Artículos científicos

Mobilização de atores locais na promoção da paz: o caso do Instituto Favela da Paz em São Paulo

Mobilization of local actors in the promotion of peace: the case of the Favela da Paz Institute in São Paulo

Movilización de actores locales en la promoción de la paz: el caso del Instituto Favela da Paz en São Paulo

Brenda Passos
UFPB, Brasil
Marcos Alan Ferreira
UFPB, Brasil

Revista Latinoamericana, Estudios de la Paz y el Conflicto

Universidad Nacional Autónoma de Honduras, Honduras

ISSN: 2707-8914

ISSN-e: 2707-8922

Periodicidade: Semestral

vol. 4, núm. 8, 2023

revistapaz@unah.edu.hn

Recepção: 12 Setembro 2022

Aprovação: 10 Janeiro 2023



DOI: https://doi.org/10.5377/rlpc.v4i8.15561

Como citar / citation: Passos, B. y Ferreira, M. A. (2023). Mobilização de atores locais na promoção da paz: o caso do Instituto Favela da Paz em São Paulo. Estudios de la Paz y el Conflicto, Revista Latinoamericana, Volumen 4, Número 8, 33-53. https://doi.org/10.5377/rlpc.v4i8.15561

Resumo: A presente pesquisa visa contribuir com os debates que incluem as manifestações da violência social armada e o papel de atores não convencionais, como a agência local (bottom-up), nas suas práticas cotidianas de resiliência e transmutação do conflito. Como alternativa à agenda verticalizada de promoção da paz, examina-se o caso do Instituto Favela da Paz, projeto idealizado e coordenado por moradores locais e que visa instituir, em múltiplas frentes de ação, uma comunidade sustentável e orientada por uma cultura de paz no bairro Jardim Ângela-SP, considerado pela ONU na década de 1990 como um dos bairros mais perigosos do mundo. Partimos da premissa de que os debates que refletem a violência para além dos contornos imediatos do Estado ainda são limitados nas literaturas convencionais de paz e, no entanto, merecem maiores atenções. A partir das pesquisas realizadas triangulando dados oficiais, entrevistas e literatura especializada, observou-se que as práticas do Instituto Favela da Paz convergem intuitivamente com a abordagem de formação da paz (Peace Formation) de Oliver P. Richmond, ao emancipar atores locais, conectados em redes transversais e transnacionais, na promoção da paz em seus próprios termos.

Palavras-chave: Violência, conflito social, estudos urbanos, criminalidade, São Paulo, Favela da Paz.

Abstract: This research aims to contribute to debates that include manifestations of armed social violence and the role of unconventional actors, such as the local agency (bottom-up), in their daily practices of resilience and conflict transmutation. As an alternative to the vertical peace promotion agenda, we examine the case of the Favela da Paz Institute, a project conceived and coordinated by local residents that aims to establish, on multiple activities, a sustainable community guided by a culture of peace in the neighborhood Jardim Ângela, considered by the UN in the 1990s as one of the most dangerous neighborhoods in the world. We start from the premise that debates that reflect violence beyond the immediate contours of the state are still limited in conventional peace studies literature and, however, deserve more attention. Based on research carried out by triangulating official data, interviews and specialized literature, it was observed that the practices of the Favela da Paz Institute intuitively converge with Oliver P. Richmond's Peace Formation approach, by emancipating local actors, connected in transversal and transnational networks, in the promotion of peace on its own terms.

Keywords: Violence, social conflict, urban studies, criminality, São Paulo, Favela da Paz.

Resumen: Esta investigación pretende contribuir a debates que incluyan manifestaciones de violencia social armada y el papel de actores no convencionales, como la agencia local (de abajo hacia arriba), en sus prácticas cotidianas de resiliencia y transmutación de conflictos. Como alternativa a la agenda vertical de promoción de la paz, examinamos el caso del Instituto Favela da Paz, un proyecto concebido y coordinado por vecinos del lugar que tiene como objetivo establecer, en múltiples frentes de acción, una comunidad sostenible guiada por una cultura de paz en el barrio Jardim Ângela, considerado por la ONU en la década de 1990 como uno de los barrios más peligrosos del mundo. Partimos de la premisa de que los debates que reflejan la violencia más allá de los contornos inmediatos del Estado siguen siendo limitados en las literaturas de paz convencionales y, sin embargo, merecen una mayor atención. A partir de investigaciones realizadas mediante la triangulación de datos oficiales, entrevistas y literatura especializada, se observó que las prácticas del Instituto Favela da Paz convergen intuitivamente con el enfoque de Formación de Paz de Oliver P. Richmond, al emancipar a los actores locales, conectados en redes transversales y transnacionales, en la promoción de la paz en sus propios términos.

Palabras clave: Violencia, conflicto social, estudios urbanos, criminalidad, Sao Paulo, Favela da Paz.

EXTENDED ABSTRACT

Being the largest country on the South American subcontinent, and despite its international categorization as a peaceful country located in a zone of peace (South America), Brazil is located in one of the epicenters of drug trafficking and international organized crime. The clash between organized crime and state connected to the controlling of this illicit market, contributes to the alarming rates of violence and insecurity in Brazilian cities, often higher experienced in contexts of war or formal conflict.

Despite the alarming rates related to armed social violence in contemporary societies not necessarily under violent conflict or war, marked mainly by the emergence of organized crime in deprived urban spaces and by disputes over access to routes and control of the international illicit market, there is still few research aimed at understanding this topic under Peace Research lenses. The focus on direct violence linked to the violent conflict prevails in the main research outlets—mainly war and violent conflict—placing other kinds of armed violence on the margins of the debate, as is the case of urban violence in democratic societies.

Taking into account this social setting, the objective of this paper is to dialogue with important contemporary dilemmas and the gaps presented in mainstream peace research, looking specifically to the Brazilian urban violence and its relation with social and economic inequality. More specifically, it aims to understood the need to expand the understanding of the role of local promoting peace, in which community agency are expressed. ‘Bottom-up' peacebuilding processes, like seen in the case of Favela da Paz Institute in Sao Paulo (Brazil), mirrors a greater sensitivity to local community practices in investigating the structural roots of their own problems, as well as their own perceptions of peace, culminating in initiatives aimed at transmuting the problem. The peace formation analysis approach prioritized in this research, however, observes the connection of these local claims with broader transversal and transnational structures.

For this purpose, the case study examines the Favela da Paz Institute, created by residents of the Jardim Ângela neighborhood, in São Paulo, with the purpose of establishing a community of peace in a neighborhood configured in the 1990s by the UN as one of the most violent places in the world. The project brings together a series of actions aimed at creating a sustainable community guided by a culture of peace. The research makes an exploratory analysis with data triangulation, conducted through literature review combined with the analysis of data provided by the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE), the Map of Inequality of São Paulo and documents from the Favela da Paz Institute. In addition, we also use semi-structured interviews with project participants, in which has been observed the convergence between the practices of local residents of the community with the peace formation approach (Peace Formation, as conceptualized by Oliver Richmond), which is part of the local turn approach linked to Critical Peace Studies.

1. INTRODUÇÃO

O ano de 2010 registra oficialmente no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS-ONU) o crime organizado como potencial ameaça à estabilidade das sociedades. A violência armada nas sociedades contemporâneas não mais representa exclusivamente o resultado do conflito entre forças políticas instituídas; ou ainda, entre forças políticas e grupos civis. Em contrapartida, combinam em tendência crescente noções da guerra e do crime organizado, marcado pelas disputas de grupos civis pelo acesso às rotas e pelo controle de mercado ilícito a nível internacional, o que contribui progressivamente para a dissociação do público para o privado e do formal para o informal nos novos conflitos bélicos (Ferreira, 2017b; Pureza e Moura, 2005). Os cenários em que predominam esse novo tipo de conflitualidade possuem alguns elementos comuns: são espaços urbanos, periféricos, marginalizados e com a presença de acentuadas assimetrias econômicas e sociais, presentes não apenas em contextos de sociedades em conflito ou pós-conflito, como também nas sociedades pacíficas e democráticas (Ferreira, 2020).

