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Quadros sartreanos: Un dios cotidiano, de David Viñas; Informação ao crucificado, de Carlos Heitor Cony
Sartrean Frames: un Dios Cotidiano, by David Viñas; Informação ao Crucificado, by Carlos Heitor Cony
El taco en la brea, núm. 19, e0142, 2024
Universidad Nacional del Litoral

Dossier

El taco en la brea
Universidad Nacional del Litoral, Argentina
ISSN: 2362-4191
Periodicidade: Semestral
núm. 19, e0142, 2024

Recepção: 19 Dezembro 2023

Aprovação: 16 Fevereiro 2024

Para citar este artículo:: Schmitz Kremer, N. y Fernandez Vaz, A. (2024). Quadros sartreanos: un dios cotidiano, de David Viñas; Informação ao crucificado, de Carlos Heitor Cony. El taco en la brea, (19) (diciembre–mayo). Santa Fe, Argentina: UNL. e0142 DOI: 10.14409/eltaco.10.19.e0142

Resumo: Que David Viñas, na Argentina, e Carlos Heitor Cony, no Brasil, são reconhecidos como precursores da recepção do existencialismo sartreano, não resta dúvida. Ao passo, contudo, em que Un dios cotidiano é comumente lembrado pela crítica, Informação ao crucificado é por ela esquecido. Nos romances, entretanto, são diversas as proximidades, como um espaço narrativo comum —o seminário—; uma desconfiança compartilhada sobre o Cristianismo; temas que se coadunam em imagens da violência. O texto busca, então, comparar as obras, mostrando o que guardam da recepção do existencialismo na América, ao mesmo tempo em que aponta tanto aos limites do movimento francês quanto às possibilidades de ruptura em sua recepção na Argentina e no Brasil.

Palavras-chave: David Viñas, Carlos Heitor Cony, engajamento, corpo , violência.

Abstract: That David Viñas, in Argentina, and Carlos Heitor Cony, in Brazil, both writers, are recognized as precursors of the reception of Sartrean Existentialism, there is no doubt. While, however, Un Dios Cotidianois commonly remembered by critics, at the same time Informação ao Crucificado is forgotten by them. In these novels there are however several proximities, such as a common narrative space —the seminar—; a shared distrust of Christianity; issues that share in images of violence. This paper looks for to compare both books, showing what they keep from the reception of Existentialism in America, at the same time that it points both books to the limits of the French movement and to the possibilities of rupture in its reception in Argentina and Brazil.

Keywords: David Viñas, Carlos Heitor Cony, engagement, body, violence.

I

Em As moscas, de 1943, Jean‒Paul Sartre se desloca à ambiência da tragédia grega, mas também às figuras da mitologia romana, para construir uma alegoria do cristianismo como falsa moral do Ocidente. Ao retomar Orestes e Electra, personagens alçados ao cânone literário por Sófocles, Eurípedes e Ésquilo, a obra encena uma contradição referente ao conceito de tempo. Sua ambientação ligada à culpa é evidente («y trata de reventar en el arrepentimiento. Es tu única posibilidad de salvación», —Sartre, [1943]2001:13]—), ainda que esta seja enunciada não pelo padre, e sim pelo mítico Júpiter; seu componente de alegorização se relaciona à morte:

EL GRAN SACERDOTE – ¡Vosotros, los olvidados, los abandonados, los desencantados, vosotros que os arrastráis por el suelo, por la oscuridad, como fumarolas, y que ya no tenéis nada propio fuera de vuestro gran despecho, vosotros, muertos, de pie: es vuestra fiesta! ¡Venid, subid del suelo como un enorme vapor de azufre empujado por el viento; subid de las entrañas del mundo, oh muertos, vosotros, muertos de nuevo a cada latido de nuestro corazón, os invoco mediante la cólera y la amargura y el espíritu de venganza; venid a saciar vuestro odio en los vivos! Venid, desparramaos en bruma espesa por nuestras calles, deslizad vuestras cohortes apretadas entre la madre y el hijo, entre la mujer y su amante, hacednos lamentar que no estemos muertos. De pie, vampiros, larvas, espectros, harpías, terror de nuestras noches. De pie los soldados que murieron blasfemados, de pie los hombres de mala suerte, los humillados, de pie los muertos de hambre cuyo grito de agonía fue una maldición. (Sartre, [1943]2001:30)

A passagem faz pensar no ritual católico de finados. Neste dia de rememoração dos mortos, porém, tanto em As moscas quanto no catolicismo a potência de reavivá-los aparece obliterada. Isto é evidente pela posição ocupada por Electra, que enfrenta o rito de Júpiter, não cedendo à tristeza por ele demandada e opondo-se ao estipulado por seu padrasto, Egisto, sendo, então, punida; no caso do catolicismo, é um dos alvos da crítica de Walter Benjamin. Em suas teses Sobre o conceito da História, pensará a possibilidade de uma revolução que se dê sobretudo na ordem temporal:

A consciência de fazer explodir o continuum da história é própria às classes revolucionárias no momento da ação. A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa um novo calendário funciona como um acelerador histórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias da reminiscência. Assim, os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que os relógios. (Benjamin, 1985:230)

O calendário, como Kairós, poderia se opor ao tempo homogêneo e vazio do relógio, Cronos, pela festa. É o feriado como momento de reminiscência, de comemoração, a virtualidade de um rememorar em conjunto, o que, para Benjamin, ganharia potência histórica, inclusive como forma de redenção dos mortos em uma temporalidade messiânica. N’As Moscas, esta potência aparece em sua expressão contrária. O rito da morte não atualiza a latência do passado, tampouco provoca a comemoração ou desperta uma fagulha histórica: a memória é recalcada, o corpo é contido, a história é anulada pela manutenção do mito, por definição, imemorial. Trata-se, portanto, de um conformismo que, na peça de Sartre, se associa ao catolicismo, como moral burguesa ligada à culpa (e não à responsabilização) e que se coloca na contramão do messianismo secular teorizado por Benjamin, este que seria alternativo ao cristianismo. Lemos em Não está à venda, de Rua de mão única:

As duas mesas são baixas e têm um tampo de vidro, sobre o qual estão dispostos os bonecos, enquanto que na parte inferior, oculta, se ouve o tique-taque do mecanismo de relógio que aciona os bonecos. Um pequeno estrado para crianças corre ao longo das mesas. As paredes estão revestidas com espelhos deformantes. Próximo da entrada veem-se figuras de soberanos. Cada uma delas tem alguma parte que se move: umas fazem, com o braço direito ou esquerdo, um movimento amplo e convidativo, outras deslocam os olhares vítreos (...). Seguem-se figuras bíblicas, e a seguir a paixão de Cristo. Herodes ordena, com múltiplos movimentos de cabeça, a matança dos inocentes. Escancara a boca e abana a cabeça, estende o braço e deixa-o cair de novo. À sua frente, dois carrascos: um deles anda às voltas sobre si mesmo, com a espada desembainhada e uma criança decapitada debaixo do braço; o outro, pronto a espetar a espada, está imóvel, à exceção dos olhos que rolam. E junto deles duas mães: uma, abanando incessante e vagarosamente a cabeça como num acesso de melancolia, a outra erguendo os braços lentamente, suplicante. A crucificação. A cruz está no chão, os carrascos martelam os cravos. Cristo abana a cabeça para baixo e para cima. Cristo crucificado, dessedentado pela esponja com vinagre que um soldado lhe chega lentamente, aproxima e afasta, até retirá-la de vez. O Salvador limita-se a erguer um pouco o queixo. (Benjamin, 2017a:48-49)

