Artigos

Notas sobre a epistemologia de Marx segundo Lukács, Althusser e Alfred Schmidt

Notas sobre la epistemología de Marx según Lukács, Althusser y Alfred Schmidt

Notes on Marxian Epistemology according to Lukács, Althusser and Alfred Schmidt

Henrique Cunha Viana i
Universidade Federal de Minas Gerais , Brasil

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes

Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil

ISSN: 2527-2551

ISSN-e: 1806-5627

Periodicidade: Semestral

vol. 19, núm. 1, 2022

revista.argumentos@unimontes.br

Recepção: 08 Abril 2021

Aprovação: 25 Agosto 2021



DOI: https://doi.org/10.46551/issn.2527-2551v19n193-219

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar panoramicamente três visões sobre o problema do conhecimento e sua relação com a ontologia na obra de Marx, discutindo as das interpretações de sua obra desenvolvidas por Louis Althusser, György Lukács e Alfred Schmidt. Após discutir brevemente a importância da antinomia entre liberdade e necessidade para o assunto em questão, localizando assim o problema da epistemologia na obra de Marx em seu contexto, passa-se à discussão de cada um dos seus intérpretes em separado. Ao longo do texto, destaca-se a importância dos conceitos de práxis, metabolismo e prática na interpretação de Lukács, Schmidt e Althusser, respectivamente, indicando como estes conceitos marcam, para os autores, a diferença entre os aspectos ontológicos, epistemológicos e metodológicos da fundamentação da crítica da economia política feita por Marx e o debate clássico da filosofia moderna. Comparando ao final estas três versões sobre a epistemologia de Marx, discute-se ainda suas diferenças no tocante à centralidade conferida à atividade sensível e ao trabalho. Por fim, a partir desta sistematização, comenta-se a ideia de que Marx engendra uma perspectiva radicalmente nova no debate cosmológico e epistemológico da filosofia moderna, apontando para outros caminhos investigativos.

Palavras-chave: Economia política, Epistemologia, Ontologia, Práxis, Trabalho.

Resumen: El objetivo de este artículo es presentar de forma panorámica tres visiones sobre el problema del conocimiento y su relación con la ontología en la obra de Marx, discutiendo las interpretaciones de su obra desarrolladas por Louis Althusser, György Lukács y Alfred Schmidt. Después de discutir brevemente la importancia de la antinomia entre libertad y necesidad para el sujeto en cuestión, ubicando así el problema de la epistemología en la obra de Marx en su contexto, pasamos a la discusión de cada uno de sus intérpretes por separado. A lo largo del texto se destaca la importancia de los conceptos de praxis, metabolismo y práctica en la interpretación de Lukács, Schmidt y Althusser, respectivamente, indicando cómo estos conceptos marcan, para los autores, la diferencia entre los aspectos ontológico, epistemológico y metodológico. de fundamento de la crítica de la economía política realizada por Marx y el debate clásico de la filosofía moderna. Al comparar estas tres versiones de la epistemología de Marx al final, también discutimos sus diferencias en términos de la centralidad otorgada a la actividad y el trabajo sensibles. Finalmente, a partir de esta sistematización, se discute la idea de que Marx engendra una perspectiva radicalmente nueva en el debate cosmológico y epistemológico de la filosofía moderna, apuntando a otros caminos de investigación.

Palabras clave: Economía política, Epistemología, Ontología, Práctica, Trabaj.

Abstract: The aim of this article is to panoramically present three views on the problem of knowledge and its relationship with ontology in Marx's work, discussing the interpretations of his work developed by Louis Althusser, György Lukács and Alfred Schmidt. After briefly discussing the importance of the antinomy between liberty and necessity for the subject in question, thus locating the problem of epistemology in Marx's work in its context, we move on to the discussion of each of its interpreters separately. Throughout the text, the importance of the concepts of praxis, metabolism and practice in the interpretation of Lukács, Schmidt and Althusser, respectively, is highlighted, indicating how these concepts mark, for the authors, the difference between the ontological, epistemological and methodological aspects of foundation of the critique of political economy made by Marx and the classic debate of modern philosophy. Comparing these three versions of Marx's epistemology at the end, we also discuss their differences in terms of the centrality given to sensitive activity and labor. Finally, from this systematization, the idea that Marx engenders a radically new perspective in the cosmological and epistemological debate of modern philosophy is discussed, pointing to other investigative paths.

Keywords: Political economy, Epistemology, Ontology, Praxis, Labor.

Introdução

O objetivo deste trabalho é apresentar brevemente e comparar três interpretações sobre a questão do conhecimento na obra de maturidade de Karl Marx: a de Alfred Schmidt, apresentada em The concept of Nature in Marx, de Althusser, em Por Marx e Ler O capital, e a empreendida por Lukács, em um capítulo de Para uma ontologia do ser social. A epistemologia marxiana foi tema de um importante debate no século XX, sobretudo para a tradição do marxismo ocidental (ANDERSON, 1984). Os esforços de análise em torno da questão epistemológica partiram do reconhecimento de que Marx, em seus trabalhos teóricos, teria fundado uma perspectiva radicalmente nova no trato da questão do conhecimento e da metodologia da teoria social. De todo modo, ainda que conformando-se como uma abordagem nova, esta nunca foi exposta sistematicamente (PAULA, 2010), mostrando-se apenas em estado prático nos escritos marxianos da maturidade (PRADO Jr., 1973).

Dizer que a epistemologia e a reflexão de Marx sobre os limites, a validade e a produção do conhecimento encontram-se em estado prático indica que, na obra de maturidade de Marx, esses problemas filosóficos apresentam-se simultaneamente ao desenvolvimento de sua nova perspectiva para o estudo da sociedade, enquanto uma teoria social do devir, nas palavras de Jesus Ranieri (2011). Justamente por isso, defendem alguns de seus comentadores que o problema do conhecimento e do método na obra de Marx está intimamente ligado às suas asserções ontológicas. Assim, para a correta compreensão da questão do conhecimento na teoria marxiana, seria necessário compreender como Marx pensa alguns problemas da ontologia, ramo clássico da filosofia no qual são tratados os problemas do funcionamento do mundo, da existência ou não de leis na realidade, do papel da contingência nos eventos, da causalidade, a existência ou não de determinação de um evento sobre o outro e da liberdade, tanto relativamente ao comportamento humano quanto à natureza.

Só assim, defendem alguns, poderia-se discutir seriamente o domínio da epistemologia, ou seja, compreender como Marx teria endereçado as questões sobre a possibilidade e a validade do conhecimento, do juízo sobre o mundo, da possibilidade de conhecer os seres, a fonte deste conhecimento e os mecanismos das operações envolvidas na apreensão cognitiva do que é exterior ao sujeito do conhecimento[1]. Essa parece ser a posição de Lukács e Alfred Schmidt sobre o problema do conhecimento na obra de Marx; diferente do que defende Althusser, que recusa considerações ontológicas na discussão do problema do conhecimento na obra do autor. Dada a amplitude desses problemas na obra marxiana e no marxismo, limitamos-nos, neste artigo, a discutir o argumento dos três já mencionados comentadores de Marx que pensaram a diferença entre abordagem do autor e a tradição filosófica moderna, em alguns de seus textos que constituem hoje interpretações clássicas sobre o assunto.

O pensamento de Marx é por vezes tratado como uma anti-filosofia, usualmente com referência às Teses sobre Feuerbach. De modo diferente, esses três autores discutem uma epistemologia marxista: Lukács e Schmidt no campo de uma filosofia da práxis[2], Althusser mais próximo de uma leitura pós-estruturalista, a partir do conceito de prática. Os comentadores partem da constatação de que Marx não rejeita os problemas da filosofia moderna, senão que ele transforma os termos do debate ao abandonar a epistemologia como ponto de partida e ao colocar a práxis humana no centro da investigação (Lukács e Schmidt), ou fazendo um corte com a filosofia anterior, criando um novo objeto científico (Althusser). Desse modo, nossa sistematização das propostas interpretativas dos três autores marxistas citados se organiza a partir da relação entre os dois problemas anteriormente apontados: i) cosmologia moderna/ontologia - em que figuram como questões de discussão principalmente a antinomia liberdade versus necessidade, a separação entre homem e natureza e a racionalidade do mundo, e ii) a fonte do conhecimento e o critério da validade deste conhecimento.

