Artículos científicos
Recepção: 15 Janeiro 2024
Aprovação: 31 Janeiro 2024
Cómo citar / citation: Rocha, F.S. (2024). A paz desde a periferia: reposicionando a paz para além do liberal e sua crítica. Estudios de la Paz y el Conflicto, Revista Latinoamericana, Volumen 5, Número 10, 14-29. https://doi.org/10.5377/rlpc.v5i10.17553
Resumo: A compreensão sobre a paz não é um debate encerrado por um consenso e a disputa por seu significado torna-se importante na medida em que impacta a formação de uma agenda de governança em um mundo marcado por violência. Diante de uma violência que não é uniforme e que se apresenta de forma crônica nos países periféricos, cabe pôr em discussão diferentes perspectivas a fim de encontrar suas limitações e respostas alternativas para a transformação deste cenário. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo realizar um debate metateórico entre as fundamentações do marco liberal da paz, sua crítica e as contribuições da crítica decolonial, ao mesmo tempo que refletimos sobre uma ótica periférica de uma agenda da paz. Para tanto, dedicamos três seções, nas quais aprofundamos gradativamente as camadas de compreensão e pomos os marcos teóricos em confronto. Como resultado, enxergou-se que a raiz dos conflitos na periferia obedecem a uma paz inconclusa derivada da perpetuação de uma violenta relação de poder colonial que torna emergente a produção e aproveitamento de experiências e epistemes que pautem uma agenda periférica de pazes transformadoras da colonialidade e suas violências.
Palavras-chave: Periferia, decolonialidade, violência, paz.
Abstract: The comprehension about peace is not a concluded debate by consensus and the dispute over its meaning becomes important because it impacts the formation of a governance agenda in a violent world. Faced with violence that is not uniform and is chronic in peripheral countries, it is important to discuss different perspectives in order to find their limitations and alternative responses to transforming this scenario. In this sense, this article aims to carry out a metatheoretical debate between the foundations of the liberal peace framework, its criticism and the contributions of decolonial criticism, while at the same time reflecting on a peripheral perspective of a peace agenda. To this end, we dedicate three sections, in which we gradually deepen the layers of understanding and confront the theoretical frameworks. As a result, it was seen that the root of conflicts in the periphery obey an inconclusive peace derived from the perpetuation of a violent colonial power relationship that makes necessary the production and use of experiences and epistemes that guide a peripheral peace agenda that transforms coloniality and their violence.
Keywords: Periphery, decoloniality, violence, peace.
Resumen: La comprensión acerca del significado de paz no es un debate finalizado por un consenso y la disputa sobre su significado se vuelve importante ya que impacta en la formación de una agenda de gobernanza en un mundo marcado por la violencia. Frente a una violencia que no es uniforme y que aparece de manera crónica en los países periféricos, es importante discutir diferentes perspectivas para encontrar limitaciones y respuestas alternativas para transformar este escenario. En este sentido, este artículo pretende realizar un debate metateórico entre los fundamentos del marco de paz liberal, su crítica y los aportes de la crítica decolonial, al mismo tiempo que reflexiona sobre una perspectiva periférica de una agenda de paz. A ello dedicamos tres apartados, en los que poco a poco profundizamos en las capas de comprensión y confrontamos los marcos teóricos. Como resultado, se vio que la raíz de los conflictos en la periferia obedece a una paz inconclusa derivada de la perpetuación de una relación violenta de poder colonial que hace necesario la producción y uso de experiencias y epistemes capaces de construir una agenda periférica de paz transformadora de la colonialidad y su violencia.
Palabras clave: Periferia, decolonialidad, violencia, paz.
EXTENDED ABSTRACT
The comprehension about peace is not a concluded debate by consensus and the dispute over its meaning becomes important because it impacts the formation of a governance agenda in a violent world. Faced with violence that is not uniform and is chronic in peripheral countries, it is important to discuss different perspectives in order to find their limitations and alternative responses to transforming this scenario. Thus, we start from the hypothesis that the hegemonic idea of the peace concept propagated since the 1990s, serves interests historically constructed by an unequal power relationship between metropolis and colony that did not end with formal independence, on the contrary, it is maintained by economic, political and cultural means, transforming into hierarchical relationships between Center and Periphery or Global North and South. In other words, the concept of peace and its operationalization act in the reproduction of this colonial power relationship which, instead of transforming historical violence on the periphery, intensifies it. In this sense, this article aims to destabilize the hegemonic crystallization of the peace concept as universal through a metatheoretical debate between the foundations of the liberal peace framework, its critique and the contributions of decolonial critique, exposing the historical relations of power within the concept of peace while reflecting on a peripheral perspective of a peace agenda capable of breaking with the logic of colonial power. To this end, we dedicate three sections, in which we gradually deepen the layers of understanding and confront the theoretical frameworks. As a result, it was seen that the root of conflicts in the periphery obey an inconclusive peace derived from the perpetuation of a violent colonial power relationship that makes necessary the production and use of experiences and epistemes that guide a peripheral peace agenda that transforms coloniality and their violence.
1. INTRODUÇÃO
Thiago Menezes Flausino é o nome de um jovem negro, de treze anos, da Zona Oeste do Rio de Janeiro que morreu baleado no dia 07 de agosto de 2023 (Coelho, 2023). O caso chamou atenção nacional para uma das violências que atravessam o cotidiano da vida dos moradores de comunidades nas periferias do Brasil. Uma violência que não é randômica, mas que possui recortes estruturais profundos como de classe, raça, gênero e outros. E que, ao mesmo tempo, acontece dentro de um Estado marcado por uma tradição ocidentalista de política, economia e justiça.
Entretanto, mesmo não sendo um caso de violência aleatória, Thiago entra para índices gerais de homicídios, tais como Internal Violence Index ou dados estatísticos do Banco Mundial de homicídios intencionais. Tais índices não apontam para as particularidades desse tipo específico de violência, homicídio, conectando-a com outros tipos de violência que, nos países da periferia global, são inseparáveis. Tal aspecto pode ser melhor observado no Global Peace Index, especificamente no levantamento de dados sobre paz positiva[1].
Ao sobrepor este índice, que leva em conta questões como desigualdade de gênero, exclusão de grupos socioeconômicos, acesso à educação e emprego, características político-institucionais e econômicas (Institute for Economics and Peace, 2023), com os índices que associam a violência apenas a homicídios (FERDI, 2020; World Bank, 2021), temos a formação de dados complementares. Os países com mais homicídios são os países com maiores desigualdades de gênero, exclusão social, dificuldades econômicas e problemas político-institucionais, tornando clara uma divisão geopolítica, onde os países do Sul Global ocupam as primeiras posições em ambos os aspectos. Assim, podemos nos questionar qual o caminho para a transformação das violências e para se alcançar a paz nos países periféricos.