Observa-se nos países da América Latina uma aparente paz regional, uma vez que estes países não vivenciam um conflito armado ou uma guerra propriamente declarada. No século XXI, apenas a Colômbia vivenciou um conflito interno de origem armada e mesmo após a assinatura de um acordo de paz em 2016 com a Farc, um dos atores centrais dessa narrativa, outros múltiplos conflitos permaneceram no território sob a articulação de grupos criminais e do Exército de Libertação Nacional (ELN), uma organização de guerrilha colombiana (Pearce e Perea, 2019). Apesar disso, segundo estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em colaboração com o Instituto Igarapé, a América Latina desponta como a região mais violenta do planeta. A região que abrange 9% da população mundial foi responsável por 39% dos homicídios registrados e por 41 das 50 metrópoles mais perigosas do mundo (Instituto Igarapé Brasil, 2018). O maior país do continente sul-americano, o Brasil, a despeito da sua categorização internacional enquanto uma zona de paz, se situa em um dos grandes epicentros do narcotráfico e do crime organizado internacional, contribuindo para os alarmantes índices de violência e de insegurança nas cidades, índices estes por vezes expressivamente superiores aos Estados que vivenciam contextos de guerra ou de conflito formal (Adorno, 1996; Moura, 2005; Ferreira, 2019; Ferreira, 2020).

Ainda assim este problema particular não tem endosso na literatura de paz e, no entanto, merece destaque. As correntes tradicionais dos Estudos de Paz centraram as suas pesquisas ao longo das últimas décadas em fenômenos mais visíveis da violência em larga escala, particularmente interessadas nas análises das guerras interestatais e intraestatais, ao passo que situou à margem do debate outros alcances menos previsíveis da violência armada, como aponta a emergência da violência urbana e do crime organizado transnacional em sociedades pacíficas e democráticas. Os Estudos Críticos para a Paz - na qual se ampara nosso referencial teórico de análise - propõem uma revisão às lacunas das propostas liberais e estado-centradas nos diálogos de paz e violência a partir do enquadramento das diversas formas de violência - sejam elas diretas, estruturais ou culturais - e da protagonização de outros atores, além dos Estados e das Organizações Internacionais, para se pensar a paz (Jutila, Pehkonen e Vayrynen, 2008).

Objetiva-se dialogar com os importantes dilemas contemporâneos e as lacunas presentes nas pesquisas tradicionais de paz quando unicamente observadas através das lentes estatocêntricas, tendo em vista a experiência da violência urbana brasileira e a sua invariável relação com a desigualdade social e econômica e a emergência do crime organizado transnacional. Da mesma forma, entende-se a necessidade de formular espaços alternativos de construção de paz, além daqueles promovidos pelos Estados ou Organizações Internacionais, em que a ação comunitária exibe notável expressão. Descrito como a ‘virada local’, esses processos de construção de paz de cima para baixo (‘bottom-up’) espelham uma maior sensibilidade às práticas comunitárias locais na investigação das raízes estruturais dos seus próprios problemas, assim como das suas próprias percepções de paz, culminando na soma de pequenas solidariedades cotidianas que podem indicar esforços para iniciativas e relacionamentos pacíficos (Dutta, Adzenge e Walkling, 2016; Richmond, 2013). A abordagem de análise de peace formation priorizada na presente pesquisa, no entanto, observa a conexão destas reivindicações locais com estruturas transversais e transnacionais mais amplas.

Adota-se para tal, o estudo do caso do Instituto Favela da Paz criado por moradores da comunidade do Jardim Ângela, em São Paulo, com o propósito de instituir uma abordagem multidimensional para a paz na região, marcada pela ONU na década de 1990 como um dos lugares mais violentos do mundo (Folha Uol, 2006). O projeto reúne uma série de ações coordenadas para a criação de uma comunidade sustentável e orientada por uma cultura de paz, dispondo de projetos diversos que vão, dentre outros, desde a captação de energia solar e da água da chuva a programas de justiça social. Os resultados observados apontaram uma convergência intuitiva entre as práticas dos moradores locais da comunidade com a abordagem de formação de paz (Peace Formation) de Oliver Richmond, que se insere na proposta da virada local ligada aos Estudos Críticos de Paz.

2. METODOLOGIA

Metodologicamente, trata-se aqui de uma análise exploratória e decritiva com triangulação de dados, conduzida através de análises bibliográficas pertinentes aos estudos nas áreas das Relações Internacionais, dos Estudos de Paz e dos Estudos Críticos de Paz, com a análise paralela dos dados fornecidos por agências internacionais e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, pelo Mapa da Desigualdade de São Paulo e documentos do Instituto Favela da Paz. Conjuntamente, foram realizados diálogos com partícipes centrais do Instituto Favela da Paz, bem como entrevista semiestruturada com Fábio Miranda, idealizador do IFP e principal articulador do projeto Periferia Sustentável, com o intuito de compreender as principais ações sociais dispostas pelos moradores do Jardim Ângela visando a promoção da sustentabilidade, da tecnologia e da paz local. Ainda que no processo de pesquisa estivessem previstas estas entrevistas e diálogos in loco, o contexto da pandemia permitiu somente que elas fossem conduzidas no formato de chamadas em vídeo ou áudio e limitou a quantidade de entrevistas e a possibilidade de observação participante junto a beneficiários do projeto. No contexto da pandemia, as atividades do IFP foram suspensas e os coordenadores do projeto estavam diligentemente engajados na proteção sanitária, social e econômica dos moradores da região diante um contexto de sensível vulnerabilidade.

Isto posto, objetiva-se analisar a ocorrência da violência sistemática em sociedades pacíficas e democráticas, como demonstra o caso brasileiro, e neste caso a sua invariável relação com a desigualdade econômica e a marginalização social vista das periferias. Igualmente, pretende trazer o protagonismo para as percepções locais sobre paz e violência e as suas iniciativas de resiliência e transformação dos desafiantes conflitos urbanos que vivenciam, e que constantemente são marginalizadas pelas narrativas convencionais de promoção da paz. Por fim, será analisado se o caso do Instituto Favela da Paz, na capital do estado de São Paulo, contribuiu para a promoção em algum nível de índices ligados à qualidade da paz local e se a comunidade se vê mais distante da violência a partir do seu engajamento com o projeto.

Isso nos permitirá colaborar para a ampliação dos estudos acadêmicos que objetivam a compreensão em profundidade da relação entre a violência urbana, pobreza, exclusão social e construção de paz em sociedades democráticas. Ademais, pretende-se contribuir na literatura com este debate inovador que evidencia a atuação dos agentes locais (bottom-up) na promoção da paz, a partir da identificação das suas próprias vulnerabilidades e dos conjuntos de iniciativas criativas e inovadoras direcionadas à transmutação do problema.

3. A VIRADA LOCAL (BOTTOM-UP) E O CONCEITO DE PEACE FORMATION À LUZ DOS ESTUDOS CRÍTICOS PARA A PAZ

O campo dos Estudos de Paz foi instituído de forma paulatina a partir da década de 1950 atrelado à motivação de se investigar sistematicamente o fenômeno da violência para o vislumbre da paz. Sob o pano de fundo da sucessão de guerras no século XX, a maior preocupação dos pioneiros núcleos de pesquisas girava em torno da reflexão normativa da guerra, sobretudo diante o olhar crítico que a nova disciplina impunha ao questionar a sua normalidade e recorrência como um instrumento político, implicando factualmente em grandes custos e perdas às sociedades. Ainda que os Estudos de Paz partilhem da mesma preocupação com o objeto da guerra com outros campos, como as Relações Internacionais e os Estudos Estratégicos, estes últimos centralizaram as suas abordagens primariamente nas reflexões sobre poder e interesse nacional (Jutila et ál., 2008).

Por outro lado, os Estudos de Paz desde o início da disciplina pretenderam a compreensão ampla do conceito de paz para além dos aspectos do sistema internacional e do Estado-nação, investigando os vários níveis da violência, inclusive também àquelas que ocorrem ao nível das relações dos indivíduos. Nesse sentido, o campo surge amparado em um forte cunho crítico ao preservar primariamente os interesses sociais por meio da percepção normativa da guerra como um problema para a humanidade e, por esse motivo, a necessidade de um estudo rigoroso em alternativa e que fosse favorável a articulação de políticas e ações coordenadas visando a coexistência harmônica entre os atores e os indivíduos (Ferreira, 2017b; Jutila et ál., 2008).

