EXTENDED ABSTRACT

Despite feminist struggles in favor of advances in guaranteeing legal frameworks and policies to combat gender violence, it is observed that women are still taxed as the weaker sex, whose socially constructed duty is to submit to the male figure. thus mitigating its decision-making power and, therefore, legitimizing, even if tacitly, the rape culture.

The panorama of violence against women becomes, over the years, more worrying, so that the rates of feminicide, mainly by their partners, presents high data. In this scenario, in 2018, Jair Messias Bolsonaro was elected as President of the Federative Republic of Brazil, who focused his campaign mainly on increasing public safety, and, in addition, on the possibility that any citizen could be in possession of a firearm, to that could ensure their safety and that of their families. However, the instrument most used to take the lives of many women is exactly the firearm, therefore, by guaranteeing this ease of access to weapons for the population, it becomes crucial to visualize how this can impact the rates of femicide. Although the current legislation foresees punishment for crimes involving the physical integrity of women, and there is even specific legislation, such as, for example, the Maria da Penha Law (2018), it is undeniable that there are difficulties for the State to guarantee the full security for women, as most crimes are committed in homes, where there are hardly any witnesses or the presence of public authorities. It is in this scenario that carrying a weapon, according to research carried out, can severely aggravate the imminent risk of cases of feminicide, mainly under the allegation of violent emotion. As the guarantee of a firearm as a means/end act of guaranteeing public safety, it is possible to highlight that such an ideology becomes erroneous, because, despite facilitating access to carrying a weapon legally, it also facilitates, illegal possession, which is quite effervescent in Brazil. The question that must be asked is: how can the State guarantee that the citizen with a firearm will not use it in a moment of rage and also incur a crime? After analyzing the draft laws that aim at the possibility of access to firearms, it is verified that there is a gap regarding the predicted questioning, which confirms the understanding that cases of feminicide, mainly within Brazilian homes, may suffer a growing increase, compared to the ease of owning a firearm. That scenario just clarifies that many people yet follow the mindset explained by Foucault (1998), when debating the history of sexualities, in which he praises the issue of “sexual austerity” as a moral code created and measured at social reality. This sexual morality had always been a circumscription completed per men since, there was no discussion about the morality of acts practiced by women. In counterpart, however, they appeared just as an object or one partner who should be educated and supervised per your partner. Thus, it could be seen that women nor even they were treated as people, by times, they could be relegated to merchandise, in which, only they were granted the minimum of morals. It's exactly in this point that becomes possible understand the logic of femicide, that is: many men understanding woman as your object, it is understood in the right to do with it what you want, including reaping your lives.

1. INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, devido ao aumento dos índices de violência urbano e rural, parte da população tem avocado para si um dever constitucionalmente positivado no artigo 144 caput da Constituição Federal de 1988 o qual diz que: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio [...]” (Brasil, 1988), todavia, essa parcela que busca legitimar a segurança de forma privada argumenta, interpretando a segunda parte do caput deste artigo “responsabilidade de todos”, e acreditam que o constituinte originário quis transferir essa obrigação para os particulares, o que é um grande equívoco.

Outrossim, é imprescindível destacar a sensação de poder a qual as armas, com destaque para as de fogo, trazem para as pessoas que estão imersas em sua sociedade marcada pela cultura da violência como é o caso da nossa. Nesse sentido, faz-se necessário destacar o quão prejudicial esse poder pode ser dentro de uma sociedade patriarcal.

Nos últimos anos, devido à política armamentista, o governo anterior flexibilizou as formas de aquisição de armas de fogo e houve um aumento expressivo de vendas pelas lojas especializadas. Também aumentou a procura por centros de treinamento e cursos de tiro, conforme indicam estatísticas do Fórum Nacional de Segurança Pública. (Fórum brasileiro de segurança, 2021).