Este questionamento é o mesmo que norteia um campo significativo dos estudos pela paz, a Organização das Nações Unidas e suas Instituições Financeiras Internacionais desde a década de 1990, quando houve a ampliação do debate sobre a paz. Em um momento histórico marcado pela internacionalização de problemas que antes eram mais localizados (Kaldor, 2013, pp. 1-3), documentos como “Uma agenda para a paz” (UN-S.G, 1992), “Uma agenda para o desenvolvimento” (UN-SG, 1994) e “Relatório sobre o desenvolvimento humano” (UNPD, 1994) buscaram respostas operacionalizando as bases liberais sobre paz. Em síntese, tal perspectiva aponta que um modelo político democrático e orientado a uma economia de livre mercado seria capaz de transformar as principais fontes de conflito, e a globalização deste modelo conduziria o mundo à paz.
Contudo, países periféricos com independência formal de longo prazo, como os países latino-americanos, desde os anos 90, em sua maioria, já experimentam este modelo político-econômico. Já países periféricos de independência recente, como os do continente africano, Oriente Médio e Oceania, vivenciaram operações de paz que buscaram a aplicação de reformas políticas e econômicas para a aplicação do modelo. Tais experiências, ainda assim, não foram suficientes para o estabelecimento de uma paz sustentável na periferia.
Por outro lado, os desenvolvimentos teóricos críticos nos estudos pela paz subsequentes, tentam explicar essa ineficiência e elucidam as relações de interesses econômicos na aplicação do que denominam “Paz Liberal” (Richmond; Franks, 2009, p. 4). Estes estudos oferecem excelentes ferramentas de análise da aplicação do peacebuilding em regiões pós-conflito, tornando o tema uma agenda de debate, mas não apresentam as diversas manifestações de violências dos outros países da periferia global como uma pauta. Neste sentido, este artigo estabelece o questionamento sobre o que seria ir além da crítica da economia-política a ponto de tornar o debate sobre a paz na periferia uma agenda. Como podemos pensar a paz a partir dos países periféricos?
Nossa hipótese é a de que um olhar para a paz desde a periferia, passa por epistemologias do próprio Sul Global, que rompam com a perpetuação de uma relação de poder, que não surgem com o peacebuilding, mas que foram estabelecida e vem sendo perpetuadas desde o período colonial, sendo elas responsáveis pelas violências se apresentarem como um problema estrutural crônico. Desse modo, nosso objetivo é realizar um debate metateórico entre as fundamentações do marco liberal da paz, sua crítica e as contribuições da crítica decolonial. Ao mesmo tempo em que investigaremos a necessidade de um debate interseccional da categoria violência e se podemos pensar a paz como um conceito universal.
2. METODOLOGIA
Para atingir tal objetivo descrito anteriormente, adotamos uma estratégia metodológica qualitativa por considerar que as escolhas explicativas de um determinado fenômeno são dotadas de significado, não obedecendo a uma lógica objetiva ou mecanicista (Barragán, Aillón, Sanjinés, Langer, Córdova, Rojas e Alman, 2007, p. 95). Tal aspecto é fundamental como ponto de partida para o questionamento sobre o padrão explicativo hegemônico do significado de paz realizado nesta pesquisa. Assim, buscamos desestabilizar tais elaborações teóricas consagradas como universais, desvendando sua lógica mais profunda, assumindo uma posição epistemológica emancipatória crítica ao questionar as relações de poder engendradas na teoria e, consequentemente, em sua prática (Barragán et al., 2007, p. 11).
Concomitantemente, a tarefa executada ao longo do artigo é a do debate entre as diferentes lentes teóricas a respeito de uma mesma categoria. Desse modo, realizamos uma revisão de fontes primárias e secundárias como primeiro passo para a execução de uma delimitação teórica que permita a ampliação da compreensão acerca do tema. É através desta revisão que poderemos recuperar as bases de construção de um conceito que estão dispersas nas fontes teóricas e oficiais.
Para tanto, este artigo está dividido em três partes. No primeiro momento buscamos mostrar como se deu esse alargamento no entendimento de paz, como também, quais os pressupostos ontológicos e epistemológicos que orientam os esforços de construção da paz na década de 1990. Na sequência, como forma de apresentar um primeiro leque de limitações dessa leitura liberal da paz, apresentamos a crítica procedimental e estrutural à operacionalização da paz liberal e suas contradições. Posteriormente, aprofundamos este debate alargando ainda mais as fronteiras do pensar sobre a paz ao inserir a perspectiva decolonial no debate entre a paz liberal e sua crítica, apresentando também, aspectos indispensáveis em uma epistemologia sobre a paz desde o olhar periférico.
3. A OPERACIONALIZAÇÃO DA PERSPECTIVA LIBERAL DA PAZ
O fim da Guerra-Fria é marcado por uma importante mudança na agenda internacional de segurança, refletindo um alargamento na compreensão sobre atores, ameaças e estratégias de atuação. Durante a Guerra Fria, a abordagem dominante baseada no realismo político entendia os Estados como a principal entidade a ser protegida, o responsável por agir internacionalmente, a ameaça representada na figura de outros Estados do Sistema Internacional e do risco nuclear, e a estratégia de atuação marcada por questões militares. Contudo, após esse período, passamos a observar o predomínio de uma leitura de segurança focada na proteção humana, na qual conflitos dentro dos Estados, fome, pobreza, descriminação racial, passam a ser vistos como ameaças, exigindo assim uma estratégia de atuação multidimensional (Blanco e Guerra, 2018, pp. 8-11).
Através do documento “Uma Agenda para a Paz” elaborado pelo então Secretário Geral das Nações Unidas, Boutros Ghali em 1992, aspectos como a crise de refugiados, migrações em massa, pobreza, doença, fome e opressão são apresentados como a prioridade de atuação da ONU (UN-SG, 1992, p. 7). Isso porque, tais aspectos são entendidos como as causas de um novo tipo de conflito que se constitui como ameaça à segurança global - as guerras civis (Paris, 2004, p. 1). Mary Kaldor nos ajuda a entender a necessidade dessa reformulação por estes conflitos trazerem o desafio internacional de lidar com novos atores estatais e não estatais, envolverem a disputa por recursos escassos dentro dos Estados, serem amplamente internacionalizados, principalmente, pelos conflitos acontecerem, em sua maioria, dentro dos Estados e não entre Estados (Kaldor, 2013, p. 1-3).