A imagem de 1928 se aproxima da alegoria da primeira das Teses, na qual Benjamin aponta ao caráter bárbaro de uma história maniqueísta que se sedimenta na teleologia. O autômato, ser inanimado e, portanto, desprovido de volição, ganha a forma do corpo de Cristo, como aquele que fecharia a virtualidade messiânica da história. É o que apontam Theodor W. Adorno e Max Horkheimer (1985) ao comentar o fundo religioso do antissemitismo: tendo o Filho já encarnado, é o corpo de Cristo que se coloca à disposição para a representação do sofrimento, cortando, portanto, com o porvir de um mundo outro que se mantém latente na aposta em um judaísmo secularizado.

Comentando As moscas, Sartre nos dissuade da homologia entre Orestes e Cristo, na medida em que «Orestes en ningún momento es un héroe» (Sartre, 1979:180). Isso não anula, contudo, o caráter de conformação (cristã) ao estabelecido, o que se expressa na obra de Sartre como crítica à moral burguesa. Orestes seria aquele que poderia romper com esta conformação, já que acaba por tomar consciência de si e, assim, aventurar-se pela dificuldade da liberdade, opondo-se a esta ordem: «es el primero que toma el camino de la liberación, en el momento mismo en que las masas pueden y deben tomar conciencia de si mismas, Orestes es aquél que por su acto les señala el camino» (Sartre, 1979:180).[1] Mas os demais cidadãos ao mito se rendem, conformando-se ao rito vazio e homogêneo de Júpiter. Sartre, assim, dá forma à paralisação do sujeito sob a moral católica/burguesa: na medida em que enredado em falsa consciência, não pode o sujeito agir, restando fadado à repetição do que lhe fora inculcado, com a qual concorda sem se responsabilizar. É o que, ao comentar a peça Entre quatro paredes, entende como morte:

«muertos» tiene un contenido simbólico. He querido indicar precisamente que muchos están enjaulados en una serie de hábitos, de costumbres, que ellos tampoco intentan cambiar. Y entonces esas gentes son como muertos. En el sentido de que no pueden romper la estructura de sus pensamientos, preocupaciones o costumbres; y a menudo siguen siendo para siempre víctimas de los pensamientos que les han puesto a cuestas. (Sartre, 1979:183)

II

Comentando a mesma obra, Sartre critica a si mesmo por fazer com que a ação se passe no inferno, um país, diz, longínquo. Ao mesmo tempo, os deslocamentos espaço‒temporais são característicos de seu teatro, e também Mortos sem sepultura poderia ter tido outro cenário que não a França:

Lo que me interesa son las situaciones límites y las reacciones de aquellos que se encuentran en esas situaciones. Por un momento pensé en situar la acción en la Guerra Civil Española. Pero lo mismo podía suceder en la China. Mis personajes se plantean todos el problema que ha atormentado a tantos hombres de mi generación en el mundo entero: «Cómo reaccionaría ante la tortura?». (Sartre, 1979:184)

Chama atenção que Un dios cotidiano, de David Viñas, de 1957, tenha a Guerra Civil Espanhola como ambiência. Na Argentina, anota Beatriz Sarlo (2007a), havia pelo menos uma década que se popularizavam traduções de Sartre; ademais, a própria inserção de Viñas na revista Contorno, segue Sarlo (2007b), marcava o pioneirismo do existencialismo no país, no qual igualmente se destacam Oscar Masotta e Juan José Sebreli. Essa aproximação é visível na estética de Viñas, pela ambientação do romance em um seminário —a literatura de Sartre tende fortemente à reclusão—; pela peleja entre política, liberdade e responsabilização; pela culpa como expressão da moral burguesa; pela autocontenção do corpo e a falsa ideia da natureza como o Bem.

Também no Brasil, é no final da década de 1940 que as obras de Sartre ganham tradução, dando novo estímulo ao existencialismo que, na década anterior, havia encontrado forma, em versão cristã, na crítica literária de Alceu Amoroso Lima (Romano, 2002). Carlos Heitor Cony, carioca contemporâneo a Viñas, é um dos autores que, como Lygia Fagundes Telles (em São Paulo), nos anos 1950 mais se move pela seara sartreana, tendo ambientado seus primeiros romances igualmente em seminários. É o caso de O Ventre (2016), a estreia de 1958, no qual Kleber Pereira dos Santos (2008) perceberá constante presença de cacos sartreanos que, ao final de narrativa, ganham forma mais explícita na comparação a A idade da razão; e é o caso de Informação ao crucificado, de 1961, publicado no ano seguinte à visita que Sartre e Simone de Beauvoir fizeram ao país, a convite de Jorge Amado. Ainda que a comparação entre O ventre e o romance de Viñas ganhe potência, sobretudo por meio de uma aproximação à problemática familiar da qual se ocupam, no romance de Cony o seminário aparece mais que nada nas evocações memorialísticas do narrador. A maior proximidade formal, à sua vez, se dá entre Un dios cotidiano e Informação ao crucificado —romances respectivamente lembrado e esquecido pela crítica.

O romance de Cony tem a forma do diário, mesmo formato d’A náusea de Sartre (2016), obra de 1938. No movimento, há um processo de ruptura com o romance moderno, burguês. Benjamin aponta já em 1933, a propósito de Arnold Bennet, um tema que, posteriormente, discutirá no ensaio sobre Leskov —a relação entre romance e morte:

«Un hombre que muere a los treinta y cinco —ha dicho Moritz Heimann alguna vez— es en cada momento de su vida un hombre que muere a los treinta y cinco». (...). Lo que dice es que el sentido de su vida solo se deduce a partir de su muerte. (Benjamin, 2017b:81)

Se esta é a condição enunciativa do romance burguês, um momento final da vida a partir do qual o narrador poderia atribuir sentido hermenêutico ao vivido (o que não significa que a tarefa da crítica seja uma hermenêutica da obra literária, como sinaliza Susan Sontag —2020—), o diário rompe com tal estrutura já que, redigido a cada dia —ou, mesmo que com pausas maiores, ainda pressupondo uma escrita intimamente ligada aos acontecimentos, evitando assim um a posteriori—, não tem inerente a si um ponto de chegada a partir do qual se pode rememorar, como no romance moderno: o ritmo do diário é o de «un registro simple y liso de lo que pasó, sin los relieves de jerarquías entre hechos que se revelarían más o menos importantes a una mirada distante en el tiempo» (Aira, 2020:162). O diário de Falcão, protagonista de Informação ao crucificado, se constitui, portanto, a partir de uma relação mais imediata com o acontecido.

