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Estourou a Reforma Agrária”: o movimento reivindicatório de Camaquã
Estourou a Reforma Agrária”: El movimiento de reclamo de Camaquã
Agrarian Reform Bursts”: the Camaquã claim movement
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol. 19, núm. 1, pp. 56-75, 2022
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 19, núm. 1, 2022

Recepção: 11 Dezembro 2021

Aprovação: 20 Abril 2022

Resumo: O texto explora os elementos que compuseram a organização do movimento responsável pela ocupação de terra ocorrida no município de Camaquã, no Rio Grande do Sul, no início da década de 1960, numa área conhecida como Banhado do Colégio. O evento é relevante pois permite um aprofundamento, tanto na forma pela qual a luta por terra se desenhava naquele período, quanto por revisitar os instrumentos mobilizados pelo poder público para, não somente atender às demandas dos sem terra, mas também tornar público um posicionamento favorável a projetos de assentamento e reforma agrária durante o governo de Leonel Brizola (1959-1963). O texto se propõe a realizar uma análise qualitativa, a partir de entrevistas, documentos e jornais da época. Dessa forma, está dividido em três partes. A primeira busca refazer, por meio das memórias daqueles que participaram o evento, como se desenrolou a organização do movimento. A segunda se concentra em explorar a liderança responsável pela articulação local e suas conexões com representantes do poder público municipal e estadual. Na terceira são apontados os recursos mobilizados pelo governo do estado do Rio Grande do Sul para atender a demanda, entre outras ações de apoio à reorganização da estrutura fundiária estadual.

Palavras-chave: Ocupação de terra, Reforma agrária, Governo Leonel Brizola, Rio Grande do Sul, Banhado do Colégio.

Resumen: El texto explora la organización del movimiento responsable de la ocupación de tierras que tuvo lugar en el municipio de Camaquã, en Rio Grande do Sul, en la década de 1960, en una zona conocida como Banhado do Colégio. El hecho es relevante tanto en la forma en que se diseñó la lucha por la tierra en ese período, como en la revisión de los instrumentos utilizados por el gobierno para no solo servir a los sin tierra, sino también adoptar una postura favorable a los proyectos de asentamiento y reforma agraria durante el gobierno de Leonel Brizola (1959-1963). El texto propone realizar un análisis cualitativo, basado en entrevistas, documentos y periódicos de la época. Como tal, se divide en tres partes. El primero busca rehacer, a través de la memoria de quienes participaron en el evento, cómo se organizó el movimiento. El segundo se centra en explorar el liderazgo responsable de la articulación local y sus conexiones con representantes de las autoridades públicas municipales y estatales. El tercero indica los recursos movilizados por el gobierno del estado de Rio Grande do Sul para atender la demanda, entre otras acciones para apoyar la reorganización de la estructura de tenencia de la tierra del estado.

Palabras clave: Ocupación de tierras, Reforma agraria, Gobierno de Leonel Brizola, Rio Grande do Sul, Banhado do Colégio.

Abstract: The text explores the elements that composed the organization of the movement responsible for the land occupation that took place in the municipality of Camaquã, in Rio Grande do Sul, in the early 1960s, in an area known as Banhado do Colégio. ​​The event is relevant because it allows a deepening, both in the way in which the struggle for land was defined in that period, as in revisiting the instruments mobilized by the public power to not only meet the demands of the landless, but also publicize a favorable position to settlement and agrarian reform projects during the Leonel Brizola government (1959-1963). The text proposes to carry out a qualitative analysis, based on interviews, documents, and newspapers of the period. As such, it is divided into three parts. The first seeks to retrace, through the memories of those who participated in the event, how the organization of the movement unfolded. The second focuses on exploring the leadership responsible for the local articulation and its connections with representatives of the municipal and state public authorities. The third shows the resources mobilized by the government of the state of Rio Grande do Sul to meet the demand, among other actions to support the reorganization of the state's land structure.

Keywords: Land occupation, Agrarian reform, Leonel Brizola Government, Rio Grande do Sul, Banhado do Colégio.

Introdução

O ano de 1962 se iniciou apresentando uma nova face dos movimentos de reivindicação de terra no Rio Grande do Sul, que de alguma forma também ecoavam demandas postas em destaque em outras áreas do país. Autores como Martins (1986) e Medeiros (1989) destacam o surgimento de movimentos camponeses e o acirramento da luta no campo no Brasil, especialmente a partir da década de 1950. O elemento que faz do caso do Rio Grande do Sul peculiar é a mobilização de um novo repertório de ação não somente por parte dos demandantes, mas também pelos demandados. A realização de ocupações de terra em dois municípios do estado – Sarandi e Camaquã – reverberou nas decisões do governo quando este último implementou projetos de assentamento e reforma agrária nas áreas ocupadas. Proponho neste artigo uma análise centrada no segundo movimento reivindicatório, aquele ocorrido na cidade de Camaquã. A área demandada era superior a 20 mil hectares, que acabara de se tornar explorável em função de uma obra de drenagem realizada na região. A canalização do Arroio Duro fez emergir terras férteis que eram cercadas por grandes propriedades. Com o recuo das águas, os fazendeiros passaram a avançar suas cercas sobre áreas antes alagadas. Neste sentido, Epaminondas Silveira, um arrendatário da região, deflagrou o movimento de reivindicação da área – conhecida como Banhado do Colégio – em favor dos sem terra. Assim, por meio de documentos, periódicos da época e entrevistas realizadas com envolvidos no movimento reivindicatório, procura-se não somente revisitar o próprio evento, mas também evidenciar elementos que aproximam sua organização a representantes de destaque do poder público estadual.

A abordagem apresentada neste artigo é inspirada nas propostas de Sigaud (2000) e Rosa (2004). No que tange à primeira, a autora desenvolve a noção de “forma acampamento” a partir de seu longo investimento de pesquisa na zona da mata pernambucana. Aponta que os acampamentos presentes naquela região eram muito mais do que uma simples reunião de pessoas. Com o passar do tempo, houve um processo de consolidação de um modelo que trazia à tona signos característicos de um determinado tipo de demanda; naqueles casos, por reforma agrária: barracas de lona preta, uma bandeira hasteada, maneiras específicas de realizar as ocupações, bem como uma linguagem própria ao acampamento. Todos esses elementos consolidavam uma forma de tornar legítima aquela demanda.

