Demanda Contínua
Recepção: 12 Fevereiro 2023
Aprovação: 30 Março 2023
Resumo: Apresenta-se os resultados das análises sobre a concepção de infância que norteou o currículo prescrito para a Educação Infantil em cada umas três versões da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O estudo foi desenvolvido no curso de Mestrado vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Educação Básica, do Núcleo de Estudos Transdisciplinares em Educação Básica/UFPA. Realizou-se uma pesquisa documental, que se debruçou sobre as versões BNCC, tornadas públicas nos anos de 2015, 2016 e 2017. Os resultados revelam que não há anuncio explícito da concepção de infância que orienta as suas prescrições curriculares, porém, a análise dos documentos permite evidenciar que a concepção de criança enquanto sujeito histórico e de direitos se faz neles presentes. Infere-se que a concepção de infância que considera a criança como protagonista permaneceu nas três versões do documento que prescreve o currículo nacional.
Palavras-chave: Currículo, Concepção de infância, Educação infantil.
Abstract: This paper presents the results of our analysis on the conception of childhood that guided the curriculum prescribed for early childhood education in each of the three versions of the National Curricular Common Base (BNCC). The study was developed in the Master's course linked to the Postgraduate Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Educação Básica, of the Núcleo de Estudos Transdisciplinares em Educação Básica/UFPA. A documentary research, which focused on the BNCC versions, made public in 2015, 2016 and 2017. The results reveal that there is no explicit announcement of the conception of childhood that guides their curricular prescriptions, however, the analysis of the documents allows us to show that the conception of the child as a historical subject and subject of rights is present in them. It is inferred that the conception of childhood that considers the child as the protagonist remained in the three versions of the document that prescribes the national curriculum.
Keywords: Curriculum, concept of childhood, child education.
Resumen: Presenta los resultados de nuestro análisis sobre la concepción de infancia que orientó el currículo prescrito para la educación infantil en cada una de las tres versiones de la Base Curricular Nacional Común (BNCC). El estudio fue desarrollado en el curso de Maestría vinculado al Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Educação Básica, del Núcleo de Estudos Transdisciplinares em Educação Básica/UFPA. Se realizó una investigación documental, que se centró en las versiones del BNCC, hechas públicas en los años 2015, 2016 y 2017. Los resultados revelan que no hay un anuncio explícito de la concepción de infancia que guía sus prescripciones curriculares, sin embargo, el análisis de los documentos permite evidenciar que la concepción de niño como sujeto histórico y de derechos está presente en ellos. Se infiere que la concepción de la infancia que considera al niño como protagonista se mantuvo en las tres versiones del documento que prescribe el currículo nacional.
Palabras clave: Currículo, concepción de infância, educación infantil.
1 INTRODUÇÃO
A Educação Infantil é uma etapa da Educação Básica e apresenta especificidades no que tange ao seu currículo, pois, para atender a criança, é necessário que sejam selecionados conhecimentos muito particulares que possibilitem o pleno desenvolvimento e aprendizagem da criança. Evidentemente que toda proposição curricular precisa partir de uma concepção de infância, já que todo currículo constitui-se enquanto um construto social com a construção tanto de uma identidade pessoal, quanto social. Diante disso, nos propomos analisar nas três versões da BNCC, a concepção de infância, partindo do pressuposto que disputas, de diferentes ordens, perpassaram o processo de elaboração do currículo nacional representado pela BNCC. No estudo que realizamos procuramos responder a seguinte questão de investigação: qual concepção de infância orientou a construção do currículo prescrito para a educação infantil nas três versões da BNCC elaboradas pelo Estado brasileiro?