Ainda que a forma adotada por Viñas não seja a do diário, há algo desta recusa de um a posteriori também em suas páginas. A narrativa não se constitui em capítulos, mas em quadros subsequentes, com hiatos temporais imprecisos, sendo esses quadros marcados, sobretudo, pela crueza da violência que impacta Ferré. O texto oscila entre o cotidiano e o pouco cotidiano, uma vez que se grafam as cenas que espantam o narrador; mas, ainda assim, como no diário, a escrita aponta ao relato daquele que recém presenciara a situação. Daí que Masotta (2010) destaque que foi este o primeiro romance de Viñas narrado em primeira pessoa, e é esta que nos permite encontrar, na economia privada e costumaz da obra, um Ferré que, se valendo da sensibilidade do diário, apresenta os percalços na Escuela de la Cruz:

Era un sigilo respetuoso. Toda la capilla se iba llenando con un murmullo. A la derecha, se colocaban los mayores; algunos llevaban libros, uno tenía una banca de luto en el brazo, otro una venda en la cabeza y parecía embotado. Cuando se arrodillaban en los bancos, se removían con nerviosidad y cuchicheaban algo. Después aparecieron los de pantalón largo. Apenas si quebraban la pierna al arrodillarse; tres o cuatro discutían entre ellos. Debajo del púlpito, dos se pagaron unos pechazos. (Viñas, [1957]2011:37)

Os verbos conjugados majoritariamente no pretérito perfeito ou imperfeito do indicativo, e sem a intermediação de figuras de linguagem a marcar afastamento temporal, produzem uma proximidade ao passado que se narra, não indicando distanciamento entre as cenas e sua enunciação, mas aproximando a prosa do corrente. Como efeito, mimetiza-se algo da fenomenologia existencialista sartreana: uma consciência que se constrói enquanto ato, encontrando no diário e no teatro suas formas estéticas preferenciais. Mas se há proximidade formal entre Viñas e Cony, há também diferença irredutível na posição dos narradores: Ferré é padre ordenado que ministra aulas em um seminário, enquanto Falcão ainda se prepara para isso.

III

O diário de Falcão dá forma aos dois anos de estudo no curso maior em um seminário carioca. Sua inserção na doutrina, contudo, não era nova. Ao longo de oito anos cursara o ciclo menor e, na nova fase, especializava-se em Filosofia. O diário corre os anos de 1944 e 1945, faltando o último, o da concreção, 1946. A falta resulta da eleição de abdicar do projeto sacerdotal. Pela intimista forma-diário, acompanhamos suas vacilações sobre a vocação religiosa, o pouco interesse pela religião do Filho, as perversões e violências entremeadas aos momentos de felicidade. Já o título indica o ordenamento da conduta e a constância da violência:

—Quid est philosophia?

—Philosophia est scientia omnium rerum per altissimas causas naturalis ratione lumine comparata.

—Quid dices: philosophia est scientia omnium rerum?

—Quia pertinet omnia res...

Sob o queixo o volumoso Remmer, ensebado por gerações que aprenderam as mesmas palavras. Olho o crucifixo suspenso sobre a cabeça do Cônego Simeão. (Se o crucifixo caísse, poderia matá-lo.) Olhos tão abertos ou tão desencontrados —Geraldo me deu uma cotovelada:

—Está voando, Falcão!

Voando.

Voando até conseguir carga para transmitir a informação ao crucificado: não caia! (Cony, [1961]1996:17‒18)

Está posta a eventualidade de que o crucifixo despenque e leve o professor à morte. A imagem aponta à constante opressão que perpassa as experiências de Falcão no seminário, violência que pode emergir de qualquer lado, demandando uma autocontenção corporal para dela se furtar. A imagem de Cony ecoa a de Criança atrasada, de Benjamin:

O relógio no pátio da escola parece danificado por culpa sua. Marca a hora «atrasado». E ao corredor chega, vindo das salas de aula por onde passa, o murmúrio de misteriosas conversações (...). Imperceptivelmente, leva a mão à maçaneta da porta. O sol banha de luz o ponto onde se encontra. E a criança profana o dia ainda a nascer e abre. Ouve a voz do professor matraquear como uma roda de moinho; está diante do mecanismo de moagem. A voz continua no mesmo ritmo, mas os servos libertam-se de toda a carga e lançam-na sobre o recém-chegado; dez, vinte pesadas sacas caem sobre ele, que tem de carregá-las até a carteira. Todos os fios do seu casaco ficaram polvilhados de branco. Como uma alma penada à meia-noite, faz barulho a cada passo, mas ninguém a vê. Quando, finalmente, chega ao seu lugar, aguenta em silêncio o resto do tempo, até o toque da campainha. Mas não há nisso nada de reconfortante. (Benjamin, 2017a:35)

Não apenas as sacas que caem sobre o aluno, também a pasteurização do conhecimento, eliminando o diverso e produzindo homogeneidade que repete o igual, coloca-se na gestualidade das imagens de Benjamin e de Cony. Esta não é, contudo, a única referência à educação no livro do alemão. Enquanto a instituição escolar é lugar de violência, a educação, ao contrário, não se refere tanto à escola, senão ao processo de transmissão geracional: «Não será a educação (...) a indispensável ordenação das relações entre as gerações, e, portanto, se quisermos falar de dominação, a dominação dessas relações geracionais, e não das crianças?» (Benjamin, 2017a:65). A educação é, antes, um processo de conservação do mundo, marcado pela virtualidade do novo, e seu componente de dominação se coloca em referência ao processo de ordenamento entre adultos e crianças, entre gerações, e não como a dominação da criança pelo adulto. Hannah Arendt (1979) por aqui seguirá, entendendo que esse momento de apreensão do mundo é condição sine qua non para que o infante possa aprender seus códigos e no futuro poder na política se colocar, na medida em que se afastará do mundo jogo e se acercará do da ação, esfera da tópica arendtiana da Vita Activa. Assim, a educação (mas não o aprendizado) deveria ter um ponto limite, evitando a infantilização dos adultos, já que ela reduziria a possibilidade da política.