Ao longo das décadas seguintes, no entanto, o campo dos Estudos de Paz dissipou progressivamente o protagonismo de uma agenda inicialmente crítica para passar a articular uma estrutura acadêmica que privilegia e preserva uma agenda coordenada por abordagens racionalmente positivistas de solução de problemas. O que se observa é que ao longo dos anos os principais canais de pesquisas, como o Journal of Peace Research (1964) e o Journal of Conflict Resolution (1957) - canais que nascem apropriados de um repertório crítico - transitaram de uma ciência essencialmente reflexiva, com uma agenda metodológica de pesquisa para um mundo mais pacífico, para adquirir o formato de uma ciência com caráter essencialmente técnico e burocrático (Jutila et ál., 2008).

Prevalecem nesses canais a convencional definição de conflito empregada nos documentos das Organizações das Nações Unidas que consideram o estado de conflito armado mediante a manifestação da violência física atrelada à declaração de guerra em sua escala máxima (Braga e Matijasic, 2019). Ou seja, pressupõe um enfoque na violência indissociada da ameaça direta e declarada ao Estado, seja proveniente de uma guerra interestatal ou de uma guerra civil. Entretanto, os dados evidenciam que “para cada morte de uma guerra reconhecida, há nove vítimas de violência provenientes de gangues e do crime.” (Ryan, 2013 apudFerreira, 2017a: 67, tradução nossa). O que corrobora para a necessidade de um olhar direcionado ao fenômeno do crime organizado, do narcotráfico e da violência armada no nível doméstico, além do já exposto, são os dados que apontam para as altas taxas de instabilidade e de homicídios pelo uso de armas letais, consideravelmente superiores às taxas de países em situação de conflito formal (Ferreira, 2020).

A título de exemplo, o maior país do continente sul-americano é caracterizado por sua baixa participação em conflitos internacionais, da mesma forma que também não vivencia nenhum conflito armado declarado. Todavia, possui elevados índices de violência e de insegurança nas cidades provenientes do embate entre o crime organizado e Estado - índices esses iguais ou ainda superiores aos Estados que vivenciam contextos de guerra ou conflito (Moura, 2005; Ferreira, 2020). O Brasil, a despeito da sua categorização internacional enquanto uma zona de paz, se situa em um dos grandes epicentros do narcotráfico e do crime organizado internacional o que contribui para o aumento substancial da criminalidade violenta na região (Adorno, 1996).

Os Estudos Críticos para a Paz propõem uma revisão que dialogue com os vácuos percebidos no campo sistemático de paz em seus diferentes níveis de análise. Ao ampliar o seu alcance de investigação para incluir todas as formas de violência, bem como protagonizar outros atores, além dos Estados e das Organizações Internacionais, reforçam o ideal por uma agenda construtiva, em que as práticas sociais e comunitárias são também levadas em consideração. A virada local nos processos de construção de paz é uma das propostas de análise inerentes aos Estudos Críticos para a Paz. A metodologia espelha uma maior sensibilidade às práticas comunitárias na investigação das raízes estruturais dos seus próprios problemas, assim como das suas próprias percepções de paz, culminando na soma de pequenas solidariedades locais que podem indicar esforços para iniciativas e construção de relacionamentos pacíficos.

Mac Ginty (2014) complementa que as ferramentas dispostas pela virada local têm o potencial de alavancar como um fenômeno político mais amplo para impactar qualitativamente nos estudos sobre paz e conflito, conectando-se com o que Richmond (2013) atribui como formação da paz (‘Peace Formation’): um conjunto de relacionamentos e processos em redes em que os agentes locais são os atores ativos nos processos de resolução das contingências e da construção da paz por meio das suas próprias experiências. Expressa um continuum de ações que permeiam desde práticas instintivas de sobrevivência até uma postura diplomática mais ambiciosa e proativa ao desafiar a própria normativa e clivagem em que se sustenta o conflito e as relações entre os grupos (Mac Ginty, 2014).

A metodologia reúne uma série de conceitos preexistentes, como resolução de conflitos e construção de paz, mas transpassa ao considerar todos os atores envolvidos, reconciliando as normas e instituições internacionais com a legitimidade das práticas locais. Ou seja, a formação de paz considera a emancipação dos atores locais no reconhecimento dos seus próprios problemas, com base nas particularidades dos seus contextos históricos e sociais, mas operando à luz das estruturas internacionais de poder - ainda que não sejam prescritamente restringidos por elas. Dessa forma, implica a dissociação das hierarquias de poder tradicionalmente impostas entre os âmbitos internacionais e locais na construção da paz para abranger modelos de integração mais amplos que considerem os interesses, identidades e necessidades de todos os atores, sejam eles estatais ou não-estatais. Em suma, a paz é percebida e construída localmente, mas apoiada internacionalmente. (Richmond, 2013).

Richmond (2013) considera a inevitabilidade à tendência racional-legal em um mundo composto por Estados, mediado por organizações internacionais e pautado em princípios de proteção à democracia e aos direitos humanos, como previstos pelo modelo liberal de promoção da paz. No entanto, reitera que cada comunidade possui a sua própria percepção das nuances locais a serem integradas visando o pleno alcance da justiça social, e muitas vezes o fazem instintivamente considerando que as principais instituições encarregadas de encobrir a ordem social pareçam distantes das suas realidades.

Por esse motivo, os agentes locais de formação da paz usualmente buscam desenvolver relações externas com doadores internacionais envolvidos em ações de paz, visando alternativas viáveis de articulação. A abordagem de formação de paz demonstra a necessidade de uma maior maleabilidade ao se pensar a paz, violência e os seus reflexos, tendo em vista o recorte histórico, social, político, econômico e cultural em que tais dinâmicas se fazem presentes.

Transpondo para a experiência latino-americana, e em particular a brasileira, observa-se os esforços de uma recente literatura em traçar caminhos para os diálogos de formação de paz em contextos marcados pela violência urbana, refletindo acerca dos desafios e oportunidades presentes. Democracias latino-americanas – mas não somente – enfrentam o crescimento substancial de organizações criminosas desde a década de 1970, a partir do estabelecimento e controle de mercados ilícitos por estes grupos em áreas negligenciadas pelo Estado e historicamente alheias à implementação de políticas públicas e ao investimento privado, como é o caso das favelas brasileiras. À medida em que organizações criminosas se tornam mais fortes, elas expandem também o seu domínio por meio da imposição de normas e regras, da prestação de serviços, da arrecadação de impostos e do monopólio da violência nesses territórios, criando espaços de micro governança paralelas ao Estado e aumentando ainda mais a distância mútua entre a população civil e a as instituições políticas formais. Frente a isso, a resposta demasiadamente repressiva do Estado contribui para um cenário de instabilidades e tensões contínuas, expressas nos elevados índices de vítimas de homicídios concentrados nesses territórios (Richmond e Ferreira, 2021).

São contextos em que a sociedade civil coexiste com a disputa entre as dinâmicas do crime organizado e a negligência e repressão estatal. Autores como Richmond e Ferreira (2021) demonstraram que, a despeito dos desafios impostos pela governança criminal, a agência local desempenha um papel imprescindível nos processos de formação de paz pois possuem a competência, o conhecimento e a legitimidade necessária para enfrentar as dinâmicas cotidianas de forma não violenta[1]. Isso é possível, em primeiro lugar, mediante a capacidade dos ativistas locais em suplantar o vácuo deixado pela negligência estatal, possibilitando um canal factível de intermediação e diálogo entre a sociedade, o Estado e as Organizações Internacionais no combate à violência social. E, em segundo, por promoverem iniciativas alternativas de promoção de seguridade social e econômica visando superar à violência e a desigualdade.

À vista disso, a experiência do Instituto Favela da Paz (IFP) parece apontar para a sensibilidade de um projeto que intuitivamente coaduna com as práticas de formação da paz em contextos marcados pela violência urbana. Os achados empíricos se relacionam com a presente metodologia sobretudo em dois pontos. Em primeiro lugar, o IFP realiza programas de inclusão voltados aos moradores do bairro periférico do Jardim Ângela em São Paulo, objetivando fomentar oportunidades e capacidades aos moradores locais e superar as adversidades presentes em um contexto marcado pela criminalidade, pela estratificação social, desigualdade econômica e pela fragilidade político-institucional. Em segundo, realizam tais ações com o apoio de uma ampla rede internacional de projetos ligados à promoção da paz em ambientes diversos, conectando as reivindicações locais por emancipação com movimentos transnacionais muito mais amplos. Os seguintes tópicos se dedicam à essa análise.