Os resultados que ora apresentamos foram alcançados a partir da realização de uma pesquisa documental, que teve como principal fonte as três versões da Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil. A pesquisa documental, em consonância com Kripka; Scheller; Bonotto (2015), é caracterizada pelo fato de os dados advirem dos mais variados documentos, procurando obter as informações necessárias para desvelar o fenômeno estudado, amparada em métodos e técnicas que sustentam a apreensão, compreensão e análise dos documentos. Para analisar os dados, recorremos à técnica de análise de conteúdo, que, para Bardin (1977), pode proporcionar ao pesquisador uma análise profunda do fenômeno, sendo pertinente ao desvelar do fenômeno, tornando-o propício às inferências e interpretações necessárias.
Buscamos, inicialmente, identificar a concepção de infância que, por princípio, deveria ser anunciada no documento curricular, uma vez que sendo o currículo um poderoso instrumento de construção de identidades individuais e sociais, o anuncio da concepção de infância torna-se elemento essencial para se compreender as prescrições contidas no documento elaborado para orientar os currículos da educação infantil ofertado pelas instituições educacionais, procuramos, também, analisar se as disputas que ocorreram em torno da definição da Base Nacional Comum Curricular impactou na manutenção ou mudança de concepção de infância pensada inicialmente na primeira versão da BNCC.
Além desta introdução, estruturamos o texto em três outras seções. Assim, primeiramente, tecemos considerações acerca da concepção de infância que foi se constituindo no seio da sociedade com o passar do tempo e avanço dos estudos sobre a infância. Posteriormente, apresentamos os resultados da análise feita nas três versões da BNCC para a educação infantil acerca da concepção de infância nelas presentes. Por fim, apresentamos nossas considerações finais.
2 PONDERAÇÕES ACERCA DA CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA
O pensar sobre a infância está relacionado ao tempo histórico e ao contexto em que a criança está inserida, por isso, durante anos, a concepção de infância estava associada ao pensamento de que a criança era um ser sem valor, incompetente e que não deveria ser considerada um sujeito autônomo, pensante e capaz de produzir conhecimentos, uma vez que era carente das diferentes capacidades, inclusive cognitiva. Campos e Ramos (2018, p.241) ratificam que:
Durante muito tempo a criança foi reduzida por visões tradicionais que as via como mero ser biológico, imaturo, incompleto, um ser em formação. Assim, a infância era vista como um período de crescimento e de imperfeição e a criança como um sujeito pré-social em processo de desenvolvimento e introduzido progressivamente na sociedade pelas instâncias de socialização.
Por isso, Ariès (2019) ressalta que a infância é um conceito que foi se constituindo pela sociedade no período de transição da sociedade feudal para a industrial e, somente a partir daí, o entendimento e sentimento sobre as peculiaridades da criança começou a fazer parte da sociedade.
Os estudos de Ariès (2019) são pioneiros em busca de entendimento sobre como a criança era vista e qual concepção de infância articulou-se a diferentes contextos histórico-sociais. Esses estudos proporcionaram, efetivamente, a compreensão de como essa criança foi sendo pensada nos diferentes tempos e espaços, oferecendo, também, subsídios ao entendimento a respeito do pensamento da infância presentemente, pois, no decorrer de um processo longo, a sociedade foi modificando o seu entendimento sobre a criança e valorizando a infância.
Entretanto, se contrapondo a Ariès (2019), Conde e Hermida (2021) ressaltam que a concepção de infância não surgiu de um sentimento fenomênico à priori, onde se começou a pensar a criança como um ser frágil e que precisava ser cuidada, mas se construiu na sociedade, principalmente, considerando-se fatores como saúde, produção do trabalho, constatações científicas, que influenciaram o reconhecimento da criança como um sujeito social com características diferenciadas dos adultos, haja vista que a exploração precoce do trabalho da criança culminou em inúmeros problemas como de saúde e desenvolvimento, conforme estudos científicos apontados na época. Essa situação torna-se um dos pontos determinantes que insere a criança em uma categoria social diferentemente dos adultos, que requer cuidado, proteção, educação, e contemple as suas especificidades. Diante disso, reiteramos o pensamento de que a concepção de infância está intrinsecamente associada à sociedade em que a criança se desenvolve.