Cabe salientar, também, que o aumento aquisitivo de armas é proporcional ao aumento de feminicídios por armas de fogo. Pesquisa elaborada pela University of Indianapolis, que teve como base os Estados Unidos, país bem mais flexível para a aquisição de armas de fogo por particulares, aponta que para cada aumento de 10% no número de armas em circulação, a taxa de assassinatos de mulheres ocorridos dentro de casa, por parceiros e membros da família, cresce 14%, enquanto a de homens sobe 12%, segundo Kivisto, Magee, Phalen e Ray (2019). Já no Brasil, conforme pesquisa elaborada no Instituto Igarapé, em 2020, quando houve maior distanciamento social, ocorreu um aumento de 6% nos casos de feminicídios em comparação a janeiro e fevereiro do ano de 2020. Os dados são relativos a 17 estados e os maiores aumentos aconteceram em Goiás (47%), Rondônia (39%), Maranhão, Paraíba e Santa Catarina (33%) (Giannini, Ferenczi, Araújo, Aguirre, 2020). Desse modo, nota-se uma tendência de elevação na ocorrência desse crime, que conforme a pesquisa realizada nos Estados Unidos tende a crescer ainda mais quando existe uma arma de fogo na residência.

Ante essa conjuntura, a presente pesquisa se propôs fazer apontamentos sobre um possível nexo entre a facilitação da aquisição de armas de fogo por civis e o aumento dos feminicídios no Brasil. Por conseguinte, a pesquisa tem os seguintes objetivos específicos: 1. Refletir a forma como o patriarcado se desenvolve na sociedade, e, principalmente, como os discursos do ex-presidente Bolsonaro intensificaram a violência patriarcal. 2.Analisar os impactos do aumento das armas de fogo em circulação na violação do direito à vida das mulheres; 2. Averiguar a política que normaliza o armamento e naturaliza o feminicídio;

Adotou-se a pesquisa bibliográfica, pois, através de artigos científicos e livros, foi analisado como o sistema patriarcal corrobora com o aumento e a aceitação tácita da prática do feminicídio por parte da sociedade. Foi realizada uma abordagem qualitativa, pois foram analisados dados estatísticos oficiais de relevância nacional que retratam a problemática do aumento das armas em circulação, explicando sua relação com o aumento dos feminicídios. Em suma, para a averiguação dos dados, foi feita minuciosa análise de dados referentes ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021, 2022), Instituto Igarapé, Instituto de Segurança Pública Dossiê Mulher (2021), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2019) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2019).

2. O GOVERNO BOLSONARO E O AUMENTO DE DISCURSOS PATRIARCAIS

O patriarcado surge como forma de mantença da figura masculina enquanto universalmente superior as mulheres (Bourdieu, 2002) na sociedade brasileira não é diferente. Consoante Roichman (2020) a luta pela legalização dos direitos femininos e a criminalização da violência acometida as mulheres, é, deveras, bastante recente. Sob tal panorama, entende-se que o país está em processo de se amoldar a norma com a realidade social, no entanto, é possível enfatizar que se visualiza no contexto atual, desenfreados atos de violência contra as mulheres.

Em determinadas localidades do Brasil, por muito tempo, foi proibido o acesso das mulheres a educação, de modo a serem mantidas subordinadas em seus lares, tendo como função primordial ser objetos dos maridos. Assim, a violência se torna uma forma impositiva de respeito, que advém da supracitada necessidade de caracterizar a mulher enquanto submissa (Amorim, Barbosa e Acioli, 2022).

O sistema patriarcal, dentre outras vertentes, visa garantir a padronização da visão da mulher como propriedade do homem, e, nesse sentido, emerge o feminicídio, foco da presente pesquisa, que pode ser caracterizado da seguinte forma: “[...] é a morte de uma mulher pela sua condição de gênero” (Roichman, 2020, p. 358).

No contexto atual, torna-se possível ainda afirmar que os preceitos sociais sofrem influência patriarcal, pois, embora tenha havido importantes avanços, casos recentes, como o de Elisa Samudio[1], coadunam que nos julgamentos de crimes contra a vida das mulheres, ocorra revitimização, no qual, muitas vezes, os autores dos crimes recebem ínfimas penas, ou, até mesmo, sequer são punidos. Destaque-se ainda que embora punidos juridicamente, muitos são “inocentados” pela sociedade, não perdendo a posição de “herói” nas redes e nas ruas, como ocorre com o goleiro Bruno, condenado pela violação do direito à vida de Elisa Samudio.

Consoante destrincha a ONU Mulheres (2014), por vezes, muitos homens entendem que precisam cometer o feminicídio, como forma de manter a moral. Ademais, este fato é congruente com atos já permitidos em âmbito social, como a legítima defesa da honra (ressaltando neste aspecto que apenas havia a proteção da honra masculina).

