Dossiê

Brizola e as condições de vida: um ensaio sobre a luta pela emancipação do Brasil

Brizola y las condiciones de vida: un ensayo sobre la lucha por la emancipación de Brasil

Brizola and the living conditions: an essay on the struggle for the emancipation of Brazil

Moacir de Freitas Junior I
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes

Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil

ISSN: 2527-2551

ISSN-e: 1806-5627

Periodicidade: Semestral

vol. 19, núm. 1, 2022

revista.argumentos@unimontes.br

Recepção: 11 Abril 2022

Aprovação: 19 Abril 2022



DOI: https://doi.org/10.46551/issn.2527-2551v19n1p32-55

Resumo: O ensaio busca destacar a importância do tema do subdesenvolvimento como debate político nacional e como bandeira de lutas de Leonel Brizola no período de 1945-1964. Apoiando-se em discursos e conferências proferidos pelo líder trabalhista gaúcho em 1947 e 1961, portanto antes e depois dos eventos da Campanha da Legalidade, procuramos demonstrar como o tema da pobreza e das condições de vida era mobilizador do debate político nacional e mobilizado por diversos e amplos setores sociais interessados em construir um discurso que pudesse se colocar de modo hegemônico na sociedade e no Estado. Neste espectro, o PTB e Brizola nasceram politicamente tendo o combate ao subdesenvolvimento como bandeira e assim permaneceram até 1964, quando os acontecimentos políticos do período interromperam a democracia e, por consequência, o debate político acerca da carestia.

Palavras-chave: Brizola, Condições de vida, Subdesenvolvimento.

Abstract: The essay seeks to highlight the importance of the theme of underdevelopment as a national political debate and as a banner of Leonel Brizola's struggles in the period 1945-1964. Based on speeches and conferences given by the labor leader from Rio Grande do Sul in 1947 and 1961, therefore before and after the events of the Legality Campaign, we seek to demonstrate how the theme of poverty and living conditions was mobilizing the national political debate and mobilized by diverse and broad social sectors interested in building a discourse that could be placed in a hegemonic way in society and in the State. In this spectrum, the PTB and Brizola were born politically with the fight against underdevelopment as their banner and remained so until 1964, when the political events of the period interrupted democracy and, consequently, the political debate about the famine.

Keywords: Brizola, Life conditions, Underdevelopment.

Resumen: Este ensayo pretende destacar la importancia del tema del subdesarrollo como debate político nacional y como bandera de las luchas de Leonel Brizola en el período 1945-1964. A partir de los discursos y conferencias pronunciados por el líder sindical de Rio Grande do Sul en 1947 y 1961, por lo tanto antes y después de los acontecimientos de la Campaña de la Legalidad, buscamos demostrar cómo el tema de la pobreza y de las condiciones de vida movilizaba el debate político nacional y era movilizado por diversos y amplios sectores sociales interesados en construir un discurso que pudiera colocarse de manera hegemónica en la sociedad y en el Estado. En este espectro, el PTB y Brizola nacieron políticamente con la lucha contra el subdesarrollo como bandera y se mantuvieron así hasta 1964, cuando los acontecimientos políticos de la época interrumpieron la democracia y, en consecuencia, el debate político sobre la hambruna.

Palabras clave: Brizola, Condiciones de vida, Subdesarrollo.

INTRODUÇÃO

O presente ensaio busca destacar o tema do subdesenvolvimento, uma das principais bandeiras de lutas de Leonel Brizola e que, em nosso ver, também era o tema central do debate político do período entre 1930-1945, ora aparecendo sobre a forma das “condições de vida”, ora como “espoliação”, como preferia o líder trabalhista gaúcho, mas sempre norteando a atuação política de amplos setores daquele período histórico.

Os temas que envolvem a questão do subdesenvolvimento nacional e seus efeitos são temáticas frequentes em nossas pesquisas, que desde o doutorado buscam entender como determinados grupos sociais do período adotavam a temática na busca por hegemonizar tanto as posições políticas quanto as econômicas de então. Para este ensaio especificamente, a ideia que iremos mobilizar e que foi por nós defendida em trabalhos anteriores (2017 e 2019) reside na hipótese de que, no período pós-1930, as péssimas condições de vida dos trabalhadores, a pobreza, a miséria, a baixa produção nacional, enfim, o fato do Brasil não se desenvolver, as causas e ações a serem adotadas para reverter tal estado de coisas passou a dominar o cenário político nacional até ganhar sua forma acabada no projeto nacional-desenvolvimentista nos anos 1950.

Não havendo mais como evitar a participação política da classe trabalhadora e nem não notar as condições miseráveis de vida oriundas do subdesenvolvimento, a mobilização política em torno de como o Brasil poderia superar tal situação mobilizou amplos setores da sociedade, desde empresários industriais até parcela das lideranças de esquerda de então, entre as quais está Leonel Brizola, como procuraremos demonstrar ao longo do trabalho.

Brizola nasceu em 22 de janeiro de 1922. Ficou órfão cedo, cresceu praticamente sozinho e conviveu com toda a carestia de vida que ele denunciava em seus discursos. Foi Deputado Estadual já em 1947, com 25 anos; depois Prefeito, Governador do Rio Grande do Sul e Deputado Federal, mais adiante, Governador do Rio de Janeiro. Sua trajetória política se confunde com a do PTB, partido criado no esteio das lutas pelo “queremismo” de 1945, portanto já inserido ‘à quente’, como dizem os gaúchos, no debate sobre o nacional-desenvolvimentismo, bandeira que Brizola encampou e ajudou a consolidar politicamente na sociedade.

Neste sentido, Bielschowsky (2000) aponta que o desenvolvimentismo se originou como corrente de pensamento entre os anos 1930-1945 no esteio da crise internacional – e de seus reflexos na economia brasileira, apoiando-se ainda nas transformações políticas do período anotado, montando-se simultaneamente dois pilares básicos de atuação: no setor privado e no setor público. Segundo o autor,

No setor privado, as entidades representativas do setor industrial (CNI, FIESP etc.) ampliaram seu horizonte de reivindicações. Roberto Simonsen concebeu e divulgou, através destes órgãos, uma estratégia de industrialização planejada. O processo de conscientização só alcançaria resultado definitivo na segunda metade dos anos 50, mas a legitimidade mínima do projeto era garantida pela liderança incontestável de Simonsen entre o empresariado industrial. O segundo pilar foi montado no setor público, no qual, a partir de 1930 e sobretudo durante o Estado Novo, foi criada uma série de agências voltadas para a administração de problemas de alcance nacional. Automaticamente, seus técnicos civis e militares foram levados a pensar as questões do desenvolvimento econômico nacional de uma forma integrada e abrangente, gerando a ideologia desenvolvimentista. A corrente desenvolvimentista do setor privado formou-se sobre o primeiro desses pilares. As correntes desenvolvimentistas do setor público formaram-se sobre o segundo deles, mas receberam grande influência e apoio do próprio Simonsen. Na segunda metade dos anos 40, por exemplo, quando o liberalismo do governo Dutra imobilizou consideravelmente as agências criadas por Vargas, Simonsen criou um departamento econômico na CNI e confiou sua chefia a Rômulo de Almeida, que seria, juntamente com Furtado, o líder dos desenvolvimentistas nacionalistas nos anos 50 (BIELSCHOWSKY, 2000, p. 78).