No diário de Falcão, porém, a vida na Pólis é inviabilizada pela estrutura escolar. No seminário, a infantilização aparece em escala progressiva, já que, constituído aquele como espaço de reclusão, não há a possibilidade do sujeito tomar posição sobre o mundo. Isso reverbera em violência:

No futebol, Padre Cipriano era estúpido, avançava com sua força de homem-feito contra crianças, fazia devastação nos times contrários, até mesmo no próprio. Deu-me um trompaço certa feita que baixei à enfermaria. Inventava regras que só beneficiavam a ele —um descarado. Roubava onde podia roubar e até onde não podia. Chegou ao ponto de impingir a regra: gol feito por ele valia por três. Gol provindo de passe seu, valia por dois.

Mesmo assim os escores saíam apertados, o pessoal contrário fazia disso questão de vida e morte. Padre Cipriano botava tudo em jogo, sua honra, sua dignidade de sacerdote —tudo. Ameaçava excomunhões, um dia tomou um drible humilhante do César, saiu atrás dele pelos corredores, invadiram recreios, salões de aula, até que Padre Cipriano conseguiu agarrá-lo. Sacudiu-o com força, não podendo sová-lo, excomungou-o com fórmulas latinas que na certa ele inventou na hora. César tinha de ir a Roma tirar a excomunhão com o Papa —propalou-se pelo Seminário inteiro.

O pênalti do Macário. Macário tinha um chute forte, definitivo, letal. A partida terminara empatada, mas no último instante, Padre Cipriano, para evitar um gol, agarra a bola com as mãos dentro da própria área. Não houve jeito de anular o pênalti. Macário ajeitou a bola para cobrar a penalidade. Padre Cipriano mandou seu goleiro às favas e ficou embaixo das balizas.

—Quero ver quem é homem para bater esse pênalti!

Macário ajeitando a bola. Tomou distância. Um chute que o Padre Cipriano nem viu por onde passou a bola.

—Não valeu!

—Não valeu por quê?

—Eu não estava preparado! Chuta outra vez!

Novo chute. Padre Cipriano atirou-se ao chão, ensanguentou-se, a bola estufou a rede. Aí foi a tragédia. Agarrou Macário, esfregou-lhe o sangue pela cara, toma, miserável, fica marcado com o sangue de um padre, isso nem no inferno se apaga! Fez cruzes de sangue pela testa do Macário, chamou-o de Átila, Flagelo de Deus. Foi um escândalo. Padre Cipriano passou dias emburrado, chorando pelos cantos. Suas lágrimas faziam mal. Pareciam as de um Deus chorando, é doloroso ver isso. (Cony, [1961]1996:102‒104)

A violência de Padre Cipriano é expressão de sua infantilização. Privado da política, gruda-se ao desespero da competitividade que o leva ao desvario, esfregando o próprio sangue nos alunos, como se decretasse, com isso, a heresia daquele que apenas jogara. O problema, evidentemente, não se trata do jogo infantil entre os alunos, senão da infantilização daquele adulto que ali se encontra. É a impossibilidade da liberdade sartreana, aquela que carrega inerente a si a responsabilidade pela ação marcada pela intencionalidade: «toda acción ha de ser intencional; en efecto: debe tener un fin, y el fin a su vez, se refiere a un motivo» (Sartre, 2021:595). Trata-se, na intencionalidade, da responsabilização pelo mundo:

La consecuencia esencial de nuestras observaciones anteriores es que el hombre, al estar condenado a ser libre, lleva sobre sus hombros el peso íntegro del mundo; es responsable del mundo y de sí mismo en tanto que manera de ser. Tomamos la palabra «responsabilidad» en su sentido trivial de «conciencia (de) ser el autor incontestable de un acaecimiento o de un objeto». En tal sentido, la responsabilidad del para‒sí es agobiadora, pues es aquel por quien se hace que haya un mundo. (Sartre, 2021:747)

Responsabilizar-se é o que Padre Cipriano não logra. Movido pela infantilização que do claustro resulta, adota tintas perversas na medida em que não pode aceitar que o mundo não corresponda ao por ele fantasiado; à violência física se coaduna a condenação de heresia, ao promulgar que Macário não será perdoado no inferno (por meter-lhe um gol!); no movimento, desbotoa qualquer possibilidade de que se perceba responsável pela situação; por fim, como em um muro de lamentações pela culpa que lhe aflige, isola-se, chorando pelos cantos. A violência emerge, deste modo, na infantilização de Cipriano, e aponta à impossibilidade de que ele se faça responsável pelas próprias ações.

IV

Se em Cony há uma preeminência algo silenciosa da violência, em Viñas sua expressão é mais eloquente. Aparece já na abertura do romance, pela penitência vexaminosa do pecado. Ferré, que chega à Escuela de la Cruz, em Buenos Aires, proveniente do seminário de La Plata, encontra um grupo de estudantes andando em círculos pelo pátio do colégio. No intervalo do almoço, aqueles que descumpriram as regras fazem a calesita, expiando publicamente as infrações cometidas. Não é de responsabilidade pela ação que se trata, mas de estratégia que, como sugere Michel Foucault (2014), se coloca como exemplaridade da punição.

Na verdade, são as imagens da violência que vão dando forma à prosa de Viñas, daí sua, em princípio, fuga da cotidianidade, grafando o que dela se destaca. Acontece, contudo, que, pela reincidência das imagens ligadas à violência, é esta que se coloca como da ordem do ordinário. Cena que o mostra é a do antissemitismo contra Mendel. Vindo de família de judeus não ortodoxos que buscavam se converter ao cristianismo (aparentemente por medo de perseguição, ainda que a hipótese não se comprove), ele é matriculado no seminário, mas, diferente dos demais, não passara pela primeira eucaristia, assim como tampouco sabia dos ritos católicos. Aluno do quinto ano, tendo Ferré como docente, é por este iniciado nos saberes de Cristo, tanto em suas orações quanto em um saber do corpo: Mendel saca toda a roupa antes de banhar-se, convertendo-se em alvo de chacota dos companheiros; não sabe amarrar as calças, o que faz com que Ferré o ensine, sendo a cena tomada pelos demais como sugestão de uma aproximação sexual. Mas, como chave analítica, interessa menos a desconfiança relativa ao corpo de Mendel, e mais como os alunos a ela reagem:

Al otro día, cuando fui a dar clase, comprendí que yo tenía razón. «Eso era absurdo», había pensado. La puerta no se podía abrir. Y allí adentro estaba Mendel pálido, arrinconado, con la ropa hecha tiras. Diez o veinte chicos lo rodeaban. La puerta y las ventanas estaban cerradas. Para que se viera menos, habían colgado sobretodos y guardapolvos contra los vidrios. Yo grité, pero no me oyeron. En ese momento, Mendel intentó correr hacia la puerta, pero entre dos de los mayores lo agarraron de las piernas y lo tiraron al suelo. Mendel gritaba, yo presentía que lo iban a golpear hasta cansarse. Sacudí la puerta, pero fue inútil. A Mendel le habían quitado la ropa y se lo pasaban de grupo en grupo completamente desnudo. Él pugnaba por cubrirse. Con su ropa habían hecho un bollo que volaba de un rincón al otro de la clase. Yo seguía sacudiendo el picaporte; hacía tanta fuerza que los vidrios se habían cubierto con mi aliento y lo que pasaba en el interior se me borroneaba. Alguien había hundido un papel en un tintero y le untaba el cuerpo. O le escribía algo. Después lo pusieron de boca y le untaron las nalgas. Creo que alguno tenía betún, porque todo su cuerpo quedó completamente ennegrecido. Mendel gritó varias veces. Los insultaba. Eso, al principio, porque después se oía claramente que les pedía por favor. Pero los otros estaban dispuestos a seguir. Yo sentía que era impotente para abrir y las lágrimas me saltaban calentándome las mejillas; sentía toda la piel con fiebre. También habían traído una tijera y le cortaban el pelo. Yo veía su cuerpo tendido, inerte. Era un manchón blanco con unos lamparones oscuros (...). La puerta se había abierto. Tuve que gritar como un enloquecido para que me oyesen. Y eso que los que se habían quedado mirando llamaban a los demás y los sacudían para que obedecieran. En un momento dado todos se quedaron en silencio y Mendel cayó por el suelo con un golpe seco. Todos tenían las mejillas arrebatadas, como si hubieran estado alrededor de un fuego. Algunos miraban al suelo, otros todavía se codeaban concluyendo algún comentario divertido. Mendel se había incorporado y se iba corriendo todo encogido hasta donde yo estaba. (Viñas, [1957]2011:70‒71)

A violenta cena oferece algo do ritmo da vida no seminário, ao não se colocar como exceção. Os alunos, que violentam o divergente, expressam a sensibilidade do lugar. Embora o antissemitismo não fosse defendido pela instituição —o Padre Director desejava a assimilação de Mendel como porta de entrada para a conversão da família—, a produção de uma hierarquia é evidente e, como tal, tem em seu fundamento o que Foucault (2012) marcará como pressuposto do Estado moderno: a demarcação do limite entre os que a ele pertencem e os que não. Por isso, para Foucault, o racismo não se restringe às questões fenotípicas ou racializadas, senão à demarcação do limite da tolerabilidade: na medida em que já não pertencente, há a efetuação de um corte que nos diz que aquele sujeito disso não faz parte, sendo então produzido como Outro. É a imagem de Mendel: ao não saber uma série de dogmas ritualizados pela lógica da repetição tanto em espanhol quanto em latim, seu corpo é ali tomado como Outro, silenciado pela violência.

Masotta (2010) comentará sobre eventual postura antissemita na cena, para além da dos alunos: a de Viñas. A seguir, contudo, nos dissuade dessa leitura, considerando que, tal como ao apontar elementos críticos à condição feminina,[2] se trataria, isso sim, de uma forma expressiva das contradições ali presentes. O problema para Masotta é este: embora Viñas não seja antissemita e, «por el contrario, sus novelas demuestran una constante preocupación de repudio por el antisemitismo» (165), ele «se siente atraído por los planteos esquemáticos» (164). Haveria em Viñas, sugere Masotta, uma esfera política antes da literária.

Este é, contudo, um pressuposto sartreano. Sob o conceito de literatura engajada,

A prosa revela o homem ao próprio homem e por isso tem uma importância fundamental para a realidade humana e seu autor precisa responsabilizar-se por sua mediação. E é nesse desvendamento do mundo, mostrando o homem como livre e angustiado diante da contingência, perante a qual ele deve se responsabilizar, que consiste o engajamento da prosa. (Souza, 2008:50)

A assertiva cabe e não cabe ao romance de Viñas. Cabe pela leitura que faz Masotta, apontando à esfera política que se coloca antes da literária; mas não cabe se atentarmos à posição que Mendel cobra na estrutura narrativa. Ao fim da violenta cena, sabemos que o garoto foge do seminário. Ferré parte atrás dele, encontrando-o em uma rodoviária. Após escassas tentativas por fazê-lo retornar à escola, o menino é enfático: «—Ya saqué el boleto, Padre» (Viñas, [1957]2011:73). Mendel marca o lugar de uma recusa.

Essa recusa é das mais potentes. Em Dialética negativa, a crítica de Adorno a Sartre se constrói pelo lugar de heroicização do sujeito sob o totalitarismo, apontando assim ao limite sociológico do pressuposto da liberdade sartreana: «A mais modesta experiência política é suficiente para fazer balançar como cenários as situações construídas para servir de pretexto para a decisão dos heróis. Nem mesmo sobre um plano dramatúrgico poder-se-ia postular tais decisões soberanas em uma imbricação histórica concreta» (Adorno, 2009:50). A liberdade em Sartre, assim, pode ter um componente reacionário, ao projetar sobre o sujeito a responsabilidade daquilo que o transpassaria, a saber, a Shoa, fazendo dele, portanto, necessário responsável pela construção – imaginária – da liberdade em um campo de concentração. Ao pressupor uma intencionalidade absoluta da liberdade, Sartre obnubila os constrangimentos e imposições sociais enfrentados pelo sujeito, inclusive sob totalitarismo. Por isso, há algo de irônico na crítica de Masotta, que na introdução de Conciencia y estructura, escreve a respeito do ensaio sobre Viñas:

Ante todo, me disgusta un poco mi tono del artículo sobre Un dios cotidiano, la novela de David Viñas. Campea en esas páginas como el sentimiento de que Viñas se hallaba —ideológicamente hablando— irremediablemente equivocado, y que mientras yo entendía muy bien qué cosa era el «compromiso», él no lo entendía para nada. Debo decir entonces que hoy me avergüenzo un poco de aquella prosa mía donde había bastante de pose, y donde a lo que a mí mismo respecta, yo confundía un poco —o bastante— el «compromiso» con un tono tomado directamente de Les temps Modernes y de Sartre. (Masotta, 2010:32)

O que Masotta apontara como eventual resto de antissemitismo em Viñas se refere, então, à forma como ele mesmo entendia equivocadamente o engajamento do amigo. Há algo chistoso na passagem: ao insinuar que Viñas lia Sartre de forma equivocada, expressa, ao contrário, a crítica aos limites do próprio Sartre; o componente antissemita, como se nota na crítica de Adorno, estava antes na liberal – ainda que constituída sob o véu do antiliberalismo —postura sartreana, e não em Un dios cotidiano—. Assim, o que Masotta via como limite em Viñas, ao critica-lo sartreanamente, mostra como a postura de Sartre teria um laivo reacionário. Por isso interessa o que diz Sebreli ao se referir ao empreendimento de Contorno:

El sartrismo por cierto constituía el trasfondo de Contorno; el mismo nombre de la revista era una trascripción de la «situación» sartreana. No obstante, los únicos que nos declarábamos abiertamente existencialistas éramos los integrantes del trío formado por Masotta, Correas y yo. (...). El sartrismo de los Viñas se limitaba pues al concepto de «literatura comprometida» y el libro de cabecera era ¿Qué es la literatura?, pero dudo que hayan hojeado El ser y la nada. (Sebreli, 1997:519)

Ainda que conhecesse Que é a literatura?, não era Viñas grande leitor da filosofia de Sartre. Trata-se, então, de uma diferenciação entre o argentino e o francês. Isso se expressa na imagem da recusa de Mendel: antes de se construir como o herói que pode encontrar, no imaginário, a conformação às animosidades da vida, é a recusa – ou seja, a desistência, o abandono, a paragem – o motor de sua ação. Não se trata, assim, do empreendimento de fazer-se livre diante das adversidades, senão da potência-de-não (Agamben, 2002), uma recusa desse estabelecido como forma de por ele não ser engolido. Antes do herói demandado pela posição sartreana, coloca-se para Mendel, isso sim, a possibilidade de posição fora desse espaço, recusando-o.