A legítima defesa da honra se caracteriza pela justificativa de homens que cometem feminicídio ou agressões contra mulheres em razão de terem estas cometido adultério. Ou seja, essa violência, em tese, é uma forma de manter a honra masculina. Um caso emblemático que exemplifica o mencionado conceito é a morte de Ângela Diniz, em que a defesa do autor do crime, Doca Street, argumentou violenta emoção e legítima defesa da honra, buscando a absolvição do acusado[2] (França, 2022), o que é uma afronta aos Direitos das Mulheres e somente possível em uma sociedade misógina cuja violência é legitimada pelas instituições patriarcais.

Embora o Supremo Tribunal Federal, já tenha se posicionamento acerca da impossibilidade de se utilizar a predita tese em casos de feminicídio, sob pena de nulidade, reconhecendo que tal argumento se caracteriza como “Retórica de Ódio” (Supremo Tribunal Federal, 2023), ainda é comum que tal conduta seja aceita tacitamente pela sociedade. Esse fomento, pode ser visualizado em muitas falas do ex-presidente da República Brasileira, Jair Messias Bolsonaro, que ingressou no âmbito político com a promessa de ser “o novo”, de manter a defesa dos bons costumes da família tradicional.

E nesse aparato, muitas de suas falas são aceitas como inquestionáveis por seus eleitores, que podem ser influenciados a praticá-las na realidade, muitas delas, configurando a mulher enquanto submissa aos homens, como se depreende da tabela 1 abaixo:

Tabela 1
Falas de Bolsonaro que Inferiorizam as Mulheres

Elaboração própria con datos de Ferreira (2012); The Intercept Brasil (2018); ENIC (2019); Folha de Pernambuco (2022)

Em muitas de suas falas se observa que a mulher é tratada enquanto um objeto sexual, que visa a satisfação da lascívia masculina. Portanto, é evidente que se configura enquanto estigmas do patriarcado, pois suas falas de fato ocorrem na realidade social, e, sobretudo, em razão de ter sido símbolo de poder, por ser Presidente da República, tais parâmetros expressados por Bolsonaro poderiam ser entendidos como uma manifestação correta de pensamento por seus eleitores. Acerca disso, nos comentários da entrevista em que Bolsonaro expressa a segunda fala citada na tabela, as pessoas afirmam na figura 1:

Figura 1
Comentários das Pessoas acerca das falas de Bolsonaro sobre Estupro
The Intercept Brasil, 2018.

Ante o cenário estabelecido, é preciso destacar, também, o que preleciona Almeida: “Não me representam [os políticos]!” foi um dos slogans nascidos durante as manifestações” (Almeida, 2019, p. 194). Diante das condutas supracitadas, é possível elucidar que tais comportamentos apenas intensificam o uso da violência contra a mulher, colocando-a em uma situação de subordinação. Portanto, a replicação das referidas condutas por outros homens que estejam munidos com algum tipo de poder (arma de fogo, por exemplo), nas circunscrições dos lares, sem haver testemunhas ou alguma segurança para mulher, podem ceifar muitas vidas. Percebe-se, portanto, a negação da política partidária como forma de deslegitimar as mulheres eleitas e a banalização de discursos violentos contra as mulheres, a exemplo do estupro.

Principalmente em 2020, diante da Pandemia do COVID 19, e juntamente seguiu a necessidade de isolamento e distanciamento social, fazendo com que muitas mulheres necessitassem ficar em seus lares, com possíveis agressores, de modo que os índices de violência doméstica foram crescentes (Amorim, Barbosa e Acioli, 2022).

É preciso estabelecer, no entanto, que o processo de avanço de uma maior postura patriarcal tem um elo intrínseco com todo um processo de ascensão da extrema direita na política que tem seu gene nas Jornadas de Junho de 2013, com maior representação da bancada evangélica (Almeida, 2019) no congresso, junte-se tudo isso à famosa Bancada da bala e a soma com pensamentos conservadores que oprimem e sujeitam a mulher a regressão de direitos conquistados após longas lutas, como leciona Saffioti: “As mulheres são “amputadas”, sobretudo no desenvolvimento e uso da razão e no exercício do poder” (Saffioti, 2011, p. 35).