A sociologia da infância, que se fortalece como campo de estudo, também tem contribuído para a reflexão e o fortalecimento de um pensar a concepção de infância, pois também propõe a infância como uma construção social e entende a criança como um sujeito atuante. “A Sociologia da Infância fará algumas inflexões na tentativa de falar da criança e da infância a partir de outros referenciais e, também, prescreverá novas e outras modalidades para entender o que é ser criança e ter uma infância. ” (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2010, p. 41). Para as autoras, essas inflexões permitem pensar a criança como um sujeito e ator social capaz de construir sua própria infância dentro do processo em que está inserido.
O olhar sobre a criança direciona-se para o entendimento de que ela faz parte da sociedade como cidadã que precisa exercer a sua cidadania nos diferentes espaços da sociedade. A seguir compreenderemos como a concepção de infância se constituiu na BNCC.
3 A CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA PRESENTE NAS TRÊS VERSÕES DA BNCC PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL
A concepção de infância que atualmente se apresenta foi historicamente construída na sociedade e, também, nas instituições educacionais. Dispor de uma concepção de infância nas instituições de educação infantil é necessária e implica a forma como as ações pedagógicas serão conduzidas e em como o sujeito será atendido e compreendido nesses espaços, bem como se seus direitos e especificidades serão respeitados. Diante disso, enfatiza-se, neste artigo, a concepção de infância apresentada nas três versões da Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil. Ressalta-se que a BNCC, em consonância com Brasil (2017), é um documento normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagem que os alunos da Educação Básica devem desenvolver. Sendo a educação infantil a primeira etapa da Educação Básica resguardada nesse documento.
Antes de adentrarmos a concepção de infância apresentada nos documentos, é pertinente acentuarmos, brevemente, o processo de construção da BNCC, pois ela foi construída em meio a conflitos e tensões, que se configuraram em um campo de disputa ideológica, econômica, social e, principalmente, política, pois, ao mesmo tempo em que se construía o documento, o cenário político se mantinha instável, permeado por diversas discussões e tramas que culminaram, inclusive, no golpe parlamentar que afastou a presidenta Dilma Rousseff e manteve Michel Temer na presidência da República.
Todo esse cenário influenciou, diretamente, a construção da Base Nacional Comum Curricular, fazendo com que fossem apresentados três documentos à sociedade brasileira. E, nesse processo de construção, ocorreram mudanças, acréscimos e permanências.
Frente a isso, apresentaremos a concepção de criança nos três documentos apresentados pelo governo brasileiro.
A primeira versão da BNCC (BRASIL, 2015) não apresenta, em seu texto, a expressão concepção de infância. Entretanto, no texto expõe-se a definição de criança como sujeito em duas dimensões que são a de sujeito histórico e de direitos. Porém, essa menção é baseada em uma citação das DCNEI (2009) não tendo nenhum acréscimo novo do próprio documento da BNCC, conforme podemos observar no excerto do texto:
As atuais diretrizes Curriculares da Educação Infantil [...] definem a criança como sujeito histórico e de direitos, que brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e sobre a sociedade, produzindo cultura. (DCNEI — Resolução CNE/CEB no. 05/09, artigo 4). (BRASIL, 2015, p. 18)
Conforme o documento, o reconhecimento desse potencial das crianças é indicativo de que estas têm direito ao acesso de processos de apropriação, de renovação e de articulação de diferentes saberes e conhecimentos necessários à construção de cidadania, além dos demais direitos básicos e inerentes à criança, já garantidos em leis como a CF, 1988 e o Estatuto da Criança e do adolescente no Brasil de 1990.