Ao longo de sua trajetória, o tema da emancipação nacional acompanhou a luta política de Brizola até o fim de sua vida. Neste trabalho, veremos somente três passagens, uma de 1947, de quando ainda era deputado e outras duas, mais conhecidas, de 1961, já depois dos eventos da Campanha da Legalidade e, portanto, em uma posição mais radicalizada da luta política no Brasil.

Em todos os casos, o que une as passagens é o domínio que Brizola tinha destes conceitos e como eles eram tanto norteadores de suas intervenções como também a própria denúncia política em si, reforçando nossa hipótese de que o subdesenvolvimento e as condições de vida eram o principal debate político do período para amplos setores da sociedade de então. É o que procuraremos demonstrar ao longo do trabalho.

Ensaios, no entanto, são um modelo de trabalho científico que tem por finalidade apontar grandes panoramas de ideias, formular problemas, sem, contudo, esgotar o assunto, mais deixando questões em aberto do que as resolvendo e este não foge à regra. Em termos metodológicos, nossa intenção foi a iniciar o debate, abrir espaços para que pesquisas outras possam se aprofundar tanto sobre Brizola quanto sobre o desenvolvimentismo, que é praticamente uma linhagem política brasileira. Neste sentido, nos apropriando da definição de Barrington Moore Jr (1983), o presente ensaio se assemelha a um “mapa em grande escala”, que busca localizar o debate em uma teia de acontecimentos maior, abrindo caminho para outras pesquisas detalharem melhor o terreno que aqui exploraremos panoramicamente.

Daí a escolha dos três discursos aqui utilizados para explorar a visão de Brizola sobre o tema: todos versam sobre a questão das condições de vida, ainda que em momentos e com profundidades diferentes, nos ajudando a ver como tais ideias evoluíram junto com a atuação do líder gaúcho.

Por fim, importante destacarmos que, ainda que não tenham sido citados diretamente, os trabalhos de Brigagão e Ribeiro (2015), Marco Antonio Medeiros Silva (2015), Gilberto Vasconcelos (2005) foram consultados e, portanto, referenciados, pois são fontes importantes para se compreender o pensamento e a atuação de Brizola, entre muitos outros dignos de destaque. Feita esta introdução, passemos ao estudo do objeto em si deste ensaio.

Brizola e as condições de vida: um projeto de nação para superar o subdesenvolvimento

Diversos e importantes analistas do pensamento e da atuação política de Brizola, além do farto material colecionado sobre seus discursos e intervenções, nos permitem acessar a obra política do líder trabalhista por diversos ângulos. Como vimos nos parágrafos anteriores, nossa intenção neste ensaio é dar maior ênfase no debate sobre a pobreza e as condições de vida e como elas se articulam no discurso de Brizola ao longo de sua trajetória política, em muito porque era uma bandeira do PTB que ele próprio ajudou a elaborar, em partes porque a carestia era a “questão política” nacional naqueles tempos entre 1945-1964, até que os acontecimentos políticos de então acabaram com a possibilidade de o Brasil estruturar um projeto nacional de desenvolvimento.

Sobre a pobreza ter se tornado pauta política nacional, Octávio Ianni (1989) entende que, após a Revolução de 1930, o proletariado, que até então era tratado como uma “questão de polícia”, passa a ser encarado de outra forma, que o próprio Vargas resumiu na expressão “questão política”. Isso porque, no processo de formação e de consolidação do capitalismo industrial tornou-se imperativo a inclusão da classe operária na dinâmica capitalista, na medida em que nela se concentrava a força produtiva necessária para impulsionar a indústria. Assim, tal como interveio para criar as condições para o fortalecimento da indústria, o Estado também o fez em relação ao proletariado, elevando-o a categoria de classe. Os trabalhadores passaram a ser parte do projeto industrial:

Após a Revolução de 30, conseguem acesso ao poder categorias sociais que antes eram consideradas sistematicamente da oposição; ou sequer isso, como o proletariado. [...] Ao exprimir, em boa parte, os interesses da burguesia industrial nascente e sua consciência da realidade, os governantes passam a tratar o proletariado como interlocutores legítimos. A “legislação social”, agora, será ampliada, sistematizada e aplicada, perdendo seu caráter de norma sem conteúdo. Legitimam-se certas reivindicações do proletariado e o poder público se insere como mediador das relações de classe. (IANNI, 1989, p.133).

A intervenção estatal e a criação de legislações garantidoras de direitos trabalhistas procuravam, além de inserir o proletariado no processo capitalista industrial, pacificar as relações de classe, controlando sua crescente pauperização ao estabelecer condições mínimas a todos os trabalhadores. (IANNI, 1989, p.134). O objetivo era harmonizar as relações capital/trabalho e evitar o aumento da pobreza dos trabalhadores.

A intervenção governamental na esfera do trabalho está apoiada na necessidade de favorecer a insaturação da racionalidade possível e adequada à máxima mercantilização dos fatores. [...] Para isso, a atividade estatal vai orientar-se tanto no sentido de que preservar a oferta excedente e propiciar a diferenciação qualitativa, como de modo a estabelecer os limites dentro dos quais se dará a mercantilização da força de trabalho. Como esta tem sido fator abundante, o salário-mínimo, o aviso prévio, a estabilidade e outras garantias se impuseram imediatamente, para que não se produzisse uma excessiva pauperização da classe operária. É óbvio que a pauperização seria um fundamento importante e alimento das contradições de classe, desembocando diretamente na luta pela apropriação do produto excedente. (IANNI, 1989, p.135).

E é esta ideologia da “paz social”, da harmonia e da parceria entre capital e trabalho que moldará o pensamento e a ação de Estados e de industriais nas relações com o proletariado, seja através da legislação trabalhista, do reconhecimento dos sindicatos e, principalmente, do salário-mínimo. Não sendo mais possível ignorar as desigualdades e a luta entre as classes desiguais, reforçar o modelo de parceria pacífica era fundamental para a consolidação do capitalismo industrial brasileiro.