Como dissemos, cada um dos três parece, à sua maneira, defender que Marx desenvolve uma abordagem radicalmente nova a partir de um importante debate da filosofia moderna. Ainda que não possamos aqui retomar o debate, é necessário apontar as linhas principais sobre a discussão sobre ontologia, epistemologia e o conflito entre liberdade e necessidade, centrais para a filosofia moderna (LOUX, 2001). Cabe notar, de início, que as primeiras metafísicas do racionalismo moderno foram fortemente marcadas por uma cosmologia determinista e mecanicista (KESSELRING, 2000). Para uma primeira aproximação da discussão, basta-nos reter a ideia de que a discussão ontológica desta época é marcada pelo progressivo abandono da imagem de um Deus criador que constrói um mundo racional e é a causa eficiente e final dos eventos, ideia própria do medievo. Porém, a despeito da secularização progressiva da ontologia, o vocabulário da cosmologia medieval resiste: o mundo aparece para vários pensadores da época como um grande mecanismo, regido por leis, numa referência clara à ideia de Deus legislador.

O determinismo e o mecanicismo dessa época são, todavia, paradoxais: se o mundo é um mecanismo cego em que há somente choque de forças e onde tudo está sujeito às leis férreas da natureza, não é possível que exista liberdade humana, uma vez que a causa de todo e qualquer evento é sempre externa. Outro problema é a circularidade deste argumento: supondo que há uma causa anterior e externa para todo e qualquer evento, a busca por essas causas não consegue encontrar uma causa primeira. Se, na tentativa de evitar os dilemas do determinismo, toma-se a via oposta, admitindo que há liberdade no mundo e na ação humana, isso significa que as leis naturais não estariam todas determinadas e o mundo natural não seria um mecanismo. É importante reforçar que a antinomia entre liberdade e necessidade atravessou todo o idealismo alemão (DUDLEY, 2007), sobretudo o debate entre Kant e Hegel, configurando o contexto da discussão de Marx.

Como expomos ao longo do texto, cada um dos três intérpretes propõe que Marx muda os termos do debate da filosofia moderna e da epistemologia, seja a partir de uma nova consideração sobre a ontologia (Lukács e Schmidt), seja superando qualquer consideração ontológica (Althusser). Nossa tarefa se constrói, portanto, a partir da discussão das diferenças nas interpretações sobre a teoria do conhecimento subjacente à obra de maturidade de Marx em sua relação com a ontologia. Ao fim, esboçamos uma síntese - ainda que não harmônica - dessas três visões, propondo a hipótese de que a teoria do conhecimento em Marx pode ser pensada como uma teoria da industriosidade. Sustentamos que é possível defender a partir dos três autores que Marx formula uma filosofia da práxis ou das práticas, e que o autor engendra uma epistemologia em que o conceito, a representação, a apropriação cognitiva do real são o resultado de um trabalho, que tem como fonte ou figura primordial o metabolismo entre homem e natureza. O critério para a validade deste conhecimento é dado na e pela práxis, numa teoria do conhecimento que mantém a tensão entre os pólos objetivo e subjetivo, contornando assim os impasses do idealismo e do realismo ingênuo, fundamentando assim a crítica da economia política.

Lukács e o salto qualitativo do ser social

Em Para uma ontologia do ser social, Lukács considera as antinomias kantianas como desdobramento da cisão primordial que dá o tom do problema da cosmologia moderna, com duas visões concorrentes: i) de um lado o humano idêntico ao natural em geral, ii) de outro o humano totalmente diverso do natural. No primeiro caso exclui-se a liberdade humana - sendo o humano apenas mais uma peça dentro do mecanismo do mundo -, no segundo adere-se à tese da excepcionalidade humana, que separa homem de natureza. Isso “na forma do tosco contraste entre o mundo do ser material enquanto reino da necessidade e um puro reino espiritual da liberdade” (LUKÁCS, 2012, p. 25).

Segundo Lukács, o problema muda de lugar com Marx: o ponto de partida para a discussão das ciências e das asserções sobre o mundo é uma ontologia que compreende três esferas do ser: o ser inorgânico, o ser orgânico e o ser social, tendo como efeito a superação desta cosmovisão teológica que opõe necessidade e liberdade. O fundamento é a ontologia, que “não pode ser distorcida em teoria do conhecimento” e deve possuir “uma ontologia da natureza inorgânica como fundamento de todo existente”. (LUKÁCS, 2012, p. 27). O movimento teórico de Marx, de acordo com Lukács, baseia-se na recusa do ponto de partida epistemológico.

Segundo o autor, é justamente o dualismo ontológico que engendra o dualismo epistemológico e metodológico de Kant, com a divisão entre razão pura e razão prática, uma recusa da asserção sobre o ser (ontológica) em nome do expurgo da “teleologia” da ciência. A reflexão apropriada de Marx sobre o espelhamento, a apreensão dos nexos causais no mundo e o conhecimento - sem coisa-em-si - é esse caminho diferente, que se inicia na ontologia, em vez da epistemologia.

Para Lukács, há dois momentos essenciais na visão de Marx: uma ontologia que compreende os níveis inorgânico e orgânico do ser, que fundamentam a ontologia do ser social e a consequente superação da antinomia entre mundo como mecanismo ou mundo como liberdade. A esfera do ser ser inorgânico configura um fundamento, um limite intransponível que é o do material, do mundo tal como ele é, independente da consciência, com seu modo próprio de ser e funcionar, à parte da vontade dos sujeitos e com sua própria lei. Este mundo fora da consciência existe sempre como limite, e os seres estão sujeitos às suas leis, o que não significa que exista um continuum entre eles. O surgimento da vida, dos seres orgânicos, representa um salto qualitativo em relação à estrutura dos seres inorgânicos, isto é: há diferença ontológica no ser.

Já o ser social representa um outro salto qualitativo: é específico em relação ao ser inorgânico e ao ser orgânico, ainda que limitado por suas categorias. Em outras palavras, com o salto há uma complexificação do ser, com uma diferença de graus de complexidade e registros ontológicos: ou seja, não há excepcionalidade humana, apenas diferença de regime. Cabe já notar que, para Lukács, o fundamento da especificidade do ser social, seu elemento constitutivo e distintivo em relação às duas outras esferas do ser, é o trabalho.

Essa categoria originária e modelar da ação humana inclusive nos revela in loco a deficiência da antinomia entre liberdade e necessidade. Segundo Lukács, o trabalho se distingue por ser um pôr, por ser teleológico: o processo de trabalho envolve fins que são postos por sujeitos, portanto manifestação de uma vontade. Mas implica também a investigação de meios para atingir este fim, uma pesquisa sobre a forma de fazer, sobre as leis do mundo. O resultado da posição de um fim e da resolução sobre execução é o produto do trabalho, nova objetividade criada. Temos, ao mesmo tempo, a liberdade - manifestação da vontade - e a necessidade - leis que regem o mundo a ser transformado. Segundo Lukács, Marx não especula sobre a antinomia, em vez disso reconhece que a liberdade existe de fato no trabalho, está ontologicamente fundada nele, sendo própria ao ser social.

A liberdade não é, portanto, antinômica em relação aos mecanismos naturais, existe um metabolismo entre natureza e ser social, uma simbiose. O trabalho se usa das leis naturais, as propriedades mecânicas da natureza, suas causalidades, transformando-as em causalidades postas: utiliza do mecanismo natural para criação de novas objetividades. Não viola as leis naturais e, ao mesmo tempo, cria objetividades que o mecanismo natural sozinho não produziria. Há, portanto, teleologia no mundo, porém restrita à práxis, à ação humana.

O metabolismo entre homem e natureza, na práxis, no trabalho, é também a chave para compreender as antinomias da cosmologia moderna. O mecanicismo é a extensão dos nexos causais observados na natureza a todos os seres, sem o reconhecimento de diferentes regimes ontológicos. Por outro lado, a teleologia - categoria própria ao ser social e à sua atividade - estendida a todo o mundo, faz encontrar causas finais e vontades onde há apenas causas eficientes: considera-se o mundo fruto do desígnio divino.