Partindo dessa proposta, Rosa (2004) desenvolveu o que chama “forma movimento”, diretamente ligado às implicações da “forma acampamento”. Para o autor, seu constructo é produto da consolidação da ação coletiva verificada também em Pernambuco. Destarte, indica que a experiência bem sucedida do MST na região acabou por construir uma linguagem de ação que os demais movimentos passaram a reproduzir para que tivessem suas demandas consideradas legítimas pelo Estado. Assim, estes autores destacam um processo de conformação de “formas” que estabelecem canais de comunicação entre movimentos de demanda por terra e o poder público. É neste sentido que concentrarei, neste artigo, a análise do caso do Banhado do Colégio. Busco localizar outra linguagem estabelecida entre movimentos de demanda por terra e o Estado, em uma temporalidade anterior aos trabalhos supracitados, na direção da sociogênese (ELIAS, 1989) destes mesmos canais. O que pretendo evidenciar aqui é que o caminho trilhado para o estabelecimento dessa linguagem entendida por movimentos sociais e Estado, no Brasil, especialmente a partir do final da ditadura militar (década de 1980), deve ser percebido como resultante de processos de luta, repertórios de ação, interlocução e regramentos que começaram a ser estabelecidos a partir do final da década de 1950, quando o debate sobre a luta por terra e reforma agrária passa a ganhar evidência nacionalmente.

Assim, o que será apresentado nas seções subsequentes é a forma encontrada para o enfrentamento das questões que envolviam a luta por terra no Rio Grande do Sul, no início da década de 1960. O que ocorreu em solo gaúcho somente se tornou possível pela coexistência, tanto de uma demanda por terra por parte das populações rurais, quanto de pessoas que ocupavam lugares dentro do aparelho burocrático estatal, interessadas em envolver-se com a questão da estrutura fundiária local, mobilizando um aparato legal existente.

A organização e o acampamento

O objetivo dessa seção é reconstruir, segundo relatos de alguns participantes, como aconteceu a organização do movimento[1] que culminou no acampamento na área do Banhado do Colégio, no dia 22 de janeiro de 1962. O foco será verificar como foi conduzida a organização do movimento e como se desenvolveu a dinâmica dentro do próprio acampamento, por meio do relato de famílias que participaram do evento[2].

Seu Luís e Dona Elma, mesmo depois de mais de 50 anos, ainda moravam no Banhado do Colégio e mantinham o lote original recebido pelo pai de seu Luís, como resultado da participação no movimento. Ele contou que na época do acampamento tinha por volta de doze anos. Segundo ele, a área do Banhado atraíra muita atenção de quem trabalhava em seus arredores, mesmo antes da ocupação. Desde quando as terras começaram a secar, em razão de uma obra de drenagem realizada na região, os fazendeiros que tinham propriedades limítrofes ao terreno, antes alagadiço, passaram a realizar queimadas para se livrar da vegetação e avançar sobre a área livre. Ele dizia guardar na memória desde a infância a " imagem do Banhado queimando dia e noite". Seu Luís pôde acompanhar de perto esse processo, pois já trabalhava, junto de seu pai, numa granja bem próxima a área antes alagada. Ele contou que mesmo antes do movimento ocorrer, já se falava em Camaquã que aquela terra seria "desapropriada[3]".

A participação do Senhor Agripino Farias, pai de seu Luís, no acampamento ocorreu a partir de um aviso de um político da época. Um vereador local, chamado Tasso Peres, chamou o Sr. Agripino e outro amigo dele e disse: "Vamos ao Banhado do Colégio, vai ser desapropriado o Banhado do Colégio. [Vai] Tu e o Francisco é que tem maior número de filhos". Assim, diante do convite, ele e o amigo foram se juntar ao grupo que começava a estabelecer o acampamento. Segundo contou o Seu Luís: "vieram nossos velhos se acampar na beirada da estrada, era assim quer era para ser feito; e foi feito". Seu pai, assim como os demais acampados, construiu uma pequena cabana utilizando como forro o próprio capim da região. Assim que a sua família se estabeleceu no acampamento, o número de pessoas que passou a integrar o grupo foi aumentando a cada dia. Uma memória recorrente era a proteção policial, que passou a acompanhar o grupo já no dia seguinte àquele de chegada à área, além dos "panelões fervendo dia e noite" num galpão improvisado de refeitório. Senhor Luís teve dificuldade de precisar qual foi a duração do acampamento, mas ainda assim sugeria algo em torno de 30 dias. Ele ficou pouco tempo no local, assim como outras crianças, que se deslocavam para visitar os pais. Mesmo assim, ainda guardava na lembrança que ajudou a carregar os tijolos que serviram para a construção do primeiro poço, para coleta de água.

A esposa de Seu Luís, dona Elma, tem uma história bastante parecida com a da família de seu marido. Ela, seus irmãos e os pais trabalhavam próximo de onde ocorreu o acampamento, arrendando uma área dentro do Banhado do Colégio. Isto é, em suas palavras, moravam perto de onde "estourou a reforma agrária". Ainda assim, o pai de dona Elma não estava seguro de que a iniciativa seria eficiente. Ele somente decidiu participar do acampamento quando outro vereador, chamado Lauro Azambuja, que pertencia a um grupo opositor ao de Tasso Peres, procurou-o dizendo que fosse para o acampamento "porque aquilo era sério e ia sair a terra". Ainda assim, o pai de dona Elma não levou a família, ele se dividia entre o trabalho e a visita diária ao acampamento. O lote recebido pelo pai de Dona Elma permaneceu com a família, mas encontrava-se sob a responsabilidade de um de seus irmãos.