V

Benjamin, vimos, elabora uma imagem da escola como institucionalmente violenta. O aforismo antes referido pertence, contudo, ao conjunto Ampliações, no qual também lemos:

Recebe-se um livro da biblioteca da escola. Faz-se a distribuição nas classes inferiores. Só de vez em quando alguém arrisca exprimir um desejo. Muitas vezes vemos como o livro desejado foi parar em outra mão. Finalmente recebemos o nosso. Durante uma semana ficamos completamente entregues aos efeitos do texto que nos envolveu como flocos de neve, suave e secreto, denso e constante (...). A criança segue-lhes as pistas meio dissimuladas. Ao ler, tapa as orelhas; o livro está em cima de uma mesa demasiado alta, e uma das mãos está sempre pousada sobre a folha. Para ela, as aventuras do herói ainda têm de ser lidas no redemoinho das letras, como as figuras e as mensagens na sarabanda dos flocos. A sua respiração para no ar dos acontecimentos e sente na face o sopro de todas as figuras. Ela se mistura muito mais de perto com as personagens do que o adulto. Sente-se indescritivelmente tocada pelos acontecimentos e pelos diálogos, e quando se levanta está inteiramente coberta da neve que caiu da leitura. (Benjamin, 2017a:34)

Ao mesmo tempo em que violenta, a instituição escolar poderia ter algo de potência: o ampliar da imaginação (que, aqui, não é o que Sartre escreveu tomando-a como objeto) pela literatura. Em Viñas e Cony esta virtualidade se desfaz. Enquanto o seminário é o lugar da autocontenção, os romances que o mimetizam caem na repetição. A imagem reiterada nas obras é a mesma: os livros. Ainda que em Viñas eles indiquem, em simultâneo, o lugar de peleja e de cumplicidade, em Cony atestam um controle —porque a posição dos narradores é diversa e se ao professor Ferré estaria permitida a leitura de livros indignos, ao aluno Falcão estes estavam vedados—. Mas Falcão encontrava técnicas para burlar as proibições:

Leio bastante, quando posso. Chesterton e Cantù. Li também Germinal, de Zola. Padre Chico quase me apanha o livro. Salvou-me a capa da Introdução à vida devota, uma bolação habilidosa do Gaspar. Ele me vendeu o engenho, quando foi expulso (...). Dentro dessa falsa capa pode-se colocar qualquer outro livro. (Cony, [1961]1996:71)

É sob a capa falsa que lê o que lhe interessa. De Rousseau, contudo, a leitura é estimulada: «Citam Rousseau: “Eu queria ver um homem casto e honesto afirmar que não existe Deus. Então acreditaria nesse homem. Mas esse homem não existe”» (Cony, [1961]1996:113). Também em Viñas Rousseau comparece:

Y Adij se sometía a todas esas sugestiones; hasta parecía que hubiera estado esperando que Porter le impusiese sus ideas. Y apareció el Descendimiento y después la Huida a Egipto y un Sermón de la Montaña más tarde.

—Usted es un Rousseau —afirmaba Porter—. Un verdadero Rousseau.

(Viñas, [1957]2011:92‒93)

O que Porter critica em Adij, como rousseaunismo, é a tendência a encarar, como inerente ao humano, a bondade como natureza. A posição pode ser analisada a partir de Beauvoir quando aponta, sobre Sade, que o sustento da moral burguesa, o Bem como natureza, se sedimenta no século XVIII:

En la medida en que el siglo XVIII pretendió abolir el reinado de Dios sobre la tierra lo sustituyó por otro ídolo. Ateos y deístas se unen en el culto que rinden a la nueva encarnación del Bien Supremo, la Naturaleza. No pretenden en ninguna forma renunciar a las comodidades de una moral categórica y universal. Los valores trascendentales han naufragado, al placer se lo ha reconocido como la medida del bien y se ha rehabilitado el amor propio mediante ese hedonismo (...). Estos tímidos egotistas postulan un orden natural que asegura la armoniosa conciliación de los intereses particulares con el interés general. Basta con una organización razonable, obtenida mediante un pacto o un contrato, para que la sociedad prospere en beneficio de todos y de cada uno. Sade sería, de esa religión optimista, el trágico desmentido. (Beauvoir, 1956:94‒95)

O Bem não é de natureza essencial, mas construto historicamente moderno. Não é curioso, portanto, que, sendo essa a posição existencialista sobre Rousseau, seja Porter quem critique a pretensa reconexão de Adij à natureza. Masotta (2010) lerá psicanaliticamente a Porter como atravessado por um antagonismo no construto formal do romance: ao passo em que Ferré marcaria o Viñas do presente, Porter indicaria o do passado. Ou seja: se Porter aparece como representando as posições de Viñas em seus primeiros romances, narrados em terceira pessoa, em Un dios cotidiano a figura de Ferré indicaria um corte, não apenas ao sugerir um narrador na primeira, mais identificado ao «novo» Viñas, mas, também, ao produzir um latente conflito entre ambos —Ferré e Porter, Viñas do presente e Viñas do passado—, levado ao ápice no momento em que Ferré o denuncia ao Padre Director, o que faz com que o do passado seja expulso do seminário —ou seja, um Viñas do presente que chega mesmo a expulsar um Viñas pretérito.

O que Masotta não afirma (interessada que estava sua crítica em seguir o método analítico de Sartre; era para Masotta o estudo de Sartre sobre Jean Genet o grande livro a se seguir —Sarlo, 2007a—), mas dele se depreende, é um movimento de distanciamento que marca Un dios cotidiano com a postura mais existencialista que antes ocupara Viñas e os jovens de Contorno. Ele dá sustento, ainda, para lermos um comentário de Sarlo. Em aula sobre Viñas, assim como em ensaio sobre Contorno, a crítica assinala o olhar estrábico do periódico, Viñas à frente. O que os existencialistas argentinos teriam efetuado, comenta Sarlo (2007b, 2022), foi uma leitura através da qual puderam habilitar Arlt como escritor, ainda que, para isso, tenham anulado Borges —tensão que se mostra em Un dios cotidiano:

—¿Y qué otra cosa?