A terceira via é a de Kant, que, evitando a ontologia, transforma a teleologia em ficção necessária, admitindo a possibilidade de soluções teleológicas - sobretudo na Crítica da faculdade do juízo - de forma ambígua, deixando “aberta a porta para especulações transcendentes” expurgando a teleologia da ciência, ao mesmo tempo (LUKÁCS, 2013, p. 50). De todo modo, continua a inconciliabilidade entre causalidade e teleologia. Diferentemente, o tratamento de Marx ao problema mostra a “coexistência concreta, real e necessária entre causalidade e teleologia”. (LUKÁCS, 2013, p. 52).

Essa resposta ao problema da cosmologia moderna se dá pela via da práxis - há teleologia no trabalho e o homem é parte da natureza, o ser social sendo uma complexificação do ser orgânico. A abordagem de Marx do “problema do conhecimento” é análoga e o trabalho tem uma função modelar. Segundo Lukács, o “problema do conhecimento” não se apresenta como autônomo para Marx: a indagação sobre a validade do conhecimento constitui uma reflexão, digamos, post festum, num desenvolvimento tardio. O que chamamos conhecimento, processo de apreensão cognitiva do mundo, tem suas raízes no trabalho, parte da necessidade de apreensão dos nexos causais do mundo para a práxis, o conhecimento sendo uma parte da posição do fim, em função da resolução de um problema. A chamada “questão do conhecimento” é na verdade a investigação dos meios necessários à consecução de um fim posto pela vontade humana, que continua sendo o modelo da práxis em nossos dias, apesar da progressiva autonomização da ciência, que tende a obscurecer sua origem.

Para Lukács, o trabalho é categoria central tanto do ser social quanto da apreensão do mundo e de seus nexos causais, portanto, ontologicamente relacionada ao conhecimento. Enquanto pôr teleológico, o trabalho envolve a pesquisa dos meios necessários à consecução do fim, a investigação dos meios é desdobramento do projeto, da posição do fim. Essa apreensão deve ser objetiva, e não a simples projeção da ideia do sujeito sobre o mundo; correta apreensão das causalidades, do mecanismo do mundo, para Lukács, é pré-requisito ontológico do trabalho: “a investigação dos meios para a realização do pôr do fim não pode deixar de implicar um conhecimento objetivo da gênese causal das objetividades”. (LUKÁCS, 2013, p. 54).

O produto desta investigação é o conhecimento, que possui duas dimensões:

de um lado evidencia aquilo que em si governa os objetos em questão, independentemente de toda consciência; de outro, descobre neles aquelas novas conexões, aquelas novas possibilidades de funções através de cujo pôr-em-movimento tornam efetivável o fim teleologicamente puro. (LUKÁCS, 2013, p. 54)

O conhecimento é condição sine qua non do trabalho, o que não significa que este espelhamentoé sempre correto, ou que desvenda a estrutura do mundo tal qual ela é a todos os momentos. Não há, nessa concepção, adequatio rei et intellectus: todo fenômeno ou objeto tem uma infinidade intensiva de propriedades, muitas delas não captáveis, mas só importa ao pôr aquelas propriedades do ser em questão que têm uma relevância positiva ou negativa à consecução do fim. Não há apreensão total, exaustiva e absoluta do objeto. Porém estamos aqui distantes da ideia de uma coisa-em-si incognoscível, uma vez que o processo de investigação e o contato com o real permitem aproximações sucessivas cada vez mais afeitas à manipulação dos objetos.

O desenvolvimento posterior deste espelhamento - o refinamento da apreensão cognitiva - é ilimitado, mas a adequação do “conhecimento” - que tem no trabalho seu caso paradigmático - é uma adequação concreta requerida pelo fim. Desta forma se estabelece o “conhecer dos nexos causais”, elementar para o sucesso no processo do trabalho, ainda que com representações “inteiramente inadequadas enquanto conhecimentos da natureza em sua totalidade” (LUKÁCS, 2013, p. 56). O conhecimento não deve ser a priori: a investigação e o contato com o objeto que conferem a sua objetividade. Entra em jogo a dialética da correção rigorosa do espelhamento, processual, a partir das relações entre pôr teleológico concreto e falha do projeto, que denuncia o possível erro do espelhamento.

A apropriação adequada, espelhamento, é indissociável do trabalho, uma vez que o último não é possível sem a primeira: “se houver erro a respeito deles no processo de investigação, nem sequer podem chegar a ser - em sentido ontológico - postos” (LUKÁCS, 2013, p. 55). Conclui Lukács que é na investigação dos meios que podemos encontrar a gênese da ciência: a apreensão de um determinado nexo causal com vistas à consecução de um fim tem objetivamente a propriedade de ser aplicável ou utilizável para a consecução de outro fim, isto é, uma utilização que tem êxito em um campo, em um projeto, pode ser aplicado a outros. A objetividade da apreensão é tanto o que permite o florescimento e autonomização da investigação dos meios - que após o reconhecimento da adequação do espelhamento pode servir a fins diversos -, quanto o índice de “que de fato foi realizada uma abstração correta que, na sua objetiva estrutura interna, já possui algumas importantes características do pensamento científico” (LUKÁCS, 2013, p. 60).

A interpretação de Lukács não recai no sensualismo dogmático - a “intuição” não apreende a “objetividade” na consciência, tal e qual ela é -, há aqui uma separação, uma cisão entre sujeito e objeto engendrada pelo próprio trabalho. “No espelhamento da realidade como condição para o fim e o meio do trabalho, se realiza uma separação, uma dissociação entre o homem e seu ambiente, um distanciamento que se manifesta claramente na confrontação entre sujeito e objeto” (LUKÁCS, 2013, p. 66). A representação dos nexos causais é objetiva, mas não uma realidade, porque o conhecimento não é idêntico ao real, sendo inclusive oposto a ele, dado o distanciamento original do enfrentamento entre sujeito e objeto no processo de trabalho. A oposição entre “conhecimento” e “ser” é como uma reprodução do afastamento necessário do sujeito em relação ao objeto transformado. Em razão do afastamento, o erro é sempre uma possibilidade no processo de apreensão: o espelhamento se dirige ao objeto-independente-da-consciência “procurando apreendê-lo no seu ser-em-si e, exatamente por causa da distância necessária imposta pelo espelhamento, pode errar” (LUKÁCS, 2013, p. 66).

Não há cópia do real: primeiramente, o espelhamento é determinado pelo pôr do fim, localizado e não direcionado ao ser global, em sua completude; além disso, o afastamento pode produzir o erro. Não decorre daí que o sujeito simplesmente projeta-se no objeto - imputando ao objeto sua ficção dele -, a apreensão é objetiva, e a falha do projeto quando da apreensão incorreta mostra isso. A objetivação, a práxis, é o corretivo das apreensões errôneas. O resultado - objetividade criada e espelhamento objetivo - é fruto da interação entre opostos, porque o espelhamento é o exato oposto do ser. Há uma tensão dialética e não uma impossibilidade.

A interpretação dos escritos de Marx feita por Lukács nos mostra um caminho para a leitura da obra do autor: uma resolução ontológica que muda os termos do problema do conhecimento e que contorna os dualismos da filosofia moderna, entre sujeito e objeto, fenômeno e noumeno, liberdade e necessidade. O que permite essa resolução é a centralidade do trabalho, categoria essencial do ser social e histórico: em vez de antifilosofia, a teoria de Marx busca no concreto a resolução dos problemas filosóficos de sua época, sem recair em relativismo.

Alfred Schmidt, liberdade e necessidade no processo social

A exposição sobre Lukács mostra um importante aspecto da discussão da filosofia moderna na obra de Marx: seu caráter anti-especulativo, em vez de anti-filosófico. A crítica da filosofia deve ser sua Aufhebung, superação ou suprassunção que nega e conserva os termos, ao mesmo tempo. O materialismo de Marx, frequentemente confundido com determinismo mecanicista, não é uma visão das estruturas espirituais e filosofia como pseudorrealidade [Scheinwirklichkeit]. O que ocorre é, segundo Alfred Schmidt, uma recusa por parte de Marx da colocação do problema epistemológico antes da investigação concreta do conteúdo. Daí a negação da epistemologia idealista burguesa, do sujeito transcendental que conhece a priori. O que constitui o mundo da experiência e estabelece a intersubjetividade necessária para que falemos de conhecimento não é, para Marx, um sujeito supra-individual, consciência em geral, mas uma atividade coletiva e objetiva, a práxis (SCHMIDT, 1971, p. 12). Segundo Schmidt, a obra marxiana se configura como filosofia da práxis, em todas as dimensões da reflexão.