Outra figura que acompanhou o “movimento” foi Seu João Faustino, sua história releva pontos que convergem com a anterior, com a diferença de que ele participou mais ativamente do cotidiano do acampamento. Tinha oitenta e dois anos quando narrou os eventos e, por volta de vinte, quando ocorreu o movimento. Assim como nas narrativas trazidas acima, ele também já trabalhava na área do Banhado desde 1958, quando estava em processo a obra de canalização da região. Ele e o pai moravam próximo à área do Banhado e, assim como afirmou anteriormente Seu Luís, Seu Faustino dizia que já se falava em dividir as terras no Banhado mesmo antes do movimento que emergiu em 1962. Ele disse que quando ficou sabendo que "ia sair o movimento", "pegou a carroça e foi em direção à Camaquã, onde as pessoas se reuniram". Assim como nos outros casos descritos, Seu Faustino também trabalhava durante o dia e voltava diariamente até o acampamento para referendar sua presença. Ele também se recordava da presença policial quase que imediata ao início do acampamento e garante que, assim como a polícia, o próprio governador visitou o acampamento nos primeiros dias após sua criação. Sobre a duração do acampamento, sua posição é diferente da relatada por Seu Luís, quando garantia que o mesmo havia durado quase seis meses. Seu Faustino ainda morava no Banhado do Colégio, junto de sua esposa Noelci e o filho mais velho, que era o responsável pelo lote que receberam na década de 1960.

Dona Zeli Kriger relatou uma história semelhante às anteriores, ela e sua família também arrendavam terras no Banhado e moravam numa pequena casinha de madeira à beira da estrada, num local muito próximo de onde ocorreu o acampamento. Começaram o arrendamento na área dois anos antes do movimento. Dona Zeli conta que ficaram sabendo do ocorrido por acaso. Seu marido, Etevim Kriger, tinha ido buscar uma carroça de lenha e, na volta, encontrou com o grupo que vinha de Camaquã em direção ao Banhado para fazer a ocupação. Acabou se integrando ao grupo e, assim como nos casos anteriores, também conseguiu o lote. Ela não chegou a visitar o acampamento, disse que tinha medo e o marido também achava perigoso[4]. A família deles também era numerosa, seguiam morando no Banhado em 2013, mas o único lote próprio, aquele recebido na década de 1960, não era mais o bastante para o uso produtivo de toda a família, o que obrigava os filhos a buscarem alternativas, como arrendamentos de outras áreas na mesma região.

As narrativas apresentadas por quem conseguiu garantir um lote no Banhado apresentam pontos de convergência. Seu Luís e Dona Elma, ainda que tenham recordações limitadas por serem crianças na época do acampamento, destacam o componente político que marca o convite para a participação de suas duas famílias. Foi por intermédio da indicação de vereadores de correntes políticas opostas que as famílias resolveram fazer parte da iniciativa. Outro elemento que deve ser registrado é o componente que justifica o convite feito ao pai de Seu Luís - o número de filhos. Este não aparece no relato de dona Elma, mas também diz respeito a ela, já que vem de uma família com muitos irmãos. Traço que se repete nos casos das famílias de Seu Faustino e Dona Zeli. Isto é, há indicativos que sugerem uma preferência por famílias numerosas para fazer parte do grupo acampado. Além disso, há de ser registrado que todas as famílias já trabalhavam na área do Banhado, elemento que também parece ter tido relevância ao definir os primeiros assentados, como ficará mais evidente adiante. No que tange às memórias do seu Luís, outro achado importante é que o acampamento tinha que ser feito à beira da estrada. Ao ser indagado, ele não soube definir de quem veio a ordem, mas garante que esta foi cumprida, com os abrigos sendo construídos às margens da via. Por fim, a presença da brigada militar e de representantes do governo do estado, quase que imediatamente após a criação do acampamento, também é recorrente, garantindo segurança, alimentação e legitimidade à iniciativa dos acampados.

Entretanto, a preferência por famílias numerosas para compor o movimento necessita ser analisada de forma cautelosa. Essa condição até poderia ser considerada caso fosse tomada ao final do processo. Isto é, se considerarmos que o governo do estado, depois de constatar a realização de um movimento de demanda numa área e decidir por dividi-la, tivesse preferência a grupos de famílias mais numerosas. A questão a ser explicada é o porquê, mesmo antes de qualquer manifestação formal do governo do estado, famílias como a do Seu Luís e Dona Elma, a primeira narrada nesta seção, já eram avisadas por políticos locais para participarem do acampamento porque "tinham muitos filhos" . "aquilo era sério e ia sair terra". Essas informações sugerem que o movimento que culminou no acampamento do Banhado do Colégio tinha, ao menos, alguma salvaguarda de que seria apoiado pelo governo do estado, uma vez que já operava, desde sua organização, segundo critérios que seriam utilizados para a divisão da terra. Esta relação entre governo e movimento será mais bem explorada na seção seguinte, mas por ora é importante destacar que, ainda que não seja explícita, a própria narrativa daqueles que pertenceram ao movimento de ocupação já apresentava alguns indícios da relação entre governo e movimento.

Os traços em comum apontados acima parecem ter sido determinantes para que a história do Seu Caetano Piotrowicz não tenha tido o mesmo sucesso, uma vez que ele participou do acampamento, mas não conseguiu receber um lote. Ele tinha pouco mais de dezenove anos na época. Contou que ficou sabendo do movimento por meio de um amigo. Logo, chamou um irmão e passaram a frequentar o acampamento depois que este já tinha sido criado. Disse ter ficado durante uns trinta dias indo e voltando diariamente em um caminhão que saía de Camaquã em direção ao acampamento. Contou que chegou a preencher um cadastro, assim como todos aqueles que estavam acampados, mas nunca foi chamado para ocupar o lote. Recordava-se de ter ajudado a descarregar os tijolos usados para fazer o poço, da realização de missas, além da cozinha comunitária que era mantida dia e noite no acampamento. O destino de Seu Caetano parece ter sido definido por elementos que foram apresentados acima, era solteiro à época, além de não trabalhar na região, elementos que parecem ter impedido que ele fosse contemplado na distribuição de lotes.

