Artículos de investigación
Recepção: 05 Abril 2022
Aprovação: 09 Junho 2022
Financiamento
Fonte: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
Número do contrato: 001
Beneficiário: Los Autores
Cómo citar / citation: Silva, L. y Kuhlmann, P. (2023). A performance para a paz do Teatro Experimental Fontibón. Estudios de la Paz y el Conflicto, Revista Latinoamericana, Volumen 4, Número 7, 14-28. https://doi.org/10.5377/rlpc.v4i7.14385
Resumo: Este artigo aborda a trajetória do Teatro Experimental Fontibón (TEF), desde sua criação, objetivos e formas de expressão. Sua filiação ao teatro de rua, técnica dos comparsas, Teatro do Oprimido e teatro de sala serão observados enquanto modelos de teatro popular que estão baseados em perspectivas de engajamento político. Tendo em vista a utilização intencional do teatro como canal de transformação social, o presente trabalho analisará a performance política-artística desse grupo no que diz respeito à construção da paz a partir do local. Para tanto, adota-se uma abordagem metodológica qualitativa e exploratória para realizar as conexões entre a literatura de Teatro para a Paz e a dimensão prática do Estudo de Caso. Verifica-se na trajetória histórica e na performance do TEF suas contribuições para a construção da paz local, em particular ao desenvolver práticas coletivas e solidárias para a transformação das narrativas do conflito colombiano, desde uma perspectiva dos grupos socialmente vulneráveis.
Palavras-chave: Teatro para a paz, teatro político, Colômbia, transformação de conflitos, cultura de paz.
Abstract: This paper discusses the trajectory of Fontibon Experimental Theatre (FET), since its creation, objectives and forms of expression. Its connection to street theatre, comparsas technique, Theatre of the Oppressed, as well as the opening of its theatre venue, will be observed as models of popular theatre that are based on perspectives of political engagement. Considering the intentional use of theatre as a strategy for social transformation, this paper will analyze the political-artistic performance of this group, according to the logic of peacebuilding from below. Therefore, a qualitative and exploratory methodological approach is adopted to make the connections between the Theatre for Peace literature and the practical dimension of the Case Study. The historical trajectory and performance of the FET can be seen in its contributions to the local peace building processes, in particular by developing collective and solidary practices for the transformation of the narratives of the Colombian conflict from the perspective of socially vulnerable groups.
Keywords: Theatre for peace, political theatre, Colombia, conflict transformation, culture of peace.
Resumen: Este artículo se centra en la trayectoria del Teatro Experimental Fontibón (TEF), desde su creación, objetivos y formas de expresión. Su afiliación con el teatro callejero, la técnica de comparsas, el Teatro del Oprimido y el teatro de sala se observarán como modelos de teatro popular que se basan en perspectivas de movilización política. Considerando el uso intencional del teatro como canal de transformación social, este trabajo analizará la performance político-artística de este grupo en torno a la construcción de la paz local. Por lo tanto, se adopta un enfoque metodológico cualitativo y exploratorio para hacer las conexiones entre la literatura del Teatro por la Paz (TPP) y la dimensión práctica del Estudio de Caso. Sus contribuciones a la construcción de la paz local pueden verse en su trayectoria histórica y performance política, en particular, en el desarrollo de las prácticas colectivas y solidarias para transformar las narrativas del conflicto colombiano, desde la perspectiva de los grupos socialmente vulnerables.
Palabras clave: Teatro por la paz, teatro político, Colombia, transformación de conflictos, cultura de paz.
EXTENDED ABSTRACT
Fontibon Experimental Theatre (FET) is a non-profit, non-governmental organization, founded in 1979 by a group of young workers and students that were concerned with the human rights situation in their country (Colombia), motivated by ideals of social change and a local agency perspective. The FET works as a cultural foundation that has its roots in social movements and popular culture, enabling theatre as a political tool for transforming local conflicts and promoting a culture of peace. The trajectory of FET can be understood in three phases (1979-1993, 1997-2015 and 2016-present) and each one has specific characteristics that define how the organization works.
In the first phase, its political motivation to seek social transformation through arts is established, based on street theatre (teatro callejero) as a politically engaged artistic expression to fight censorship and create strategies for peaceful re-existence in a context where violence is also seen as a legitimate political tool. In the second phase, the group focuses on the technique of comparsas, a popular theatre model characterized by plasticity in performance and interactivity with the audience, but also by its presence in local festivities. In addition to the technique of comparsas and continuous work with street theatre, this second phase is also characterized by the use of Forum Theatre, a technique that composes the Theatre of the Oppressed – theatrical methodology developed by the Brazilian playwright and activist Augusto Boal. Finally, the third phase begins in 2016 with the inauguration of the Augusto Boal room, the theatre venue and physical space of the organization.
The aim of this paper is to analyze the political-artistic performance of the FET in terms of peacebuilding from below. For that, a brief historical contextualization is presented, highlighting the sociocultural roots of the FET in the local reality, as well as its connections with the Latin American political conjuncture. In the next section, the theatrical models adopted by the organization are explored as political theatre methodologies intentionally used to transform conflicts. Then, the practical dimension of the Case Study will be converged with the theoretical literature of Theatre for Peace, whose main reference here is Theatre for Peacebuilding (2018), by Nilanjana Premaratna, that proposes three levels of analysis: (i) theatre potential to contribute in peacebuilding arrangements, highlighting its political relevance and capacity to engage people in communities; (ii) filling the gaps in the prevalent peacebuilding discourse, in particular by expanding the parameters of existing approaches and/or creating context-specific approaches; (iii) the way theatre works for peacebuilding, based on its intrinsic elements as artistic and cultural expressions. This is a qualitative and exploratory research, shaped by a critical reflection on the role of political theatre methodologies in local peacebuilding initiatives; that is, we try to converge the theoretical-analytical framework with the practical Case Study (FET) without marginalizing the creative, sensitive and spontaneous aspects of popular artistic manifestations.