Em busca da compreensão deste alargamento da abordagem da paz da ONU, entendida enquanto a fonte de segurança internacional, torna-se importante, primeiro, compreender qual a fundamentação teórica desta leitura sobre paz; segundo, quais as soluções encontradas para o estabelecimento desta paz; terceiro, qual a fundamentação destas soluções. Obedecendo esta sequência, podemos encontrar a sustentação para a ampliação da abordagem sobre a paz adotada na década de 1990 em pesquisas dos Estudos para a Paz desenvolvidas na década de 1970. Johan Galtung, principal expoente deste campo de estudo neste período, em “Three Approaches to Peace”, realiza uma leitura multinível para a paz, entendo que esta só pode ser alcançada mediante a modificação das estruturas de violência (conflito direto ou suas outras manifestações, tais como: a distribuição desigual de recursos - renda, educação, serviços médicos, alimentação) que geram o conflito, denominando este esforço como “paz positiva” (Galtung, 1976, pp. 103-107; Oliveira, 2017, p. 155).
A diversificação de atores, ameaças (as manifestações da violência enquanto fontes do conflito) e a proposição de um entendimento de segurança focado no ser humano, antecipada por Galtung na década de 1970, torna-se o retrato do cenário internacional no pós-Guerra Fria. Com isso, instrumentos de enfrentamento dos conflitos utilizados até então com foco estreito na contenção do conflito tornam-se ineficazes para responder às novas demandas da época. E não por acaso, o conceito de paz positiva proposto por Galtung é reinterpretado em um sentido mais restrito pela principal organização internacional deste período, convertendo-se “na visão dominante nos círculos políticos, e em parte, também acadêmicos, sobre o que é a paz e os meios para alcançá-la” (Jaime-Salas, Correal, Armiño, Londoño, Castro e Marín, 2020, p. 28).
Contudo, se a segurança internacional passa agora pelos esforços em torno da paz positiva, a questão que pode ser levantada é: qual a maneira de se transformar as estruturas de violências, os problemas socioeconômicos de desigualdade e pobreza, que desaguam no conflito? Para responder tal questionamento, é necessário dar alguns passos atrás para compreender o significado do fim da Guerra Fria. Uma das questões centrais na disputa entre EUA e URSS durante a Guerra Fria diretamente conectado à política de formação de alianças, era sobre qual o modelo de organização político, econômico e social seria capaz de transformar a fragilidade econômica dos países em processo recente de independência e a crise econômica vivenciada no pós-Segunda Guerra Mundial (Dos Santos, 2020, pp. 6-17). Nesse sentido, o fim do regime soviético abre espaço para a narrativa da vitória do modelo político, econômico e social norte-americano.
Em termos políticos, o modelo estadunidense alça instituições democráticas como a estrutura ideal para a construção de um Estado capaz de alcançar a paz (Blanco e Guerra, 2018, p. 15). Por outro lado, estes Estados democráticos deveriam sustentar um ambiente econômico mercantilizado com a maximização da liberdade de investidores privados, produtos e consumidores (Paris, 2004, p. 19). Juntos, um ambiente político democrático e uma economia de livre-mercado, seriam a fórmula para qualquer país reproduzir o sucesso norte-americano e se desenvolver corrigindo os problemas socioeconômicos. Assim, temos no modelo estadunidense a bússola que aponta como a paz positiva poderia ser construída, e observando esta íntima conexão, Oliver Richmond e Jason Franks denominam esse projeto de “paz liberal” colocando-o como um “discurso, marco e estrutura com uma ontologia e metodologia específica” (Richmond e Franks, 2012, p. 4).
Desse modo, podemos passar ao terceiro e último aspecto para compreender o alargamento acerca da paz nos anos 1990: qual a fundamentação destas soluções. Tal aspecto é fundamental para esta pesquisa por permitir investigar as limitações ontológicas e epistêmicas de aplicação da Paz Liberal nos países periféricos. Ou seja, o que podemos encontrar como ontologia da Paz Liberal que torna suas experiências de aplicação na periferia insuficientes para a construção sustentável da paz positiva.
Segundo Marta Fernández (2014, p. 417), no contexto da teoria da paz liberal, Kant é a principal referência de sua fundamentação. Neste sentido, para analisar de forma profunda os pressupostos da paz liberal precisamos recorrer a sua elaboração teórica e aplicação nos fundamentos liberais das relações internacionais. Realizaremos esta análise levando em consideração três aspectos: 1. o embasamento de uma lógica de segurança voltada para os indivíduos e não para os Estados; 2. a premissa da universalidade; 3. a justificativa política; 4. a justificativa econômica.
O primeiro aspecto, ao mesmo tempo que explica a virada da leitura de segurança dos Estados para os indivíduos, é o eixo de conexão das demais explicações. Isso porque, para entender porque este modelo político econômico de democracia liberal seria responsável pela paz, é necessário considerar que o ponto de partida de Kant é a humanidade como fim em si mesma (Kant, 1964). Segundo o filósofo, ter o ser humano como uma finalidade em si mesma constitui um imperativo moral categórico, uma espécie de fórmula pela qual se determina uma ação. Em outras palavras, ter o ser humano enquanto fim conduziria a uma organização dos indivíduos em sociedade, dos Estados, de leis, mais assertivas, que funcionaria para todos por causa de sua universalidade e por estar despida de outros interesses.
Tal perspectiva contrasta com uma leitura realista de segurança que considera os Estados como seu foco de atuação, não funcionaria para garantia de um sistema internacional pacífico devido ao fato dos interesses de cada Estados serem divergentes, particulares. Por outro lado, deslocar a segurança para o ser humano, torna a busca pela paz algo válido para todos por não possuir interesses terceiros, funcionando como um ponto de conexão entre todos os Estados, organizações e sociedades que integram o sistema internacional. Portanto, se a transformação das violências estruturais requer a solução da falta de desenvolvimento, como consta em “Uma agenda para o desenvolvimento” (UN, SG, 1994), esse desenvolvimento fomentador da segurança é explicado no “Relatório sobre o desenvolvimento humano” como o desenvolvimento humano sustentável (UNDP, 1994, pp.15-20).
É neste roteiro que se destaca a premissa da universalidade. Tudo aquilo justificado pelo ser humano como finalidade ganha o aspecto de universal, passível de aplicação a todos. Por isso que, da mesma maneira que o desenvolvimento e a paz se tornam universais por adotar o ser humano como finalidade, os modelos políticos e econômicos a serem adotados como modelos universais são sustentados pelas mesmas premissas - estruturas necessárias e modelos ideais pelos indivíduos serem seu epicentro. É neste sentido que na “paz perpétua” Kant propõe que o estabelecimento da paz perpétua se dará quando todas as nações aceitarem este modelo proposto (Doyle, 1983, p. 225).