Na teoria do conhecimento, por exemplo, a crítica ao racionalismo moderno e ao idealismo alemão se faz pautada na categoria da práxis. Para Marx, o sujeito não é espírito, ego ou razão: as “faculdades” de Kant, o entendimento e a razão, são produto tanto da natureza quanto da história. Tampouco surge o conhecimento da intuição sensível, como no materialismo de Feuerbach: é a práxis a fonte do conhecimento. Aponta Schmidt que não há em Marx um objetivismo não mediado - um realismo epistemológico ingênuo e dogmático - em que a intuição sensível transforma-se em conceito. Tampouco segue o ceticismo de sua época ou a ideia do criticismo kantiano da criação do mundo pelo sujeito, denunciados como sobrevalorização do pólo sujeito, fazendo da natureza um ente derivativo, produto da consciência. Marx, na interpretação de Schmidt, é crítico à tese da excepcionalidade humana.

A sociedade é, aqui, parte da natureza. Decorre disso a indistinção na obra de Marx entre o método das chamadas ciências da natureza e do espírito, sobretudo porque “a ordem social confronta os homens como leis objetivas, leis naturais, e não como socialmente controladas” (SCHMIDT, 1971, p. 43). Segundo Schmidt, na teoria de Marx, a ordem social é fruto da práxis humana - a síntese dos pores teleológicos, para Lukács-, mas essa mesma ordem social aparece para os sujeitos como determinante, condicionante, como se fosse natural. Os fenômenos podem, então, ser tratados como leis objetivas, como se fossem naturais, porque é nesta medida que eles são determinantes, ao condicionar a ação humana. Mas com ressalvas: o que aparece como determinante, necessário, é, na verdade, histórico, em vez de universal e imutável. Também, nessa visão do social, Marx consegue conciliar liberdade e necessidade: na atividade humana em sociedade concorrem tanto o condicionamento - fruto de decisões ou pores teleológicos passados - quanto a liberdade de ação e posição de outros fins. A teoria social pode, então, desvendar os nexos causais objetivos e necessários entre as estruturas e os seres humanos, com a condição do reconhecimento da historicidade e localidade destes nexos causais.

Por conseguinte, não há diferença de método de investigação de acordo com os objetos, sejam eles naturais ou sociais, porque o que é posto a conhecer é dado objetivamente na práxis, da mesma forma. Cada objeto teria sua própria “lei”, sua própria história, mas o método, a forma de apreensão prática, não teria diferenças para Marx. Como diz Schmidt da teoria do conhecimento de Marx, o conhecimento nunca é “puramente” teórico, está sempre a serviço da vida. Justamente por ter como ponto de referência a práxis, por ser ancorado na atividade - e não na especulação autossuficiente - é que Marx prescinde da postulação de um transcendente para a formulação de sua teoria social e econômica, como seria o caso de uma ideia abstrata de liberdade como ponto de partida de sua crítica do capitalismo.

As críticas à validade dos resultados da ciência marxista frequentemente censuram uma suposta análise da realidade com ponto de partida transcendente, como um ponto fixo ou modelo especulativo e imaginado do mundo a ser comparado pela realidade percebida pelo teórico. Essa é a acusação de que o marxismo é, na verdade, baseado em pura especulação, ao opor uma “sociedade sem classes” imaginária como pressuposto teórico, ou na aceitação de um ideal de solidariedade como sendo “a verdade do homem”. A posição de um transcendente, fora do próprio real, como guia da crítica e da ciência é de fato um problema. O que Schmidt defende é que não há, na teoria marxista, um ideal especulativo como fundamento da crítica ou ainda qualquer ideia de “revelar”, “retirar o véu” ou “desvendar” uma essência humana agora escondida.

A completude da compreensão dos fenômenos na teoria marxiana, ou o que dá a correção da imediaticidade do conhecimento, é, antes, o processo de totalização, i.e., adoção de uma perspectiva analítica que relaciona a conexão entre fenômenos, elementos ou situações distintas. É nesse sentido que se pode falar de “essência” e não como algo a ser “desvelado”. Essa correção do caminho não é o encontrar de uma essência ou verdade oculta, é antes a perspectiva da totalidade - consideração dos fenômenos além de sua ocorrência singular e atomizada - que permite o refinamento do conhecimento sobre a sociedade. Não é necessário à crítica de Marx, portanto, o ideal de sociedade ou a especulação: sua crítica é, pois, interna.

No campo da teoria social, a crítica de Marx versa justamente sobre a naturalização dos resultados do processo histórico, mais um dos mal entendidos causados pela antinomia entre liberdade e necessidade. A inexistência do “natural” em questões sociais tampouco endossa a tese de que há pura liberdade no mundo, uma vez que a estrutura social de fato constrange os indivíduos. A concretude do fenômeno social é justamente essa concorrência das duas dimensões: a ordem social confronta os homens como leis objetivas, naturais, condicionamento, e não como socialmente controladas ou fruto da liberdade. É na regularidade do condicionamento que o mundo deve ser analisado, em seus nexos causais. A ação humana conjugada, dentro de uma certa ordem, pode manter-se, conformando uma “estrutura”, que ainda assim é histórica e não “natural”. Apesar disso, o conhecimento se faz apenas dos nexos causais, na medida em que eles condicionam de fato e representam uma força. Por isso se faz a análise da estrutura como se ela fosse forte, tal qual a lei natural. O “corretivo” dessa forma de exposição dos problemas é a indicação do caráter histórico e processual do condicionamento social.

Para Alfred Schmidt, essa configuração do problema liberdade-necessidade na teoria social de Marx se dá - diferentemente do exposto por Lukács - a partir do reconhecimento de uma “lacuna ontológica”, uma rachadura do real. Marx não precisa escolher entre necessidade e liberdade, uma vez que há em sua teoria o reconhecimento da contingência e da impossibilidade de estabelecer um processo causal total e objetivo, sendo impossível dizer que existe a determinação completa e suficiente de um evento sobre o outro e, portanto, pensar nos termos de uma causalidade forte. A “causa” de um fenômeno na teoria de Marx, segundo Schmidt, pode ser algo anti-conceitual, indefinido, em contraposição à causalidade, que pressupõe a existência de uma lei e a rastreabilidade de uma cadeira completa de eventos.

Aceitando verdadeiramente a contingência, a “rachadura do real” e acentuando o caráter objetivo do conhecimento, o método de Marx se faz na tensão entre história e natureza. Não há estrutura última e objetiva do “Ser” ou do “Real” a ser apreendida, há uma recusa da cosmologia moderna que põe esses problemas especulativos. Para Marx, segundo Schmidt, a superação desta antinomia se dá no seio da filosofia da práxis: conferindo centralidade à poiesis, à criação,a o trabalho humano em geral, à transformação da natureza, onde concorrem liberdade e necessidade.

O trabalho é, portanto, o caso paradigmático da superação deste conflito. E essa produção é práxis, atividade poiética que pressupõe a Natureza como um Outro. O polo objetal como alteridade é um antídoto do esquema marxiano à supervalorização do sujeito, que no esquema idealista cria a natureza. O conceito deixa de ser, aqui, uma construção subjetiva, dada sua relação com a práxis. A filosofia da práxis de Marx pensa o conhecimento, por analogia, como produção. Na tradução inglesa do livro de Schmidt usa-se o termo “industry” (Industrie em alemão), que, no século XVIII, aparece na obra de Hume e Smith tanto como uma habilidade - a industriosidade - quanto como a própria produção. O conhecimento como forma de Industrie de que fala Schmidt pode ser pensado como o par capacidade industriosa/indústria, que nos dá a visão do conhecimento como processo produtivo.