A última história a ser apresentada nessa seção é de outro homem que também não conseguiu um lote no Banhado. Seu Servino e seus cinco irmãos possuíam 80 hectares de terra próximos ao Banhado do Colégio, no entanto, sua propriedade foi desapropriada pelo DNOS[5] (órgão federal responsável pela obra de drenagem/canalização), ainda na década de 1950, para a construção da barragem que permitiu o escoamento das águas que alagavam a região. Ele contava que desde que começaram as obras, passou a indagar aos responsáveis acerca do que aconteceria com sua terra e de seus irmãos. A resposta que recebeu foi a de que "o governo não troca terras, só compra e vende", isto é, ele seria desapropriado e indenizado, mas não poderia receber outra terra em troca daquela que seria inundada pela barragem. O processo de desapropriação avançou, mas a indenização recebida não foi suficiente para que ele comprasse outra área para ele e os irmãos. Tempos depois, Seu Servino encontrou em Camaquã um homem chamado Epaminondas Silveira, que viria a ser o líder no movimento, acompanhado de Tasso Perez (o mesmo vereador que havia avisado a família de Seu Luís para ir ao acampamento), sendo que o primeiro lhe disse: "Tu junta mais gente que amanhã nóis vai marcar uma data e fazer uma caminhada até o Banhado do Colégio. E aí vamos avisar o Brizola e o Brizola vai vir para dar o direito da desapropriação". Seu Servino conta que depois desse encontro "nem voltou mais para casa, ficou pela cidade mesmo, esperando a organização do movimento". Nesse ínterim, ainda ajudou um marceneiro da cidade a construir uma cruz de madeira, que foi levada até o acampamento e utilizada para a realização de missas. Seu Servino conta que quando o grupo de pessoas passou a caminhar em direção ao local onde seria realizado o acampamento, colocaram o padre na frente, puxando a marcha, porque segundo ele, "ninguém atira em padre". Ainda que anedótica, a história do padre remete à insegurança que representava ocupar uma área cercada de grandes fazendas e que vinha sendo incorporada a estas últimas de maneira irregular. Além disso, a realização de missas, o cuidado em construir e transportar a cruz, também remete a um movimento que buscava ser reconhecido como cristão, construindo um afastamento de qualquer correlação a uma iniciativa de cunho comunista.

Seu Servino contava que conseguiu falar pessoalmente com o governador Leonel Brizola quando ele foi visitar o acampamento, e que o último teria redigido um documento atestando seu direito a um lote no Banhado. Entretanto, Seu Servino não teve seu "direito" atendido, porque, segundo ele, muitos daqueles que haviam sido desapropriados para a construção da barragem eram contrários ao governador e, por isso, acabou sendo preterido no momento da distribuição dos lotes. Ainda assim, é importante destacar que, à época, Seu Servino não tinha filhos e também não trabalhava na região do Banhado, elementos que, como vimos anteriormente, o diferenciava daqueles que ganharam um lote.

Em que pese as limitações a respeito das informações sobre um evento que havia ocorrido há mais de 50 anos, pode-se verificar que não eram somente os fazendeiros que estavam voltados para a área do Banhado. Como foi possível revisitar por meio dos relatos, os trabalhadores rurais da região, famílias inteiras envolvidas no trabalho da terra acompanharam, ainda que respeitando alguma distância, o emergir das terras férteis. Ainda assim, outra questão que se coloca é o porquê, sem apresentar nenhuma referência anterior a esta forma de mobilização, um homem chamado Epaminondas Silveira, resolve reunir um grupo de colonos sem terra[6] para realizar um acampamento demandando aquela área. Soma-se a isso sua convicção, expressa na fala ao Seu Servino, de que o então governador Brizola iria apoiar a iniciativa e atender aos acampados.

Liderança e autonomia do movimento

Poucos dias antes do movimento que eclodiu em Camaquã, algo muito similar ocorreu em Sarandi, cidade localizada a quase 500 km da primeira[7]. Um prefeito resolveu organizar um grupo de camponeses sem terra e ocupar uma fazenda sem atividade produtiva. A resposta do governo do estado foi imediata, com o envio da brigada militar para a proteção do acampamento, bem como víveres para os acampados, além da desapropriação da área para fins de reforma agrária poucos dias depois do ocorrido.

Assim, caso tomemos de forma superficial o caso ocorrido em Sarandi, a primeira conclusão óbvia é de que o movimento que se inicia poucos dias depois em Camaquã nada mais é do que um resultado direto do sucesso da iniciativa anterior, isto é, o movimento de Camaquã buscaria somente reproduzir uma ação que se mostrou extremamente eficaz poucos dias antes. Parte das informações apresentadas aqui reforça essa interpretação, afinal, o acampamento do Banhado teve igualmente apoio da brigada militar, realizando a segurança, o envio de gêneros alimentícios para os acampados e um rápido processo de declaração da área como disponível para imissão de posses, contando, inclusive, com uma visita do próprio governador. Essa interpretação poderia ser reforçada caso tomemos o pronunciamento do então Secretário de Agricultura do Estado, João Caruso, sobre o caso de Sarandi, apenas dois dias antes do início do movimento em Camaquã:

Sarandi será repetido sempre que necessário. [...]Desejo renovar aqui a afirmação que nada faremos que não respeite exatamente as leis vigentes. Mas da mesma forma acentuamos que, sempre que houver o problema social como ocorreu em Sarandi, tudo envidaremos para não deixar nossos conterrâneos mais humildes ao desamparo. Não temos terras públicas disponíveis como se pretende (Diário de notícias de 19/01/1962).

Desta feita, os dois casos parecem sugerir o estabelecimento de uma forma autônoma de organização popular que, por meio da realização de acampamentos, encontrou, no governo do estado, um espaço para o atendimento de suas justificadas demandas por terra. Tomados assim, o que teria se estabelecido no Rio Grande do Sul era uma forma de articulação autônoma que passava, por um lado, pela organização de camponeses sem terra, com o estabelecimento de acampamento em áreas que demandavam e, por outro, de representantes do governo do estado que, exclusivamente, julgavam a procedência da demanda.