Nesse sentido, as falas de Bolsonaro corroboram com um cenário de intensificação da chamada “violência simbólica”, que advém do que preceitua Bourdieu (2002) ao debater a dominação masculina, ou seja, a violência é um resultado dessa dominação, que pode se apresentar de várias formas, seja na esfera moral, física, psicológica e patrimonial. Nas palavras de Saffioti: “A violência simbólica impregna corpo e alma das categorias sociais dominadas, fornecendo-lhes esquemas cognitivos conformes a esta hierarquia [...]” (Saffioti, 2001, p. 118).

Os discursos de Bolsonaro se enquadram enquanto uma inversão de valores, ou seja, por um lado, o Movimento Feminista busca consagrar a igualdade e respeito entre os gêneros, agregando o preconceito ao sistema patriarcal. Em Contrapartida, as falas de Bolsonaro configuram o feminismo enquanto causador das problemáticas sociais, isso fica bastante evidente em seu discurso de posse: “Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um país livre das amarras ideológicas” (BBC, 2019).

Ainda afirmou o ex-presidente que as mulheres deveriam ganhar menos que os homens pela seguinte razão:

Poxa, essa mulher tá com aliança no dedo, daqui a pouco engravida, seis meses de licença-maternidade (...). Por isso que o cara paga menos para a mulher! É muito fácil eu, que sou empregado, falar que é injusto, que tem que pagar salário igual. Só que o cara que está produzindo, com todos os encargos trabalhistas, perde produtividade. O produto dele vai ser posto mais caro na rua, ele vai ser quebrado pelo cara da esquina. Eu sou um liberal, se eu quero empregar você na minha empresa ganhando R$ 2 mil por mês e a Dona Maria ganhando R$ 1,5 mil, se a Dona Maria não quiser ganhar isso, que procure outro emprego! O patrão sou eu" (LIMA, 2015).

Assim, se gerou um populismo no governo de Bolsonaro, de contrariedade ao movimento feminista, seus apoiadores e ideologias, gerando uma crença popular de que certas pessoas têm mais direito a ter direitos, pregando a desrespeito a dignidade feminina. Ao eleger um governante com tal postura, o Brasil se mostra um país que ainda é regido predominantemente pelo pensamento patriarcal, o que alavanca outra problemática: quais os efeitos de uma sociedade armada em um sistema que prepondera a lógica patriarcal?

3. O SIGNIFICADO DAS ARMAS NA SOCIEDADE MACHISTA

As armas, em toda historicidade humana, são reconhecidas como símbolos de poder e de conquistas. Em vista disso, era comum que povos com poder bélico maior submetessem outros povos aos seus desígnios, conforme ocorreu no processo de colonização do Brasil. Ademais, era comum que os homens fossem os portadores dessas armas e às mulheres restavam o dever de ser “donas do lar” ou ainda de dar à luz a fortes guerreiros como ocorria em uma das Pólis da Grécia Antiga, Esparta.

As armas de fogo, no Brasil, são o principal instrumento para cometer homicídios. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022) afirmou que pessoas com posse de arma de fogo tendem a ter respostas mais violentas no momento de solucionar conflitos, resultando, em muitos casos, em morte. Vale observar o gráfico abaixo para compreender os fatos até então expostos na figura 2:

Figura 2
Mortes violentas intencionais por tipo de instrumento utilizado no Brasil em 2021
Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2022, p.41

Analisando sob a ótica da violência acometida contra as mulheres, vale corroborar que, em muitos casos as mulheres são mortas e tal crime é enquadrado enquanto homicídio doloso, não havendo, portanto, a incidência da qualificadora imposta pelo Código Penal Brasileiro para os crimes de feminicídios (Cerqueira, Ferreira e Bueno, 2021).

O supracitado fato ocorre, principalmente, pelo fato de que o sistema de saúde não consta em atestados de óbitos que a morte ocorreu em razão de feminicídio, mas tão somente por homicídio doloso, gerando, por consequência, uma barreira para visualizar os verdadeiros índices de feminicídios, que acarreta uma falsa percepção da realidade, ou seja, que os números de feminicídios podem ser mais elevados do que os noticiados pelos órgãos de segurança pública, ou seja, trata-se de subnotificação. Assim, pode-se compreender o feminicídio enquanto um homicídio doloso praticado contra mulheres, em razão das questões de gênero (Cerqueira, Ferreira e Bueno, 2021; Amorim, Barbosa e Acioli, 2022).