1. INTRODUÇÃO
A Fundação Cultural Teatro Experimental Fontibón (TEF) é uma organização não governamental e sem fins lucrativos, fundada em 1979 por um coletivo de jovens preocupados com a violação dos direitos humanos na Colômbia e motivados por ideais de mudança social, desde uma perspectiva de atuação local da comunidade de Fontibón (Bogotá, Colômbia). A Fundação Cultural TEF tem suas raízes nos movimentos sociais e na cultura popular, utilizando o teatro como ferramenta política de transformação de conflitos locais e promoção da cultura de paz. A trajetória do TEF pode ser dividida em três etapas (1979-1993, 1997-2015 e 2016-presente) e cada uma possui características específicas que definem como o grupo trabalha (Cortés, 2018; TEF, 2020a, 2020b).
Na primeira etapa encontram-se os fundamentos de sua motivação política para buscar a transformação social por meio da arte, recorrendo ao teatro de rua (teatro callejero) politicamente engajado para combater a censura e criar estratégias de re-existência pacífica em um contexto onde a violência é tida como ferramenta política legítima. Na segunda etapa o grupo mergulha no mundo dos comparsas, que é uma técnica de teatro de rua, baseada numa manifestação artística popular que tem origens pré-colombianas e cuja tradição envolve os desfiles carnavalescos, a interação com o público e a plasticidade nas performances. Além do teatro comparsa e da continuidade com o teatro callejero, a segunda etapa do TEF é caracterizada pela utilização do Teatro Fórum, uma técnica de Teatro do Oprimido (TO), metodologia desenvolvida pelo dramaturgo e ativista Augusto Boal. Enquanto que na terceira etapa, o grupo inaugura sua sede e passa a se engajar também com o teatro de sala (Cortés, 2018).
O objetivo do trabalho, então, será analisar a performance política-artística desse grupo no que diz respeito à construção da paz a partir do local. Para tanto, partiremos da literatura de Teatro para a Paz (TPP), cuja referência basilar será Nilanjana Premaratna (2018) e os três níveis de análise propostos por ela, a saber: (i) potencial do teatro em contribuir com a construção da paz, destacando sua relevância política e a capacidade de engajar pessoas em comunidades; (ii) preenchimento das lacunas dos discursos predominantes de construção da paz, em particular pela expansão dos parâmetros das abordagens existentes e pela criação de abordagens específicas para cada contexto; (iii) funcionamento do teatro em iniciativas de construção da paz, principalmente a partir da identificação de elementos intrínsecos a este tipo de expressão artística.
Portanto, a pesquisa parte de uma abordagem qualitativa de cunho explanatório e crítico, baseada na metodologia reconstrutiva [1] que integra o compromisso normativo e a dimensão empírica da pesquisa; e que, também, providencia a conexão entre o arcabouço teórico e a análise do caso prático. A metodologia reconstrutiva busca expor a lacuna entre a dimensão normativa e a sua realização através da análise de práticas sociais, deslocando o exaustivo debate metateórico para as discussões teóricas que levem em consideração a empiria e a realidade prática. Por meio dessa metodologia busca-se identificar as ideias e os valores que surgem dos contextos específicos para verificar sua compatibilidade com as ideias e os valores que compõem a dimensão normativa dominante (Oliveira, 2018). A partir da discussão proposta, é possível perceber que a poética política do TEF está marcada por uma trajetória de engajamento com o teatro de rua e com a ocupação dos espaços públicos; sua poética política é particular ao coletivo de artistas que compõem a fundação cultural e que através da arte se posicionam politicamente em relação ao histórico de violências no país e aos problemas específicos das realidades locais. Ao ser reconhecida que a lacuna de representação é um espaço para manobras políticas, o TEF atua no setor cultural para se posicionar politicamente, por um viés crítico e criativo, buscando visibilizar as representações locais da realidade social. Desse modo, o teatro é utilizado para realizar essa manobra política, caracterizando-se como um elemento de rearticulação das narrativas que permeiam e sustentam a cultura de violência – promovendo, em contrapartida, valores que sustentem a cultura de paz.
O texto está divido em quatro partes. A primeira será dedicada a uma contextualização histórica e cultural da origem do TEF, que corresponde especificamente ao cenário colombiano da segunda metade do século XX. Por conseguinte, as metodologias teatrais adotadas pelo grupo serão apresentadas na segunda seção, trazendo uma perspectiva de teatro político que orienta sua performance arte-ativista. Na terceira seção será articulada a dimensão prática da atuação do grupo com a literatura de TPP, desde uma concepção estratégica e intencional de utilização do teatro para promover a transformação social e construção de uma cultura de paz – os níveis de análise de Premaratna (2018) serão introduzidas nessa seção. Finalmente, a quarta e última parte do texto tem como objetivo apresentar as considerações finais do trabalho, uma síntese dos resultados e uma breve discussão das lições aprendidas com a performance para a paz do TEF.
2. A ORIGEM DO TEATRO EXPERIMENTAL FONTIBÓN
O TEF foi fundado em 15 de agosto de 1979, na esteira dos movimentos revolucionários latino-americanos das décadas de 1970-80 em reação às ditaduras existentes. Trata-se de um grupo teatral que surge em um período de grande agitação política, social e cultural na região, mas atendendo, sobretudo, às particularidades da realidade colombiana. Há, desse modo, uma convergência com a perspectiva de teatro latino-americano, instigado pelo sentimento e necessidade de subversão das estruturas políticas elitistas, baseado em projetos populares e coletivos que correspondem aos contextos específicos – como crítica à imposição cultural do ocidente e a preponderância do teatro comercial. Podemos destacar aqui algumas características do teatro latino-americano. Primeiro, há uma perspectiva de teatro de grupo, de trabalho coletivo voltado para o engajamento popular. O trabalho coletivo, no entanto, não se restringe ao âmbito interno de cada grupo, pois percebe-se uma lógica de rede social de intercâmbio cultural. Outro importante aspecto é a postura crítica em relação à violência, seja ela do Estado, do Mercado ou de outra natureza (Cortés, 2018).