Entretanto, essa interpretação passa a enfrentar problemas quando se faz uma análise mais refinada dessas ocupações. A começar pelo caso da ocupação da Fazenda Sarandi, conforme expresso acima, que foi realizada poucos dias antes do movimento do Banhado do Colégio. O líder dessa primeira ocupação era prefeito da cidade de Ronda Alta, vizinha de Sarandi. As intrincadas relações entre este movimento e o próprio governo do estado começam a aparecer quando se considera a filiação do então prefeito ao PTB, mesmo partido do governador. E não somente isso, Jair de Moura Calixto, o prefeito de Ronda Alta e Leonel de Moura Brizola, o governador do Rio Grande do Sul, eram primos. Esse fato, por si só, não garante necessariamente que as ações do prefeito se alinhavam ao interesse do governador, mas ao menos ajuda a compreender a rápida comunicação e pronta resposta do governo à iniciativa de ocupar a Fazenda Sarandi[8]. Assim, há elementos relevantes para afirmar que o primeiro movimento de reivindicação por terra e reforma agrária no Rio Grande do Sul foi produto de uma interação da necessidade de terra por parte de trabalhadores rurais, da iniciativa de um prefeito local e da vontade do governo do estado de produzir resultados práticos num momento onde os debates sobre a reforma agrária se acirravam no país.

Entretanto, o fato da primeira ocupação contar com uma estreita ligação entre sua principal liderança e o próprio governador não garantiria que o movimento seguinte, ocorrido em Camaquã, tivesse obrigatoriamente as mesmas características. Ainda assim, muitas destas condições compõem de maneira bastante similar os caminhos do acampamento no Banhado. Para começar a apresentar essas semelhanças é necessário recuperar parte da história do líder do movimento do Banhado do Colégio, Epaminondas Silveira. Segundo Harres (2002), Epaminondas era um comerciante de produtos agrícolas que posteriormente passou a arrendar terras na região. Estas últimas que, por muitas vezes, eram novamente arrendadas a terceiros, como narrado no início da seção anterior, quando foi apresentado o caso da família da Dona Elma, que trabalhava em regime de parceria numa área arrendada originalmente por Epaminondas. Tanto que ela corrobora a versão apresentada por Epaminondas[9] de que depois de ter limpado e realizado o primeiro plantio na área arrendada, um grande fazendeiro da região, que se dizia dono da terra, procurou-o mandando reiniciar o processo, em outra quadra[10]. Essa quebra de contrato seria o estopim que teria motivado Epaminondas a tomar a decisão de mobilizar o povo:

Parece que foi ontem, era sexta feira. Fui para a cidade pensando e no sábado botei um aviso na rádio para ler a cada quinze minutos, convidando os agricultores sem terra para uma reunião na minha casa. Foi aí que surgiu a associação. Como todos sabiam que os fazendeiros não tinham escritura e estavam se adonando das terras, resolvemos acampar. [...] Se depois arrumaram um jeito de legalizar, eu não sei. Mas se isso aconteceu que o governo trate de desapropriar. Tudo aqui estava embaixo d'água, o Governo drenou com o dinheiro do país. Agora acho que a reforma agrária deve continuar (O Interior 14 a 20/09/1985).

Essa passagem reforça uma interpretação de que Epaminondas teria organizado o movimento em razão do avanço dos grandes fazendeiros da região sobre as áreas do Banhado. Em outro periódico da época, Epaminondas afirma:

Nos propusemos a organizar o movimento dos agricultores sem terra em Camaquã, após ouvirmos a palestra de sexta-feira última do governador Leonel Brizola. Logo depois fizemos uma palestra pela Rádio Camaquã e aí está o movimento (Diário de Notícias de 24 de janeiro de 1962).

Brizola fazia uso recorrente do rádio para realizar pronunciamentos[11], na passagem acima Epaminondas remete a uma das falas do governador como um estímulo à iniciativa do acampamento. Ainda que não tenha sido possível localizar este pronunciamento é pouco provável que o governador não tenha realizado uma manifestação sobre o episódio ocorrido em Sarandi e as medidas de apoio que o governo havia tomado em relação àquele movimento. Ainda assim, não foi possível localizar em nenhum periódico da época qualquer manifestação de Epaminondas que sugerisse alguma determinação ou mesmo aproximação anterior entre o movimento e o governo.

Entretanto, durante o trabalho de campo, tive a oportunidade de entrevistar Ayrton Silveira, filho de Epaminondas, que ainda trabalhava no lote recebido pelo pai, já falecido. Ele relatou que tudo que sabia a respeito do movimento era o que foi contado pelo pai, pois nasceu quatro anos depois do episódio. Ele corroborava todas as informações já apresentadas até aqui sobre a organização do acampamento e até mesmo sobre as motivações que levaram o pai a se engajar na organização do movimento. A única informação não mencionada por qualquer outro entrevistado diz respeito a uma viagem que o pai teria feito entre o episódio do problema de contrato com as terras arrendadas no Banhado e o início do movimento. Segundo conta Ayrton, diante do problema que o seu pai passou a ter de enfrentar, ele teria ido até Porto Alegre para "se informar sobre a situação" do Banhado do Colégio na Secretaria de Agricultura do estado e teria saído de lá com a informação de que "era área devoluta do estado e que ele tomasse a medida que ele achasse correta pela área". Portanto, depois disso, ele teria voltado até Camaquã e colocado o anúncio na rádio da cidade para dar início à organização do acampamento.

A história narrada por Ayrton é importante porque adiciona uma nova variável ao entendimento da organização do movimento - o estabelecimento de alguma conexão entre o grupo de Camaquã e o governo do estado. As peças desse quebra-cabeças começam a se encaixar se nos atentarmos ao grupo de pessoas que estavam próximas a Epaminondas. Na primeira passagem destacada na página anterior, o líder diz que depois de colocar o anúncio na rádio ele criou uma associação. Esta era a Associação dos Agricultores Sem Terra de Camaquã, criada no momento em que foi deflagrado o movimento e que reunia os trabalhadores rurais que buscavam um lote. Mas um nome se destacava dos demais, tratava-se de Hilson Scherer Dias, figura que ocupava o cargo de presidente de honra da associação. Hilson não era agricultor, mas era um dos principais líderes do PTB de Camaquã e também chefe de gabinete de João Caruso, Secretário de Agricultura do estado e presidente do recém-criado Instituto Gaúcho de Reforma Agrária (IGRA). Isto é, Hilson trabalhava diretamente com o homem responsável por tratar de todos os assuntos ligados às recentes demandas por terra que passaram a ocorrer em solo gaúcho desde os primeiros dias do ano de 1962. É possível imaginar que essa condição pode ter aberto alguns caminhos para que Epaminondas voltasse de Porto Alegre informado sobre as ações que deveria tomar.