A subnotificação, está calcada no fato que, de acordo com o Código Penal, art. 121 inciso VI (Brasil, 1940), o feminicídio é uma qualificadora do crime de homicídio sempre que esse for praticado “[...] contra a mulher por razões da condição de sexo feminino” e “§ 2.-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher” e na maioria das vezes, os dados contabilizados refere-se apenas aos crimes envolvendo violência doméstica e excluindo situações de menosprezo ou discriminação à condição de mulher que ocorrem em diferentes contextos, a exemplo de conflitos urbanos envolvendo a luta por moradia, conflitos agrários, envolvendo a luta por terra e até mesmo questões envolvendo tráfico de drogas, mas, que presente as questões de gênero.

Dentre os principais autores do crime de feminicídio no Brasil, segundo Rios, Magalhães e Telles (2019), estão os parceiros íntimos, os quais, em muitos casos, agregam a culpa a própria vítima, seja em razão de vestimentas curtas, por buscar uma maior autonomia através de estudos ou trabalho, por não aceitar o fim do relacionamento, dentre outros.

As formas de cometer o crime de feminicídio podem ser as mais variáveis, seja por arma de fogo, objetos cortantes (armas brancas), asfixia, entre outras. Um dos principais instrumentos para prática do feminicídio ainda é a arma de fogo. Acerca da mencionada informação, Rios, Magalhães e Telles (2019, p. 40) “[...] concluíram que houve forte associação entre a liberação de porte de armas e a morte de mulheres por parceiros íntimos”.

Ao fazer uma análise fática, é evidente que esses fatos ocorrem em razão do patriarcado, que configura o homem enquanto detentor do corpo feminino, podendo dele dispor como melhor entender, fato que corrobora com as falas do ex-presidente Bolsonaro, ao informar que não estupraria uma mulher em razão da mesma não merecer, como se a prática do estupro se caracterize enquanto uma conquista.

Suas falas acerca das mulheres, a todo momento, sexualizam e objetificam seus corpos, conduta esta aceita por uma parcela social, como se coaduna dos comentários já expostos. Desse modo, o Chefe do Poder Executivo, por meio de seus discursos que traduzem o que parte da sociedade quer ouvir, solidificou um ambiente que pode ser explicado sob a ótica da Teoria Neoinstituicional (Cruz e Brazil, 2022), em que a instituição, neste caso, a política, pode influenciar os atos sociais, fazendo com que as pessoas entendam como necessárias e corretas suas falas misóginas.

Ainda acerca das táticas de Bolsonaro para garantia do populismo em seu governo e consequente descrença ou marginalização do movimento feminista, é possível analisar sob a ótica do que Cruz e Brazil (2022) nomeiam de pós-verdade. Neste caso, existem fatos, que por vezes podem são inverídicos, mas que frente a multiplicidade de compartilhamentos, principalmente na era tecnológica, se tornam verdade para algumas pessoas.

Assim, além dos ataques à dignidade feminina, Bolsonaro também realizou discursos pró-população armada, conforme tabela 2 abaixo:

Tabela 2
Incentivo de Bolsonaro ao porte de arma de fogo

Elaboração própria con datos de Jornal Gazeta (2021); Estadão (2020);UOL (2021).

Nesse intento, se vislumbra que Bolsonaro entendeu que uma população armada é geradora de segurança não apenas particular, mas também pública, ao afirmar que este fato impediria a existência de uma ditadura. Além das falas acima expostas, ao assinar o decreto que flexibilizou o acesso ás armas de fogo, assim aduziu:

o povo decidiu por comprar armas e munições, e nós não podemos negar o que o povo quis naquele momento (...). O grande problema que tínhamos na lei, é a comprovação da efetiva necessidade (...) chegamos a conclusão de tínhamos sim, como não driblar, mas fazer justiça com esse dispositivo previsto na lei, de modo que o cidadão pudesse então sem a discricionariedade, poder obter, observando alguns outros critérios, a posse da sua arma de fogo (UOL, 2019).