Investigar e reunir narrativas, propostas estéticas, temas e abordagens dramáticas da América Latina contribui com o fortalecimento das produções artísticas da região – que também devem ser abordadas no âmbito de seu contexto específico. O que é, então, a tentativa de conceber uma perspectiva de teatro latino-americano? Por teatro latino-americano podemos compreender uma forma de reflexão acerca da produção artística dentro desse recorte geográfico (América Latina), desde perspectivas locais, comunitárias e específicas, com diferenças culturais, geopolíticas, linguísticas e identitárias significativas, mas também com muitas semelhanças, em particular pela herança colonial, que cria uma zona de interseccionalidade de temas e problemáticas compartilhadas. Trata-se, nesse sentido, de um empreendimento teórico que reúne práticas e modelos teatrais diversos, mas que se opõem a uma dominação estética, política e mercadológica do Norte Global no que diz respeito à produção de conhecimento – incluso, os conhecimentos artísticos e culturais (Verzero, 2019; Proaño-Gómez, 2013). Isto é, o teatro latino-americano reconhece as especificidades sem excluir o papel do intercâmbio cultural na produção de conhecimento, com ênfase na justa e recíproca troca de experiências, que é uma proposta divergente da estrutura de dominação estética, de homogeneização e anestesia cultural imposta pela colonialidade/modernidade. É reconhecida assim “a possibilidade de estabelecer diálogos entre países que abraçam suas singularidades, mas atendem, também, à potencialidade de encontrar laços comuns e continuidades” (Lozano, 2017, p. 03).
O Teatro Experimental de Cali (TEC) e La Candelaria podem ser apresentados aqui como alguns representantes colombianos desse movimento teatral, ambos os grupos são referências para a criação da Fundação Cultural TEF. O TEC foi fundado e dirigido pelo dramaturgo colombiano Enrique Buenaventura, em 1955, após regressar de sua jornada pela América do Sul. A partir de um olhar holístico sobre a região, Buenaventura propõe uma virada na produção teatral da Colômbia ao dar ênfase nas tradições locais “sem abrir mão de uma visão crítica da história do nosso continente” (Carbonari, 2014, p. 15). A peça A la diestra de Dios padre (1958), performada por esse grupo no II Festival Nacional de Teatro de Bogotá, marcou o surgimento do que foi chamado de “Novo Teatro Colombiano”. Essa obra foi escrita pelo próprio Buenaventura que, assim como Boal no Teatro de Arena, também é influenciado pela revolucionária poética brechtiana.
A poética política brechtiana possui um caráter sociológico e crítico, fundamentando-se na observação dialética (instinto/razão) da realidade. Desse modo, a ação dramática se torna um canal para direcionar as emoções dos espectadores para o engajamento social. Ou seja, ao focar na classe trabalhadora e oprimida pelo capital, Bertold Brecht propõe que a ação dramática pode ser uma ferramenta de mobilização popular. Entretanto, é o método de criação coletiva (MCC) da cena que põe Buenaventura na vanguarda do teatro colombiano e também do teatro latino-americano. Em síntese, no método desenvolvido por Buenaventura, juntamente com Jacqueline Vidal [2] e os integrantes do TEC, o diretor teatral já não é ou possui a autoridade máxima na construção da cena, ele é o responsável por olhar o todo, mas descentraliza-se o processo criativo e considera a participação dos atores; para tanto, cada um dos indivíduos envolvidos tem que estar consciente de toda a obra e não apenas de seu papel. Esse método se desenvolve a partir de dois níveis de análise: analogia e improvisação. A analogia se refere ao texto teatral, cuja reflexão se volta para a vida social e a compreensão dos recortes espaço-temporais, os personagens, os conflitos e demais elementos que a constituem. Na improvisação há a ruptura com o teatro tradicional que proporciona a liberdade criativa para a interpretação e construção da cena (Carbonari, 2014; Tabares, 2015a).
Uma década depois, em 1966, é fundado em Bogotá o grupo teatral La Candelaria, a partir da iniciativa de um coletivo de artistas colombianos sob a liderança de Santiago García. García foi um importante teatrólogo colombiano, precursor no campo do teatro universitário, televisivo e popular; influenciado por Buenaventura e pelas teorias do diretor teatral polonês Jerzy Grotowski, em particular na crítica ao teatro burguês e na busca pelo sentido coletivo da criação teatral. Assim sendo, o MCC grotowskiano adotado por La Candelaria apresentava “o ator como principal gestor da cena [o que] permitiu-lhes reconhecer o potencial que o corpo possuía como entidade significante, intérprete e criadora” (Esquivel, 2014, p. 47, tradução dos autores). Destacam-se ainda outros componentes desse método, o comprometimento político com as experiências e com os temas da sociedade em que se encontra, consequentemente, refletindo esteticamente na montagem do espetáculo, na construção dos personagens, no cenário e na performance (Tabares, 2015b).
Toma-se como exemplo a peça Guadalupe años sin cuenta (1975), cujo processo de criação coletiva durou cerca de um ano e se fundamentou na investigação sobre os discursos oficiais e reais a respeito da morte de Salcedo Guadalupe (1924-1957), um notável guerrilheiro que atuava na região de Llanos. Essa obra tratou de explorar os temas que envolviam o contexto dessa guerrilha e do assassinato de Guadalupe, como a cobertura midiática, as disputas partidárias, o papel da Igreja, a pressão internacional, etc., trazendo para a estrutura dramática a motivação do grupo (coletiva e individualmente), a investigação histórica (para compreender narrativas, vínculos, atores), a improvisação (para incorporar e externalizar as experiências dos integrantes, bem como identificar os argumentos e temáticas mais relevantes para o coletivo), a montagem e o texto (amplamente discutidos para representar a perspectiva do grupo sobre os acontecimentos) (Teatro La Candelaria, 2016; Esquivel, 2014; García, 1989).