Na ideologia da classe dominante, especialmente do grupo empresarial, as relações de classes são colocadas em termos de Welfare State posto em prática no Brasil. Dando continuidade à política estatal iniciada por Vargas, a liderança empresarial coloca as relações com os assalariados, em especial o proletariado, em termos de convívio harmonioso, fundado numa identidade de fins. (IANNI, 1989, p.144).

E a classe trabalhadora, por seu turno, parecia ter também a mesma percepção. Ianni (1989) aponta que quase a totalidade das lutas sociais encabeçadas pelos trabalhadores eram relacionadas às questões econômicas, sejam de uma categoria específica sejam as lutas nacionais, especialmente as que se dedicam ao aumento do desenvolvimento econômico:

Fundamentalmente, contudo, a classe operária está empenhada nas lutas relacionadas à constituição do sistema capitalista, com base na produção industrial. Ainda que com uma conotação diversa da concepção dos empresários, há um desenvolvimentismo nacionalista presente nas atividades políticas do proletariado. Ao longo dos anos 1945-1964, cresceu a participação dessa categoria na sustentação da política de desenvolvimento da burguesia industrial. (IANNI, 1989, p.151, grifo do autor).

No mesmo diapasão, Ângela Maria de Castro Gomes (1978), aponta que a Revolução de 1930 foi um marco na medida em que inaugurou uma nova era nas relações capitalistas, com o modelo industrial de acumulação ganhando a dianteira em relação à agricultura, reorganizando, também, a linha argumentativa e de ação da burguesia industrial na busca de seus interesses. A Revolução de 30 realocou as demais forças sociais, especialmente o proletariado, dando a este um novo status. A questão das condições de vida e seu enfrentamento já faziam parte, segundo a autora, da preocupação dos formuladores das teses políticas da Aliança Liberal, constando inclusive de seu manifesto, no entanto abordadas por um viés de naturalidade, de consequência da expansão capitalista. Após a chegada ao poder, fez-se necessário incorporar a parcela excluída da sociedade no nascente projeto hegemônico. (GOMES, 1978, p. 311).

Como se vê, portanto, as condições de vida e o subdesenvolvimento eram questões políticas correntes no Brasil daqueles tempos, iniciando os debates nos anos 1930 e seguindo pelas décadas seguintes, em muito pela atuação de Brizola e do PTB.

Sobre a formação do PTB e sua importância política para a formação de suas lideranças, Cánepa (2005) afirma que, desde sua fundação e ao longo do período de 1945-1964, o PTB do Rio Grande do Sul enraizou-se socialmente, a partir de lideranças como Jango, Brizola e outros, o que teria sido decisivo para que o partido no Rio Grande do Sul fosse a sessão mais destacada, incorporando as questões nacionais dentro das regionais.

Ainda, Miguel Bodea (1992) entende que Brizola não era um líder “populista”, mas uma liderança que, tal como o trabalhismo, transcendia sua formação partidária e eleitoral para se colocar como uma força social, indo além de sua liderança – e sua liderança indo além das questões políticas regionais.

O ‘trabalhismo’ em sentido amplo, isto é, como corrente doutrinária e movimento social, tanto no nível da visão dos seus dirigentes quanto na cristalização de um ‘senso comum’ no âmbito das massas, pode ser considerado partido político justamente quando definido de forma abrangente, transcendendo o próprio PTB do Rio Grande do Sul como seção partidária e também o período específico analisado (1945-1954), uma vez que deita raízes na fase anterior a 1945 e mesmo a 1930, projetando-se, como força política, pelo menos até 1964, em termos temporais, ao mesmo tempo em que busca abrir espaço político além das fronteiras do Rio Grande do Sul, em termos geográficos”. (BODEA, 1992, p. 179).

Em importante diálogo teórico com o conceito de populismo, que aqui trataremos apenas de passagem, Bodea (1992) entende que a liderança de Brizola e de outros políticos gaúchos do período não se deu pela ligação direta com as massas, mas sim baseado em uma estrutura partidária forte e organizada que permitiu a Brizola se identificar e ser identificado com a própria ideologia trabalhista.

Por sua vez, Roberto Bitencourt da Silva (2011) entende que Brizola, Jango e outros políticos rio-grandenses do PTB tinham uma concepção partidária que, para além da representação das demandas políticas, incluía uma doutrinação política das massas aos valores e ideias por eles defendidas:

Nesse sentido, é legítimo argumentar que o partido teve a capacidade de se perpetuar para além da figura de Vargas. O realismo e o idealismo político se fundem nessa ala. Convergem, nada obstante, para uma concepção partidária ativa em relação às bases eleitorais – concepção sobremaneira sintonizada com a tendência doutrinária. Não se limitando apenas a canalizar e a representar as demandas do seu eleitorado, essa ala esforçou-se pro enquadrar e moldar seu público em torno de determinados valores e ideias políticas, perseguindo a chamada “reforma moral” a que se refere Gramsci. (SILVA, 2011, p. 187)

O autor afirma que, até o golpe militar de 1964, o PTB e suas lideranças sempre mantiveram a defesa da ideia de reformas, ainda que cada uma de suas lideranças fizesse tal enfrentamento a seu modo e estilo: Jango com uma estratégia parlamentar, Brizola buscando a democracia direta:

Todavia, mesmo com a elevada polarização social e política que caracterizou o governo Goulart, e em que pesem as estratégias distintas e frequentemente rivais adotadas pelo então Presidente da República – sobressaindo uma estratégia parlamentar e negociada para a implantação das reformas de base – e por Brizola – que priorizava os meios extraparlamentares, assumindo sua estratégia estreitos laços com o primado da democracia direta e participativa –, o compromisso com as causas reformistas esposadas pelo partido foi mantido até a ruptura institucional de 1º de abril de 1964. Sob a luz desse ângulo, a aludida coerência do PTB configurou uma especial manifestação de apreço à legitimação das instituições representativas democráticas, por perseguir o atendimento do seu programa partidário e das demandas e expectativas geradas em seu eleitorado (SILVA, 2011, p. 190-191)

Corroborando em partes nosso argumento de que a pobreza era um dos temas centrais do debate político nacional do período, Bodea (1992) credita ao positivismo e sua incorporação e adaptação pela ideologia trabalhista por meio de Brizola e de outras lideranças trabalhistas gaúchas é que abre espaço para que o tema das condições de vida do proletariado se torne uma questão política, sendo agregado aos discursos e análises políticas do período:

A presença desta concepção – na qual se privilegia a participação do proletariado como ator político é algo absolutamente inédito no panorama político nacional de um período no qual a “questão social” era tratada como “questão de polícia”. (BODEA, 1992, p. 184).