A segunda versão da BNCC (BRASIL, 2016), tal como observado na primeira versão, não traz o termo “Concepção de infância”, e novamente faz menção às DCNEI, assinalando que a criança é sujeito histórico e de direitos. Avança em explicação sobre o protagonismo da criança ao ratificar que:
Essa concepção remete à ideia de que os bebês e as crianças pequenas constroem e apropriam-se de conhecimentos, a partir de suas ações: trocando olhares, comendo, ouvindo histórias, colocando algo na boca, chorando, caminhando pelo espaço, manipulando objetos, brincando. Antes mesmo de falar, buscam comunicar-se e expressar--se de diferentes formas, em diferentes linguagens. (BRASIL, 2016, p. 54)
A criança é construtora e apropria-se de conhecimentos baseados em diferentes vivências e, gradativamente, é inserida socialmente e aprende as práticas linguísticas e culturais de seu arredor. Por meio dessas relações e vivências, a criança se torna construtora de sua sociabilidade e identidade (BRASIL, 2016).
Como é possível observar, esse documento amplia o olhar em relação ao entendimento sobre a criança, e, consequentemente, sobre a infância, pois reconhece que, na fase da infância, a criança consegue construir conhecimentos com base nas diferentes vivências e, gradualmente, se constitui como esse sujeito que tem história, tem direitos e pode interferir nas transformações de sua realidade.
Entretanto, o fortalecimento do protagonismo da criança na Educação Infantil está articulado às condições oferecidas nos ambientes onde acontece a Educação Infantil e pode ser efetivado pela atuação desta em relação às diferentes vivências culturais pensadas e organizadas, intencionalmente, pelo professor.
Um ponto relevante apresentado na segunda versão da BNCC que fortalece a ideia da criança como sujeito histórico e de direitos são os direitos à aprendizagem e ao desenvolvimento que se afirmam em relação aos princípios éticos, políticos e estéticos, conforme podemos observar em alguns excertos do texto, a título de ilustração.
As crianças, adolescentes, jovens e adultos, sujeitos da Educação Básica, têm direito:
ao respeito e ao acolhimento na sua diversidade, sem preconceitos de origem, etnia, gênero, orientação sexual, idade, convicção religiosa ou quaisquer outras formas de discriminação, bem como terem valorizados seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, reconhecendo-se como parte de uma coletividade com a qual devem se comprometer; [...]
[...] às oportunidades de se constituírem como indivíduos bem informados, capazes de exercitar o diálogo, analisar posições divergentes, respeitar decisões comuns para a solução de conflitos, fazer valer suas reivindicações, a fim de se inserirem plenamente nos processos decisórios que ocorrem nas diferentes esferas da vida pública.
[...] ao desenvolvimento do potencial criativo para formular perguntas, resolver problemas, partilhar ideias e sentimentos, bem como expressar-se em contextos diversos daqueles de sua vivência imediata, a partir de múltiplas linguagens: científicas, tecnológicas, corporais, verbais, gestuais, gráficas e artísticas. (BRASIL, 2016, p. 34-35).
Entendemos que esses direitos fortaleciam o pensamento da criança como um sujeito que pode exercer sua cidadania no percurso da Educação Básica, deixando explícito o seu protagonismo enquanto cidadão de diversos direitos e reafirmando uma concepção que se tem de sujeitos e, consequentemente, de educação e de infância.
A última versão da BNCC (2017) que foi aprovada e homologada, atualmente em vigor, não difere das duas versões observadas anteriormente. Também cita as DCNEI (2009) em seu artigo quarto, que define a criança como sujeito histórico e de direitos, pontuando que:
Essa concepção de criança como ser que observa, questiona, levanta hipóteses, conclui, faz julgamentos e assimila valores e que constrói conhecimentos e se apropria do conhecimento sistematizado por meio da ação e nas interações com o mundo físico e social não deve resultar no confinamento dessas aprendizagens a um processo de desenvolvimento natural ou espontâneo (BRASIL, 2017, p.36, grifo do autor).
Certamente, são necessárias ações intencionais que visem ao desenvolvimento e aprendizagem da criança, pois o fato de a criança ser protagonista do conhecimento não significa que construirá os conhecimentos de forma espontânea. Esse protagonismo infantil carece, de ações curriculares, pedagógicas e didáticas propicias, além de ambientes favoráveis, pois é evidente que essas ações se fomentam em consonância com a forma como a infância é concebida. Nessa perspectiva é necessária uma intencionalidade nas práticas pedagógicas que se convirja com o pensamento de que a criança pode construir e vivenciar cultura e conhecimentos diferenciados.