—Borges, Jorge Luis Borges —expliqué—. Un argentino.

—Tampoco lo conozco. (Viñas, [1957]2011:46)

No diálogo, Porter inquire Ferré sobre os livros que levara ao seminário, afirmando desconhecer o autor de El aleph. Lendo a partir de Masotta, Porter (Viñas do passado) diz não conhecer Borges, ao passo em que Ferré (Viñas do presente) o apresenta. Como sugere Sarlo, os jovens de Contorno não poderiam ler o autor de Sur, involucrados que estavam na habilitação de Arlt. Este olhar estrábico é indicativo das divergências entre as revistas: era inabdicável aos de Contorno o «espíritu de gravedad del intelectual, la ilusión de que el valor literario se origina en la experiencia, el convencimiento de que la literatura tiene una garantía en el lenguaje, pero se juega radicalmente en sus contenidos y sus ideas» (Sarlo, 2007b:56). A própria obra de Masotta expressa a peleja: ao mesmo tempo em que publica, no número 7-8 de Contorno (julho de 1956), o ensaio Sur o el antiperonismo colonialista (compilado posteriormente em Conciencia y estructura), no qual aponta ao caráter burguês do periódico e de sua mecenas, Victoria Ocampo («si ella no está con el proletariado ni por el proletariado ella está seguro con y por la burguesía» —Masotta, 2010:134—), escreve também extenso ensaio a propósito de Alrt, nele encontrando uma chave sartreanamente expressiva da moral burguesa na medida em que o sujeito ganha a forma de um espelhamento que impossibilitaria a consciência de classe (Masotta, 2008).[3] A crítica de Sarlo, assim, dá forma à batalha de ideias que se desenrolava na Argentina nos anos 1950, na qual Masotta, mais do que analista posterior, se coloca mesmo como partícipe do conflito.

A questão, contudo, é mero excurso. Se antes se falou sobre a esfera regressiva do seminário, em Cony, pela proibição de obras, é esta questão que nos auxilia a pensar Un dios cotidiano. Como dito, há uma diferença na posição dos narradores, o que faz com que embora Falcão sofra censura pela leitura escolhida, esta não seja, pelo menos a princípio, uma questão que poderia causar constrangimento a Ferré. A princípio, dissemos, porque acaba por ser, ainda que o embraço não se refira ao seu interesse pessoal de leitura, mas àquelas que profere no refeitório da Escuela de la Cruz. É o que se nota a exemplo de Hugo Wast.

VI

No prólogo a El imperio de los sentimentos, Sarlo diz haver mais de Viñas em seu livro do que o agradecimento às anotações que este teria feito ao manuscrito. Isso não é gratuito. Por meio de Ferré, nota-se em Viñas uma oposição a Hugo Wast, objeto da crítica da portenha. Talvez por isso que Sarlo a Viñas tão incisivo agradecimento faça.

A crítica a Wast, em Viñas, decorre da cena antissemita. Antes dela, contudo, vejamos como se coloca o corpo. Após o ataque contra Mendel, Ferré se posiciona, sartreanamente, em isolamento. Isso porque, ao mesmo tempo em que se sabe não responsável pela situação orquestrada pelos alunos, sente-se impotente por frente a ela não ter agido com mais convicção. Novamente, a forma se aproxima à do diário: nas semanas reclusas, são poucas as passagens que figuram no romance, apontando à dependência, para a prosa, do narrador. Mais interessante, contudo, é a crise compartilhada com o Padre Director: nenhum dos dois sabe como responsabilizar os estudantes pela violência que cometeram. Ao fim, a posição do superior prevalece (que é a mesma de Ferré, embora por motivos divergentes), a de que os garotos não sejam responsabilizados. Há algo de perverso na postura do decano, já que, ao não estipular uma responsabilização explícita, os rapazes condicionam os dias à espera da sanção, aceitando para si aquela culpa que Freud (2014) notara ao analisar outro romance ambientado em seminário, Os irmãos Karamazov, no qual conta mais a autoculpabilização pelo desejo do que a responsabilização pelo ato.

É a partir da situação de extrema violência e da furtiva responsabilização dos alunos que Padre Director definirá o pecado:

—Lo que no quiero es el escándalo.

—¿El escándalo? —yo lo apremiaba para que fuera más claro.

—Sí: subrayar una cosa. Eso es escándalo. Es hacer que la gente mire demasiado una cosa natural. Ahí está el pecado (...). Si usted come, está bien. Pero si usted subraya su comida, llama la atención, los demás reparan en eso que usted pone en evidencia y usted está en la gula. Es decir, en el pecado. En el escándalo. (Viñas, [1957]2011:76‒77)

O escândalo ao qual se refere mais não é do que a presença do corpo. Que a modernidade é um projeto ascético sabemos desde o estudo de Max Weber (2004) sobre a ética protestante. As expressões modernas dos limites da ascese, contudo, são anteriores: remontam à literatura de Sade. Lê-se em Juliette:

Entonces con una rapidez pasmosa, tras una palmada de la madre Delbéne aparecieron media docena de doncellas portadoras de alimentos. Sirvieron un convite magnífico, que resultó más delicioso aún por la idea de que al final nos esperaba el postre más dulce y glorioso. Vinos con los colores del arco iris, y de un bouquet insuperable, ardían furiosamente en nuestras cabezas y nuestros cuerpos. Encendidas de pasión, nos costaba trabajo reprimirnos, tan grande era nuestro deseo de arrojarnos unas sobre la carne de las otras. (Sade, [1797]2003:40‒41)

A passagem, antípoda à prevenção do escândalo elaborada pelo Padre Director, não está, em definitivo, fora do projeto moderno. Mostram-no Adorno e Horkheimer (1985) ao lerem o romance, apontando o caráter de disciplinamento (ascético) daquilo que transborda junto ao desejo, indicando como há controle dentro das próprias orgias sadeanas —uma ratio evidenciada pela lógica matemática obsessiva que ocupa o autor dos 120 dias de Sodoma—. No entanto, não interessa tanto a crítica a Sade. Sua passagem, mais que nada, marca o contraponto, também analisado por Beauvoir (1956), à autocontenção católica. Mas se o que queria o Padre Director era prevenir o escândalo, tomando, portanto, uma direção anti-sadeana, é nele, no escândalo, que devemos pensar.

Quando cabe a Ferré acompanhar o refeitório do seminário, tarefa exercida a cada semana por um diferente padre, o romance que leem é Flor de durazno, de Wast. Ferré, pouco afeito à obra, interrompe a leitura, sugerindo outra. O Padre Director é então avisado e o convoca à direção. Antes que reproduzir o diálogo, importa ter em conta que, ao passo em que o narrador se opõe à leitura de Wast, o Padre Director o defende como edificante ao espírito, afirmando, finalmente, que ele próprio escolhera o livro.