Sobre esta questão, Jorge Ferreira (2016), em importante obra (FREIRE; FERREIRA, 2016) – cujas análises vão ao encontro de parte dos argumentos que aqui lançamos no tocante às questão da bandeira do subdesenvolvimento, ainda que os autores caminhem mais pela atuação política de Brizola, enquanto nossa hipótese é mais voltada a reforçar o desenvolvimentismo como questão política chave do período e como uma das bandeiras do líder gaúcho – aponta que Brizola estava antenado com as teorias mais recentes daqueles tempos sobre as razões do subdesenvolvimento latino-americano, associando a pobreza dos países latinos com a exploração estrangeira dos grandes centros:

Brizola estava afinado com as crenças partilhadas pelas esquerdas latino-americanas que acusavam a exploração econômica dos Estado Unidos como a origem a pobreza dos países da América Latina. Tratando mais especificamente do Brasil, ele chamava a atenção para a extensão do seu território e para a riqueza de suas reservas naturais, uma das maiores do mundo. Mas, ao mesmo tempo, nesse mesmo país vivia um “dos povos mais pobres do mundo”. (FERREIRA, 2016, p. 35).

Liderando a ala mais radical do PTB, para Brizola o Brasil era um país dotado de riquezas, mas com um povo pobre (FERREIRA, 2016, p. 27), pois estaria estruturado de modo a produzir e a enviar suas riquezas para os grandes centros, atrasando, quando não impedindo, nosso desenvolvimento.

Brizola trabalhava com categorias das ciências sociais latino-americanas de seu tempo, em particular as ideias elaboradas pelos economistas da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). O Brasil, na compreensão de Brizola, era um país estruturado de maneira “dualista”, ou seja, uma economia moderna, em contato direto com os grandes centros capitalistas do exterior, convive com outra, atrasada, chamada na época de semifeudal. (FERREIRA, 2016, p. 37).

Adotando a luta contra a espoliação, o modo como se referia aos mecanismos promotores do subdesenvolvimento, Brizola entendia que somente um projeto de reformas que alterasse as estruturas sociais e econômicas nacionais, fazendo romper com a exploração externa:

Leonel Brizola defendia as reformas de estrutura, as chamadas “reformas de base”, programa político do PTB e das esquerdas. As reformas estruturais – como a reforma agrária, a bancária, a tributária, a universitária, entre outras – eram condição para a superação do subdesenvolvimento. No entanto, antes da adoção dessas reformas, havia uma medida preliminar a tomar, sem a qual as reformas não teriam o efeito desejado: a “revisão profunda dos termos de nossas relações com os Estado Unidos”. (...) Brizola, reiteradamente, usava uma expressão para definir as relações entre a América Latina e os Estados Unidos: processo espoliativo. (FERREIRA, 2016, p. 37).

Colocada a questão do ponto de vista teórico, vejamos nos discursos do próprio Brizola como estes temas acima relacionados aparecem em suas intervenções políticas.

Combater o subdesenvolvimento: a bandeira de Brizola

Separamos para este ensaio três discursos, feitos em tempos e circunstâncias diferentes por Brizola, procurando evidenciar seus argumentos em relação aos temas aqui relacionados: condições de vida, pobreza, subdesenvolvimento. O primeiro deles, de 1947, de quanto ainda era Deputado Estadual pelo Rio Grande do Sul, em uma situação política tensa, mas ainda distante da radicalização dos anos 1960, o líder trabalhista já alinhavava os conceitos que acabariam por moldar a própria atuação do PTB enquanto partido.

Os outros dois, mais famosos, são conferências feitas a jovens da Escola Júlio de Castilho e para a Junta Acadêmica Regional do Oeste Paulista e Norte Paranaense, ambas em 1961 e depois dos eventos da Campanha da Legalidade e já apresentam argumentos mais consolidados e radicalizados, tendo como centro as reformas de base em debate naquele período e que eram o centro do programa do PTB, como vimos acima nas contribuições de Cánepa (2005), Bodea (1992) e Ferreira (2016).

Todas estas intervenções foram extraídas do livro de Braga et al. (2004), que contém extensa coleção de depoimentos, discursos e passagens históricas e outros materiais de extrema importância para a compreensão do pensamento e da ação de Leonel Brizola. A escolha destas passagens deu-se porque são específicas sobre o tema das condições de vida, que é a hipótese norteadora deste trabalho, ainda que existem outras passagens importantes de Brizola sobre outros temas não aqui tratados.

A mensagem do discurso proferido na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul em 1947, período de Assembleia Constituinte Estadual, é clara: não se pode falar em democracia se o povo vive na miséria.

Todos os estudiosos de nossos problemas sociais são unânimes em ressaltar o baixo padrão de vida, as dificuldades e a ignorância, em que se debatem as classes mais empobrecidas. Essas classes, Sr. Presidente, englobadas, constituem a imensa maioria do povo brasileiro, o que se pode constatar pela simples verificação do ridículo coeficiente médio de nosso poder aquisitivo. Ou então, se atentarmos para as nossas condições de saúde e para o analfabetismo, fácil é concluir que, dos nossos tão cantados 45 milhões de habitantes, possivelmente, em condições plenas para o trabalho, talvez nem sequer 3 milhões nos restem. E, então, Sr. Presidente, como deveremos encarar o conceito de democracia, numa sociedade de tal natureza? Apenas nos reservamos em dizer que toda a política não orientada para o reerguimento da grande massa do povo brasileiro, do pauperismo em que vive, portanto, orientada para as questões sociais, não é política da maioria e, portanto, não pode ser democrática. ” (BRIZOLA, 1947, apud BRAGA et al, 2004, p. 343).

Discorrendo sobre a situação da juventude, que se via compelida pelas condições de vida a trabalhar a estudar, em prejuízo, portanto, de sua formação, Brizola aponta que a situação de miséria da juventude, exposta à péssimas condições de moradia, vivendo em insegurança ou mesmo em insuficiência alimentar e sem dinheiro para as necessidades básica atentava contra o futuro da sociedade brasileira, na medida em que tais jovens estariam condenados a reproduzir o ciclo de miséria em que estavam inseridos:

Neste aspecto fundamental, é contrastante o quadro que deparamos na realidade. Afora uma minoria bem situada na vida, filhos da fortuna, o que em nada os desmerece, desde que tenham convicções, a maioria, a imensa maioria, comprime-se em verdadeiros cortiços, em alojamentos insuportáveis, alimentando-se não como e quando necessita, mas como lhe permitem os seus minguados recursos. Vive, por assim dizer, acessível a todas as doenças, principalmente à tuberculose. Essas brutalidades, Sr. Presidente, constituem a causa do desencanto da juventude. Essas brutalidades têm extirpado toda a alegria de viver, e a sua angústia a tem jogado, muitas vezes, para o campo das ideologias exóticas, na esperança de ver minorados os seus sofrimentos. (BRIZOLA, 1947, apud BRAGA et al, 2004, p. 346).