Ambas as iniciativas, TEC e La Candelaria, são reações da sociedade civil em relação ao cenário de violência na Colômbia, com ênfase no período denominado como La Violencia. Trata-se de um marco na história contemporânea desse país, cujas raízes remontam ao período de colonização e consequentemente de formação de seu conflituoso sistema político contemporâneo. Essa contextualização é fundamental para compreender dois importantes estímulos para a fundação do TEF: o primeiro diz respeito à efervescência da cena cultural, que dá origem a variados movimentos artísticos críticos; o segundo é a sua base popular, com ênfase nas classes trabalhadoras e estudantis, de onde vieram muitos dos seus membros –e ex-membros (Cortés, 2018). O teatro experimental é uma corrente teatral que se origina nos movimentos estudantis nas décadas de 1950-60, acompanhando as mudanças sociais e políticas da época, quando artistas e intelectuais reivindicavam mudanças nos conteúdos e nas formas de montagem do teatro tradicional –incorpora-se também uma crítica à produção artística estritamente comercial, mercadológica. Essa tendência está fundamentada na experimentação, no conhecimento e utilização de variadas técnicas; sendo um resultado da maior conexão entre a Colômbia e o cenário internacional. Considera-se também que o teatro experimental seja uma etapa do movimento de vanguarda conhecido como Nuevo Teatro, cujas bases são o teatro de grupo, os setores populares, o MCC e o intercâmbio cultural (Aldana Cedeño, 2013; Montilla, 2004).
3. METODOLOGIAS DE TEATRO POLÍTICO
O período em que o TEF é fundado, final da década de 1970, coincide com o início dos processos formais de construção da paz na Colômbia, em sua maioria focados na concepção de paz negativa –cessar fogo, desarmamento e desmobilização dos grupos armados. Durante o Governo Turbay Ayala (1978-1982) o foco era promover a anistia de guerrilheiros e reintegrá-los à sociedade, mas a ausência de diálogo entre o governo e esses grupos, bem como o posicionamento contrário das Forças Armadas, foram elementos que contribuíram com o aumento da resistência social e a consequente repressão do Estados às manifestações populares, intensificando também a violência por parte das guerrilhas (Bezerra, 2017). É por isso que a primeira etapa do TEF (1979-1993) é marcada pela utilização do teatro de rua (ou teatro callejero), como uma ferramenta do grupo para fazer política através da arte: ocupando espaços públicos como espaços de representação que aproximam públicos heterogêneos; levantam discussões sobre temas de relevância política e social; resgatam memórias, narrativas e experiências da comunidade; criam novos significados para a rua a partir da ação comunitária, da interação horizontal, da interseção entre o imaginário coletivo, suas ideias e normas, e a própria realidade sociocultural; enfim, servem como alternativa na formação cidadã, ao possibilitar novas formas de relacionamento do público/pessoas com o público/espaço (Echenique, 2013).
Após o hiato na atuação da Fundação Cultural TEF, entre 1993 e 1997, inicia-se uma nova etapa do TEF (1997-2015), marcada pela imersão do grupo no mundo dos comparsas, pela adoção do TO e pela continuidade do trabalho com o teatro de rua. Importa destacar que ainda nesse intervalo, a datar de 1995, o núcleo do grupo tenha começado a se envolver com a técnica teatral denominada de comparsas, em razão da política de ocupação de espaços públicos promovida pela gestão de Antanas Mockus na prefeitura de Bogotá. Esse foi um importante elemento para a reintegração do TEF, que em 1997 foi selecionado para organizar e performar na marcha de comparsas como representantes da comunidade de Fontibón –desfile público que vem sendo realizado anualmente desde então, como parte da programação do aniversário da cidade. Os comparsas são uma técnica de teatro de rua, baseada numa manifestação artística popular que tem origens pré-colombianas e cuja tradição envolve os desfiles carnavalescos, a interação com o público e a plasticidade nas performances. Há, não obstante, uma construção estética da identidade local pela música, pelos temas, pelas máscaras e figurinos, e pelos personagens. O TEF parte de uma estrutura tradicional dos comparsas, mas inova ao incorporar elementos estéticos contemporâneos –influência de modalidades teatrais que fazem parte de sua formação artística, mas também pelo viés político que perpassa a representação de temas sensíveis (Cortés, 2018; TEF, 2020b).
As performances de comparsas são responsáveis pelo fortalecimento desse coletivo artístico e também por grande parte de seu reconhecimento, estimulando a autoestima de seus membros [3] e dando visibilidade ao seu trabalho, que conta com ao menos 18 obras de teatro comparsa entre 1997 e 2019, muitas delas premiadas. Além do teatro comparsa, a segunda etapa do TEF é caracterizada pela utilização do Teatro Fórum, uma das técnicas do TO. O primeiro contato do grupo com o TO ocorreu em 1999, quando Emilio Ramírez participou de uma formação em Teatro Fórum no Festival Internacional de Teatro de Manizales –formação esta ministrada por Adrian Jackson, fundador e diretor artístico da Companhia de Teatro Cardboard Citizens, que desde sua criação em 1991 vem trabalhando com pessoas em situação de rua no Reino Unido, sendo o TO uma de suas abordagens. A partir desse momento, a fundação cultural TEF passou a adotar a técnica de Teatro Fórum como metodologia de trabalho artístico e comunitário em Bogotá e no interior da Colômbia. Essa técnica acentuou a preocupação do coletivo com a postura nas cenas e como são construídas; com a necessidade de capacitação continuada; e também com aspecto pedagógico de investigar os variados temas sociais abordados (Cortés, 2018; TEF, 2012).
Mais de vinte peças de Teatro Fórum completam o repertório, normalmente assinadas pela dramaturgia de Emilio Ramírez. Abordam assuntos de enorme relevância para a sociedade colombiana: direitos humanos, deslocados e paramilitares, drogas, violência de gênero, educação ambiental, planejamento familiar... estabelecendo uma ponte entre as preocupações da população e das instituições públicas e privadas: ACNUR, UNICEF, UNAIDS, hospitais, diversas empresas, o próprio Estado colombiano... Um dinamismo teatral y comunitário que foi reconhecido com o Prêmio Cívico Amor por Bogotá 2010, concedido pela Secretaria de Cultura, Recreação e Desporto (Cortés, 2018, p. 42, tradução dos autores e itálico do original).