4. DESIGUALDADE E VIOLÊNCIA ESTRUTURAL MATERIALIZADA NOS ESPAÇOS URBANOS DE SÃO PAULO

Para entender o contexto de atuação do Instituto Favela da Paz é fundamental reconhecer os principais dilemas ligados à violência estrutural na América Latina. Apesar do gradual progresso na democracia e no desenvolvimento social e econômico alcançado pelas sociedades latino-americanas ao longo das últimas décadas, a pobreza e a desigualdade, juntamente com a exclusão social e os implacáveis índices de violência na região, ainda permanecem como desafios urgentes a serem enfrentados. Há uma evidente relação entre a desintegração social e a maximização do crime e da violência, ainda que, cada sociedade apresenta relações particulares em extensão e intensidade da manifestação da violência em relação aos seus índices internos de desenvolvimento socioeconômico. No entanto, os países que configuram a prevalência de altos níveis de desigualdade atrelados ao desenvolvimento do crime organizado possuem, de fato, altos índices de violência relacionados principalmente às elevadas taxas de homicídio (United Nations Office on Drugs and Crime, 2019). Quando não diretamente envolvidos com o crime organizado são justamente os indivíduos situados nas periferias os alvos mais suscetíveis a sofrerem com a violência urbana cotidiana das grandes cidades (Souza, 1994). Por isso, a análise da violência estrutural busca compreender os arranjos sociais, seja das organizações políticas ou econômicas, que posicionam os indivíduos ou populações em situação de vulnerabilidade (Henkeman, 2016: 08 apud Ferreira, 2019).

Apesar das flutuações macroeconômicas e dos progressos na contenção à pobreza nos últimos 50 anos, a desigualdade de renda no Brasil apresentou uma particular estabilidade, figurando-se ao longo das décadas entre um dos mais elevados do planeta. Segundo o World Inequality Lab 2022 (Relatório da Desigualdade Mundial 2022), o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo: enquanto os 10% da população com os melhores rendimentos calculados captam 59% da renda nacional, a metade inferior da população capta apenas 10% do rendimento total. As assimetrias de renda no Brasil são superiores inclusive às observadas nos Estados Unidos, onde os maiores 10% capturam 45% da renda nacional total, ou da China onde este valor representa 42%. O mesmo relatório aponta que a desigualdade de riqueza no Brasil também está entre as mais elevadas do mundo. Em 2021, 50% da população do país detinha menos de 1% da riqueza nacional total (contra 6% na Argentina, por exemplo), enquanto 1% da população possuía cerca de metade da riqueza total.

Conforme aponta o relatório ‘Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira’ de 2020’, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a estrutura socioeconômica brasileira, historicamente centrada na exploração extensiva dos recursos naturais e humanos pelo modelo primário-exportador, propiciou a formação de um sistema econômico caracterizado pela alta concentração de renda no território Assim, as atividades produtivas e a inserção laboral no modelo de desenvolvimento brasileiro contribuíram fundamentalmente para a reprodução das desigualdades sociais no país, marcado ainda hoje pelas baixas remunerações e altas taxas de informalidade no mercado de trabalho[2] (Barros, 2012; Barros, Henriques e Mendonça, 2000).

É nesse sentido que as periferias nas cidades brasileiras refletem as contradições das desigualdades sociais reproduzidas no espaço. Para Cardoso (2007), as assimetrias sociais são uma constante na análise histórica brasileira, agravada pela precarização e informalidade do trabalho, fazendo com que seja restrita a população com acesso aos recursos, serviços e às possibilidades formais e seguras de moradia. Acrescenta-se ainda, “a incapacidade do poder público em realizar investimentos em infraestruturas urbanas e em ampliar a sua capacidade de regulação do mercado fundiário e imobiliário” (Cardoso, 2007 :222). (Blackwell e Duarte, 2014).

Em que pese as considerações acima, o retrato urbanístico de São Paulo concentra a periferização e a violência em demasia como grandes dilemas atuais. A urbanização na região metropolitana obedeceu os parâmetros convencionais de crescimento urbano atrelado à ampliação das suas periferias, ao que se verifica as migrações intraurbana para direções mais periféricas na década de 80, particularmente as regiões situadas no extremo sul, leste, norte e oeste em mais de 2,3 milhões de habitantes (71%), evidenciando a mobilização da população mais carente em direção às regiões mais precárias e, portanto, alheias aos principais investimentos público e privado, conforme ilustrado na Figura 01. Igualmente há um padrão na distribuição da população preta e parda - historicamente marginalizada nas searas política e econômica - nas zonas mais afastadas da região metropolitana de São Paulo, como indica a Figura 02.

Distribuição da população na cidade de São Paulo em 2019.
Figura 1
Distribuição da população na cidade de São Paulo em 2019.
Adaptação dos autores do Mapa da Desigualdade (2020).

População preta e parda distribuídas na
cidade de São Paulo em 2019.
Figura 2
População preta e parda distribuídas na cidade de São Paulo em 2019.
Adaptação dos autores do Mapa da Desigualdade (2020).

Conforme verifica-se na Figura 03, a cidade de São Paulo é densamente povoada nas regiões periféricas, onde concentram boa parte da população em habitações nas favelas, enquanto nas áreas centrais prevalece o menor contingente populacional. A despeito disso, as oportunidades formais de emprego são melhor verificadas nas zonas centrais, indicando que as especificidades territoriais da capital obedecem hoje à lógica especulativa do mercado imobiliário, ligada ao valor atribuído à terra e o direito à cidade. Isto posto, uma das características fundamentais do processo de urbanização paulistana foi a desconformidade entre a localização e o acesso aos principais recursos econômicos e sociais, ou seja, aos “espaços da vida” (Fábio Miranda - Entrevista) (Hughes, 2004).

Favelas na cidade de São Paulo em 2019.
Figura 3
Favelas na cidade de São Paulo em 2019.
Adaptação dos autores do Mapa da Desigualdade (2020).

A controversa atuação do Estado brasileiro nas periferias é um outro assunto recorrente que contribui ainda mais para a deflagração da violência e o aumento substancial das taxas de homicídio. Desde que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública passou a monitorar a letalidade das intervenções policiais no país, em 2013, até o último relatório publicado em 2022, ao menos 43.171 pessoas foram vítimas de ações de policiais civis ou militares no Brasil (Bueno et.al., 2022). Entre 1990 a 2000 mais especificamente, foram contabilizados oficialmente 6.565 pessoas vitimadas pela polícia militar de São Paulo, desconsiderando ainda as mortes não computadas pelos registros oficiais (Hughes, 2004). Dados mais recentes apontam para uma continuidade na tendência à abordagem demasiadamente repressiva utilizada pela segurança pública do estado. Somente em 2020, foram contabilizadas oficialmente 756 pessoas mortas por policiais em serviço por tiro intencional no estado de São Paulo (Cano, I., Borges, D., Marques, D., Pacheco, D. e Sobral, I., 2022).

Evidentemente há um padrão desmedidamente repressivo conduzido pelas forças de segurança pública no combate à violência criminal nos bairros pobres de São Paulo, sem atentar-se para os verdadeiros sintomas estruturais e culturais que permitem a sua reprodução. Na prática, coexistem dois distintos regimes de controle da violência na cidade de São Paulo: as políticas do governo e as políticas do crime; ao que Feltran atribui como “as matrizes discursivas que produzem políticas explícitas de controle da violência letal em São Paulo” (Feltran, 2020, 234). Apesar da alteridade atribuída a ambos os regimes normativos, pode-se considerar efetivamente o controle que exercem sobre as atividades cívicas da cidade e do estado de São Paulo, principalmente pela capacidade de influenciarem nos desdobramentos dos conflitos e da violência urbana local.