É digno de registro, ainda que o tema esteja contido na citação acima, a constatação de Brizola de que a conciliação trabalho-estudo dependia de “favoritismos” dos patrões, pois não havia regulamentação legal que permitisse aos jovens equacionar trabalho e estudo em condições que lhes fossem favoráveis, ficando tais arranjos na dependência “(...) da maior ou menor magnanimidade dos chefes de serviço”, ainda que a maioria dos jovens compusessem a classe trabalhadora, portanto, eram obrigados a trabalhar, ainda que em detrimento de sua própria formação. O resultado, a seu ver, seria a conversão de toda uma geração de jovens em pessoas “sem espírito de iniciativa”, como que roubadas da energia da juventude, toda consumida pelo trabalho. (BRIZOLA, 1947, apud BRAGA, 2004, p. 346 e seguintes). E encerra a reflexão com a pergunta final:

É justo, humanamente justo, patrioticamente justo, que somente a minoria, filhos da fortuna, cercados de todas as garantias, possa realizar as suas aspirações, e os filhos da pobreza somente o consigam, à custa de sua própria saúde, ou então, inexoravelmente, morram na ignorância? Esta pergunta, há longos anos temos repetido. Não será com essas bases que iremos edificar um regime de igual oportunidade, como constitui a democracia. (BRIZOLA, 1947, apud BRAGA et al, 2004, p.347).

As transcrições acima apontam para a hipótese de que as condições de vida eram uma questão política, na medida em que refletia a consciência de parte das lideranças políticas do período de que a pobreza e a baixa produtividade da economia nacional, as péssimas condições de trabalho, de saúde, de moradia, enfim, o conjunto da obra da miséria nacional não só era um impeditivo para nosso desenvolvimento, como também era uma questão geradora de tensões políticas e sociais que não podia mais ser ignorada.

Em outra passagem importante, que se deu anos depois da intervenção na Assembleia Legislativa gaúcha e depois da campanha da Legalidade – portanto, em um ambiente já mais radicalizado – Brizola (1961, apud BRAGA, 2004, p. 510), então governador do Rio Grande do Sul, proferiu uma conferência no Auditório do Colégio Júlio de Castilhos, em 20 de outubro de 1961, com o tema “Subdesenvolvimento e processo espoliativo – atraso, pobreza, marginalização”.

O título já aponta uma mudança em relação ao argumento anterior: se no discurso de 1946 a discussão aparece como “condições de vida” e em perspectiva genérica, em 1961, amadurecida a questão do subdesenvolvimento e dos efeitos da dependência econômica, o tema já aparece em sua roupagem política: subdesenvolvimento, atraso, pobreza, processo espoliativo, elementos causadores da carestia nacional, o problema nacional prioritário.

Depois de iniciar a conferência ressaltando a importância da juventude de se inteirar das questões políticas mais urgentes e de colocar-se em neutralidade em relação à guerra fria, entendendo que o Brasil tinha problemas seus e que mereciam maior atenção do que as disputas entre os polos de então, Brizola apresenta o tema sobre o qual irá discorrer na palestra: a pobreza:

Este é um imenso país, um dos maiores do mundo em território, senhor das maiores reservas naturais de que o mundo ainda dispõe, abrigando a maior população latina do mundo. Infelizmente, entretanto, também em pobreza e atraso alcançamos o superlativo: somos dos povos mais pobres do mundo. (BRIZOLA, 1961, apud BRAGA, 2004, p. 512).

Brizola constata e reforça o efeito mais nefasto do subdesenvolvimento nacional: o Brasil era um país rico que tinha um dos povos mais pobres do mundo, com o trabalho mais mal pago, analfabeto, miserável, que vivia em péssimas condições sanitárias e de moradia, faminto, despossuído. Mesmo tendo condições de abrigar parte importante da população mundial, não conseguíamos abrigar nem o povo aqui vivente, oprimidos economicamente pelas seguidas crises econômicas que empurrava o povo para a base da pirâmide social sem condições de emergir (BRIZOLA, 1961, apud BRAGA, 2004, p. 512).

Depois de discorrer sobre a importância, a seu ver, de pensar os problemas brasileiros sem se deixar levar pelas disputas políticas da guerra fria, ou seja, sem defender o liberalismo e nem o marxismo como solução para as questões nacionais, o líder trabalhista se propõe a utilizar mecanismos do socialismo, especialmente a função social da propriedade, justiça nas relações de trabalho, condenar o colonialismo e outros, que ele entendia serem “cristãos”, citando para reforçar esta posição a encíclica Materet Magistra, de João XXIII, para combater a pobreza.

A partir de sua experiência como governador, estudando a situação econômica do Rio Grande do Sul, constatou que no Estado, não obstante se produzisse sempre mais, a vida do povo não melhorava em igual proporção, mas o contrário: o trabalhador só se empobrecia. Constatou também que se tratava de um problema nacional e, em limites mais amplos, da própria América Latina.

(...) Imaginemos o nosso país como se fosse uma grande represa de que a barragem se encontre com seu eixo passando pelo Rio Grande e São Paulo. As áreas dependentes desta barragem estão parcialmente inundadas e aqui, junto à barragem, um sistema de bombas funciona sem parar. (...) Junto à represa a região centro-econômica do Brasil – São Paulo e Rio, a parte mais profunda, onde maior é a reserva de águas. Naturalmente todos os córregos, todos os rios deste país correm para a imensa represa. Todas as chuvas que porventura se precipitarem, para lá se escoarão. E lá estão as bombas, trabalhando incessantemente. Sugando incessantemente. (BRIZOLA, 1961, apud BRAGA, 2004, p. 515).

A metáfora é o jeito de Brizola de explicar os efeitos da dependência e do subdesenvolvimento: de nada adianta produzirmos se os recursos nem ficam com o povo e nem no país; enquanto o fruto do trabalho for “bombeado” para a “imensa represa”, o que restará para nós é a vida marginal da periferia do mundo, imerso em miséria e pobreza produzida para custear a riqueza dos mais ricos: “Finalmente, as bombas levam o melhor de tudo para fora. E a terra árida do Nordeste, tornando-se ainda mais árida, contina fora d’água, esgotada e empobrecida”. (BRIZOLA, 1961, apud BRAGA, 2004, p.516).