Nesta última versão da BNCC, na contramão dos direitos à aprendizagem e ao desenvolvimento, surgem as dez competências gerais da Educação Básica, a título de exemplificação apresentamos algumas das competências seguir:
· Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.
· Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural.
· Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.
· Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários. (BRASIL, 2017, p. 9-10).
A organização da BNCC por competências rendeu diferentes críticas por parte de pesquisadores e educadores. Branco, E. P; Branco, A.B.G.; Iwasse.; Zanatta (2019) ressaltam que essa proposição foi questionada, considerando que se torna uma continuidade da pedagogia do “aprender a aprender” que em outros momentos já tinha sido bastante rejeitada pelos educadores que vislumbram uma educação para a cidadania.
De fato, pensando na etapa da Educação Infantil, que é o foco desse estudo, o direcionamento da educação por meio de competências compromete um trabalho que reverbera uma educação que valorize o sujeito e conceba a criança como sujeito histórico e de direitos.
Ao comparar os três documentos apresentados, sendo primeira, segunda e versão final da Base nacional comum curricular, em relação à concepção de infância, percebemos que os textos das versões da BNCCEI não trazem, explicitamente, a concepção de infância, porém apontam como a criança é definida nos documentos, e a definição do conceito de criança somente é plausível se estiver amparada por uma construção histórica e social de concepção de infância. O que é perceptível nos três documentos é a permanência da definição de criança, entendida como sujeito histórico e de direito. Entretanto, a segunda e terceira versões avançam no que tange ao protagonismo da criança nesse processo de aprendizagem. Principalmente a segunda versão que enfatiza as diferentes ações e linguagens às quais as crianças recorrem para efetivar o seu protagonismo enquanto sujeitos que produzem e se apropriam de conhecimentos.
Nesse sentido, salientamos que, no decorrer do processo de construção da BNCC, não foi apresentado nenhuma novidade em relação ao pensar sobre a infância, já que os documentos relativos à Educação Infantil já expõem esse pensamento, principalmente as DCNEI (2009), primeiro documento a subscrever, explicitamente, esse conceito que foi apenas ratificado no excerto da BNCCEI. Porém, conforme mencionado, as duas últimas versões evidenciam o protagonismo da criança, mas a segunda versão aponta as ações pertinentes para que as crianças se lancem como sujeito atuante desde bebês. Por isso, a segunda versão da BNCC é a mais completa em relação à sustentação e explicação sobre a concepção de criança, considerando-a como sujeito que se constitui historicamente, sendo alicerçada por vários direitos que a torna cidadã do presente na sociedade.
É possível inferir nos textos a concepção de infância e perceber uma coerência entre a concepção de infância que permaneceu nos três documentos. Além disso, elencamos outras situações nos textos que evidenciam a concepção de infância defendida na BNCC, como a primeira e segunda versão da BNCC que explicitam, em seus textos, questões relacionadas aos direitos de aprendizagem. Inclusive, a segunda versão da BNCC ampliou esse olhar em relação ao sujeito de direitos. Além de pontuar os direitos de aprendizagem, acrescentou direito ao desenvolvimento e, ainda, destacou os direitos humanos. Já a última versão apresentada à sociedade brasileira trouxe significativas mudanças quanto a essa situação, pois suprimiu os direitos de aprendizagem e desenvolvimento por competências de aprendizagem, e retirou o texto que tratava da educação para os direitos humanos.
É evidente que essas mudanças transferiram a responsabilidade educacional a cada sujeito, além de expressar o posicionamento ideológico e político dos que detinham o poder governamental no momento de aprovação da BNCC, diante do processo transverso por conflitos políticos e ideológicos em relação à construção da BNCC. As concepções das pessoas que iniciaram a construção do documento se constituíram antagônicas às ideias dos que consolidaram e conseguiram a aprovação do documento que se constituiu oficial a partir de sua aprovação e homologação em 2017.