Somado a isso, é importante ressaltar que os debates sobre as periferias e os seus desdobramentos no Brasil são demasiadamente profusos. Para além das costumeiras associações entre o território e as suas carências, ou ainda a distinção empregue entre “favelados” (o mundo do crime) e a “sociedade de bem” (o mundo social), que corroboram para o estigma da marginalização e separatividade entre as classes, a presente pesquisa se restringe ao entendimento das fronteiras políticas na demarcação das periferias, assim como a análise da compatibilidade entre a privação econômica e social na reprodução da violência estrutural no tempo e espaço. Compartilha-se da mesma linha de pensamento abordada por Gabriel Feltran (2008), que reconhece na sociedade brasileira - altamente hierárquica -, a divisão política, econômica e social entre os dois mundos e, portanto, estando constantemente sujeita ao conflito.

5. ATUAÇÃO DE ATORES LOCAIS NA PROMOÇÃO DA PAZ: A EXPERIÊNCIA DO INSTITUTO FAVELA DA PAZ NO BAIRRO JARDIM ÂNGELA (SÃO PAULO)

Em vista do já discutido, a presente seção se dedica à análise de caso de atores locais contribuindo na superação da violência no seu entorno e, dessa forma, auxiliando para a promoção da paz local. À título de análise, examina-se a experiência do Instituto Favela da Paz na promoção da paz no bairro Jardim Nakamura, situado no distrito Jardim Ângela, na região sul de São Paulo. Em suma, o Instituto compreende uma rede de empreendedores sociais locais que almejam de forma ampla a instituição de uma comunidade sustentável e orientada por uma cultura de paz em um dos bairros já datados como um dos mais perigosos do mundo (Folha Uol, 2006).

Considerado pela Organização das Nações Unidos na década de 1990 como o lugar mais violento do mundo, o distrito Jardim Ângela registrou no ano de 1996 uma taxa anual de 116,23 assassinatos para cada 100 mil habitantes e cerca de 70% da população inserida no agrupamento de alta e altíssima vulnerabilidade social nos anos 2000, de acordo com o Mapa da Exclusão e Inclusão Social de São Paulo. Dados mais recentes, no entanto, apontam para uma queda substancial das taxas de homicídios na região. Entre os anos 1991 e 2005 registru-se uma queda de 75% nos índices de morte violenta no distrito, época que coincide com o aumento dos investimentos públicos e com a mobilização de organizações sociais no distrito (Folha Uol, 2006).

Até o momento em que a presente investigação foi conduzida não foi identificado outras contribuições científicas interessadas em analisar e quantificar a contribuição direta do Instituto Favela da Paz na mitigação dos índices de violência local, apesar das evidências empíricas. Embora correlacionar a mensuração direta entre as ações promovidas pelo Instituto Favela da Paz e a redução dos índices que remetem a violência seja difícil, é, no entanto, possível observar claramente os esforços conduzidos pelo Instituto em criar elementos de pacificação no bairro. Outros fatores, como o desenvolvimento de políticas públicas nos anos recentes e elementos da dinâmica criminal, como a hegemonia do PCC em São Paulo, podem ter contribuído para a redução dos índices locais ligados à violência (Biderman et ál., 2019) (Figura 4)

Jardim Ângela,
periferia de São Paulo, 2001.
Figura 4
Jardim Ângela, periferia de São Paulo, 2001.
Foto Antonio Sagese (Leme, 2003)

O projeto teve início em 1989, com a criação da Banda Poesia Samba Soul, pelos irmãos e moradores da comunidade, Cláudio Miranda e Fábio Miranda, a partir de materiais coletados do lixo. A partir de então, motivados pelo desejo de “mudar o lugar sem se mudar de lá” decidiram dar aula de música para os jovens locais de forma gratuita com instrumentos também produzidos com materiais que seriam descartados como lixo. Já em 2010 o projeto foi oficialmente instituído, levando o nome de Instituto Favela da Paz e cobrindo diversas iniciativas em redes voltadas à promoção de arte, cultura, sustentabilidade, esporte, saúde e educação; todos interligados entre si. Mais especificamente, dispõem de projetos para a captação da água da chuva e da energia solar, sistemas de biodigestor de matéria orgânica, produção musical, autossuficiência na produção de alimentos e programas de justiça social e de cultura de paz.

A partir da triangulação de documentos oficiais, notícias, entrevistas e revisão da literatura, explicamos abaixo a atuação do Instituto Favela da Paz e seus efeitos na construção da paz social.

5.1 ‘Favela da Paz’: modelo de projetos sustentáveis na construção de um caminho para a paz em São Paulo

Desde 1989 os irmãos Cláudio Miranda e Fábio Miranda promovem ações sociais a partir da música e da sua Banda Poesia Samba Soul na comunidade do Jardim Ângela em São Paulo. No ano de 2009, o Cláudio teve a oportunidade de participar de um projeto da Artemisia[3], uma organização fundada em 2005 e destinada a integrar negócios com impacto social em localidades marcadas pela vulnerabilidade econômica e social. Naquele ano, cerca de mil empreendedores sociais se inscreveram no programa coordenado pelo Artemisia, dentre os quais apenas dez projetos seriam selecionados e gratificados com o financiamento para poderem tocar as suas iniciativas de transformação social adiante. O Cláudio, ao se inscrever, pretendia inaugurar um estúdio de música na comunidade, que naquela época restringia-se ainda mais às pessoas que possuíam recursos, ou como afirmou o Fábio em entrevista, “do outro lado da cidade”. Apesar de ter ficado entre os 10 projetos, dos 1000 participantes, o projeto social não foi contemplado com o financiamento. Quando questionado sobre a sua motivação de implantar um estúdio musical em um lugar onde as pessoas passavam fome, e estão “matando e morrendo”, respondeu que este não era o lugar em que ele vivia, mas sim o lugar que enxergavam. Que naquele lugar as pessoas precisavam ser reconhecidas. Precisavam de música e cultura.

A partir dos laços criados com o representante da Artemisia no Brasil, Marcelo Cavalcanti, Cláudio foi convidado a viajar para o Tamera[4], uma ecovila no sul de Portugal. Este foi um ponto de inflexão para o Favela da Paz, que passou a ser formalmente instituído com o nome em 2010 e a estar conectado em rede com outras experiências comunitárias ao redor do globo com o mesmo fim social e comunitário. Desde então, o Cláudio, o Fábio, e diversos outros contribuidores promovem uma ampla gama de projetos sociais, voltados à sustentabilidade e à cultura de paz no bairro Jardim Ângela em São Paulo.

São diversos os projetos promovidos pelo Instituto Favela da Paz disponíveis para a comunidade, a saber: Periferia Sustentável; Samba na 2; Projeto Vegearte; Projeto periferia em cena; Luto social; Jardim Ângela Music Festival; Projeto BMX Factory; Estúdio Poesia Audiovisual; Grupo de Percussão Favela Mirim; e Estúdio Poesia Audiovisual.

Nas searas de promoção da tecnologia e sustentabilidade, o Periferia Sustentável é responsável pela reutilização de materiais que seriam descartados como lixo para a produção de móveis, de energia solar, do sistema de biodigestor a partir de restos de alimentos e o sistema de captação de água de chuva para atividades diversas. O projeto presume a instituição de um modo de vida mais sustentável para a comunidade, a partir do desenvolvimento de tecnologias variadas a baixo custo para abastecer todos os demais projetos desenvolvidos pela ONG. Contribui ainda com a realização de oficinas acerca da reutilização de materiais descartáveis e a implantação de tecnologia sustentável para toda a comunidade interessada.

O IFP promove eventos de cultura e arte de acesso gratuito para toda comunidade, visando também movimentar a economia entre os comerciantes locais. O Samba na 2 é um evento de show de samba gratuito promovido mensalmente. Já o Jardim Ângela Music Festival reúne bandas da periferia de todas as regiões de São Paulo e de todos os estilos musicais, como rap, funk, rock, sertanejo e pagode, com o intuito de apoiar e promover bandas locais.

Objetiva também a construção de cidadania a partir do fomento de capacidades e potencialidades dos jovens, como os projetos esportivos Luta Social, oferecendo aulas gratuitas de Jiu-Jitsu, o Projeto BMX Factory voltada à prática de manobras de bicicleta e a organização de campeonatos na área. Viabiliza também o Dia Olímpico integrando um dia para a prática de atividades físicas. Voltado às crianças, o Grupo de Percussão Favela Mirim oferece aulas de percussão e música.