As percepções, a imaginação, a intuição sensível - todos esses elementos que concorrem para a produção das representações - são transformadas em conceitos, através da repetição, tendo como fundamento a necessidade de dominação da natureza, em relação íntima com as carências humanas [Bedürfnis]. O conceito como forma de apreensão do mundo é, desta forma, resultado de um processo industrioso e criativo: “de um repetido contato com a natureza, comum tanto a homens quanto a animais, emerge uma classificação inicial dos objetos naturais de acordo com o critério do prazer e da dor que estes objetos produzem” (SCHMIDT, 1971, p. 111). O originário do conceito é a classificação dos eventos e dos objetos naturais de acordo com a necessidade, orientado, pois, à práxis humana, num argumento parecido ao de Lukács, ressaltando o caráter tardio do “problema do conhecimento”.

Na visão dos dois autores, a apreensão dos nexos causais não é puramente teórica, mas está a serviço da vida, sendo o conhecimento resultado do metabolismo do ser humano enquanto ser coletivo e social, e o entendimento destas leis da natureza só se dá através da práxis mediadora, ela também coletiva. O paradigma do conhecimento é, em razão disso, o processo amalgamado pelo reconhecimento das leis para o processo de trabalho - que Lukács chama de espelhamento dos nexos causais - e a sua aplicação.

Schmidt (1971, p. 105) ressalta a influência de Hegel na conformação desta filosofia da práxis de Marx, sobretudo na discussão do primeiro sobre o ponto de vista da teleologia finita, na Ciência da Lógica, tendo a ideia de quimismo, a passagem entre mecanismo e teleologia, como conceito principal. A noção importante para pensar o desenvolvido por Hegel é que a natureza se combina com o surgimento da vida orgânica, inclusive com o surgimento dos seres humanos. A partir da atividade subjetiva e projetiva - ligado aos desejos e necessidades humanas - há uma interferência no mecanismo causal da natureza, em outras palavras, uma interferência em relação ao material, que possui suas leis próprias e sua disposição independente dos seres humanos. Porém, esses podem, a partir de sua habilidade, explorar tanto o mecanismo como o quimismo da natureza, aponta Alfred Schmidt. A ferramenta é assim, o elo “perdido” entre o homem e o mundo do mecanismo, uma vez que é a utilização humana de um objeto “natural”, através do qual se pode explorar a causalidade natural.

Segundo Schmidt - Marx, assim como Hegel, antes dele - compreende que o trabalho humano mostra como é possível não violar nenhuma lei da natureza e ao mesmo tempo subordinar o material aos propósitos humanos, ou seja, é possível usar propriedades mecânicas de objetos independentes da consciência humana de acordo com propósitos humanos. A ferramenta, neste sentido, é como o lugar da conexão entre estes dois momentos: é tanto objetal-mecânica - de substrato natural -, quanto teleológica - fabricada de acordo com fins humanos. A criação de ferramentas, ou a própria atividade com o auxílio de ferramentas, não se emancipa do seu contexto natural, continua tendo este substrato como limite inferior; ao mesmo tempo, é feita a partir da vontade humana, para fins humanos, seu limite superior. A reconciliação entre necessidade e liberdade não precisa, pois, de “princípio transcendente” para ser explicada.

Portanto, a rejeição da cosmologia moderna por parte de Marx não se põe abstratamente: o autor busca no trabalho humano, e na própria ideia da natureza que se complexifica, a resposta àquela cosmologia de raiz teológica. Há tanto uma complexificação da natureza, da passagem do orgânico ao inorgânico, que dá origem aos seres humanos, quanto uma segunda forma de complexificação, a do metabolismo entre os seres humanos - que já são natureza - e o mundo exterior a eles. O metabolismo permanece totalmente interno à natureza, mas com a posição de fins, um resultado da complexificação dela mesma. Assim, o conceito marxiano de natureza é determinante para o conceito marxiano de conhecimento - uma apreensão cognitiva de tipo social e coletivo que, por meio da repetição e da criação de objetividades, sedimenta a apreensão necessária ao processo de trabalho, ao vivido no metabolismo com o que é exterior à consciência.

Louis Althusser e a história da produção de conhecimentos

Diferentemente de Lukács e Alfred Schmidt, Louis Althusser se detém mais na questão puramente epistemológica em suas considerações sobre Marx, recusando a ontologia. Althusser inicia seu capítulo clássico de Ler o Capital - Da ‘filosofia’ de Marx ao Capital - com um esclarecimento sobre a ideia de conhecimento que o acompanha até o fim do ensaio e que parece ser o ponto central da crítica às interpretações correntes da obra de Marx. O autor defende que é necessário recusar a ideia de transparência epifânica do conhecimento, a ideia de “leitura” do objeto real. Segundo Althusser, tanto a concepção empirista do conhecimento quanto a idealista se inscrevem neste mesmo problema, bem como algumas correntes de interpretação de Marx que não tomam a sério suas considerações epistemológicas.

O empirismo toma um sujeito e um objeto dados, num processo de abstração. “Conhecer é abstrair a essência do objeto real, cuja posse pelo sujeito chama-se então conhecimento”, nesta visão. (ALTHUSSER, 1979, p. 36). A ideia aqui é da extração de uma essência real no real que a contém, um determinado processo de separação. O conhecimento é, desta forma, algo já contido no real como uma de suas partes. A tarefa do conhecimento é assim, a eliminação do inessencial, a depuração de uma parte do real.

O que está para ser conhecido já está na estrutura do real e o que deve ser isolado é a sua superfície visível, enquanto a parte essencial está no interior, no núcleo invisível. “A palavra ‘descoberta’ deve ser tomada no sentido real: remover o que encobre” (ALTHUSSER, 1979, p. 37). Uma ideia de ‘véu’ carregada de religiosidade, aponta Althusser. Daí a circularidade própria deste empirismo: o conhecimento é uma parte real do objeto real a conhecer, o próprio conhecimento desse objeto real. “O conhecimento já está, pois, realmente presente no objeto real que ele deve conhecer”. (ALTHUSSER, 1979, p. 38).

Segundo Althusser, mesmo em sua obra de maturidade - O Capital -, Marx teve de se servir dessas ideias para sua argumentação. Marx teria recorrido, na visão althusseriana, aos termos aparência e essência, exterior e interior, essência interna das coisas, movimento aparente e movimento real; sem que isso representasse de fato o núcleo de sua visão do conhecimento. Como um exemplo deste uso inessencial à própria teoria, algo como o vocabulário da época se fazendo sentir na obra madura do autor, é o que Althusser chama de jogo de palavras sobre o real e o concreto em Marx.

Althusser vê uma contradição do empirismo, que denuncia a circularidade de sua definição de conhecimento: o objeto do conhecimento não é idêntico ao objeto real, apenas uma parte dele. A esta visão ingênua, Althusser contrapõe a análise “confessa”, que reconhece a distinção entre objeto de conhecimento e objeto real: “Na análise confessada, há dois objetos distintos: o objeto real que “existe fora do sujeito, independentemente do processo do conhecimento (Marx) e o objeto do conhecimento (essência do objeto real) que é inteiramente distinto do objeto real”. (ALTHUSSER, 1979, p. 41). O que leva Althusser à conclusão de que é o próprio conceito de objeto que deve ser discutido, para desembaraçá-lo da simples palavra “objeto” e entender sobre o quê versa a teoria.

Na defesa de sua interpretação dos escritos de Marx, Althusser argumenta que Marx diferencia, ao contrário de Hegel, o objeto real do objeto do conhecimento. Temos de um lado aquilo que “subsiste na cabeça”, é concreto-de-pensamento [Gedankenkonkretum], um tipo de totalidade-de-pensamento [Gedankentotalität] do objeto real, que é independente, exterior à cabeça [Kopf].

Mas isso não faz com que Marx caia num tipo de idealismo, afirma Althusser. O pensamento não é uma faculdade transcendental, ou produto de uma consciência absoluta, nem de um sujeito psicológico e individual. Para Althusser, o que Marx descreve é um aparelho de pensamento, envolvido em um modo de produção de conhecimentos. (ALTHUSSER, 1979, p. 42). Este aparelho é uma estrutura que combina [verbindet] o tipo de objeto (matéria-prima) sobre o qual ele trabalha, com meios de produção (método, técnica, experimento) e relações históricas próprias (teóricas, ideológicas, sociais). (ALTHUSSER, 1979, p. 43).