No aspecto político, a teoria kantiana entende a democracia como um pressuposto importante para a paz, quanto mais democrático, participativo o sistema político e constitucionalmente seguro, mais pacífico tende a ser este Estado (Doyle, 1983, p. 2013). Como explica Doyle, inspirado em Kant, isso se deve principalmente “porque nesses Estados os cidadãos governam a política e arcam com os custos da guerra” (Doyle, 1983, p. 225). Kant afirma que em governos com uma autoridade governamental não republicana “não há essa dificuldade em decidir ir a uma guerra, pois os custos dela não recaem sobre ela” (Kant, 2008, p.13). Por isso, governos republicanos seriam os mais pacíficos por terem uma maior participação e mediação daqueles mais afetados pelas consequências de um conflito.
Vale ressaltar que no primeiro artigo definitivo de Kant encontramos que a constituição civil em cada Estado deve ser republicana. Isso porque, o filósofo deixa clara a diferenciação entre democracias (sobre quem tem o poder do Estado) e república (sobre o modo de governar esse Estado) (Kant, 2008, pp. 11-14). Contudo, como afirma Marta Fernandez, quando incorporado ao modelo político de governança ideal pela ONU, as democracias liberais são apresentadas como o equivalente atual à república em Kant (Fernández, 2014, p. 419). Segundo Fernández podemos encontrar no discurso de Kofi Annan que:
A democracia liberal é um sistema aberto, transparente, incapaz de mobilizar seus cidadãos para a guerra sem antes convencer a maioria deles de que a guerra é justa e necessária. (...) os Estados democráticos que respeitam os direitos e todos os cidadãos permitindo que tenham voz nas decisões que afetam suas vidas fornecem o ambiente econômico e social capaz de atrair investidores e, desse modo, além de promoverem a paz internacional, fomentam o desenvolvimento. Annan (2002 como citado em Fernández, 2014, p. 420).
Ou seja, tendo em vista que a premissa kantiana para um governo pacífico é a participação popular e o respeito constitucional, atualmente a democracia é a organização política mais representativa deste modelo. Entretanto, outro fato pode ser destacado da fala de Kofi Annan - o desenvolvimento. É o desenvolvimento, que também está em destaque em “Uma agenda para o desenvolvimento” (UN-SG, 1994) e “Relatório sobre o desenvolvimento humano” (UNDP, 1994) que abre espaço para entendermos a proposta econômica da paz liberal.
O liberalismo econômico é justificado pela ideia de que a interdependência econômica e as relações comerciais seriam responsáveis por criar um ambiente desfavorável ao conflito, por este prejudicar essas relações (Kemer, Pereira e Blanco, 2016, p. 140). Tal aspecto pode ser conectado ao terceiro artigo definitivo de Kant que versa sobre o cosmopolitismo. Para Doyle a hospitalidade universal proposta por Kant “parece incluir o direito de acesso e a obrigação de manter a oportunidade para os cidadãos trocarem bens e ideias, sem impor a obrigação de comércio “um ato voluntário em todos os casos sob constituições liberais” (Doyle, 1983, p. 226).
Pode-se inferir com isso, que apesar de o livre mercado não ser uma imposição constitucional dos Estados, este precisa ser incorporado à constituição como um direito. Em outras palavras, as portas precisam estar abertas para o mercado internacional.
Quando incorporado pela ONU, o livre mercado soma-se a ideia de desenvolvimento, primeiro enquanto solução para a ausência de desenvolvimento (origem das violências estruturais promotoras do conflito) e como modelo vencedor da Guerra Fria. Neste sentido, em uma agenda para o desenvolvimento podemos encontrar afirmações como: “o desenvolvimento é um direito humano fundamental, é também a base mais segura da paz” (UN-SG, 1994, p. 3) ou “a falta de desenvolvimento acrescenta a tensão interna e contribui para que se veja uma necessidade de poderío militar” (UN- SG, 1994, p. 5). Por outro lado, esta estratégia de desenvolvimento, não é outra senão o modelo econômico norte-americano desenhado desde as Teorias do Desenvolvimento da década de 1950 às recomendações do Consenso de Washington dos anos 1980 que recomendam a remoção de obstáculos internos, a redução do papel do Estado, a ampliação da atuação de empresas privadas e o incentivo a investimentos externos (Rocha, 2023, pp. 77-78; UN-SG, 1994, pp. 11-12).
Como assinala Doyle, Estados que não seguem a aplicação deste modelo em termos sociais, políticos e econômicos, conforme explicitado acima, incorrem na falha (Doyle, 1983, p. 228). Tais Estados passam a ser compreendidos como “Estados falidos” - aqueles incapazes de oferecer segurança, bem-estar e direitos às suas populações (Blanco e Guerra, 2018, pp. 10-11). Assim, Ramon Blanco e Lucas Guerra destacam que:
(...) tais Estados passam a ser apontados pela narrativa ortodoxa como uma dupla ameaça: à segurança de seus próprios cidadãos — por violar sistematicamente seus direitos fundamentais — e à segurança da região em que se inserem e à segurança internacional de maneira geral, uma vez que se vincula os “Estados falidos” à produção de instabilidades, conflitos, grupos terroristas, crises migratórias, dentre outras possíveis ameaças. Logo, o combate à “falência” dos Estados e aos conflitos intraestatais violentos gerados por tal falência passa a ser prioridade na agenda de construção de segurança e paz internacionais. (Blanco e Guerra, 2018, p. 11)
Dessa forma, torna-se missão da ONU a partir da década de 1990 a intervenção direta nestes Estados ditos falidos sob justificativa de construção da paz. Tais intervenções se darão através do instrumento multidimensional de reconstrução de Estados - o peacebuilding - que executa reformas políticas, econômicas, sociais e de infraestrutura buscando construir este modelo ideal de Estado funcional (David, 1999 p. 28; Blanco, 2014, pp. 287-288). E ainda que o quinto artigo preliminar de Kant destaque que “nenhum Estado deve imiscuir pela força na constituição e no governo de outro Estado” (Kant, 2008, p. 7), ainda assim, podemos encontrar uma fundamentação para estas intervenções quando ele complementa:
(...) não se aplicaria, de certo, ao caso em que um Estado se dividiu em duas partes devido a discórdias internas e cada uma representa para si um Estado particular, com a pretensão de ser o todo; Se um terceiro Estado presta, então, ajuda a uma das parte não se poderia considerar como ingerÊncia na constituição de outro Estado (pois só existe anarquia)” (Kant, 2008, p. 7)
Neste trecho podemos encontrar exatamente o desenho do sistema internacional da década de 1990 quando descreve basicamente as guerras civis. Por isso, é impossível separar a aplicação da Paz Liberal de sua fundamentação teórica. Através dos pontos levantados acima, é possível enxergar como a prática age em conformidade com a teoria. E é justamente sobre este último aspecto, a aplicação prática da Paz Liberal, que o pensamento crítico dos Estudos da Paz recai. Assim, a próxima seção dedica-se a compreender o aporte crítico oferecido pela crítica a Paz Liberal, na qual poderemos avançar na compreensão das limitações deste pensamento quando aplicado nos países periféricos.