São diversos os cursos gratuitos oferecidos. O Projeto Vegearte instrui cursos sobre a gastronomia vegetariana e alimentação saudável para a comunidade. Já o Estúdo Poesia Audiovisual foi o primeiro estúdio de produção musical do bairro Jardim Ângela desde 2004, auxiliando e gravando artistas das comunidades de São Paulo. Mais recentemente passou a incluir também produção cinematográfica voltada a produção de pequenos documentários e curtas metragens. O Projeto Periferia em Cena, por sua vez, promove cursos para a produção de áudio, vídeo, fotografia e designer de multimídia. Além disso, o projeto é responsável por acompanhar e prover a cobertura digital e midiática dos demais projetos. (Figura 5)

Grupo de percussão Favela Mirim. Jardim Ângela, São Paulo (2018).
Figura 5.
Grupo de percussão Favela Mirim. Jardim Ângela, São Paulo (2018).
Acervo pessoal do Instituto Favela da Paz

5.2 Rede de colaboradores locais e internacionais

O IFP atua de forma autônoma às instâncias públicas e, portanto, se classifica como uma instituição privada e sem fins lucrativos. Não há qualquer repasse do governo ou da prefeitura. Financia-se por meio de donativos e contribuições de corporações, além de redes colaborativas transnacionais vinculada ao projeto “Tamera: Centro de Educação e Investigação para Paz” de Portugal, mas também através da rede de amigos e de redes colaborativas diversas. Por outro lado, colabora paralelamente com a própria atuação pública, como no recente contexto de pandemia, auxiliando na produção de mais de mil máscaras para serem distribuídas nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) da região.

O projeto Tamera compreende desde o Favela da Paz, na comunidade do Jardim Ângela em São Paulo, a Comunidade de Paz de San José de Apartadó, na Colômbia, projetos situados entre Israel-Palestina, um centro de permacultura em Kitale no Quênia e a Comunidade Inla Kesh em Chiapas, no México. Todos os projetos compartilham o ideal de entenderem os seus próprios desafios locais e superarem as suas vulnerabilidades, através de parcerias entre as diferentes culturas e experiências diversas situadas entre o Norte e o Sul Global, mas todos movidos pela articulação em prol a "paz mesmo nas situações mais violentas e mantendo a esperança e a resiliência”. Dessa forma, em rede, se encontram anualmente para debaterem e compartilharem suas boas práticas, como reforçou Fábio Miranda, “aí essa troca... uma experiência vai inspirando a outra e criando forças”.

5.3 Resultados observados e práticas intuitivas de formação da paz (Peace Formation)

A entrevista com Fábio Miranda, fundador e partícipe central do IFP, foi realizada de forma a dialogar sobre três temas centrais: questionamentos gerais sobre os fundamentos e o funcionamento do Instituto; perguntas sobre a mútua relação entre as instâncias públicas e a comunidade; e, por fim, perguntas envolvendo aspectos da violência estrutural e da criminalidade sob o ponto de vista dos moradores locais. Como resultado, foi possível observar que as práticas realizadas pelo o IFP, que sumarizam a agência local na promoção da paz no bairro Jardim Ângela em São Paulo, convergem intuitivamente com a abordagem de formação de paz de Richmond (2016). Entende-se aqui os processos de formação de paz na favela como as ações locais realizadas por grupos comunitários, ligados a outros atores transversais e transnacionais, considerando a interseccionalidade de todos os tipos de violência e visando o alcance amplo da justiça social e da paz sustentável dentro do seu contexto. Em síntese, a formação de paz tem por objetivo:

Promover a cooperação e a responsabilização; levantar questões; oferecer perspectivas novas ou ocultas; desafiar o poder, resistir e cooptar; trocar informações e experiências, ampliar o poder subalterno; mas o mais importante, negociar e mediar uma solução local, transversal e transnacional para toda a gama de fatores que compõem qualquer conflito moderno (Richmond, 2016, p. 37, tradução nossa)

O IFP insere-se na classificação de uma organização não governamental, conectada em rede internacional com outras organizações com fins análogos. Visando diminuir a dependência das negociações em sentido top-down, o IFP se articulou com redes transnacionais com propósitos similares, mantendo um certo nível de autonomia de atuação. Conectam, dessa forma, reivindicações locais com estruturas sociopolíticas mais amplas, gerando canais de apoio e de compartilhamento de recursos e expertise que possibilitam o seu desenvolvimento e a continuidade das atividades. Conforme percebido por Elizabeth Leeds, em configurações urbanas como as favelas brasileiras, características pela ausência governamental, apresenta-se a necessidade de construção de formas locais autônomas de tomada de decisão e prestação de serviços como forma propriamente de sobrevivência (Leeds, 1996, p. 77 apud Richmond e Ferreira, 2021).

“o Favela da Paz hoje cria, né, é uma realidade totalmente diferente do que o sistema oferece [...]. É uma vida um pouco mais equilibrada e uma vida de esperança, na verdade. Porque a partir do momento que você sabe que você não depende somente da energia que o governo manipula, mas que você pode captar energia do sol, você pode fazer reutilização de água da chuva, você pode plantar o seu próprio alimento de uma forma ou de outra [...]. Então é criar esse cenário de possibilidades.” (Fábio Miranda)

No contexto das favelas brasileiras, o histórico de descaso, criminalização e ausência de infraestrutura pública constantemente situou essas regiões ‘à margem do Estado’ e à margem da parte desenvolvida dos centros urbanos. Consequentemente, os residentes da favela foram submetidos à marginalização cultural e estrutural em relação às demais partes da cidade, assim como privados do acesso à infraestrutura e serviços de educação, saúde e lazer de qualidade e, portanto, da plena materialização dos direitos civis enquanto cidadãos brasileiros. Sobre o acesso aos ‘espaços da vida’ pelos moradores da favela, Fábio diz:

"A infraestrutura ainda é uma coisa que nem todo mundo tem acesso. Aos espaços da vida… Energia, saneamento, moradia, boa alimentação. Ainda falta muito. Em algumas regiões a gente vê isso bem precariamente. Por exemplo, a comunidade hoje que eu moro é uma comunidade que já tem 30 anos, então já tem uma certa estrutura. Aqui dificilmente você vai ver uma casa de palafita, uma casa de tapume, não. Mas tem comunidades aqui próximas que vivem essa realidade. Que nem saneamento tem ainda. Então eu acredito que ainda falta muito isso aqui”. (Fábio Miranda - Entrevista)

Richmond e Ferreira (2021) pontuam que em locais onde predomina a omissão do estado em promover condições básicas de seguridade social, proteção física e dignidade humana - ou seja, cenários com altos níveis de violência estrutural - há por consequência a emergência de redes de governança informais, como as demonstradas pelas organizações criminosas.

“Querendo ou não a gente teve esse rótulo do lugar mais violento do mundo. Por exemplo, na idade da minha sobrinha hoje que deve estar com 18 anos… Na verdade na idade do meu filho, que tem 11 anos, eu vi coisas que por exemplo eles não vêem hoje. O tráfico continua? Continua. Tá lá na rua. Tá tudo lá. O crime tá na rua. (Fábio Miranda - Entrevista)

Acerca dos níveis de criminalidade na região metropolitana de São Paulo nota-se que o cenário atual é diferente do vivenciado nos anos 1990, marcada pela banalização cotidiana da violência. De fato, os marcos temporais relatados direcionam para os momentos anteriores e após o período de pacificação das favelas com a hegemonia da organização criminosa do Primeiro Comando da Capital em São Paulo (Biderman et ál., 2019). Fornece, portanto, um olhar empírico e cotidiano para o que costumeiramente é mencionado no âmbito das políticas e da academia. Sobre isso, Fábio acrescenta que:

“naquela época existia o crime na rua só que a incidência de homicídios era muito forte. De sair na rua e você acabar vendo uma cena de uma pessoa ser assassinada na sua frente. Já chegou situações da gente sair pra tocar e na volta estar voltando de carro [...] de repente tinha um cara deitado no chão debaixo do carro [...]. Quando a gente chegou perto pra olhar, tinha uma poça de sangue. Tinha acabado de assassinar o cara. Aí o meu irmão correu pro carro, aí na frente tinha outro. Aí a gente desviou, quando passou por cima da calçada tinha mais outro. Então imagina... Agora hoje já faz muitos anos que eu não vejo esse tipo de coisa aqui, sabe. Eu não sei porque. Será que o crime se organizou? Mas eu vejo uma diferença realmente muito grande assim”. (Fábio Miranda - Entrevista)

O IFP hoje é considerado uma referência para o Brasil e para o mundo. Foi a primeira favela brasileira a introduzir o sistema de biogás dentro da comunidade e, nesse sentido, parece oferecer oportunidades que antes encontravam-se reclusas na parte desenvolvida da cidade. Sobre o impacto para a comunidade, afirmou que

“bem, eu acho que só por a gente conseguir sair daquela realidade de um lugar mais violento do mundo e hoje ser uma potência, hoje que é esse bairro do Jardim Nakamura, que é o Favela da Paz hoje, de ser uma organização conectada com diversas organizações do mundo inteiro. O Favela da Paz ele é hoje uma rede global [...]. Então eu vejo realmente o impacto que a gente trouxe pra esse lugar. A gente está num bairro em que são 45 mil habitantes, né? A rua que a gente mora são 2.700 famílias. Impactar tantas pessoas é um processo. Mas a gente pode ver pela mudança no olhar das pessoas. E a gente tem muita admiração e respeito da comunidade. É difícil mensurar isso [o impacto] em números. Mas a gente vê isso pela conexão que a gente tem com os moradores. Pela conexão que a gente tem com outras organizações, a gente consegue perceber que o nosso trabalho faz uma diferença muito grande”. (Fábio Miranda - Entrevista)

Ingri Buer (2022) considera que os esforços comunitários de autogoverno, na ausência do governo do Estado e diante o abandono social, constituem um importante caminho para o alcance de uma paz mais sustentável e de uma política sem violência nas comunidades. A formação de paz nas favelas objetiva ampliar as perspectivas e narrativas locais em suas formas genuínas de resistência e enfrentamento da violência. Com efeito, o senso comunitário nas palavras dos líderes do IFP se fez presente durante toda a entrevista. Em consonância com os preceitos de Galtung (1969) sobre a paz, reafirmava a presença da violência quando as realizações dos indivíduos encontravam-se muito aquém das realizações potenciais. A paz, para o coordenador do projeto, igualmente pressupõe o próprio fim da justiça social. Quando questionado acerca das suas próprias percepções de paz e violência, Fábio Miranda, um dos criadores do IFP, ressalta

“a paz é onde tem respeito pelo próximo, onde você tem o seu direito de ir e vir tranquilamente, onde as pessoas podem fazer aquilo que realmente conecta [...]. O lugar onde as pessoas possam ser realmente liberdade de expressão. [...] A violência ela está atrelada à falta de respeito com o próximo [...]. Não precisa ser violência física. Mas violência psicológica também. Se você for ver hoje uma das doenças que mais mata hoje é depressão. E é uma doença invisível. Então as palavras elas também têm que ter uma certa leveza.” (Fábio Miranda - Entrevista)

O conceito de formação da paz representa uma importante reorientação de agenda. A abordagem fornece uma nova compreensão aos projetos de paz pensados de baixo para cima, considerando o próprio contexto socioeconômico, político, econômico e cultural em que se inserem, sobretudo pelo olhar de quem vive cotidianamente o conflito e os seus desafios vistos de ambas as frentes: tanto as dinâmicas do crime organizado, quanto a negligência e a inoperância das instâncias públicas. Conforme nota Richmond e Ferreira (2021) os movimentos sociais atuam na linha tênue entre o Estado e o crime organizado, permitindo canais de intermediação e espaços micropolíticos para a paz conectados com demandas internas e estruturas externas mais amplas. Sobre isso, Fábio contribui que

“hoje a gente tem uma gama de jovens e crianças que hoje frequentam o Favela da Paz, não agora durante a pandemia, mas pra você ter ideia a gente tem um grupo de percussão com 40 crianças. Aí quando eu faço atividades de tecnologia tem vários jovens. Aí tem de todos os perfis, né. Desde menino que é super tranquilo que é filho de amigo meu daqui, desde filho de traficante que está preso. Dele chegar pra gente e dizer que se sente feliz por estar aqui que por mais que “eu tenha pai tal” ele está feliz porque eu não estou seguindo o caminho dele. São tipos de relatos como esse de tipo você receber uma carta de um cara de dentro da cadeia agradecendo pelo o filho dele estar aqui. Pelo o filho dele estar recebendo as oportunidades que ele não teve [...]. São esses tipos de situação que faz a gente perceber que essa é nossa missão”. (Fábio Miranda - Entrevista)

Os jovens costumam ser percebidos como atores centrais na formação de paz nas favelas, uma vez que constituem o eixo potencial tanto para o ingresso no tráfico quanto para a transformação social. Não apenas crianças e jovens se unem ao tráfico, e são constantemente alvos da violência perpetrada por gangues e pela segurança pública, como também são atores ativistas fundamentais que impulsionam a mudança social em suas comunidades. Visando atingir sobretudo a juventude, as organizações locais fomentam oportunidades como educação, atividades culturais e recreativas, cursos profissionalizantes e espaços seguros para o desenvolvimento psicoemocional dos indivíduos, como alternativa para crianças e jovens que crescem em ambientes de constante violência, abandono e sistemas precários de educação e trabalho e que, por reiteradas vezes, encontram no crime e no narcotráfico um senso de inclusão e alternativa para o autossustento (Buer, 2022).

Mas de que forma a gente pode criar um cenário diferente? Onde os jovens, as crianças hoje são praticamente o que o tráfico quer. Então dessa forma que a gente consegue criar um cenário diferente, não só o Favela da Paz, mas surgiram diversas organizações, diversos projetos que começou a trazer essa visão diferente. O jovem que vê aquele cara lá do tráfico com aquela motona, um tênis legal, tal tal tal. Mas vê por exemplo o Cláudio viajando pra fora do país, tá na televisão dando curso, dando palestra... “Poxa eu quero ser igual aquele cara”. Isso então cria aquela perspectiva de mundo diferente dos dois lados. Não falando que existe o certo e o errado. Eu posso estar errado. Mas depende da visão de cada um, né [...] Eu acredito que sim a gente criou um cenário muito muito diferente para diversas pessoas se sentirem inspiradas”. (Fábio Miranda - Entrevista)

As ações praticadas pelo IFP refletem a emancipação dos próprios atores locais em identificar os principais problemas da comunidade e, assim, promover esforços coletivos visando superar os cenários de violência e instabilidade. Apesar disso, poucas vezes, pelas lentes de Fábio, a criminalidade urbana é ressaltada como o principal problema das favelas, como o senso comum ou as dinâmicas de segurança pública costumam apontar. A sua visão, no entanto, reiteradamente coaduna com a necessidade de um mundo com mais oportunidades e liberdades, atentando-se para a violência estrutural e cultural que os cercam.

“[...] a gente não tá aqui pra combater o crime, a gente tá aqui pra criar expectativa e esperança nas pessoas. É consequência. Às vezes as pessoas falam “ah eu nasci no lugar errado”. Não, eu nasci no lugar certo na hora certa. Nesse lugar aqui que eu tenho que fazer a diferença”. (Fábio Miranda - Entrevista)

A governança criminal em ambientes periféricos e urbanos ainda são tratadas principalmente no âmbito da segurança doméstica, que utilizam de uma abordagem de cima para baixo (‘top-down’) visando conter a violência local e a criminalidade por meio de uma presença excessivamente repressiva das forças armadas, contribuindo ainda mais para o alargamento das tensões e das pessoas vitimadas. As abordagens tradicionais e liberais de paz também são limitadas em compreender e superar a violência estrutural, ao dar enfoque demasiado nas relações de poder do estado democrático liberal, demonstradamente falho e por muitas vezes distante das demandas da sociedade civil. Um projeto de paz bem-sucedido nas favelas, por sua vez, requer um olhar mais diligente para as diversas formas complexas de violência presentes na exclusão social, na desigualdade, na marginalização do Estado e no conflito aberto, ao invés de focar puramente na ordem e pacificação (Buer, 2022).