Foi nessa perspectiva que se desenvolveu o debate na Câmara dos Deputados em 2019, dentre os destaques trazidos pelas especialistas estão que: a posse de arma de fogo em uma residência aumenta em 5 vezes a possibilidade a um assassinato ou suicídio, afirmou Isabel Figueiredo, representante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 39% dos assassinatos de mulheres ocorrem em casa, sendo a arma de fogo o principal instrumento utilizado. Ainda, conforme afirma a Coordenadora do núcleo especializado em diversidade e igualdade racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Isadora Brandão, as mais prejudicadas com a flexibilização do acesso ás armas de fogo seriam as mulheres negras que já somam 71% a mais dos assassinatos que de mulheres não negras (Seabra, 2019).

Houve, no entanto, quem trouxesse argumentos contrários para o debate, foi o caso da representante do Ministério da Justiça, Thaylize Rodrigues, que afirmou que: não existem dados concretos sobre o elo entre aumento da posse de armas de fogo e aumento nos feminicídios, pois, segundo ela, dados da Secretaria de Segurança Estadual do Distrito Federal mostram que cerca de 37% dos feminicídios foram praticados com armas brancas em 2018 e 22% com armas de fogo. Já em São Paulo sobe para 58% o índice desse crime com uso de arma branca e cai para 17% com uso de arma de fogo (Seabra, 2019).

Importante destacar que as maiores vítimas de feminicídio, são as mulheres negras. Neste caso, além do racismo existente e aflorante, se observa que estes aspectos, quando coligados com questões econômicas, vislumbram a maior vulnerabilidade de mulheres negras. Ante esse óbice, assim, argumenta Carolina Ricardo, que a mulher é vítima de várias formas de violência no âmbito doméstico e se encontra envolta de diversas vulnerabilidades como: física, econômica, emocional e a presença da arma de fogo é um potencial somatório para que esse poder patriarcal seja perpetuado (Mundim, 2021).

Assim sendo, torna-se evidente que a flexibilização do acesso às armas de fogo foi causa potencializadora da vitimização de mulheres negras que hoje já somam 70,5% das vitimadas (Mundim, 2021). Faz-se jus estabelecer, no entanto, que a dependência financeira é a maior potencializadora da incidência desses crimes. Sobre o fato de serem mulheres negras a grande parcela das vítimas, pode-se notar que a desigualdade no tratamento salarial as coloca em maior situação de vulnerabilidade perante o seu agressor, conforme dados apontados pelo IBGE em 2018, que demonstram que mulheres pretas recebem 44% da média salarial de homens pretos e esses dois recebem menos que a mulheres brancas, bem como foi indicado que apenas 29,9% dos cargos gerenciais são ocupados por pessoas pretas. Desse modo, é possível compreender que a desigualdade social é o gene da dependência que leva muitas mulheres a se submeterem aos seus companheiros agressores, e que a desigualdade racial é a causa somatória dessa fragilização (IBGE,2019).

Outro dado relevante para ser analisado é a incidência do uso de armas brancas nos feminicídios (51,1%) conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública- FBSP (2021). Aqui pode-se trazer dois aspectos consideráveis, que são: preços de armas legais altos, bem como, todo o processo até à aquisição da autorização para a posse. Diante desse caráter, é compreensível dizer que seria pouco provável que um trabalhador comum, assalariado, consiga, sozinho, prover as necessidades básicas da família e ainda possuir uma arma legalizada. Sendo, portanto, um óbice à posse de armas de fogo. Todavia, além dos impactos negativos da referida flexibilização, há de se destacar a aquisição de armas por meios clandestinos, o que dificulta ainda mais o controle dos órgãos de segurança pública.

Não se busca afirmar que apenas a facilidade para conseguir acessar armas de fogo seja responsável pelo exponencial aumento das atrocidades cometidas contra mulheres, mas que, certamente, tal conjuntura funcionará como um facilitador dos crimes cometidos contra mulheres, principalmente frente a uma justificativa que atualmente muito se usa para descaracterizar o caráter doloso do crime, qual seja: “foi em um momento de raiva, em que os ânimos estavam a flor da pele”.

3.1. Porte de arma e feminicídio no governo Bolsonaro:

É de extrema importância compreender há ligações entre a facilidade do acesso à armas de fogo e os índices de feminicídio, de modo que, inicialmente, vale visualizar o gradativo aumento de pessoas que possuem arma de fogo no Brasil ao decorrer dos anos conforme tabela 3:

Tabela 3
Posse de Armas no Brasil

Fórum Brasileiro de Segurança Pública, (2021).