4. CONTRIBUIÇÕES DA CRÍTICA À PAZ LIBERAL
Como vimos anteriormente, a década de 1990 é marcada pelo alargamento da compreensão sobre paz e segurança, na qual a construção da paz depende de uma estrutura estatal politicamente democrática e economicamente liberal, responsáveis por corrigir as fontes de violências reconhecidas neste momento como propulsoras de conflitos e assim chegar à paz positiva. Influenciada pela vitória do modelo norte-americano e fundamentada no pensamento filosófico liberal e kantiano, esta abordagem de paz ganha ainda mais força com a possibilidade de aplicação prática em processos de reconstrução de Estados destruídos por conflito através do instrumento de peacebuilding. Entretanto, teóricos críticos ao modelo da Paz Liberal, permitem compreender as limitações teóricas ao observar sua aplicação prática na reconstrução de Estados periféricos, sendo esta seção, dedicada a explorar as contribuições oferecidas por esta vertente crítica.
Autores como Mark Duffield, Michael Pug, Oliver Richmond, Ramon Blanco e Roland Paris dedicam suas pesquisas à compreensão crítica sob os efeitos da universalização de um modelo político e econômico presente do instrumento de peacebuilding, que busca reconstruir as estruturas econômicas, políticas e sociais para implementação de democracias liberais orientadas ao livre mercado, denominando-o de Paz Liberal (Blanco e Guerra, 2018, p. 15). Segundo essa perspectiva crítica, o modelo da Paz Liberal pressupõe a existência de Estados ideais, sólidos e especialistas na construção da paz (Cruz, 2020, p. 79). Além disso, como reforça Juan Cruz (2020, p. 79), o foco da crítica estabelecida por esses autores são as operações de paz nos Estados em situação pós-conflito no Sul Global e no Oriente e como elas resultam em benefícios aos Estados, elites, atores internacionais, questões de segurança, instituições liberais e normas do Norte Global.
Ramon Blanco e Lucas Guerra (2018, p. 17) ajudam a compreender dois principais campos críticos à chamada Paz Liberal: procedimentais e estruturais. Em geral, os autores dentro da crítica procedimental “não questionam os pressupostos teóricos e ideológicos da paz liberal, apenas divergem acerca das melhores estratégias para avançar em relação à democratização e a mercantilização das sociedades pós-conflito” (Blanco e Guerra, p. 17). As críticas feitas por Bellamy, Williams e Griffin (2010 como citado em Blanco e Guerra, 2018, p. 18), por exemplo, estão direcionadas a questões organizacionais, como a imprecisão dos mandatos do Conselho de Segurança na ONU que orientam as operações, ou mesmo, a insuficiência de recursos humanos e financeiros necessários à realização da operação.
Neste grupo, podemos encontrar também a preocupação com os efeitos econômicos negativos provocados pelo aumento das demandas geradas pelo contingente civil, militar e político enviado ao local (Blanco e Guerra, 2018, p. 18). Outra preocupação reside na possibilidade de transmissão de doenças infecciosas por este corpo estrangeiro às populações locais e o uso arbitrário da violência, abusos sexuais e estupros praticados pelas tropas da operação (Blanco e Guerra, 2018, pp. 18-19). Contudo, o que podemos destacar é que este grupo não realiza uma crítica aos fundamentos ou à ontologia que norteia a paz liberal, mas sim, aos desafios e problemáticas derivados de sua de aplicação.
Por outro lado, no campo da crítica estrutural, os autores realizam um “questionamento dos pressupostos normativos das operações de peacebuilding liberal, buscando evidenciar as conexões existentes entre essas e as relações de poder existentes no cenário internacional” (Blanco e Guerra, 2018, p. 17). A fundamentação teórica desta crítica advém das contribuições da Teoria Crítica das Relações internacionais, concentrando-se em mostrar como a Paz Liberal pode funcionar como um mecanismo de: 1. solução de problema; 2. perpetuação de uma ordem mundial neoliberal; 3. e como as organizações internacionais auxiliam nestes dois aspectos (Blanco e Guerra, 2018, p. 20). Neste sentido, como estes questionamentos conectam-se com o objetivo de identificar as limitações da paz liberal, nos aprofundaremos no diálogo dessa corrente crítica com a ontologia liberal kantiana.
Realizando o exercício de voltar alguns passos para compreender o desenvolvimento teórico, veremos que Robert Cox (2021), categoriza teorias de solução de problemas em oposição à teoria crítica. Cox aponta que esse tipo de abordagem teórica - solução de problemas - “toma o mundo como o encontra, com as relações sociais e de poder prevalecentes e as instituições nas quais elas estão organizadas, como o quadro dado para a ação” (Cox, 2021, p. 14). Por sua vez, a Teoria Crítica “não considera as instituições e as relações sociais e de poder como dadas, mas as questionam ao se preocupar com suas origens e como e se elas podem estar em processo de mudança” (Cox, 2021, p. 15). Isto é, a teoria crítica contribui para problematizar como a escolha de um marco teórico não se dá ao acaso, mas é uma escolha política que pode contribuir para a manutenção das relações de poder já estabelecidas ou para sua transformação.
Neste sentido, o campo crítico a paz liberal busca evidenciar o quanto o modelo liberal de fato atende às necessidades daqueles que ocupam uma posição de poder. Sendo assim, ao posicionar a paz liberal como uma teoria de resolução de problemas, expõe-se que esta não busca realizar transformações na estrutura, mas sim corrigir disfunções para o bom funcionamento dessa estrutura (Silva, 2005, p. 262). Marco Silva complementa ainda afirmando que:
O objetivo geral da resolução de problemas é fazer com que as relações e instituições prevalecentes de dominação social e política funcionem bem por meio do enfoque das origens específicas dos problemas. Como o padrão geral das relações e instituições não é passível de crítica, problemas específicos são analisados em relação às áreas especializadas de atividades em que surgem. (Silva, 2005, p. 262)
Ou seja, a partir desta perspectiva, quando instrumentos como o peacebuilding são utilizados nos países periféricos, não se questiona como o que se identifica como fonte de conflito foi formado, mas sim, como o conflito interno torna-se um problema de segurança internacional. Desse modo, busca-se corrigir estas falhas que ameaçam o bom funcionamento da ordem social, econômica e política em curso. Neste sentido, Bellamy, Williams e Griffin (como citado em Blanco e Guerra, 2018, p. 20) identificam como principal motivação para as operações de reconstrução pós-bélica, a necessidade de controlar eventos que ameacem a acumulação capitalista mundial. Além disso, reconhecem também no capitalismo a fonte geradora de condições desfavoráveis que culminam em conflitos. Em termos gerais, o motor das ações da Paz Liberal está na necessidade de garantir o pleno abastecimento de matérias-primas, capitais e mão-de-obra, sendo o cenário de conflito um obstáculo para este livre fluxo do qual os centros econômicos dependem.