O esquema de Althusser é o da produção: matéria-prima, meios de produção, trabalho, transformação e produto. Para ele existe uma prática teórica[3], que possui uma realidade objetiva determinada, “o pensamento é um sistema real próprio, assentado e articulado no mundo real de uma sociedade histórica dada” que estabelece um tipo de estrutura própria, com um tipo de combinação de meios e relações com a sociedade. E acrescenta Althusser; esse processo se passa “inteiramente no pensamento”. (ALTHUSSER, 1979, p. 43).

Podemos apresentar brevemente noções essenciais que qualificam a questão de Althusser, citando Marx ele diz que o processo de produção do conhecimento é “o trabalho do pensamento sobre a matéria-prima (objeto sobre o qual ela trabalha), como um ‘trabalho de transformação .Verarbeitung. da intuição .Anschauung. e da representação .Vorstellung. em conceitos .in Begriffe]” (MARX apud ALTHUSSER, 1979, p. 44).

Althusser segue Marx em seu texto, defendendo que na produção do conhecimento a matéria-prima é Anschauung e Vorstellung, matéria composta por intuição e representação. Mas ao mesmo tempo em que esta ideia se parece com a de quimismo, de metabolismo e industriosidade que discutimos a respeito de Schmidt e Lukács, em seguida temos a demonstração da distância de Althusser em relação a estes dois autores. Althusser desenvolve o ponto mais sensível desta sua interpretação: a matéria-prima trabalhada no processo de produção do conhecimento nunca é intuição pura, tanto intuição quanto representação são sempre já-complexas. O conhecimento é esta conexão ou ligação [Verbindung] particular entre conceito e matéria-prima, porém “jamais o conhecimento se acha, como o quereria desesperadamente o empirismo, diante de um objeto puro que fosse então idêntico ao objeto real do qual o conhecimento visa justamente produzir… o conhecimento”. (ALTHUSSER, 1979, p. 44).

Trabalhando sobre seu ‘objeto’, o conhecimento não faz então com o objeto real, mas com sua própria matéria-prima que constitui, no sentido rigoroso do termo, o seu ‘objeto’ (de conhecimento) que é, desde as formas mais rudimentares do conhecimento, distinto do objeto real - dado que essa matéria prima está sempre-já, no sentido estrito que lhe dá Marx em O Capital, matéria-prima, isto é, matéria já elaborada, já transformada, precisamente pela imposição da estrutura complexa (sensível-técnico-ideológica) que a constitui como objeto do conhecimento. (ALTHUSSER, 1979, p. 44, grifo nosso)

O objeto que será transformado, cujas formas serão transformadas, não é o objeto que observamos ou algo de radicalmente novo que a investigação poderia nos fornecer. A produção do conceito é realmente um tipo de trabalho de transformação, um tipo de prática específico, mas o conhecimento não tem suas raízes naquele trato com o objeto que tem seu modelo no trabalho, como para Schmidt e Lukács. Também o próprio critério da validade do conhecimento, na interpretação de Althusser, o critério da verdade “dos conhecimentos produzidos pela prática teórica de Marx é fornecido em sua própria prática teórica, isto é, pelo valor demonstrativo, pelos títulos de cientificidade das formas que asseguram a produção desses conhecimentos.” (ALTHUSSER, 1979, p. 63). Não há aqui uma referência ao pôr teleológico ou à apreensão da conexão causal adequada a um fim.

Assim, Althusser defende como modelo da produção do conhecimento, em vez de espelhamento (Lukács) ou aprendizagem com a repetição (Schmidt) um tipo de efeito de conhecimento que tem como fundamento a forma de exposição. Este é, segundo o autor, o mecanismo que confere a cientificidade da teoria. Deve ser resolvido o problema de que a ideologia[4]. Claro que a própria ideologia também tem o seu efeito, diz Althusser. Mas segundo o autor há uma especificidade do discurso científico, que funciona como conhecimento: “As formas de ordem do discurso da demonstração nada mais são que o desenvolvimento da ‘Gliederung’, isto é, combinação hierarquizada dos conceitos no próprio sistema” (ALTHUSSER, 1979, P. 72).

A demonstração, o discurso científico apresentado, ou a apresentação [Darstellung] do sistema [Gliederung], é a diacronia - ou sucessão lógica das categorias em um texto teórico - de uma sincronia ou sistema, estrutura organizada e hierarquizada de conceitos. “A sincronia, representando a estrutura de organização dos conceitos na totalidade-de-pensamento ou sistema (ou, como o diz Marx, ‘síntese’), e a diacronia representando o movimento de sucessão dos conceitos no discurso ordenado da demonstração.” (ALTHUSSER, 1979, p. 72). A forma de exposição, que tem como base uma hierarquia de conceitos e uma dependência sistemática, equivale ao mecanismo do efeito de conhecimento - que se transforma nesta interpretação em “discurso do sistema”.

Althusser rejeita o problema do conhecimento, identificando-o como pura ideologia ou pura resposta ideológica, ao confundir o real com o concreto-de-pensamento. Mas seu modelo tem menos o trabalho como paradigma, focando no conceito de prática, envolvendo a ideia daquela transformação da matéria-prima com determinados meios de produção e condições sócio-históricas. O que está envolvido na ciência e na teoria é um tipo de prática, mas uma prática teórica. O modelo proposto por Althusser é a da existência de uma ‘Generalidade I’ - que é a matéria-prima do processo de transformação - que, por meio de uma ‘Generalidade II’ - um corpus de conceitos que define o campo que estrutura o problema da ciência - transforma-a em ‘Generalidade III’, ou ‘conhecimento’. (ALTHUSSER, 2015, p. 150).

Mas Althusser pensa menos no trabalho como fonte deste conhecimento, como experiência originária ou paradigmática, e avança uma ideia da filosofia de Marx como filosofia das práticas. É menos o metabolismo com a natureza, como observamos a propósito de Alfred Schmidt e Lukács, e mais o conceito de transformação. Afirma Althusser que não há prática em geral, somente “práticas distintas” (ALTHUSSER, 1979, p. 61), reunidas sob a ideia geral de que há um material a ser trabalhado, um determinado tipo de transformação e uma nova objetividade como produto.

O traço distintivo dessa formulação de Althusser é o caráter de sempre-já-dado daquilo que é chamado de ‘Generalidade I’ dentro da prática teórica. O capítulo do primeiro volume de Ler o Capital apresenta uma teoria que parece negar o contato com o que se entende correntemente como o ‘objeto’, ou objeto real. Para Althusser, o que tomamos por um objeto, como representação das percepções e da intuição, já é dado ao cientista e ao teórico em toda a sua significação ideológica ou pré-científica. O trabalho é sempre de transformar esta ‘Generalidade I’, mas nunca há contato com o real, somente com os significantes da teoria ou ideologia anterior.

Se falávamos sobre a crescente autonomização da ciência com Lukács, ciência ou processo de investigação dos meios antes indissociada de seus fins, Althusser rejeita aqui todo tipo de argumento do tipo “genético”:

Os conceitos de origem, de ‘solo originário’, de gênese e mediação devem ser tomados a priori como suspeitos: não só porque induzem sempre à ideologia que os produziu, como porque, produzidos unicamente para uso dessa ideologia, são seus nômades, trazendo-a sempre mais ou menos neles. (ALTHUSSER, 1979, p. 67)

Para Althusser, a verdade dentro do marxismo nunca é então verdade de, é uma verdade para, e o objeto do conhecimento não se confunde com o pretenso objeto real. Mas podemos apresentar aqui algumas ressalvas quanto a esta visão. Althusser faz uma separação bem rígida entre estes dois tipos de objeto, que acabam quase sem conexão um com o outro. Se no texto de Marx temos intuição .Anschauung] e representação .Vorstellung] que são transformadas pelo trabalho teórico, Althusser parece se apressar para identificar representação à “Generalidade I”, com as representações da ideologia, do conhecimento pré-científico.