A metodologia de TO é fruto da trajetória de ativismo político e cultural de Augusto Boal, reunindo um conjunto de técnicas teatrais orientadas por uma perspectiva de teatro como ferramenta política de transformação social, uma espécie de “arma” para a libertação dos sujeitos e grupos oprimidos. Inspirada pelas práticas pedagógicas de Paulo Freire, em particular na Pedagogia do Oprimido (1974), essa metodologia está fundamentada na poética e estética do oprimido, que remete a uma perspectiva de intervenção dos espectadores na cena, como uma estratégia para fazê-los sair da condição de passividade e perceber que são agentes ativos da construção teatral –ou seja, eles se tornam espect-atores. Nesse sentido, pressupõe-se que essa lógica pode ser estendida para a realidade cotidiana, na qual os indivíduos percebem que são os protagonistas de suas próprias vidas e, assim sendo, são agentes da transformação de sua própria realidade. A técnica de Teatro Fórum, por exemplo, é caracterizada por uma cena curta que aborda um conflito específico da realidade local; em seguida, o facilitador (chamado de Curinga) estimula que o público apresente soluções para o conflito, não apenas de forma oral, mas subindo ao palco e substituindo os atores para performar com o próprio corpo, de forma improvisada, as possibilidades de transformação da cena e, consequentemente, do conflito (Boal, 2009, 1991). Seguindo a lógica de adaptação da metodologia de TO ao contexto específico, fundamentada na própria flexibilidade dos processos criativos, intuitivos e empáticos das intervenções artísticas e estéticas voltadas para a transformação social, o grupo buscou adaptar o Teatro Fórum, levando em consideração o cenário local, os recursos limitados da própria organização e a necessidade de trabalhar com teatro de rua (Cortés, 2018).
Por conseguinte, sobre o trabalho da organização com o teatro de rua, trata-se da continuidade e ampliação de sua atuação em um segmento que faz parte de suas raízes históricas na cultura popular e também de seu comprometimento político com a ocupação dos espaços públicos. Um importante desdobramento nesse pilar de atuação do TEF foi sua integração a algumas redes de teatro que também contribuíram com a consolidação e estabilização da organização nessa fase de sua história. Destacam-se a Red Colombiana de Teatro en Comunidad e a Red de Teatro Callejero. A integração do TEF em redes de intercâmbio cultural, bem como sua busca por construir uma rede de relacionamentos no setor cultural, fortalece as capacidades do grupo (no que diz respeito à troca de experiências, técnicas, métodos, etc.) e influencia na sua dimensão identitária (fundamentada no trabalho coletivo e na aprendizagem contínua) (Cortés, 2018).
O TEF, portanto, possui uma extensa rede de relacionamentos –com atores do setor público, privado, locais, nacionais, internacionais, enfim, das mais variadas naturezas e níveis de atuação [4]. Não pretendemos aqui apresentar uma lista exaustiva de seu histórico de parcerias, mas sim destacar sua capacidade de articulação de arranjos cooperativos no setor cultural e também sua coerência com a construção de redes de relacionamento e de atuação conjunta. É importante ressaltar também a sua capacidade de se engajar em intercâmbios culturais, absorvendo conteúdo externo sem abdicar da própria autenticidade ou identidade, buscando superar suas limitações teóricas e metodológicas, questionando a rigidez de modelos teatrais que possuem estruturas fixas e também o posicionamento de coletivos artísticos “fechados” em suas ideologias e práticas.
A partir de 2016, com a inauguração da Sala Augusto Boal, uma nova etapa de sua história é iniciada: teatro de sala. A Sala Augusto Boal é um edifício de quatro andares, destinados a um espaço de vivência, duas salas de trabalho e o teatro com capacidade para 100 espectadores. Emílio Ramírez elenca três motivos pelos quais a sede do TEF é uma homenagem à Boal: (I) pela sua contribuição metodológica para o teatro latino-americano; (II) pela ludicidade de seu modelo teatral e pelos valores pedagógicos de Paulo Freire em que esse modelo está fundamentado; (III) e pelo teor inclusivo, participativo e humanitário, que reconhece a potencialidade artística de todo ser humano (TEF, 2020d). A sala de teatro é considerada uma importante conquista para o grupo, principalmente por se tratar de uma organização independente, sem fins lucrativos, voltado para o teatro de rua e para a cultura popular e, sobretudo, crítico ao tratamento da produção artística como parte de uma indústria cultural direcionada aos valores e padrões mercadológicos. A Sala Augusto Boal não é apenas um espaço físico, sede para a fundação cultural, mas uma oportunidade de mostrar a versatilidade do grupo que compõe o TEF e de levar sua poética política a mais uma dimensão do fazer teatral (TEF, 2020d; Cortés, 2018). Vale destacar que este também é um espaço de formação cidadã, onde eventualmente são realizados cursos de teatro para a comunidade de Fontibón, incluindo a multiplicação do Teatro Fórum –esta é uma iniciativa coerente com a proposta de Boal, que vê o TO como uma árvore e os frutos dela representam a multiplicação da metodologia e, por conseguinte, da construção de redes de engajamento político e social por meio da arte.
4. PERFORMANCE PARA A PAZ
Abordar e transformar narrativas de violência são importantes aspectos para a construção da cultura de paz –onde grupos oprimidos são deslocados de uma condição de extrema vulnerabilidade e dependência para uma condição de autossuficiência e bem-estar. Essas narrativas estão, em geral, associadas à violência estrutural e, portanto, são resultados de sistemas, instituições e políticas que geram desigualdades –como a distribuição injusta de renda e de recursos ou, ainda, a representação política inadequada (Premaratna, 2020). O engajamento da Fundação Cultural TEF com as narrativas, discursos e práticas de representação referentes ao conflito colombiano é coerente com o posicionamento político crítico assumido pelo grupo, que recorre à arte e à estética para expor as violências e reforçar seu compromisso normativo com a paz. Enquanto elemento cultural presente em todas as sociedades e presente em momentos de crise e de paz, nesta pesquisa, o teatro é apresentado como uma estratégia de construção da paz capaz de capturar a complexidade das questões sociais e de tratar os conflitos de forma criativa. É preciso reiterar que a capacidade do teatro em capturar a complexidade dos contextos específicos depende da experiência estética proporcionada, da percepção de quem observa, da intenção do artista e da qualidade formal do trabalho (Premaratna, 2018; Kuhlmann, Ramos e Araújo, 2019; Cohen, 2017, 2015). A adoção de uma perspectiva de teatro popular direcionada intencionalmente para transformação social e para a construção da paz pode ser vista na “missão” (objetivo) e “visão” (princípios e valores) do grupo, sendo elas:
[Missão] A Fundação Cultural TEF é um grupo com projeção distrital, nacional e internacional, dedicada às propostas e atividades artísticas e culturais que possibilitam o trabalho em, com e para as comunidades, com o fim de criar alternativas para a educação cidadã de meninos, meninas e jovens, promovendo o teatro popular como uma ferramenta de transformação cultural, social, política para acreditar em um país diferente e melhor para todos e todas.