Contribuindo para este argumento, Ian Taylor (2010, p. 155) coloca que os principais beneficiários da operacionalização da Paz Liberal são as elites transnacionais, que se engajaram na formação de uma agenda de disseminação das estruturas políticas e econômicas necessárias para a reprodução de suas riquezas. Os interesses dessas classes se relacionam com a resolução de conflitos e as reformas político, econômicas e sociais na medida em que suas riquezas dependem de “[...] um sistema global estável de múltiplos estados para manter o tipo de ordem e previsibilidade de que o capitalismo - mais do que qualquer outra forma social - necessita” (Taylor, 2010, p. 155). Nessa mesma linha, as Organizações Internacionais ganham um papel decisivo:
Obviamente, a afirmação do neoliberalismo como o discurso hegemônico não ocorreu apenas: 'é um sistema social que [teve] que lutar para criar e reproduzir sua ordem hegemônica globalmente, e para fazer isso grande número de locais, nacionais, internacionais e organizações globais [foram] estabelecidas 'para promover as novas normas de organização. O papel de tais organismos (intelectuais orgânicos na linguagem Gramsciana) é promover' uma concepção uniforme do mundo em uma sociedade cada vez mais transnacional'. A economia global integrada é uma nova elite transnacional, que atualmente ocupa as posições de poder onde as decisões vis-à-vis a governança global são tomadas. (Taylor, 2010, p. 155)
A ordem neoliberal perpetua-se, dessa forma, como um modelo de governança que pode ser universalizado e que, como destacado pela teoria liberal, proverá a paz na medida que mais países estiverem adequados a ele. As organizações internacionais contribuem para isso disseminando este modelo como um consenso mundial e aplicando-o, por exemplo, em países cujas suas estruturas foram destruídas pelo conflito. Entretanto, ao analisar sua aplicação e os resultados produzidos nos países periféricos que tiveram suas estruturas reconstruídas a partir do modelo liberal - democracias de livre mercado, Roland Paris (2004, p. 6) afirma que ao invés da paz, esses países têm encontrado um aumento nas tensões sociais ou a reprodução de condições que historicamente alimentaram a violência. Segundo o autor, isso acontece porque “a promoção da democratização e da mercantilização tem o potencial de estimular níveis mais altos de competição social (imediatamente pós-conflito) quando os Estados são menos equipados para conter tais tensões dentro de limites pacífico” (Paris, 2004, p. 6).
Como o modelo é tratado como um consenso, algo ideal e dado que não é passível de questionamento, a distância entre o que se espera na teoria e o que se gera na prática é explicada por problemas na aplicação - tal como previsto por uma teoria de solução de problemas. Em “Understanding the coordination problem in postwar state building”, Paris aponta como é construída a narrativa de que a aplicação da paz liberal falha por motivos alheios a sua estrutura, como por exemplo, devido à dificuldade de coordenação dos múltiplos atores envolvidos no peacebuilding (Paris, 2009). Contudo, como observado no caso do Timor-Leste, considerado um sucesso da operação de peacebuilding, Fábio Rocha demonstra que para além dos problemas de coordenação, os resultados insatisfatórios resultam da construção de uma estrutura extrativista, que suga os recursos produzidos pelo país, tal como no período colonial (Rocha, 2023).
Em síntese, podemos extrair disso que a crítica estrutural da paz liberal busca mostrar através da análise do peacebuilding, que a teoria da paz liberal visa manter a ordem neoliberal de acumulação de riquezas sendo instrumentalizada como uma teoria de solução dos problemas que ameaçam esta ordem. Entretanto, duas questões ainda permanecem sem resposta. A primeira diz respeito ao fato de que uma crítica centrada nas estruturas de poder de uma ordem neoliberal não responde como as fontes dos problemas dos países periféricos, que se manifestam em conflitos internos nos anos 1990, correspondem a uma estrutura que é anterior ao neoliberalismo e que vai além da proposta de Estado da paz liberal. Por outro lado, uma crítica concentrada no peacebuilding, apesar de desestabilizar o universalismo do modelo liberal, não apresenta alternativas a ele.
Desse modo, a próxima seção soma um outro nível de análise à crítica estrutural da paz liberal. Através dos aportes decoloniais, debateremos como o liberalismo e sua crítica ainda possuem limites explicativos para a paz desde a periferia, por não considerar que esta ordem a ser mantida, é na realidade, uma ordem com traços coloniais fundada sob uma narrativa não só universal do modelo liberal, mas universalizante e hierarquizante de epistemologias, raças e organização político-econômica. Além disso, buscaremos entender o que poderia emergir como alternativa a este modelo.
5. A EMERGÊNCIA POR REDESENHAR A PAZ DESDE O OLHAR PERIFÉRICO
As contribuições realizadas pela teoria crítica à paz liberal abrem um importante debate para a compreensão das relações de poder inseridas na aplicação deste modelo a partir dos anos 1990. É por meio dela que podemos observar que a universalização da ideia de paz a partir das estruturas de democracias de livre mercado cumpre a função de manter a segurança internacional protegendo os interesses dos países e classes dominantes. Somar uma abordagem decolonial visa contribuir para interseccionar o debate, mostrando outros recortes tão estruturais quanto os interesses econômicos e indo além de uma crítica centrada na agenda do peacebuilding.
Para tanto, o primeiro é entender como podemos ler as relações de poder que estruturam a ordem mundial atual enquanto um fenômeno histórico e seus mecanismos de reprodução. Neste sentido cabe destacar os esforços do grupo Modernidade/Colonialidade que reúne autores como Arthuro Escobar, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Aníbal Quijano e Fernando Coronil (Ballestrin, 2013, pp. 97-99). Dentre os conceitos desenvolvidos por este grupo podemos encontrar o de colonialidade, definido como a perpetuação do padrão de poder inaugurado com o colonialismo cujo o eixo fundamental é a classificação social hierárquica da população mundial desde o olhar europeu (Quijano, 2000)
Tal definição parte do pressuposto de que a “divisão internacional do trabalho entre centros e periferias, assim como a hierarquização étnico-racial das populações formadas durante vários séculos de expansão colonial europeia” (Castro-Gómez y Grosfoguel, 2007, p. 13), não se findou com a descolonização político jurídica dos séculos XIX e XX. Ou seja, a colonização foi responsável pela instalação de um padrão de poder hierárquico político, econômico e social, responsável por organizar o mundo de forma a privilegiar os países coloniais e suas populações. E, assim como propõe Santiago Castro-Gómez e Ramón Grosfoguel (2007, p.17), os processos de descolonização não deram conta de modificar essas relações de poder estabelecidas no período colonial, tornando-se necessário um esforço decolonial, uma espécie de segunda descolonização de longo prazo, para além de um processo jurídico-político formal. Em síntese a categoria colonialidade expõe:
Os padrões de poder de longa data que surgiram como resultado do colonialismo, mas que definem a cultura, trabalho, relações intersubjetivas e produção do conhecimento muito além dos limites estritos das administrações coloniais. (Blanco e Delgado, 2019, p. 602).