Direto ao ponto e sem mais metáforas, Brizola expõe a tese: o modelo produtivo brasileiro e da América Latina foi construído para manter a dependência econômica dos países periféricos em relação aos centrais. E, sem “terracear” e “entupir os canais”, não haverá como alterar tal situação:

Meus jovens amigos – vamos resumir: disse-lhes isto para significar que, no meu entender, a estrutura econômico-política de nosso País está orientada no sentido do processo espoliativo. Vou além – e atentem bem para esta afirmação, que considero fundamental: nossa estrutura interna é consequência, é modelada, foi sendo criada insensivelmente para servir ao processo espoliativo internacional, é função do processo espoliativo assim como o fundo da represa foi sendo modelada num complexo de canais para servir ao abastecimento das bombas. Isto nos leva a uma segunda conclusão, ainda mais importante: enganam-se os que imaginam que conseguiremos vencer o círculo vicioso da miséria, realizar reformas de base, alterar nossa estrutura econômico-política interna sem tocar no processo espoliativo. (BRIZOLA, 1961, apud BRAGA, 2004, p. 516/517).

Constatado o problema, falta a solução, não sem antes o alerta de que enfrentar as estruturas do capitalismo mundial requer preparo político, na medida em que os países centrais não aceitarão de bom grado renunciar a estruturas que lhes garantiam a riqueza que faltava aos demais povos do mundo. Na visão de Brizola, o caminho eram as reformas estruturais que pudessem reverter o processo espoliativo sem se descuidar da reação que se seguiria das nações centrais, pois as grandes corporações teriam sobreposto seus interesses inclusive a seus países de origem, que não mediriam esforços, inclusive contando com apoio de políticos ingênuos e corruptos, para manter intactos seus negócios. Mais que uma constatação, a afirmação parece um presságio do que se seguiria anos depois:

Eis o motivo pelo qual firmamos a impressão de que aquela grande nação, a federação de Jefferson e Hamilton, em lugar de ser, hoje, uma federação política, é mais na prática uma federação de corporações econômicas e financeiras. Aí está porque considero ingenuidade sonharmos com reformas, sem nos precavermos contra a reação. Para fazê-las, teremos de estancar o processo espoliativo. Ao prejudicá-lo, teremos atraído contra nós seu poderio – o poderio destas corporações econômicas que, a princípio envolvendo políticos ingênuos e corruptos do Brasil, terminará envolvendo políticos ou corruptos do mundo inteiro. (BRIZOLA, 1961, apud BRAGA, 2004, p. 518).

Conclamando os presentes a decidirem “já e já” pelo caminho da emancipação nacional, Brizola coloca-se como um “(...) simples voluntário desta grande causa que é a libertação do povo brasileiro do subdesenvolvimento e da espoliação estrangeira” (BRIZOLA, 1961, apud BRAGA, 2004, p. 520), mas tendo claro de que esta luta não se daria com o ‘sangue doce’, expressão que emprestamos dos gaúchos para ilustrar a consciência de Brizola sobre como seria duríssima a luta para romper com a dependência e superar o subdesenvolvimento, com um adversário capaz de mobilizar qualquer meio para defender seus interesses, inclusive acabar com a democracia, como de fato acabou por acontecer somente três anos depois deste discurso do então governador do Rio Grande do Sul.

Uma última passagem da conferência conecta ainda mais os argumentos que procuramos demonstrar acerca de como o tema do subdesenvolvimento era presente no debate político nacional – e em prismas variados. Relatando toda a sorte de ataques que sofreu por parte das grandes corporações e de seus aliados internos, que o acusavam de ser “comunista” por conta de suas ações enquanto governador, Brizola apresenta um argumento já defendido anteriormente por outras lideranças políticas: a de que a pobreza era o principal fator de “promoção" do comunismo no Brasil e na América Latina.

A grande diferença entre nós e os que nos acusam está em que eles querem combater o comunismo com a polícia, com a violência, com a ilegalidade, com o desrespeito à Constituição e, portanto, com o terrorismo e com a mentira. Querem a implantação do atestado ideológico e querem, principalmente, através destas campanhas odientas, envolver e inutilizar todos os que apontam seus privilégios e querem um Brasil novo e livre. E nós entendemos que a melhor maneira de combater o comunismo está em resolver os problemas que nos afligem. (BRIZOLA, 1961, apud BRAGA, 2004, p. 521).

Insta esclarecer, a despeito da expressão “combater o comunismo”, que pode denotar um viés diferente do que o apresentado na conferência e nas próprias ideias de Brizola, que não era incomum que se abordasse a questão política da pobreza por um prisma não revolucionário ou mesmo não classista, seja pela força da ideia de “união” entre as classes, ou porque era uma forma de se defender da pecha de “comunista”, que em um ambiente polarizado como o de então poria fim ao debate antes dele começar – talvez ambas. Associam suas críticas ao mercado e ao liberalismo desregulado mais a uma posição “anticristã” do que propriamente a uma condição inerente ao próprio capitalismo. Era a doutrina da “paz social”, já aqui debatida pela obra de Angela Maria de Castro Gomes (1979)

Ainda, a incorporação do positivismo no trabalhismo, de acordo com Bodea (1992), também nos ajuda a compreender por que parte das lideranças políticas do período acreditavam na conciliação entre as classes para fazer avançar a questão social, tendo o Estado como mediador dos conflitos, que deveriam ser resolvidos de forma “racional”, com compromissos entre as classes e não antagonismo. O Estado, então, passaria a ser o instrumento de construção das políticas sociais e as classes deveriam buscar sua mediação, usando da racionalidade cientifica e não da disputa política para dirimir seus conflitos.

Em outra conferência proferida no mesmo ano, desta feita para jovens da Junta Acadêmica Regional do Oeste Paulista e Norte Paranaense, em Presidente Prudente/SP, em 25 de novembro de 1961, Brizola retoma o assunto do subdesenvolvimento, conclamando os jovens ouvintes a se levantarem contra a “espoliação” que “marginalizava e brutalizava” o povo, ressaltando sua visão de que a pobreza, o efeito mais nefasto do subdesenvolvimento, era o principal problema nacional:

Muito mais dramático é verificar que, se persistir o quadro atual, tenderá a crescer em razão do próprio crescimento da pobreza nacional o desperdício de vidas humanas que hoje ocorre em nosso País, com nítidas características de hecatombe nacional. Já se disse que o homem é a maior riqueza de uma nação. Que perspectiva poderemos ter, porém, se a nossa estrutura econômica e social continuar sendo o que hoje é: um atentado frontal contra os direitos do homem brasileiro à vida e à própria dignidade?! (BRIZOLA, apud BRAGA, 2004, p. 529).