[...]
[Visão] A Fundação Cultural TEF se propõe a tornar-se em uma organização que possibilite que a arte e a cultura sejam modeladoras da sociedade e das pessoas para a paz e convivência, gerando um fortalecimento e consolidação da democracia nos setores ou comunidades com os quais trabalhe; construindo conhecimento frente a uma sociedade justa e em paz. Assim, sua presença e espaços de formação artística e cultural poderão gerar novas propostas coletivas e associativas com o ânimo solidário e propositivo para superar conflitos e desafios de forma pacífica em sociedade (TEF, 2020a, n.p., tradução e grifos dos autores).
Estabelecidas como diretrizes de atuação, podemos destacar da “missão” dois objetivos do grupo, relacionadas à (i) criação de alternativas para a educação cidadã; e à (ii) transformação, não só social, mas também política e cultural. A arte na construção da paz transcende paradigmas conservadores e realça a conexão entre a cultura e a política, servindo, por exemplo, para moldar o discurso popular e as crenças político-ideológicas de uma dada sociedade (Premaratna, 2018) ou para expressar valores e compromissos éticos pacíficos (Cohen, 2017). Colocar-se como uma iniciativa que promove a educação cidadã é coerente com o caráter pedagógico dos modelos teatrais adotados, fundamentados no pensamento e nas práticas de Augusto Boal e Paulo Freire, mas também de referências locais como Enrique Buenaventura e Santiago García. Por isso, além do processo de conscientização coletiva impulsionada por suas performances, o TEF também realiza oficinas artísticas na Sala Augusto Boal, em eventos e festivais, entre outros espaços abertos por parceiros. O estabelecimento de uma estrutura pedagógica basilar para sua performance política-artística está interligado ao objetivo de promover transformações sociais, culturais e políticas por meio do teatro; que, por sua vez, é respaldado pela capacidade do grupo em trabalhar com símbolos, espaços e discursos que representam as comunidades locais e, através dessas perspectivas estéticas, capacitar pessoas para empreender conflitos não violentos, bem como reivindicar e atuar diretamente em direção às transformações necessárias.
Estas são abordagens que convergem com uma concepção de construção estratégica da paz. Primeiramente, a construção de capacidades individuais e coletivas está direcionada à educação para a paz [5], desde a preocupação do grupo com a situação dos direitos humanos no país, retratadas em suas performances, até o desenvolvimento de abordagens empoderadoras no nível local, de fomento à ação comunitária. Em segundo lugar, o caráter performático, simbólico e dialógico de sua atuação é instrumentalizado para explorar as narrativas do conflito e das violências locais, com ênfase na necessidade de justiça social, catarse emocional e convivência pacífica, isto é, reivindica-se a transformação de dinâmicas violentas de relacionamento humano por interações baseadas na não violência e na compensação. Por fim, o empreendimento de conflitos não violentos está ligado ao histórico da própria organização, em sua resistência às estruturas de opressão ao setor cultural nas décadas iniciais e em seu posicionamento ativo, crítico e combativo perante as violências diretas, estruturais e culturais (Schirch, 2004).
Para avaliar a efetividade da construção da paz, a dimensão estratégica englobará aspectos relacionados a como os construtores da paz analisam o contexto no qual atuam e como a iniciativa é conduzida, isto é: no primeiro ponto são identificados os problemas gerados pelo conflito, sua espacialidade e também quais foram as abordagens utilizadas até o momento –indicando aquelas que devem ser fortalecidas; enquanto que no segundo ponto são realçadas as teorias ou pressupostos que guiarão as práticas para a paz. Consequentemente, são estabelecidos os focos temáticos de sua performance para a paz, embora a análise contextual do conflito não acarrete necessariamente no desenvolvimento de um projeto com a mesma dimensão –por exemplo, o conflito pode ser dimensionado numa escala regional, nacional, transnacional, etc., mas sua performance pode ser direcionada para os efeitos desse conflito sobre uma comunidade ou grupo específico (Anderson e Olson, 2003). Há, portanto, um discurso de construção da paz adotado pelo TEF e cuja atuação prática busca reproduzir. Para tanto, alguns princípios e valores podem ser identificados em sua “visão” enquanto grupo teatral, como convivência pacífica, democracia, justiça social e paz, trabalho coletivo e solidariedade. É a partir dos valores que se cria, sustenta e fortalece a perspectiva de cultura de paz de alguma iniciativa de construção da paz, influenciando a definição de sua abordagem transformacional e a conduta dos atores envolvidos. Os valores encontram-se integrados aos objetivos e são aspectos essenciais perante uma agenda política de construção da paz –que necessita de normas para o engajamento crítico, criativo e, de certo modo, radical.
Importa sublinhar que as artes performáticas e a construção da paz são campos distintos, mas que podem ser interligadas por três “lentes colaborativas” [6]: instrumental, transacional e transformacional. Na colaboração instrumental os objetivos dos atores são diferentes, logo, o arranjo colaborativo estará alinhado aos interesses e objetivos de uma das partes envolvidas, como no caso de coletivos teatrais locais que se submetem às visões e práticas estabelecidas por agências de financiamento. Na colaboração transacional, a atuação é baseada na articulação entre os objetivos dos atores envolvidos; por exemplo, quando uma organização financia um projeto teatral para tratar de temas relacionados à violência de gênero e, aproveitando-se dos recursos adquiridos, os atores que implementam o projeto também realizam ações sobre justiça social – esse tipo de colaboração também pode gerar dependência ou enfraquecer a produção artística local. Por fim, a colaboração transformacional não está definida em termos de objetivos particulares, uma vez que a missão e os valores dos atores se encontram integrados; nesse tipo de colaboração os atores devem reconhecer a dimensão política da agenda de construção da paz e devem assumir o compromisso de engajamento crítico em relação a ela (Culbertson, 2020).