Como se torna possível observar, há um elevado aumento de pessoas com posse de armas de fogo no Brasil, e, ainda, alavanca uma crescente tendência de aumento, haja vista que, em um pequeno lapso temporal esse número dobrou. Nesse diapasão, ainda vale corroborar que, os supracitados números não condizem com a realidade, pois há posse de armas ilegais, por meio da clandestinidade, ou seja, além do fomento por parte do ex-presidente da República Brasileira para a posse de armas, não há, por consequência, uma efetiva vigilância nesse sentido, pois, principalmente em áreas periféricas como comunidades e/ou zonas rurais, pode haver esse comércio ilegal de armas sem a incidência fiscalizadora do poder público.

Mas, até que ponto tal aumento de posse de armas pode estar vinculado ao feminicídio? Vale ressaltar que neste ponto, há remotos trabalhos ou dados específicos que realizam a referida análise, mas, para tanto, basta visualizar a realidade fática, segundo Viana (2019), o aumento da posse de armas de fogo, principalmente em decorrência da flexibilização para consecução dessa posse, coloca ainda mais em risco a vida as mulheres, e dificulta, consequentemente, a luta contra o feminicídio.

De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), no ano de 2021, cerca de 2.1 milhões de mulheres foram ameaçadas fazendo o uso de armas brancas (facas ou outros objetos) ou armas de fogo. Ainda nesta circunscrição, deve-se observar que tais dados, em geral, são gerados com base em dados emitidos por agências de segurança, todavia, na realidade, muitas mulheres sequer procuram o poder público para inibir tais atos violentos, e, dentre os fatores para tal fato, pode-se enaltecer dois: Inicialmente o medo ou um sentimento de que nada está errado, por ter sido ensinada de acordo com uma cultura patriarcal que o homem pode fazer uso da força para “manter a ordem”; Outrossim, por já estarem mortas e, em alguns casos, as referidas mortes são configuradas como homicídios (simples ou qualificado), e nem sempre realmente são taxados como feminicídio. Quanto a este último aspecto, é possível utilizar de forma análoga o Canadá, em que 60/70% dos homicídios contra mulheres são feminicídios. Este fator pode ser observado na figura 3 abaixo:

Figura 3
Aumento do número de feminicídios por armas de fogo
Câmara dos Deputados (2019), apud Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O primeiro ponto a ser debatido, é um fato já destrinchado, neste caso, especificamente, que os casos de feminicídios ocorrem de forma maciça através de companheiros íntimos, consoante figura 4 abaixo:

Figura 4
Feminicídios e demais mortes violentas intencionais de mulheres por relação entre vítima e autor no Brasil em 2021
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022, p.96.

A supracitada informação corrobora com o que aduz Lerner (2019), em sua obra “A Criação do Patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens”, para além do contexto social, o patriarcado se inicia e é fortalecido nas relações íntimas, principalmente pelas obrigações agregadas as mulheres, que, apenas a confere o mínimo de moral caso esta seja recatada, se mantenha virgem para o casamento, seja prestativa e obediente a seu marido. Nesse sentido preleciona a Lerner (2019, p. 121):

Uma vez privadas da proteção de um parente homem por razão de morte, separação ou por não ser mais desejada como parceira sexual, a mulher se torna marginalizada. Logo no início da formação do Estado e do estabelecimento de hierarquias e classes, os homens devem ter observado essa vulnerabilidade maior nas mulheres e aprenderam assim que podiam usar diferenças para separar e dividir um grupo de pessoas de outro. Essas diferenças podem ser “naturais” e biológicas, como sexo e idade, ou podem ser criadas pelo homem, como aprisionamento e marcação a ferro.

No momento em que uma mulher se desvirtua dos mencionados códigos morais, muitos parceiros entendem o feminicídio como única possibilidade de manter seu poder, portanto, esta é a razão pela qual as maiores taxas de feminicídios ocorrem dentro lares e por seus parceiros ou ex-companheiros, pelo fato de que o código moral que deve ser seguido pelas mulheres, de acordo com o patriarcado, fortalece a propriedade do homem sob o corpo feminino no âmbito da relação íntima.

