crianças que estudavam com João.
[11] A música apresentada foi “Massa de mandioca”, da banda Mastruz com Leite.
[12] O corpo em devir-festa é capaz de forjar novos contornos, para, em seguida, diluir territórios, fazendo nascer outros tão impulsores e fugidios quanto os anteriores.
[13] Nome fictício do professor de Educação Física.


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