Mas as coincidências que ligam o movimento de reivindicação com pessoas do governo do estado não se limitam ao chefe de gabinete do secretário. Novamente, o próprio governador tinha laços com pessoas que acompanharam de perto o movimento. Brizola era amigo de infância de Tasso Soares Perez, vereador do PTB de Camaquã, que havia conhecido o jovem Leonel Brizola durante a década de 1930, quando juntos estudaram no Curso Técnico Rural, na cidade de Viamão. Tasso Perez foi o mesmo vereador que avisou a família do Seu Agripino, pai do Seu Luís, que deveria ir para o acampamento, pois tinha muitos filhos, além disso, estava junto de Epaminondas quando este último avisou Seu Servino que arrumasse mais pessoas para o movimento que seria criado poucos dias depois.

É difícil estabelecer concretamente como foram construídas todas as relações que orientaram as ações de Epaminondas na direção de organizar um acampamento, demandando a divisão da área. Entretanto, os dados apresentados são bastante reveladores de que essas relações entre pessoas que ocupavam lugares dentro do governo e fora dele foram determinantes para que a empreitada do acampamento fosse legitimada e encorajada. Desta forma, ainda que a liderança de Epaminondas não possa ser negada, permanecem questões sobre as razões pelas quais o governo do estado se interessava em apoiar iniciativas como as que ocorreram tanto em Sarandi, quanto em Camaquã, mesmo deixando bastante evidente uma preocupação de que se construísse um afastamento entre suas ações e os movimentos reivindicatórios.

A forma da lei

Para a compreensão dos contornos que foram impressos à luta por terra no Rio Grande do Sul na década de 1960 é necessário considerar, como pôde ser visto na seção anterior, a participação de pessoas que ocupavam posições no governo do estado. Ainda assim, essa interação entre Estado e movimento não acontecia de forma explícita e, especialmente, as ações deste último deveriam estar sempre apoiadas em uma base legal que era evidenciada nas manifestações públicas de figuras do governo, como pode ser visto nas palavras do próprio governador, ao se pronunciar sobre o movimento do Banhado do Colégio:

Nessa área o poder público já empregou mais de 1 bilhão de cruzeiros para recuperação, indicando todos os elementos que a gleba pertence ao próprio Poder Público, não só pelas obras realizadas, como pela inexistência de títulos de propriedade particular, muito embora proprietários lindeiros ocupem grande parte ou mesmo, arrendem - com participação nas colheitas - à agricultores sem terra. [...] Quem reivindica uma providência do govêrno são justamente êsses agricultores e o Poder Público não os deixará desamparados. [...] O estado agirá rigorosamente dentro da Lei e do espírito social e humano que a ditou (Última Hora de 25/01/1962).

Ainda sobre os movimentos ele afirma:

Alguns políticos, interessados em alarmar a opinião pública, vêm espalhando boatos e distorcendo os fatos reais sobre as ocorrências em Sarandi e Camaquã. Posso assegurar ao povo rio-grandense que há a mais perfeita ordem em todo o Estado. [...] Não houve qualquer atentado à propriedade ou ao patrimônio de quem quer que seja. [...] Certamente desejavam que eu impedisse, pela força, movimentos reivindicatórios pacíficos que não estavam afetando a ordem pública. O que precisamos fazer é enfrentar a nossa realidade economico-social, solucionando problemas e situações anti-sociais para que todos, pobres e ricos, sem distinção de côr ou de religião, possam ter uma oportunidade e alcançar um padrão de vida digno. [...] Precisamos passar das palavras para os atos concretos e superar, e vencer, o nosso próprio egoísmo. Para isto não precisamos de desordens nem de confusões, basta que nos entendamos com o desejo sincero de alcançar soluções. Nem mesmo necessitamos de soluções radicais, bastando que se possa evoluir passo a passo. O que está errado é reagir contra tôda e qualquer idéia de solução, muitas vêzes usando das palavras para nos enganar a nós mesmos e aos que necessitam de nossa ajuda. Reafirmo [a] todos os meus conterrâneos, não apenas que todo o Estado se encontra na mais perfeita ordem, como também que o govêrno pretende, e está em condições de mantê-la irrepreensivelmente (Última Hora de 26/01/1962).

As duas passagens em destaque, frutos de manifestações do governador nos jornais em dias consecutivos, são importantes porque, além de demonstrar que os movimentos eram legítimos à vista do governo, serviam para evidenciar como as críticas se intensificaram a partir do momento em que ele passou a apoiar as iniciativas ocorridas em Sarandi e Camaquã. Na primeira passagem, os argumentos usados pelo governador para reconhecer a legitimidade da iniciativa se pautam especialmente na inexistência de documentos que indicassem que a área do Banhado fosse privada, além de destacar que já havia sido realizado um grande investimento público na área (pelo DNOS – vinculado ao governo federal), o que justificaria o repasse desta aos sem terra.

A segunda passagem se concentra muito mais em reforçar que, apesar da emergência desses movimentos reivindicatórios, a "ordem" no estado estava mantida. Para isso, o governador reforça que nenhuma das ações do governo se sobrepôs ao direito de propriedade, além de reafirmar que não há a necessidade de quaisquer "desordens ou confusões". Cabe ressaltar ainda que, por diversas vezes, nos pronunciamentos do governador e de sua equipe de governo, eles se obrigavam a destacar que todas as medidas tomadas estavam respaldadas pela lei. O recurso jurídico que orientava a posição do governo eram os artigos 173 e 174[12] da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, que determinava:

Art. 173 - O Estado prestará assistência aos trabalhadores urbanos e rurais, aos pequenos agricultores e às suas organizações legais, proporcionando-lhes, entre outros benefícios, meios de produção e de trabalho, crédito fácil, saúde e bem-estar.