O entendimento de que as mulheres estão mais protegidas se estiverem na companhia de um homem, gera, em contrapartida, uma vulnerabilidade tácita, disfarçada de segurança. De certo modo, o patriarcado neste caso se assemelha a escravidão, em que se pressupõe a existência de um ser impotente (mulher), e outro com total poder (homem) (Lerner, 2019).

Assim sendo, é possível ainda destacar outra problemática quanto aos índices de feminicídio, neste caso, a persistência dos órgãos públicos em tenderem a conceituar os casos como feminicídio geralmente quando decorrem de uma relação íntima, de modo que a maioria de mulheres mortas apenas se enquadram como homicídio.

De modo geral, os casos de homicídio em âmbito nacional contra as mulheres com uso de armas de fogo correspondem a 64%. Por outro lado, ao se debater o feminicídio, as armas brancas tendem a serem mais usados, pelo fato já destacado, neste caso, em razão de que este crime ocorre em maior tendência dentro das residências, dificilmente o assassinato de uma mulher por um desconhecido ou conhecido sem relação íntima é enquadrada como feminicídio. As justificativas expostas estão em consonância com o gráfico abaixo na figura 5:

Figura 5
Feminicídios e demais mortes violentas intencionais de mulheres por instrumento empregado no Brasil em 2021
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022, p.100.

Ainda que de antemão, possa se extrair que as armas brancas são as maiores causadoras do feminicídio, deve-se ponderar a problemática já supramencionada: a maior taxa de assassinato de mulheres ocorre por arma de fogo, todavia, em muitos casos, estes crimes são apenas classificados enquanto homicídio doloso.

Outrossim, ainda que se defenda a tese da necessidade de formulação de políticas públicas voltadas a maior proteção das mulheres dentro das residências, é salutar destacar o caráter de inviolabilidade domiciliar instituído na CF de 1988, que nesse caso, torna ainda mais complexo fiscalizar a relação familiar intramuros e consequentemente punir eventuais crimes cometidos nessa ambiência.

No que se refere a aquisição de armas, é interessante analisar que as mudanças atuais nas legislações sobre armas foram feitas por meio de decretos do ex-presidente, Jair Bolsonaro. Em entrevista o já falecido, Senador Major Olímpio (PSL-SP) afirma que os decretos presidenciais foram uma tentativa de reviver a já revogada Lei nº 9.437, de 20 de fevereiro de 1997 (Gomes, 2021). É preciso inferir, porém, que não houve em nenhum momento preocupação com a realidade atual, visto que é crescente o número de assassinatos de feminicídio.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi possível observar de minuciosa análise de dados extraídos de órgãos oficiais e de extensos debates de estudiosos, legisladores, operadores do Direito, entre outros, é indiscutível que houve sim consequências no ambiente doméstico após a entrada do atual presidente e da sua política patriarcal e armamentista. No entanto, é necessário destacar que essa consequência não é exclusiva do momento atual, mas sim de anos de uma ideologia calcificada na inferioridade feminina e os seus reflexos foram debatidos durante todo o decorrer deste trabalho.

Foi possível analisar, todavia, que houve momentos em que foram dados pequenos passos a uma maior proteção da mulher, principalmente no âmbito doméstico, lugar de maior vulnerabilidade, porém, infelizmente, nos últimos anos houve regresso nas políticas de proteção e consequentemente uma “mazela” que há muito assola a cultura brasileira se ampliou.

O presente trabalho não busca minimizar o Direito à defesa pessoal e particular. Ao contrário disso, traz como ponto de partida proteger quem se encontra em maior vulnerabilidade por todos os pontos que foi destacado ao longo desse artigo, no entanto, a retornar a vingança privada não é o caminho para solução, leva ao caos e que, como foi possível analisar, a população mais vulnerável é a maior prejudicada com o desenfreado aumento de aquisição de armas de fogo por particulares.

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Notas

Autor notes

Informação adicional

Cómo citar /citation:: Cómo citar /citation: da Silva, H. M., Martins-Acioli, W. B. y Alves-Amorim, E. R. (2024). O discurso patriarcal e a política do governo Bolsonaro: uma análise da política de fomento a aquisição de armas de fogo e o seu reflexo nos indíces de feminicídio. Estudios de la Paz y el Conflicto, Revista Latinoamericana, Volumen 5, Número 9, 120-135. https://doi.org/10.5377/rlpc.v5i9.16613