Nesse sentido, Barbosa; Silveira e Soares (2019) apresentam um destaque proeminente em relação às mudanças ocorridas no processo de construção da BNCC, observadas nos textos apresentados, pois essas mudanças não tratam, apenas, de organização didática, mas emitem uma concepção de criança, de infância, de função social e política da educação. Não houve neutralidade nesse processo de construção da BNCC. Em relação a cada mudança, permanência ou acréscimo, sempre houve intencionalidade. As autoras destacam, ainda, que:
É preciso considerar que a formação do indivíduo se constitui dialeticamente em diferentes dimensões: humana, social, cultural, política e, necessariamente, num ambiente democrático. Reconhecemos que as crianças e suas famílias devem ser assumidas como interlocutoras e protagonistas, por direito, da organização do trabalho pedagógico, assim como os professores e gestores. O direito à participação e à forma de tratamento do conhecimento a ser disponibilizado no ambiente das creches e pré-escolas, parece não estar citado em todas as suas dimensões, sobretudo quando os direitos sociais são retirados dos fundamentos da BNCC, como já aludimos anteriormente. Eles foram substituídos por “direitos de aprendizagem”, que não são equivalentes aos direitos sociais, como o direito à vida digna, à saúde, à moradia, à boa alimentação, por exemplo. (Barbosa; Silveira e Soares, 2019, p. 85)
Essa substituição dos direitos sociais por direitos de aprendizagem é outra mudança que ocorreu no texto da BNCC e não traz sustentabilidade à definição da criança como sujeito histórico e de direito, pois os textos da primeira e segunda versão (BRASIL, 2015 e 2016) mencionam que, em uma ação complementar à das famílias, comunidade e poder público, as instituições de Educação Infantil devem assegurar os direitos básicos e sociais que são: ao cuidado, a proteção, a saúde, a liberdade, a confiança, ao respeito, a dignidade, a cultura, as artes, a brincadeira, a convivência e a interação com outros/as meninos/as. O texto da última versão, a homologada e aprovada, subtraiu esse trecho do texto, tão importante estar evidenciado, pois conceber a criança como sujeito é garantir a ela esses direitos.
Mudanças como estas, ocorridas na transição da segunda para a versão final da BNCC, se configuram como arbitrárias, pois deixam de lado a luta pela participação social em relação à construção da BNCC que foi tão exígua, considerando-se que as proposições realizadas necessitaram da aprovação dos técnicos que emitiram seus pareceres. Assim, todo esforço de luta pela garantia da democracia nesse processo se diluiu ou foi ofuscado por um grupo que se sentiu no direito de suprimir questões que a sociedade e outros estudiosos julgaram relevantes para o texto. Dessa forma, mesmo mantendo no texto a definição de criança como sujeito histórico e de direitos, houve alterações a respeito da concepção de infância.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluímos que nas três versões da BNCC houve a permanência da definição de criança como sujeito histórico e de direito, capaz de pensar e transformar sua realidade. Sujeito que é protagonista, inclusive, dos currículos, pois, conforme Brasil (2009), ele tem diferentes ações, pois pode interagir, aprender, questionar, construir sentidos e produzir cultura, evidenciando, diante disso, uma concepção de infância que concebe o sujeito como ser ativo em relação ao processo de construção do conhecimento e que tem direitos de vivenciar e construir sua infância com base nas diferentes óticas e possibilidades.
Assim, podemos ratificar que a BNCC não apresentou nenhuma novidade sobre concepção de infância, porém mantém a visão dos demais documentos que rompe com a ideia de que a criança é incapaz, reafirmando o protagonismo e potencial da criança, considerando-a como um ser social e de direitos que tem suas especificidades nas diferentes dimensões humanas.
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