Art. 174 - O direito à propriedade é inerente à natureza do homem, dependendo seus limites e seu uso da conveniência social.

§ 1. ° - O Estado combaterá a propriedade improdutiva por meio de tributação especial ou mediante desapropriação.

§ 2. °- Atendendo aos interêsses sociais, o Estado poderá, mediante desapropriação, prover a justa distribuição da propriedade de maneira que o maior número possível de famílias venha a ter sua parte em terras e meios de produção.

§ 3. ° - O Estado promoverá planos especiais de colonização, visando as finalidades do parágrafo anterior, sempre que a medida fôr pleiteada por um mínimo de cem agricultores sem terras, de determinada região.

§ 4. ° - O Estado facilitará a fixação do homem à terra, estabelecendo plano de colonização ou instalação de granjas cooperativas, com o aproveitamento de terras públicas ou, mediante desapropriação, de terras particulares, de preferência as socialmente não aproveitadas.

§ 5. ° - Poderá também o Estado organizar fazendas coletivas, orientadas ou administradas pelo poder público destinadas a formação de elementos aptos às atividades agrícolas (Constituição do Rio Grande do Sul de 1947, grifos do autor).

As possibilidades colocadas pelos artigos constitucionais elencados acima foram recorrentemente manipuladas pelo governo gaúcho quando da promoção de seus projetos de assentamento e reforma agrária. Estes sempre recorriam a mesma dupla justificativa para suas iniciativas: a legal, baseada nos artigos da constituição estadual; e a moral, explorando o quadro de miséria e vulnerabilidade que movimentos de luta pela terra expunham. Esses elementos são fundamentais para que se compreendam os aspectos que aparecem dispersos nas memórias daqueles que estiveram nos acampamentos. Dentre estes, a informação recebida pelos ocupantes para que o acampamento fosse estabelecido à beira da estrada, o que conferia ao movimento a certeza de que não estaria invadindo nenhuma área privada. Além disso, o alerta que Epaminondas confere a Seu Servino para que ele conseguisse mais pessoas para integrar ao movimento provavelmente visava garantir a presença de "no mínimo cem agricultores sem terra", o que conferiria ao grupo mais uma forma de reconhecimento legal. Ademais, a realização das missas, bem como a participação do padre, também garantia ao movimento o tom pacífico e ordeiro proclamado pelos agentes públicos ao defender a legitimidade da ação.

O caso do Banhado do Colégio parece sugerir como ponto de inflexão a viagem de Epaminondas até Porto Alegre. Até aquele momento, somavam-se abusos e expulsões de posseiros da área do Banhado mas, segundo os relatos, a promessa de uma possível“desapropriação”, que nunca ocorria, parecia ser a única expectativa dos sem terra da região. O quadro se altera a partir da viagem de Epaminondas, que volta da capital trazendo consigo a definição de como agir. Se no caso da Sarandi, conforme visto acima, sugere-se numa correlação entre os interesses de Calixto e o governo estadual, em Camaquã, Epaminondas parecer agir nos limites definidos pelo próprio dispositivo legal que apoiava as ações do governo do estado[13].

Assim, as narrativas apresentadas sugerem que Epaminondas foi responsável pela organização dos sem terra que ocuparam a área demandando sua distribuição. Essa ação já representava uma ampliação no repertório para os movimentos de demanda por terra, mas o que lhes atribuiu especial destaque foi a força com que estas lutas ecoaram no aparato burocrático do governo do estado do Rio Grande do Sul que decide apoiar a iniciativa tomando como fundamento os dispositivos constitucionais disponíveis no estado.

Considerações Finais

Os elementos que compõem a luta por terra no Rio Grande do Sul no início da década de 1960 não podem ser tomados de maneira isolada aos demais acontecimentos ligados ao debate sobre reforma agrária no Brasil da época. O tema da reforma agrária estava colocado em disputa, seja nas mobilizações ou no Congresso Nacional, diferentes modelos e alternativas eram discutidos[14]. Se "na lei ou a marra[15]" eram as condições que estavam postas à época, a forma adotada no Rio Grande do Sul parece ter sido pautada na "lei", ainda que para isso tenha sido necessário o envolvimento direto de pessoas que faziam parte do próprio governo do estado.

Destarte, no que tange ao caso analisado, o acampamento realizado no Banhado do Colégio se constituiu como uma alternativa que reuniu um quadro local de carência por terra, com o interesse do próprio governo do estado em promover projetos de colonização e reforma agrária. Nesse contexto, figuras como Epaminondas, um arrendatário local, pôde mobilizar colonos sem terra e organizar um movimento que se adequava quase que perfeitamente aos dispositivos constitucionais existentes à época, facilitando a aplicação "da lei", tanto apregoada pelos representantes do Estado, o que conferia legitimidade tanto às ações do movimento quanto ao próprio governo de Brizola.

É importante destacar que na própria fala dos entrevistados era lembrado o desejo de que as terras do Banhado do Colégio fossem divididas, mesmo antes de qualquer iniciativa de acampamento ou movimento. Ainda assim, a única mudança visível, até então, era o avanço das cercas dos grandes fazendeiros da região. O elemento novo, que interrompeu o processo e parece ter fincado raízes, foi a utilização de um acampamento como instrumento de demanda que, ao ser reconhecido e legitimado, passou a representar um novo campo de possibilidades na luta pela terra.

Referências

ALVES, Bernard José Pereira. Na lei e na marra: sociogênese das formas de luta pela terra, 1950-1964. Campinas, 2015. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas.

CAMARGO, Aspásia. A Questão Agrária: Crise de Poder e Reformas de Base (1930 - 1964. In FAUSTO, Boris. (Coord.), História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Bertrand Brasil, 1981.

ELIAS, Norbert. O processo Civilizacional. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989.

HARRES, Marluza Marques. Conflito e Conciliação no processo de reforma agrária do Banhado do Colégio – Camaquã/RS. Porto Alegre, 2002. Tese - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

MARTINS, José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1986.