O teatro pode funcionar como um espelho da sociedade, como um comentário, como uma fuga ou diversão, como catarse, como um espaço reflexivo ou em inúmeras outras capacidades. Desbloquear todo o potencial das artes performáticas para a construção da paz exige que os construtores da paz reconheçam o poder e a capacidade intrínseca das artes performáticas, e [dos] artistas performáticos que se envolvem no esforço de construção da paz de forma crítica e criativa (Culbertson, 2020, p. 372, tradução dos autores).
Para potencializar o TPP em esforços colaborativos no campo da construção da paz, além do engajamento em torno de valores consonantes, as performances e os artistas (ou coletivo de artistas) devem ser valorizados enquanto construtores da paz, orientados pela criticidade e criatividade (Culbertson, 2020). Isso significa que a colaboração do TEF com outros atores, locais e internacionais, públicos e privados, pode ser analisada por estas “lentes”. Neste sentido, embora tenham sido identificados arranjos colaborativos entre o TEF e alguns atores tidos como dominantes em intervenções de construção da paz (como organizações internacionais, Estado e empresas privadas), verificou-se que a autonomia do grupo foi preservada em seus processos criativos e, de uma forma geral, em sua performance para a paz. Se, por um lado, tais arranjos convergem com a lente transicional, por outro lado, a colaboração com outros coletivos artísticos e agências culturais locais convergem com a lente transformacional, principalmente pelo uso de métodos de criação coletiva e pelo engajamento com setores populares.
Este debate reforça a importância de refletirmos sobre a avaliação dos impactos das manifestações artísticas em iniciativas de construção da paz. Isto é, ao longo do período de implementação e após a conclusão de um projeto ou programa devem ser avaliados os impactos da iniciativa, entretanto, como avaliar os impactos intrínsecos [7] à experiência artística? Como mensurar os impactos de uma performance artística em determinado público ou indivíduo? (Brown e Novak, 2007). Ou, colocado de outra maneira, “como exatamente medimos a diferença que esperamos estar fazendo? [...] como exatamente medimos a paz?” (Lederach, Neufeldt e Culbertson, 2007, p. 1). Estes são questionamentos que acentuam a ausência de interesse (ou até mesmo uma reação hostil) de organizações artísticas em mensurar os resultados de sua atuação. Por isso, a necessidade de explorar as diversas agendas de pesquisa que giram em torno da avaliação dos impactos intrínsecos das experiências artísticas, principalmente em três níveis: como as artes impactam socialmente uma determinada comunidade; como uma instituição impacta uma comunidade ao longo de um período específico (múltiplas performances nesse recorte temporal); como uma única performance impacta um indivíduo (Brown e Novak, 2007).
A partir daqui buscaremos convergir a dimensão prática do estudo de caso com os três níveis de análise estabelecido por Premaratna (2018). A saber: (I) potencial para contribuir com a construção da paz; (II) preenchimento de lacunas nos discursos dominantes de construção da paz; (III) e modo de atuação para a construção da paz. Tendo como base o primeiro nível, podemos perceber que o TEF desenvolve práticas coletivas e solidárias, demonstrando seu potencial de contribuir com a construção da paz por meio da arte, em uma sociedade afetada por diferentes formas de violência (diretas, estruturais e culturais). Vale destacar, no entanto, que o potencial de contribuir com o processo de construção da paz não está restrito à utilização de metodologia teatral específica –ainda que, intra-grupo, um trabalho não hierárquico e participativo é gerador de ambiente de construção de paz já que as técnicas adotadas são orientadas pelos vieses crítico e popular que constituem o engajamento político do grupo. Vale ressaltar que essas técnicas possuem elementos que estão ligados à sua capacidade de articulação e mobilização popular na comunidade de Fontibón e, ainda, na cidade de Bogotá, reforçando assim sua relevância política nesses contextos específicos ao promover uma perspectiva de identificação, de empoderamento e desenvolvimento local.
Para além disso, o TEF é uma iniciativa que não restringe sua atuação a esses lugares, pois, apesar de ser uma organização situada em Fontibón/Bogotá, ela trabalha com a lógica de construção da paz pela base em outras localidades da Colômbia, buscando se envolver com diferentes perspectivas locais da realidade colombiana; a performance em território nacional com o TO é um exemplo disso, assim como as obras de teatro callejero e comparsa demonstram o envolvimento do grupo com práticas alternativas de representação dos problemas sociais e políticos colombianos. A emblemática peça El Canto de las Moscas (2009) ilustra o engajamento estético-político do grupo. Trata-se de uma interpretação da obra homônima da poetisa e arte-ativista colombiana María Mercedes Carranza (1945-2003), lançada em 1998. A obra de Carranza reúne 24 poemas sobre a violência na Colômbia, cada um dedicado a um povoado (das zonas rurais e interioranas) que tenha sido afetado “pelo medo, morte e desaparecimentos”, uma espécie de cartografia da violência (Cortés, 2018, p. 60). Foi por causa do impacto dos casos de falsos positivos no Governo Uribe (2002-2010) que o grupo resolveu adaptar a obra para o teatro de rua. Para tanto, foi realizado uma minuciosa investigação estética e histórica dos acontecimentos, como forma de desenvolver representações cênicas que capturassem a profundidade das dores causadas pelo conflito, ao mesmo tempo em que se configurem como um resgate da memória das vítimas encontradas em valas comuns – sem rostos, nomes e vida.
Quanto ao segundo nível de análise, podemos destacar que o grupo possui autonomia no desenvolvimento de projetos junto a outros atores, preenchendo as lacunas deixadas pelo Estado no setor cultural e direcionando recursos para a viabilização de seus objetivos. Nesse sentido, a organização expande os parâmetros das abordagens de construção da paz existentes, introduzindo o teatro como forma de reivindicar práticas alternativas de representação da realidade colombiana, contrapondo-se às práticas convencionais (mídia, academia, relatoria política, etc.) ao engajar a própria comunidade no processo, a partir de suas experiências e de sua própria perspectiva histórica. As condições e estéticas locais direcionam as adaptações do TPP para o contexto de trabalho, cujos elementos socioculturais facilitam a resistência às violências estruturais e, juntamente com o diálogo, permitem que acontecimentos no palco e fora dele sejam processados de forma analítica, balanceando emoção e criticidade (Premaratna, 2020, 2018). Além disso, os modelos teatrais adotados reforçam a reivindicação dos elementos socioculturais locais para compreender a própria realidade e para buscar estratégias de transformação, com ênfase nos problemas identificados; o TO possui essa característica desde sua estrutura basilar, mas o teatro comparsa, por exemplo, é um tipo de manifestação artística popular que através do TEF mescla a tradição, a participação da comunidade e a poética estética do grupo para propor uma lógica genuinamente representativa da realidade local.