A característica fundamental destes novos padrões é a construção, em todas as esferas citadas acima, de relações binárias de superioridade e inferioridade (Quijano, 2000, p. 202-204). Nesse sentido, Aníbal Quijano insere a introdução da ideia de raça como o eixo principal destas relações de poder hierárquico-binárias, nas quais a raça das populações dos países coloniais ocupa a posição mais elevada. Esta lógica de superioridade e inferioridade é a base do entendimento sobre o qual uma raça é vista como: primitiva ou civilizada, mágica/mítica ou científica, irracional ou racional, atrasada ou moderna e evidencia uma relação de poder ao passo que o civilizado, científico, racional e moderno está atrelado a imagem, experiências e modelos sociais do Norte Global, do colonizador (Quijano, 2000, p. 211).
Dessa forma, as experiências e modelos desenvolvidos no Norte são construídos discursivamente como os verdadeiros, científicos, ideais e os países localizados no Sul são vistos como tendo que buscar, de forma constante, performar este modelo ideal. É esta lógica também, a responsável por conferir um local de inexistência às experiências e modelos do Sul Global retratando-as como primitivas, míticas, irracionais e atrasadas (Santos, 2002, p. 245). Segundo Quijano (2000, p. 209), este processo de construção de um saber hierárquico que torna possível a reprodução desta relação de poder na subjetividade, é apenas um dos componentes da colonialidade. Sua outra expressão é a material e se encontra no controle do trabalho, na qual historicamente as colônias são constituídas como partes subordinadas no processo de produção de mercadorias no mercado mundial, tendo sempre o papel de escoar a produção de seus territórios para os grandes centros econômicos (Quijano, 2000, p. 204).
Identifica-se através dos aportes decoloniais que a colonialidade é uma rede global de poder que integra, ao mesmo tempo, a reprodução do controle histórico do Norte sob o Sul Global por meio da produção de mercadoria (ou do fluxo financeiro), como também, da produção de subjetividades de forma racializada e hierárquica. Ou seja, a questão central desta abordagem é problematizar o papel ocupado pelos países, corpos e saberes periféricos em sua relação histórica com o países, corpos e saberes dos países centrais. A partir desta lógica, o conhecimento oferecido pelo Norte sobre a paz, quando aplicado na periferia, tende a reproduzir a relação extrativista que perdura desde o período colonial.
Para promover o debate metateórico entre a decolonialidade, a paz liberal e sua crítica, daremos atenção a três importantes pontos. Primeiro, analisaremos a paz liberal a partir de seu caráter universalista e universalizante e sua estrutura de hierarquias. Segundo, abordaremos os limites da crítica à paz liberal considerando seu foco socioeconômico, redução da agenda crítica à aplicação do peacebuilding e a ausência de alternativas subversivas à lógica colonial. Por fim, tendo em vista o caráter estrutural da colonialidade, quais violências precisam ser tocadas ao se pensar na paz, quais os problemas a serem corrigidos quando se observa a paz desde o olhar periférico, há alternativas que rompam com a lógica de poder colonial?
Quando pensamos sobre o caráter universal, falamos sobre a pretensão teórica de que determinado modelo pode ser replicado nas mais diversas realidades e onde os resultados não dependem das particularidades histórico-sociais de cada local. Por universalizante, nos referimos a teoria em movimento universalizante, a imposição desse modelo enquanto uma verdade que invalida outros modelos e possibilidades. Ao refletir sobre isso, torna-se importante trazer a violência epistêmica como um dos eixos de análise crítica decolonial. Isso porque:
A imposição de leituras sobre a paz desde o norte global, assim como a inexistência das particularidades da região, constituem-se em uma forma de violência epistêmica, que não só volta a negar o outro do ocidente dominante, mas também impede que se problematize ou se gere resistência a matriz civilizatória ocidental (...). (Jaime-Salas et al., 2020, p. 35)
A violência epistêmica expõe como este modelo único universal e universalizante, atua de modo a negar a viabilidade e existência de outros modelos. Esta violência que Quijano define como colonialidade do poder é o retrato da reprodução das relações de poder coloniais, na qual é o Norte, o colonizador, carrega a verdade e a missão civilizatória de propagar esta verdade. Nesse sentido, quando Kant (2008, p. 7) afirma que “se um terceiro Estado presta, então, ajuda a uma das partes não se poderia considerar como ingerência na constituição de outro Estado (pois só existe anarquia)”, ele legitima o entendimento que esse terceiro Estado tem a missão de civilizar ambientes anárquicos em conflito. E é nesta mesma linha que Boutros Ghali (UN-SG, 1992) posiciona os conflitos da década de 1990 como esse ambiente anárquico que ameaça a segurança internacional e confere à ONU, suas agências especializadas e Estados membros a missão civilizatória de correção das fontes do conflito por meio deste modelo universal que fundamenta o peacebuilding.
Contudo, considerar-se portador desta solução universal depende em contrapartida de uma compreensão hierárquica de mundo. Como afirma Victoria Fontan, é uma visão marcada pela “ideia de que os educados no Norte e experientes democratas se deslocarão para educar a gente local acerca dos valores que devem adotar e agradecer” (Fontan, 2012, p. 23). Tal percepção deriva da construção hierárquica da ideia de que os países desenvolvidos estão localizados no topo da hierarquia humana, “logo, a civilização europeia [em termo atuais, leia-se como a civilização ocidental ou norte global] torna-se o padrão a partir do qual os demais povos vão ser avaliados e comparados” (Fernández, 2014, p. 427). Assim, Fernández (2014, p. 427), apoiada no pensamento de Derrida, aponta que essas hierarquias não são neutras e executam um duplo movimento, desvalorizar o “outro” para se auto-afirmar como civilizado e racional, e educar esse outro sobre a posição de receptor desse conhecimento ou ordem.
Por outro lado, quando ampliamos esta narrativa colonial centralizada na Europa para o Norte Global, reforçamos que o caráter racial desta visão hierárquica vai além da geografia espacial, expandindo-se no espaço e tempo da Europa para os demais centros de poder. Nesse sentido, a colonialidade do saber caminha junto com a divisão racial do trabalho (Quijano, 2000, pp. 201-202) organizando os papéis do centro e periferia, ou mesmo, de um centro branco como produtor de conhecimento e de interesses válidos e as demais identidades sociais periféricas, índios, negros e mestiços, como receptores desse conhecimento e garantidores desses interesses. Ou seja, a partir desta relação, define-se a perpetuação colonial do papel do Norte como civilizador em contraposição a uma periferia anárquica incivilizada.