Da mesma forma, Althusser esclarece pouco sobre o processo do conhecimento tomando-o pela forma que acredita ser a vigente. Sua “história” da produção do conhecimento tem um modelo linguístico claramente estruturalista (ou pós-estruturalista) em que todo o mundo da experiência é já estruturado como Ordem Simbólica, e de que não há objetos ou significados rastreáveis dos significantes; e, no caso de Althusser, dos conceitos

A representação a ser transformada no trabalho do conceito para Althusser é sempre uma representação fechada e já-dada, anterior a qualquer experiência, e a busca do referente de um significante ou conceito qualquer só remete a outros conceitos, nunca encontrando algum tipo de objeto. Ele se apoia no critério da prática, mas uma prática totalmente desvinculada do processo real do trabalho, do metabolismo homem natureza e do contato com o objeto. Assim, a teoria se faz sistema, hierarquia de conceitos dependentes, e por meio da forma de exposição produz um efeito, que nos sinaliza de que aquilo tenta ou pretende se colocar paralelo ao real.

Práxis versus prática nas interpretações sobre a epistemologia marxiana

Há de se concordar em parte com as ressalvas de Althusser, em sua tentativa de expurgar o realismo ingênuo de algumas interpretações da obra de Marx. Os objetos são, de fato, carregados de significado, e o método de investigação e construção do conhecimento envolve uma produção de novos significados a partir dos significados mais imediatos. O conhecimento não é, portanto, uma parte do real a ser desvelado, e não há acesso direto aos objetos pela intuição. Também, o critério da validade do conhecimento não deve vir de fora, a partir de uma epistemologia, e sim da própria prática. Mas nos parece que Althusser leva esse posicionamento ao extremo, caindo numa regressão infinita em que cada descoberta de um significado, de um objeto, leva à descoberta de um outro sistema, uma outra rede de significantes e relações.

Segundo Alfred Schmidt, Marx rompe com o materialismo de Feuerbach, ingênuo neste sentido da crença na intuição e na imediaticidade. O que não significa, para o autor, que não exista um objeto real, ou que não seja possível a descoberta de novos objetos. Já Althusser pensa apenas a ciência e a filosofia em suas formas já institucionalizadas, o que faz com que seja perdida a ideia processual do conhecimento. Por exemplo, na passagem da ‘Generalidade I’ para a ‘Generalidade III’, entra em ação a ‘Generalidade II’, que trabalha sobre a matéria-prima. Mas esta ‘Generalidade II’ já é um corpus de conceitos (ALTHUSSER, 2005, p. 150). A simples ideia da transformação por meio de um conjunto de conceitos não dá subsídios para pensar o novo, a descoberta, a investigação. Althusser não chega a explicar como se forma este novo corpus, a não ser a partir de sua ideia de visível e invisível na teoria.

Apesar de esclarecer os problemas epistemológicos do marxismo a partir de um lugar específico e respondendo às questões de sua época - sobretudo o ambiente pós-estruturalista, avesso às metanarrativas - Althusser, em sua tentativa de desvincular Marx de Hegel, nos parece esquivar-se de um importante conceito para a consideração do conhecimento para vários autores marxistas: a negação. Segundo alguns dos intérpretes de Marx, o conhecimento nunca poderia ser o reflexo da intuição, porque o trabalho do conceito é um trabalho de negar o dado, como o seria também para Hegel. Como apontam Lukács e Schmidt, a descoberta dos nexos causais representa uma negação da imediaticidade, em favor da análise mais ampla, da consideração de diversos aspectos do real.

Justamente porque, na interpretação de Althusser, não há algo como “o objeto”, ele se distancia de Lukács e Alfred Schmidt. Para os dois últimos, o objeto da reflexão e do trabalho oferece resistência ao sujeito. O sujeito, ao tentar captá-lo, compreender os seus nexos causais e apropriar-se pelo pensamento de um de seus momentos, uma parte de suas propriedades, entra em contato com a resistência, e inicia-se a dialética da correção. O que o sujeito suspeita das propriedades do objeto pode mostrar-se falso, e a investigação retoma com a negativa do próprio objeto. Nessa visada, não há “critério da verificação”, temos antes o próprio objeto negando a representação do sujeito na práxis.

Na interpretação de Althusser do texto de Marx, esse momento de resistência do objeto, que podemos pensar na chave da negação e da negatividade crítica, não parece desempenhar um papel tão importante como nas de Schmidt e Lukács. A negatividade é, em algumas leituras, justamente o mecanismo de rejeição da pura percepção, a negação do já-dado (RANIERI, 2011). Ela não é, todavia, mero movimento de pensamento segundo Schmidt e Lukács: a negação se dá principalmente na práxis. A “prática teórica” de Althusser, por outro lado, é, tanto para Lukács quanto para Schmidt, um desenvolvimento tardio do conhecimento, quando a ciência já se autonomizou, quando a investigação dos meios já aparece como um domínio mais ou menos autônomo das práticas humanas, o que mesmo assim não faz com que o critério da práxis perca importância. O próprio objeto nega o que o sujeito pensa dele, quando o pôr teleológico não se realiza.

O critério da validade não é, para Schmidt e Lukács, apenas o que a prática teórica realiza “no pensamento”. Esta “prática”, para os dois autores, é acúmulo e sistematização de uma das dimensões da práxis humana. O objeto nega o sujeito e as suas pretensões de dar conta tanto da estrutura global do ser quanto daqueles nexos causais que são necessários à realização dos fins. Por isso, há mediação desde o início, e o próprio processo de trabalho - ontologicamente, diria Lukács - faz a mediação, uma vez que a intuição e a representação do sujeito - o concreto-de-pensamento - é constantemente negado pelo objeto. A correção possível na práxis é o que arranca a representação do sujeito de sua imediaticidade, um processo que Althusser parece ignorar, talvez por rechaçar o peso “hegeliano” destas formulações.

O que há de comum nessas três interpretações da obra de maturidade de Marx é sua caracterização não como anti-filosofia, mas como obra baseada numa filosofia da práxis - ou das práticas, no caso de Louis Althusser. De todo modo, há importantes desdobramentos destas leituras em relação ao modo de se entender a metodologia da crítica da economia política e à análise da anatomia da sociedade na obra de Marx, se seguimos estes seus intérpretes. O desenvolvimento que segue, é necessário ressaltar, elenca algumas extrapolações possíveis a partir das interpretações destes comentadores da obra de Marx. Extrapolações estas que devem ser examinadas junto de seu texto para a consecução de um argumento mais refinado. Seguem, todavia, algumas impressões deste debate que podem consolidar-se como hipóteses sobre o método da crítica da economia política a serem verificadas posteriormente. Primeiramente, a inexistência de corte ontológico entre natureza e espírito na obra de Marx, e a idéia de salto e complexificação de Lukács, as ideias de metabolismo e industriosidade de Alfred Schmidt, e, por fim, o argumento de Althusser sobre a ciência como transformação, nos permitem pensar numa não-distinção entre as ciências da natureza e as ciências do espírito no tocante à forma de apreensão e investigação, na obra de Marx. Ademais, permite reformular os termos do “problema do conhecimento” a partir de um realismo epistemológico que consegue responder às questões do criticismo[5], em vez de rejeitá-las.

Toda apreensão do mundo e todo o conhecimento, como aponta Schmidt, é práxis. Poderíamos, a partir disso, falar do conceitocomo forma de trabalho ou de industriosidade. O trabalho, forma do metabolismo homem-natureza, parece ser tanto modelar na gênese, quanto basilar para expansão das ciências, sendo ainda hoje central para o trabalho científico. Não que o trabalho em ciência seja contaminado aqui de um empirismo ingênuo, verificacionista, de confirmação de hipóteses; como tentamos desenvolver, é a orientação a fins, a partir do confronto com o objeto, que nos dá o que é necessário e adequado em termos de conhecimento, com risco de erro e possibilidade de correção. Temos, nesta teoria do conhecimento marxista, um espelhamento ou apropriação do mundo em caráter permanentemente provisório e passível de aperfeiçoamento constante. Assim, poderíamos dizer que estas interpretações marxistas consideram o conceito em teoria como produto de industriosidade, seja a sedimentação analisada por Schmidt e Lukács, seja a transformação da ideologia no caso de Althusser.