Nota-se que, para os idealizadores do projeto, a principal questão enfrentada pela comunidade não perpassa as discussões propriamente sobre a violência direta, mas enfatiza os principais aspectos estruturantes dessa violência, representados pela falta de serviços básicos e oportunidades de vida digna para os moradores. A agenda do IFP, portanto, diverge da agenda estatal na condução das prioridades e das estratégias para a promoção da paz na região, uma vez que a política de governo tende a atuar de forma repressiva visando conter especialmente a violência direta e o IFP atua substancialmente diante das raízes da violência social.

“a gente tem uma frase que a gente carrega muito: servir para o mundo que sonhamos. Então este é o nosso propósito. Não é fazer aquele mundo bonitinho, com lacinho em cima. Não… Realmente é o que a gente sonha. Então a gente tenta despertar esse interesse nas pessoas. Primeiro, fazer aquilo que a gente gosta. Independente do que seja. Independente de profissão. De nada. O que te move por dentro? O que faz você vibrar por dentro? É tecnologia, é alimentação, é música, é estar junto em comunidade. Não importa. O que te move, realmente? Então a nossa busca para a comunidade é isso. É abrir esse espaço de liberdade onde as pessoas possam ser livres”. (Fábio Miranda - Entrevista)

Por fim, os movimentos sociais dominam a autoridade e legitimidade local para reivindicar as próprias necessidades e traçar caminhos genuínos de emancipação para a criação de ambientes mais pacíficos e justos (Richmond e Ferreira, 2021). Sob ambas as frentes simultâneas da violência estatal e criminal, os movimentos sociais nas favelas se organizaram historicamente para fornecer serviços e capacitação aos moradores, assim como incentivar novas perspectivas e possibilidades para jovens e crianças. De fato, ao empreender oportunidades e reforçar as potencialidades dos indivíduos, como o acesso artístico e cultural, promovem cidadania e o reconhecimento dos moradores enquanto plenos sujeitos econômicos e sociais, auxiliando para mudar as narrativas de criminalização e o estigma enraizado nos moradores das favelas, bem como contribuir para um futuro de menos violência e mais esperança em suas regiões.

6. CONCLUSÕES

Apesar dos desenvolvimentos teóricos e conceituais que acompanharam o campo dos Estudos de Paz ao longo das últimas décadas, ainda permanece o enfoque centrado na violência perpetuada entre os Estados ou através destes. Manifestações paralelas e menos previsíveis, como a emergência da violência social armada e do crime organizado transnacional, ainda carecem de articulações coordenadas no mesmo plano de ação em prol da manutenção, desenvolvimento e construção de sociedades pacíficas. Nota-se, sobretudo, a reconfiguração das manifestações da violência, bem como a necessidade de repensar os conflitos que não se ajustam em uma concepção tradicional da guerra (Mac Ginty, 2014).

A experiência brasileira acende como ponto propício de análise para a revisão dos diálogos de violência em todos os seus vértices (direta, estrutural e cultural) em cenários de não-guerra, assim como demanda a interconexão necessária entre os debates que ocorrem na esfera internacional e doméstica para o alcance da paz. Objetiva-se a partir de tal abordagem a interseccionalidade dos vários níveis de análises que usualmente são realizados isoladamente, e por reiteradas vezes sob uma hierarquia implícita de superioridade às dinâmicas internacionais e centrais sobre o conhecimento vernacular, local e periférico.

Destarte, nota-se claramente a convergência das experiências cotidianas e o papel do conhecimento vernacular na promoção da paz pelo IFP e os seus atores e práticas, em associação íntima com o conceito de peace formation. Destaca-se, principalmente, como a agência local, diante da ausência de ações efetivas coordenadas no sentido top-down - seja através das organizações internacionais ou da própria instância governamental doméstica -, mobilizou caminhos para a paz em seus próprios termos. Ao envolver um alcance de redes transversais e transnacionais, representada pela comunidade global, as atividades desenvolvidas pelo IFP coadunam intuitivamente com as práticas do peace formation: “tais perspectivas requerem a compreensão das tentativas locais de criar instituições pacíficas, relacionadas a atores internacionais, e produzir modelos internacionais e localmente legítimos para a paz” (Richmond, 2013: 271, tradução nossa), de forma a desenvolver maior autonomia e menor dependência das negociações realizadas ao nível das elites.

Da inconformidade entre as contradições da cidade e o desejo pelo direito de serem reconhecidos enquanto indivíduos econômicos e sociais - e, na ausência de vias terceiras de inclusão - , o crime organizado assume o vácuo de poder criado por tal negligência. Por outro lado, as iniciativas desenvolvidas pelo Instituto Favela da Paz, conforme demonstrado, pretendem preencher os espaços de governança de forma a prover capacidades e potencialidades diversas aos indivíduos da comunidade. E isso, notavelmente, ainda que de modo empírico e intuitivo, têm demonstrado efeito sobre a violência local.

Por fim, percebe-se a relevância dos aspectos identitários e culturais pela própria sociedade civil no reconhecimento das raízes dos seus problemas e dos caminhos genuínos, ainda que paulatinos, para a sua transmutação. A legitimidade institucional das ações pacíficas locais, dessa forma, ocorre em confluência aos seus próprios processos históricos e sociais, historicamente negligenciados. Da mesma maneira, os dados apontam para a necessidade de melhor avaliação das correlações entre a precariedade urbana, a marginalização socioeconômica e a violência. Não se infere a partir de tal relação a presunção de que a população periférica esteja condenada à violência, mas, sobretudo, depreende a necessidade de uma maior atenção às vulnerabilidades cotidianas psicossociais à que estão cotidianamente expostas. A paz, particularmente no Brasil, não se atingirá com infinitos ciclos viciosos de violência, seja na guerra às drogas ou no combate à criminalidade; mas, somente será possível através do alcance pleno da justiça social e de sua reparação histórica.

7. REFERÊNCIAS

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Notas

1 Isto pode ser melhor observado nos acordos estabelecidos entre a organização não-governamental Rio de Paz com a ONU, objetivando identificar e relatar as violações de direitos cometidas pelo Estado e criminosos no Rio de Janeiro e também nos projetos conjuntos entre a Interpeace e Alianza para la Paz visando a capacitação da polícia nacional colombiana. Da mesma forma, as ações desenvolvidas pelo projeto educacional FUNDAEC para lideranças juvenis perto de Cali (Colômbia), as iniciativas Redes da Maré no Rio de Janeiro (Brasil), e o Projeto Universidade Ação (PUA) em João Pessoa (Brasil) demonstram exemplos de iniciativas de inclusão socioeconômica contra a violência direta e estrutural em suas respectivas localidades (Ferreira e Richmond, 2021).
2 Entre os anos de 2012 a 2019 o rendimento per capita médio da população negra (R$ 981) permaneceu metade do averiguado em relação à população branca (R$ 1.948). Em face às taxas de informalidade laboral, estima-se que aproximadamente 39,3 milhões de brasileiros (41,6% da população ocupada) estiveram alocados em modalidades de emprego sem carteira, com a predominância da população preta ou parda em serviços informais em todo o território se comparado à população branca (IBGE, 2020).
3 Para mais informações, ver a seguinte página: https://artemisia.org.br/
4 Campus Global. Disponível em: <https://www.tamera.org/pt/campus-global/>.

Autor notes

Brenda Passos dos Santos é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Atualmente é Pesquisadora Associada ao Grupo de Estudos em Paz, Ética e Relações Internacionais (GEPERI) na mesma instituição.
Marcos Alan Ferreira é Professor Associado em Relações Internacionais e Estudos para Paz na Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Coordenador do Grupo de Estudos em Paz, Ética e Relações Internacionais (GEPERI) na mesma instituição. Professor Visitante no mestrado em Desenvolvimento Social na Universidad Núr, Bolivia.

Informação adicional

Como citar / citation: Passos, B. y Ferreira, M. A. (2023). Mobilização de atores locais na promoção da paz: o caso do Instituto Favela da Paz em São Paulo. Estudios de la Paz y el Conflicto, Revista Latinoamericana, Volumen 4, Número 8, 33-53. https://doi.org/10.5377/rlpc.v4i8.15561

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