As fundações éticas, estéticas, políticas e pedagógicas que norteiam a performance do TEF convergem com um modo de funcionamento dialógico e plural, de acordo com os termos do terceiro nível de análise do TPP, no qual ampliam-se as possibilidades de participação ao incluir múltiplas vozes e ao promover o diálogo entre os atores, proporcionando uma experiência estética que adapta o modelo ao contexto em que é empregado e isso produz performances (e discussões) específicas para o público-alvo – embora cada performance seja singular, as peças podem ser levadas a diferentes localidades, desde que os temas sejam pertinentes para que ressoem na comunidade e que o princípio de abertura para intervenções e debates seja mantido. Outra forma de adaptar o TO aos contextos específicos remete à inclusão de elementos culturais, estéticos e artísticos locais, como músicas e danças tradicionais (Premaratna, 2020). Destaquemos alguns aspectos que reforçam essa perspectiva: a criação e direção coletiva de muitas das obras; o incentivo à participação da comunidade e do público nas performances e nas atividades da instituição; o intercâmbio cultural e de experiências com a comunidade artística (local, nacional e internacional) (Premaratna, 2018). Para tanto, reiteramos que Paulo Freire e Augusto Boal são duas das principais referências do grupo, que estão ligadas a suas fundações teóricas e metodológicas, isto é, ao modo com que trabalham o empoderamento coletivo e a transformação social, dando significado ao mundo social local através do diálogo e da diversidade de vozes, temas e narrativas.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa, portanto, se desenvolve a partir de uma agenda que busca traçar um panorama teórico-analítico com base no criticismo social das dimensões estéticas da arte e da construção da paz. Vale reiterar que a explicação crítica do papel da arte na construção da paz parte de uma lógica pragmática-reflexivista, logo, não se encaixa na noção neopositivista de neutralidade do pesquisador, de observação objetiva da realidade e de necessidade de dados quantificáveis; a investigação também não visa estabelecer generalizações ou identificar padrões em fenômenos não mensuráveis, como na perspectiva humeniana. O “mecanismo” causal viabilizado pela metodologia reconstrutiva está alicerçado nas conexões realizadas entre a teorização crítica e as práticas sociais analisadas (Oliveira, 2018). O objetivo de estudar profundamente um grupo de teatro colombiano se faz necessário para saber os diferentes modos de atuação que conseguem criar formas alternativas de transmissão de mensagens, de adaptação da cultura popular, sem deixar de transmitir mensagens políticas de enfrentamento da violência. O TEF mostrou-se altamente criativo e dinâmico, construindo peças, capacitando pessoas, expondo maneiras não violentas de criar novas possibilidades de pensar a violência e a paz por meio das artes, em especial do teatro, não dependendo de um só modelo de representação, mas variando e incorporando a linguagem do povo, tornando-se acessível e inteligível.
A compreensão dessas linguagens artísticas proporciona reflexões e possibilidades práticas e estéticas que podem dar suporte a outros grupos de teatro, ou mesmo de dança, ou outras formas de expressão artística, transpondo fronteiras, já que a nossa América Latina tem sido palco de desgovernos, ditaduras, violências estatais e não estatais. Tratam-se, portanto, de referências que enriquecem as possibilidades de criação e fortalecimento de iniciativas transcendentes e artísticas que se direcionam, intencionalmente, para a construção da paz e transformação social. A performance política-artística do TEF corresponde a um posicionamento crítico em relação às violações dos direitos humanos na Colômbia, desde sua fundação no final da década de 1970, que marca o início de uma trajetória de mobilização social dentro do setor cultural, a partir de uma perspectiva que dá ênfase nas experiências dos grupos socialmente vulneráveis em nível local.
A adoção do teatro de rua e a continuidade dos trabalhos com esse modelo marcam essa trajetória, pautada pela preocupação com os públicos (espaços/pessoas). Essa foi uma estratégia para manter o contato com os setores populares a fim de se engajar com ideais de conscientização política acerca da realidade local. A ampliação de seu escopo de ferramentas para promover transformações de caráter social, político e cultural, resultou na apropriação de modelos e técnicas teatrais coerentes com esse compromisso, tais como a técnica de comparsas e o Teatro do Oprimido. Essas duas expressões teatrais auxiliam o grupo a mergulhar nas narrativas de violência e paz que atravessam a sociedade colombiana, rearticulando-as a partir de uma visão das comunidades e grupos afetados pelas dinâmicas de opressão.
Percebe-se, nesse sentido, que os modelos adotados auxiliam o grupo a se adaptar a diferentes cenários, identificando –nos locais em que realizam suas apresentações e oficinas– uma série de discursos e práticas alternativas de representação da realidade, que se contrapõem ao regime estético hegemônico. A utilização do teatro enquanto “arma” política dos oprimidos para a transformação social, como propôs Boal (1991), caracteriza-se como uma forma não violenta de lidar criticamente com as estruturas de opressão, ao mesmo tempo em que estimula a ação direta e cotidiana sobre essas estruturas. Para tanto, a diversidade das experiências identificadas e o engajamento com métodos coletivos se tornam as fundações basilares para o estabelecimento do diálogo plural, que questiona as narrativas dominantes dos conflitos locais, bem como as suas soluções formais e convencionais, incentivando a participação popular na rearticulação dessas mesmas narrativas.
Agradecimentos
Este texto foi desenvolvido a partir de investigação de mestrado e contou com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (Código de Financiamento 001)
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Notas
Autor notes
Informação adicional
Cómo
citar / citation: Silva,
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