É justamente através desses aspectos que podemos debater os limites de uma crítica estrutural à paz liberal centrada no aspecto socioeconômico e no instrumento de peacebuilding. Conforme observado, a extração de riqueza dos países periféricos via inserção no mercado mundial por meio do instrumento de peacebuilding não é um fenômeno pontualmente novo, mas representa a reprodução da estrutura de controle racial do trabalho. Segundo Quijano, esta estrutura de controle racial do trabalho é estabelecida e organizada posicionando a periferia como produtora de riqueza para o Norte Global (Quijano, 2000, p. 204). Além disso, o aspecto racial deste controle torna este saque às riquezas produzidas na periferia uma expressão de racismo, tornando impossível não realizar essa intersecção quando precisamos pensar sobre a paz.
Do mesmo modo, o peacebuilding é tão somente uma das operacionalizações práticas em países desestruturados pelo conflito de um projeto de governança global que impacta também países com independências formais de longo prazo, afetados ou não por conflitos. Foi buscando demonstrar tal aspecto que escolhemos iniciar este artigo com a história de Thiago Menezes Flausino. Esta história mostra como territórios, corpos, raças e outras expressões de violência estão ausentes do debate sobre a paz, quando não mais representam uma ameaça à segurança internacional por estarem sob a contenção dos muros de uma tradição democrática e liberal. E se esta história não é exceção, mas a expressão do cotidiano da periferia, emerge daí a necessidade de ampliarmos a agenda da paz pautando como mesmo em democracias liberais a paz na periferia é inconclusa.
Dessa forma, pensar a paz desde a periferia exige em primeiro plano repensar a violência. Como exposto, a violência na periferia possui pelo menos três importantes eixos, a violência epistêmica, a violência racial e a violência refletida no controle do trabalho que suga as riquezas produzidas na periferia criando suas desigualdades. Quando juntas essas três violências compõem a estrutura da colonialidade. Ou seja, a colonialidade é, em si, violenta, sendo impossível esperar outro resultado senão a violência (Fanon, 2022, p. 58).
Como descreve Fanon em “Os condenados da terra”, a violência na periferia é o resultado da “tensão muscular do colonizado periodicamente liberada em explosões sanguinárias” (Fanon, 2022, p. 50). Tensão produzida pela constante sensação de “medo, complexo de inferioridade, o tremor, a genuflexão, o desespero, o servilismo” (Césaire, 1978, p. 26) inoculados pelas violências inerentes à colonialidade. E que ao final, assim como no caso de Thiago, internalizam também uma percepção hierárquica da vida na sociedade periférica, no olhar do periférico que puxa o gatilho.
Nesse sentido, enquanto a agenda hegemônica da construção da paz pauta uma governança global de democracias de livre mercado, uma agenda periférica passa, antes de tudo, por um processo de decolonização - de transformação das violências produzidas pela colonialidade. E considerando que as teorias produzidas no Norte apresentam um DNA colonial que as tornam teorias de solução de problemas, a transformação das violências periféricas passa pela produção de soluções e epistemes periféricas que orientem esse processo. Trata-se, portanto, da periferia pautar sua própria agenda.
Contudo, como aponta Fontan (2012, p. 58) “nenhuma comunidade é uma casca vazia, nem tampouco necessita de um recém graduado para vir a construir a paz a partir do zero”, em outras palavras, não se trata da substituição de um modelo por outro. Ao contrário, descolonizar a paz e olhá-la a partir da periferia é reconhecê-la nos mais diversos territórios, práticas e experiências sem reproduzir mais violências epistêmicas que anulem alternativas quilombolas, indígenas ou desenvolvidas enquanto resistência. Com isso, por compreender a paz no plural, pazes, este artigo não advoga por uma ou outra perspectiva alternativa, mas sim, por sua existência, visibilidade e emergência.
6. CONCLUSÃO
O ponto de partida deste artigo foi compreender porque mesmo sob o marco do modelo tradicionalmente entendido como construtor da paz, a periferia vive um cenário de violência crônica que muitas vezes não é debatido enquanto agenda da paz. Com isso, nosso objetivo foi o de realizar um debate metateórico entre as fundamentações do marco liberal da paz, sua crítica e as contribuições da crítica decolonial, buscando identificar as limitações de cada marco e, através de um pensamento decolonial, redesenhar o que seria uma agenda da paz a partir da periferia. Desse modo, desenvolvemos este debate em três seções, nas quais aprofundamos a compreensão epistemológica que orienta cada marco teórico e as confrontamos.
O primeiro passo foi compreender o alargamento no conceito de paz que se tornou hegemônico na década de 1990. A partir disso, foi possível observar a centralidade da ontologia e epistemologia liberal kantiana enquanto eixo de fundamentação desse entendimento. Como resultado, a paz passa a ser entendida como resultado da universalização de um modelo de organização político, econômico e social baseado na construção de Estados democrático liberais, onde o ser humano é a finalidade que precisa conduzir toda a estruturação dessa sociedade pacífica.
Contudo, ao analisar especificamente os resultados gerados pelo principal instrumento de construção desse modelo de governança, a crítica estrutural à paz liberal confronta o pressuposto teórico e as expectativas com os resultados gerados pelo peacebuilding. Ao realizar este movimento, esclarece como sob a justificativa liberal Estados periféricos em processo de reconstrução de suas estruturas são inseridos no mercado mundial atendendo aos interesses das economias do Norte Global a despeito de suas próprias necessidades. Apesar de formular uma crítica contundente, a agenda proposta por este marco teórico limita-se a pautar o peacebuilding e as questões socioeconômicas sem estender seu poder explicativo para a realidade dos demais países periféricos.
Desse modo, propomos olhar decolonial para mostrar o caráter histórico-estrutural da violência que se perpetua junto com a perpetuação das relações de poder fundadas no período colonial e não transformada com os processos de independência formal. Neste contexto, a colonialidade torna-se uma categoria explicativa e o fio condutor das violências epistêmica, racial e daquela refletida no controle do trabalho, que estão ausentes da agenda da paz e que ao não serem transformadas, criam e recriam um cenário de violência crônico nas periferias. Sendo assim, estabelecer uma agenda para a paz desde a periferia, significa considerar que as estruturas hierárquicas e hierarquizantes perpetuadas por saberes universais não serão transformadas enquanto não se transformar as violências coloniais utilizando saberes e experiências do próprio Sul Global.
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Notas
Autor notes
Informação adicional
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