Espoliação e pobreza, no raciocínio do líder trabalhista, são causa e consequência do subdesenvolvimento: quanto maior a espoliação, maior a pobreza, maior a miséria que o povo está inserido, maior a dependência econômica em relação aos países centrais.

Com ele vemos, em contraste paralelo, como, na mesma medida e no mesmo ritmo em que cresce o nosso empobrecimento, cresce de intensidade o processo espoliativo de que somos vítimas, mas desumano e cruel em seus efeitos. É ele que torna mais dependente a nossa economia, tornando, em consequência, mais vulnerável a nossa soberania nacional. Este processo espoliativo que vem sendo imposto ao nosso povo é o responsável, é causa fundamental da elevação crescente do custo de vida, da inflação e de todas as tensões, desequilíbrios e deformações que vêm marcando cruelmente este ciclo da vida brasileira. É este processo que vem sustentando a estrutura interna, injusta e semifeudal. (BRIZOLA, apud BRAGA, 2004, p. 529).

Brizola chama a atenção, utilizando-se de dados graves sobre a situação econômica do povo, para a profundidade dos efeitos do subdesenvolvimento no Brasil, marcada pela concentração de riquezas, de recursos e pela miséria da maioria da população. Descontando-se a dramaticidade que os discursos políticos necessitam ter, o uso destes argumentos como mobilizadores para a luta política vai ao encontro de nossa afirmação inicial da importância política da pobreza e do subdesenvolvimento no debate nacional, aqui traduzido em denúncia política por Brizola:

São os brasileiros não conformados com a má distribuição da riqueza social no País, concentrada em alto teor em poucas mãos, enquanto a miséria castiga, fustiga, impede e elimina as oportunidades, deprime a quase totalidade das populações brasileiras (Palmas). São os brasileiros não conformados com o fato de 50% da infância brasileira em idade escolar não ter a seu dispor nenhuma oportunidade de educação (palmas). São os brasileiros não conformados com o fato de, no Nordeste, 50% dos nossos irmãos morrerem antes de 30 anos de idade. São os brasileiros que não admitem que, neste País, a taxa de mortalidade infantil seja em média de 400 por 1.000, maior do que as que se registram nas áreas mais empobrecidas do Sudeste da Ásia. São os brasileiros que se dispõem a lutar contra os grilhões do subdesenvolvimento. São os brasileiros que não se vendem, são aqueles que preferem perder a vida a perder a razão de viver (palmas). E razão de viver para nós, é a libertação de nosso povo da miséria, da incultura e do analfabetismo, da doença endêmica, de todas as formas de atraso, do processo espoliativo que nos prende a essas condições degradantes de vida, que compromete o futuro dos nossos filhos, que impossibilita a nossa prosperidade e que leva embora as nossas magras poupanças e os frutos sagrados do nosso trabalho (BRIZOLA, apud BRAGA, 2004, p. 531).

Em outra passagem da conferência, Brizola expõe seu entendimento sobre o que seria o “processo espoliativo” que, já vimos anteriormente, é a forma como ele entende se dar o movimento de dependência e subdesenvolvimento dos países periféricos, especialmente dos da América Latina, cuja situação ele entender ser “semicolonial”.

O mais importante a se notar das passagens é o modo como Brizola se apropria dos conceitos de subdesenvolvimento, dependência e outros sem a roupagem acadêmica na qual foram forjados, mas com a experiência e o sentimento político da importância de tais temas que reforçam o entendimento de que o debate sobre o desenvolvimento era, antes de tudo, um debate político, mobilizador de parcelas da sociedade.

Mas o que significa processo espoliativo? É um complexo de relações: umas perceptíveis, outras invisíveis. Ele pressupõe no país em que atua, a existência de uma estrutura econômico-social modelada à sua imagem. Nas nações como o Brasil a estrutura interna é dualista, isto é, ao lado de uma economia moderna, em contato com o exterior, subsiste, em larga escala, uma economia semifeudal que aprofunda suas raízes aos capilares do organismo nacional. Esse dualismo é um dos traços característicos de todas as sociedades subdesenvolvidas, submetidas ao processo espoliativo. Uma complementa a outra. E como age o processo espoliativo? Ele opera da seguinte forma: através da penetração de certo tipo de capital estrangeiro adquire o controle próprio ou remoto da faixa econômica mais desenvolvida. Como, porém, nesses países subdesenvolvidos os empresários industriais e comerciais, os empresários das grandes empresas e os proprietários de bancos, são também proprietários rurais e, em tais países, a sociedade rural típica é a latifundiária, temos que o capital estrangeiro embutido nas grandes empresas modernas é também um fator decisivo na manutenção do latifúndio. (BRIZOLA, apud BRAGA, 2004, p. 533).

Reforçando seus conhecimentos sobre conceitos complexos como depreciação dos termos de troca, dependência econômica e outros, Brizola segue na linha de que as reformas “de base” precisam se chocar com os interesses do capital externo, pois “(...) não se pode tocar na estrutura interna de um país subdesenvolvido sem afetar os interesses do processo espoliativo”, não havendo mais tempo a perder para tomar logo as medidas necessárias ao desenvolvimento, pois não seria mais possível “(...) aguardar com resignação, soluções de maturação a longo prazo” em termos de desenvolvimento (BRIZOLA, apud BRAGA, 2004, p. 534), provavelmente aqui, se referindo à tese de ROSTOW (1961) sobre o desenvolvimento econômico ser uma etapa temporal a ser alcançada pelos países periféricos e não construída por eles.

Por que, nós brasileiros, por que, nós, da América Latina, haveríamos de discrepar desta regra hoje universal, e afundarmos numa paciência que teria muito mais de apatia, de incapacidade, de impotência e condenação certa do que de resignação e tolerância? Não estamos em condições de esperar. Todos nós conhecemos a nossa realidade interna, senão no intrincado de sua trama, pelo menos nos seus efeitos. Considero desnecessário falar a esse respeito. Nós temos a vivência diária dos nossos problemas, e tudo que podemos pedir é que os projetos e iniciativas visando a transformação da realidade brasileira sejam encarados com coragem e determinação. (BRIZOLA, apud BRAGA, 2004, p. 534).

As constantes menções à América Latina como região explorada e aos EUA como explorador também nos ajudam a visualizar que Brizola tinha em mente os conceitos de divisão internacional do trabalho, de imperialismo e, principalmente, de como as nações centrais operavam para manter este status quo no qual seus lucros estariam assegurados acima de qualquer outra demanda.