MEDEIROS, Leonilde Sérvolo. A História dos Movimentos Sociais no Campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989.

ROSA, Marcelo. O engenho dos movimentos: reforma agrária e significação social na zona canavieira de Pernambuco. Rio de Janeiro, 2004. Tese - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.

ROSA, Marcelo. Encruzilhadas: acampamentos e ocupações na Fazenda Sarandi, Rio Grande do Sul (1962-1980). In SIGAUD, Lygia; ERNADES, Marcelo; ROSA, Marcelo, Ocupações e Acampamentos: Sociogênese das Mobilizações por reforma agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

SIGAUD, Lygia. “A forma acampamento: Notas a partir da versão pernambucana”. Novos Estudos Cebrap, V.3, n.58, p.73-92, 2000.

Notas

[1] O termo movimento é recorrente nos relatos dos entrevistados quando falam sobre o episódio do Banhado do Colégio. Referem-se também, em menor grau, a outros termos, como acampamento, ocupação e invasão. Neste sentido, os termos serão utilizados no texto conforme empregados pelos interlocutores.
[2] Os relatos apresentados ao longo desse artigo foram coletados no ano de 2013, durante a realização do trabalho de campo que compôs a pesquisa de doutoramento do autor.
[3] Cabe destacar que é recorrente nos relatos a utilização da expressão desapropriação para designar o processo de intervenção do estado na área do Banhado do Colégio e a distribuição dos lotes ocorrida na região. Entretanto, como se tratavam de terras públicas, o recurso jurídico utilizado foi a declaração de utilidade pública para a área, posteriormente repassada para fins de imissão de posse. Neste sentido, uma das leituras possíveis dessa relação estabelecida pelos ocupantes do Banhado do Colégio entre o acesso à terra e o termo desapropriação pode estar relacionada ao episódio inaugural dos movimentos de ocupação no Rio Grande do Sul naquele período, quando um grupo de camponeses realizou um acampamento em uma propriedade privada em Sarandi, demandando-a pouco antes do evento em Camaquã. Assim, no primeiro caso, a medida legal utilizada pelo governo estadual para distribuir as terras foi, de fato, a desapropriação da área, o que pode ter influenciado a linguagem adotada na luta por terra na região a partir de então.
[4] O medo e a insegurança sobre a permanência no acampamento são relatos recorrentes. Essa é a principal justificativa para a pouca presença tanto de mulheres, quanto de crianças. O medo estava relacionado tanto a uma possível represália dos fazendeiros da região, quanto aos próprios acampados. Não são raros nos relatos a lembrança de que poucos dos acampados se conheciam anteriormente; "havia muita gente estranha", como chegou a dizer dona Elma, ao justificar porque o pai evitava que a família fosse ao acampamento.
[5] Departamento Nacional de Obras e Saneamento.
[6] Assim como o termo movimento, a expressão sem terra também é muito utilizada pelos entrevistados quando se referem ao grupo de pessoas que participou do acampamento. A diferença, no entanto, é que o termo também era utilizado nos artigos da Constituição do estado do Rio Grande do Sul para designar o grupo de pessoas aptas a realizar demandas de terras não utilizadas. Esses dispositivos constitucionais serão melhor analisados adiante.
[7] Para mais informações sobre o evento o ocorrido em Sarandi, ver Rosa (2010) e Alves (2015).
[8] Alguns elementos reforçam a complexidade do quadro descrito. Calixto, antes mesmo de se tornar prefeito, já defendia publicamente a ocupação de áreas improdutivas e a divisão das mesmas entre os interessados de nela trabalhar. Ao mesmo tempo, a situação criada pela liderança de Calixto permitiu ao governo do estado do Rio Grande do Sul se envolver em uma questão em destaque no momento do país, a reforma agrária. Ver mais em Alves (2015).
[9] Jornal O interior de 14 a 20/09/1985.
[10] Vários entrevistados relataram que parte do movimento de avanço das cercas realizado pelos grandes fazendeiros da região limítrofe às áreas do Banhado do Colégio se dava de acordo com o seguinte princípio - arrendavam as áreas contínuas às suas terras e que antes estavam alagadas para terceiros. Estes últimos, não somente pagavam o arrendamento, mas também acabavam realizando toda a limpeza nas "novas terras". Uma vez encerrado o contrato de arrendamento, a área livre e pronta para o plantio era integrada à fazenda original num processo de sucessivo acúmulo de terras. A diferença do caso específico de Epaminondas é que o fazendeiro o teria obrigado a limpar uma nova área antes mesmo do fim do contrato de arrendamento que havia sido estabelecido entre as partes.
[11] Especialmente durante o episódio que ficou conhecido como "Legalidade", Brizola fez uso recorrente de uma estação de rádio instalada nos porões do Palácio do Governo para transmitir discursos inflamados em defesa da posse do então vice-presidente João Goulart, diante da renúncia do presidente Jânio Quadros, em agosto de 1961.
[12] É importante destacar que os referidos dispositivos constitucionais foram inseridos no texto final da Constituição Gaúcha de 1947 por influência do PTB, partido de Leonel Brizola. Naquele período, Brizola debutava na carreira política como deputado estadual.
[13] Vale destacar que, entre as duas áreas, a de Camaquã se constituiu no projeto de colonização mais exitoso. Sarandi, por outro lado, continuou sendo palco de disputas pelas décadas seguintes, tendo inclusive a desapropriação realizada por Brizola sido contestada judicialmente.
[14] Sobre os debates acerca do tema da reforma agrária no Congresso Nacional, ver Camargo (1981).
[15] Posição adotada pelas Ligas Camponesas a partir do Congresso Camponês, realizado em novembro de 1961, em Belo Horizonte, onde o lema "reforma agrária na lei ou na marra" passa a ser entoado de maneira contundente no âmbito nacional.

Autor notes

i Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor efetivo do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de Roraima (IFRR) e professor permanente do Programa de Pós-graduação em Agroecologia, parceria interinstitucional entre Universidade Estadual de Roraima (UERR), Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de Roraima (IFRR) e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). E-mail: bernard.alves@ifrr.edu.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0329-5804

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