Ainda seguindo estas interpretações, a tomada de posição de Marx em relação à apreensão do objeto da investigação científica, dado o importante papel desempenhado pelo confronto com o real, com o objeto resistente na pesquisa, não faz da filosofia marxista uma corrente entre tantas outras sensualistas. Seguindo os três intérpretes, parece haver uma diferença clara entre o concreto-de-pensamento e o objeto real, refletindo sobre o modo com que os seres humanos se confrontam com o mundo, evitando a abordagem especulativa e contemplativa, paradigmática para o idealismo. O confronto com o real se daria então por meio do trabalho - de produção de objetos ou, como dissemos a propósito da teoria do conhecimento, do conceito -, sem divisões de método entre o conhecimento da natureza e da sociedade - ainda que os instrumentos sejam diferentes - pelo fato de que não há razão cindida entre prática e pura, ontologia dividida entre o humano e o natural. Existem diferenças sensíveis entre os objetos, mas não há separação e sim complexificação.

Estas reflexões poderiam ser mais bem desenvolvidas no estudo do realismo crítico do materialismo de Marx, que parece distinguir-se das visões concorrentes de sua época pelo peso conferido ao objeto, considerado independente do sujeito, essencial em razão de seu papel de negar a construção subjetiva, instaurando assim uma tensão no processo do conhecimento, em vez da parcialidade e auto-referência do pensamento que “cria” o objeto real. A interpretação dos três autores parece fazer compreender que Marx teria representado uma mudança de termos no problema do conhecimento. A centralidade do trabalho, da práxis, nos escritos de Karl Marx - ou poderíamos dizer, a descoberta da economia política - teria operado uma mudança radical em sua forma de lidar com o conhecimento e a ontologia, estruturando sua crítica da economia política e da filosofia de sua época. Assim, a descoberta de Marx do trabalho, das relações de produção e do modo de produção seriam momentos essenciais de sua assim chamada “anti-filosofia”, que poderíamos então considerar como uma “filosofia da práxis”.

Retomando a comparação entre os três autores, deve-se ponderar que a posição de Althusser, com sua ideia do objeto “sempre já-dado”, representa menos uma posição assentada no realismo epistemológico marxista como a que apresentamos há pouco, mais próximo do neokantismo próprio do estruturalismo (JAMESON, 1974). Ainda assim, sua crítica do método genético da teoria do conhecimento e da visão do objeto como fruto da intuição sensível é algo que deve ser levado a sério dentro desta filosofia da práxis marxista. Althusser oferece, assim, um bom contraponto às teorias de Alfred Schmidt e Lukács, que pode ser muito frutífero para a discussão da obra de Marx.

Juntos, os três autores nos mostram diferentes pontos focais que podem auxiliar na discussão do problema da filosofia da práxis e do método marxiano. Muito pode ser dito ainda sobre o método de apreensão, sobre a forma de investigação e o funcionamento do mecanismo de apreensão do real na obra de maturidade de Marx - ainda que não seja necessário pensá-lo como efeito do discurso sistematizado, como faz Althusser. Neste sentido, um ponto importante de investigação é a noção da negatividade crítica, que merece uma atenção redobrada para pensar a dialética da correção a partir do contato com o objeto à qual se referem Lukács e Schmidt.

Desvendar este método que, como os três teóricos apontam, está apenas em estado prático em Marx, é de suma importância, principalmente se consideramos o marxismo como campo ainda aberto de pesquisa, como tradição que ainda põe problemas e lida com objetos novos. Uma investigação que se mostra fundamental para entender o sentido próprio da crítica da economia política de Marx, para além dos seus desdobramentos em relação à epistemologia e ao método das ciências em geral (DUAYER, 2015). Um aprofundamento no tema permitiria pensar a forma específica com a qual Marx contrapõe-se ao discurso da economia política de sua época, com base em suas considerações ontológicas, que conformam sua visão do processo social. Os três autores parecem defender que foi necessário a Marx negar os sentidos da filosofia moderna para apresentar algo novo, transformando os termos do debate. Um passo interessante para investigações futuras é avaliar quanto a descoberta da economia política, do trabalho e do metabolismo como categorias centrais, no estudo da economia política clássica, desdobra-se numa filosofia inteiramente nova pelas mãos de Marx. Por hora, podemos dizer que, no caso do problema do conhecimento, esta mudança de termos do problema permite avançar a ideia da formulação do conceito como industriosidade, e o conhecimento como produto da práxis.

Referências bibliográficas

ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Campinas: Editora da Unicamp, 2015.

ALTHUSSER, Louis. De O Capital à filosofia de Marx. In: ALTHUSSER, Louis. Ler o Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

ANDERSON, Perry. A crise da crise do marxismo. São Paulo: Brasiliense, 1984.

DUAYER, Mário. Antirrealismo e absolutas crenças relativas. In: MIRANDA, Flavio Ferreira (Org.) Ontologia e estética. Rio de Janeiro: Consequência, 2015.

HARTMANN, Nicolai. A Filosofia do Idealismo Alemão. 2 volumes. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

JAMESON, Fredric. The prison-house of language: a critical account of structuralism and russian formalism. Princeton: Princeton University Press, 1974.

KESSELRING, Thomas. O conceito de natureza na história do pensamento ocidental. Episteme. Porto Alegre, n. 11, p. 153-172, jul/dez, 2000.

LEFEBVRE, Henri. Lógica formal/Lógica Dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

LOUX, M.J. Metaphysics: a contemporary introduction. Londres: Routledge, 2011.

LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo : Boitempo, 2012.

LUKÁCS, György. O trabalho. In: Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.

LUKÁCS, György. História e consciência de classe. Porto: Escorpião, 1974.

PAULA, J. A de. A “introdução” dos Grundrisse. In: PAULA, J. A. (Org). O Ensaio Geral: Marx e a Crítica da Economia Política (1857-1858). Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

PRADO Jr., Caio. Teoria marxista do conhecimento e método dialético materialista. Discurso, v. 4, n. 4, p. 41-78, 1973.

RANIERI, Jesus. Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir. São Paulo: Boitempo, 2011.

SCHMIDT, Alfred. The concept of nature in Marx. Londres: NLB, 1971.

SILVA, Márcia Zebina Araújo. Teleologia circular: a centralidade da vida em Hegel. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos, n. 12, p. 76-90, 2010.

Notas

[1] Para a compreensão sucinta dos problemas ontológicos da chamada metafísica especial, ver Loux (2001). Para um panorama sobre as questões epistemológicas clássicas, veja Hessen (1999). Sobre a discussão dessas questões no idealismo alemão ver Hartmann (1983). Ainda sobre a relação entre ontologia e epistemologia no marxismo, ver Lefebvre (1975).
[2] A noção de uma filosofia da práxis foi desenvolvida por outros importantes intérpretes da obra de Marx, como Gramsci e Sánchez Vázquez. Também o termo práxis comporta diversos significados, seja como atividade prático-sensível, seja ainda enquanto atividade revolucionária transformadora. O termo pode indicar ainda uma prática em íntimo contato com a teoria, o que dá sustentação à pretensão de validade das asserções que se apresentam como conhecimento do mundo. Neste texto, pensamos a filosofia da práxis como resposta aos problemas ontológicos e epistemológicos da antinomia entre liberdade e necessidade, sem nos deter em nenhum destes sentidos exclusivamente.
[3] Althusser evita o termo práxis, marcando a diferença da sua interpretação em relação à ideia de filosofia da práxis de parte do marxismo ocidental.
[4] O conceito de ideologia de Althusser se afasta da ideia de “falsa consciência”. Uma vez que escapa aos limites do trabalho a discussão aprofundada do seu conceito de ideologia, para o desenvolvimento do argumento, basta a consideração de que a ideologia é a pré-história de uma ciência, um tipo de construção não-científica, sem um método estabelecido e sem a forma estruturada e hierarquizadas de conceitos, isto é, sem uma forma de exposição que possa conferir o efeito de conhecimento.
[5] Chamamos de criticismo um movimento transversal na epistemologia pós-Kant aglutinada pela ideia de coisa-em-si não apreensível. Ver Hessen (1999).

Autor notes

i Graduado em Ciências Econômicas pela UFMG, mestre em Filosofia pela UFOP (CAPES/DS), doutorando em Economia pelo Cedeplar/UFMG (CNPq). Endereço eletrônico para contato: viana.henriquec@gmail.com. Orcid id: 0000-0002-4897-8230.

Ligação alternative

Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
HMTL gerado a partir de XML JATS4R