Parece óbvio destacar no líder trabalhista o conhecimento de conceitos que eram muito debatidos nos anos 1950 e 1960 no Brasil, mas esta é exatamente a questão que queremos ressaltar: protagonista do debate político daquele período, Brizola mobilizava os conceitos que eram debatidos socialmente e aos quais ele ajudou a construir e consolidar politicamente, buscando aprofundar a contradição então latente entre executar ou não um projeto nacional-desenvolvimentista.

Ao contrário de muitas visões que argumentam que nosso desenvolvimento político e social deu-se por meio de um eterno arranjo conservador entre elites, ver Brizola trabalhando politicamente estes conceitos, um debate que se iniciou nos anos 1930 e ganhou corpo até se converter na causa do golpe militar de 1964, demonstra, a nosso ver, que não só havia uma luta política na sociedade como ela se dava entre termos ou não um projeto de desenvolvimento que rompesse com as amarras que nos mantinham na condição “semicolonial” a qual denunciava. Na passagem a seguir, ele segue na linha da denúncia sobre como o Brasil deveria se emancipar para superar a pobreza:

Emancipação econômica significa em primeiro lugar fazer uma profunda revisão dos termos de nosso intercâmbio internacional. Enquanto continuarmos exportando matérias primas a preços aviltados e importando bens elaborados a preços continuamente valorizados, submetidos aos acordos, às fraudes, a todo este complexo cipoal de normas e regras que rege o nosso intercâmbio com o mundo exterior, submetidos a “uma estrutura econômico-social decorrente desse vai-e-vem do processo espoliativo, dos juros, dos royalties, da exportação legal e ilegal de lucros extorsivos, dos investimentos antinacionais e dos tentáculos da exploração e do colonialismo (Muito bem!), nossa economia e o homem brasileiro estarão submetidos a um processo de esclerosamento, de desvitalização que os conduzirá fatalmente a uma espécie de anemia profunda que arrebatará todas as possibilidades imediatas ou futuras de crescimento, de expansão e de real prosperidade. (...) Somos, sim, contra um sistema econômico internacional que tem sua sede nos Estados Unidos e que é a fonte, a causa dos sofrimentos, das frustrações e de toda a sorte de deformações na vida dos povos cuja economia dominam, como é o nosso caso e o de toda a América Latina. E temos razões de sobra para odiar esse sistema de espoliação que nos vem tornando a vida insuportável. A causa profunda do encarecimento do custo de vida, da inflação, das angústias crescentes deste ciclo de nossa história não é outra senão o processo espoliativo. (BRIZOLA, apud BRAGA, 2004, p. 536).

Uma última passagem, de um longo debate no Congresso Nacional envolvendo a questão da espoliação, demonstra bem o quanto o tema era caro a Brizola e ao debate político nacional de então:

Concluo então as minhas palavras para dizer a este Congresso que, com a sua vontade ou contra a sua vontade, com as resistências ou sem as resistências das maiorias reacionárias e insensíveis que aqui tem assento, as reformas vão sair e o nosso País vai se libertar da espoliação internacional. Se os governantes e legisladores, os responsáveis pelos nossos destinos, continuarem indiferentes, insensíveis, como até agora, comprometidos, - porque não dizer? – com esse quadro de desgraça, de espoliação e de domínio estrangeiro, então, inexoravelmente, como está escrito na Carta de Vargas, o nosso povo há de fazer tudo isso em nome dos seus destinos, dos destinos eternos da nacionalidade, pelas suas próprias mãos e iniciativas e eu, como milhões, estarei ao seu lado. (BRIZOLA, apud BRAGA, 2004, p. 613).

Ao longo de tantas passagens, procuramos demonstrar o quanto o tema do subdesenvolvimento ganhou corpo na política nacional, mobilizando os debates políticos do período. O fato de Brizola, uma das mais destacadas lideranças políticas de então, ter encampado não só o discurso, mas tê-lo convertido em sua bandeira de lutas e de atuação, só reforça nossa hipótese de que as condições de vida, da carestia e dos caminhos para o desenvolvimento brasileiro por meio da execução de um projeto nacional de desenvolvimento era o centro da política nacional, envolvendo diversos setores.

Conclusão: Brizola e a luta pela emancipação do Brasil (ainda incompleta)

Passadas muitas décadas da luta promovida por Brizola pela emancipação nacional e mesmo de sua morte, em 2004, não nos parece equivocado – ainda que seja arriscado – afirmar que o Brasil ainda carece de um projeto nacional que seja capaz de nos projetar para o futuro. Fome, miséria, falta de perspectiva para a juventude, desemprego, baixos salários, problemas do século passado que insistem em permanecer entre nós, sabotando qualquer possibilidade de que o Brasil deixe sua condição periférica e possa, enfim, ser o país que Brizola, Jango, Getúlio e tantos outros líderes do PTB da época imaginaram e pelo qual lutaram.

Procuramos neste ensaio demonstrar que a questão do subdesenvolvimento foi (e ainda é) o centro do debate político nacional do “século” 1930-1964, período de maior efervescência e transformação política nacional de nossa história recente, sendo a bandeira de lutas sobre a qual se ergue o PTB e suas lideranças, que continuaram o legado varguista da promoção do desenvolvimento nacional até a Ditadura por um fim à democracia e, com ela, à esperança de libertar o Brasil da dependência. E nesta caminhada, Brizola teve papel fundamental, como também procuramos demonstrar ao longo do texto, por provavelmente ter sido o mais destacado líder político depois de Getúlio Vargas a empunhar a bandeira do desenvolvimentismo do ponto de vista político.

O nacional-desenvolvimentismo não era uma bandeira somente da esquerda, nem do PTB, nem de Brizola. Era um tema amplo, que mobilizava diferentes setores sociais e que congregou parte importante da luta política nacional do período. Mas esta constatação não diminui a importância do líder trabalhista gaúcho, mas a eleva: em um ambiente radicalizado, eivado por interesses internacionais os mais sensíveis, ter uma liderança do porte de Brizola, que conseguia transportar para a massa entendimentos complexos sobre as razões pelas quais tudo lhes faltava, foi um feito cujos precedentes mais imediatos só encontramos no primeiro dos líderes trabalhistas gaúchos, Getúlio Vargas.

Em seu último discurso em vida, Brizola afirmou (apud Braga, 2004, p. 612): “Estamos cumprindo a missão que nosso grande chefe inspirador, Getúlio Vargas – o maior de todos os brasileiros, porque foi simples, humilde e sábio – delegou”. Essa foi a vida do líder trabalhista: levar a bandeira da emancipação nacional adiante. Brizola se foi e o objetivo segue incompleto. Cabe aos que aqui ainda realizá-lo.

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Autor notes

I Instituto de Ciências Sociais – INCIS da Universidade Federal de Uberlândia, Brasil. E-mail: mfjr@ufu.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7174-7177

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