É por isso que o comentário de Sarlo ganha importância: em sua leitura das narrativas de circulação periódica na Argentina das décadas de 1910 e 1920, é Wast a quem situa como um dos mais reacionários autores.

Wast opone el sentimiento sublimado por la religión al amor sublimado por la estética de los decadentes. A los lectores les queda debidamente claro que el amor entre Borbarda y la muchacha rica no era moralmente ilegítimo sino socialmente imposible, y que lo socialmente imposible tiene dos salidas: la transgresión de las convenciones sociales (que Wast, escritor católico conservador, no aconseja) o la muerte. El amor imposible puede ennoblecerse o degradarse: se ennoblece con el renunciamiento, se degrada con su materialización. (Sarlo, 2011:95)

Este é, para Sarlo, o caráter reacionário de Wast, aquele que, ao Padre Director, funcionava qual exemplo. Daí a esfera ascética do seminário, evidenciada pela autocontenção corporal e, também por isso, pela limitação do imaginário, assim como por um condicionamento às expectativas da própria classe. A partir da influência de Sartre, Viñas, como Cony, indica os mecanismos de limitação e de imposição de uma moral, a burguesa, que ganha forma expressiva por meio de uma estrutura, a católica, e que, como tal, impossibilita a liberdade do sujeito. Enquanto Sartre propugnava que esta liberdade deveria ser alcançada em qualquer lado, mesmo que no movimento acabasse por recusar as artimanhas de contenção do social, Viñas e Cony se furtam do componente liberal sartreano, ao situarem-se no quadro histórico das limitações da liberdade do sujeito moderno.

VII

De corpo se falou anteriormente, assim como se mostrou o excesso presente em sua versão sadeana. A comida, presente na obra do Marquês em sua relação com o sexo, ocupará igualmente as obras de Cony e Viñas: Falcão e Ferré, ao receberem visitas externas ao seminário, ganham, como aqueles que se encontram encarcerados, gêneros alimentícios diversos. Mas pouco se interessam pelos quitutes levados pela família, o que poderia romper com a monotonia dos sabores da cozinha institucional; e, igualmente, tampouco se interessam pelo sexo. Por não despertar a atenção dos narradores não significa, contudo, que a associação entre sexo e comida inexista nas obras. Em Cony, ela se mostra a propósito de uma cabrita.

Expulso o Sebastião. Encrencas tão cabulosas que nem os mais informados souberam das razões. Sebastião era provinciano, veio já rapazote para o Seminário, custou a assimilar hábitos civilizados e religiosos. Não tinha problemas de ordem interior, mas sua vitalidade era perigosa para a liberdade que gozamos pelas montanhas e prados. O cheiro apetitoso do mato aguçou-lhe os instintos e ele na certa fez besteira.

(...)

—O Sebastião era um exuberante e um primitivo —começou ele. —Não tinha imaginação nem complicações de espírito. Quando tinha fome, comia. Quando tinha sede, bebia.

—Só?

—Não. Quando tinha sono, dormia.

A insinuação era clara.

—Mas... com quem...?

Foi aí que Eduardo fez cara mais misteriosa ainda. Digrediu sobre costumes do homem do interior, facilmente habituado a taras repelentes na cidade, mas explicáveis no campo (...).

—Você reparou que no dia seguinte ao da expulsão do Sebastião tivemos ao almoço uma cabritinha? Em geral, o feitor daqui não mata cabritinhas, dão cria e leite futuramente. Mas estava gostosa. Pena que o Sebastião, tão apreciador das coisas boas da vida, não tenha podido provar. A menos que tivesse provado na véspera.

Tanta repugnância causou-me engulho. (Cony, [1961]1996:88‒89)

A elipse erótica é evidente. A cabrita servida no almoço fora violada por Sebastião.

Também em Viñas é notável tanto a glutoneria quanto o erotismo, ainda que não apareçam coadunados como em Cony. Nota-se, também, como ambas as esferas não dizem respeito aos narradores, e sim a outros personagens. Ainda em comum, o cinema se coloca como aproximação à esfera erótica. Em uma das últimas entradas do diário de Falcão, ele apresenta o plano de assistir a uma fita: «Tomei a direção da Cinelândia, não a conhecia mais. Passei pelos novos cinemas, imponentes, cheios de luz-neon — que era novidade dos anos 40. O Plaza, o Metro Passeio, o Palace, o Odeon, o Pathé, o Capitólio, o Vitória, o Rex» (Cony, [1961]1996:123).

Ainda que a referência ao cinema não se coloque de forma diretamente erótica (embora o seja: os cinemas apontam ao desejo pelo urbano, um aventurar-se na cidade que já não é mais a mesma), é esta a construção do conto O menino, de Telles ([1949]1999). Narrado em terceira pessoa, a prosa se passa no cinema, palco de uma erótica burguesa marcada pela traição. Uma mãe leva o filho para assistir película qualquer. Lá chegando, contudo, é a uma relação extraconjugal que somos apresentados, servindo o garoto de álibi à infidelidade materna. Aponta, então, às contradições da moral burguesa, essa esfera do conformismo sedimentado na monogamia que, ao condenar o sexo fora do casamento, recai precisamente no recalcado, pela traição. O garoto, então, pouca potência cobra; é cerceado pela perda da mãe para um estranho, restando-lhe o recalcamento da raiva. Não há potência possível ali desenhada, já que seu conformismo mais não faz do que, como a mãe, mantê-lo em uma lógica burguesa – se comentasse ao pai da traição, algo se desencadearia; não o fazendo, estão fadados à duplicação, qual espelho, da falsa moral que edificam. Telles se vale da forma predileta de Sartre, aquela que, ao invés de apontar ao lugar de recusa, recai na repetição da moralidade burguesa.

Em Viñas, também o cinema se coloca como via erótica, mas não ao expressar desejo pelo urbano, como em Cony, tampouco ao apontar às contradições do casamento burguês, como em Telles. Ganha, antes, verve profanatória. Em uma procissão religiosa, Ferré dá pela falta de cinco alunos. Sabendo que o rito terminaria e o Padre Director notaria os faltantes, busca-os. É quando Porter lhe informa que deveriam estar em algum cinema. Vai à bilheteria de um, mas não os encontra. O encarregado, contudo, informa que deveriam estar em outro, aparentemente voltado à exibição de filmes pornográficos. Lá chegando, pergunta sobre os jovens e a resposta é incerta. Pela imprecisão, Ferré pressente que os alunos ali estariam, mas o bilheteiro, incomodado frente à batina, veta sua entrada. Ferré, então, em lapso de ódio —presente em duas cenas, ambas sexuais— saca a lanterna do funcionário e invade a sala.

Por un momento las cortinas de la entrada me hicieron tambalear. Después surgió la pantalla; una mujer desnuda corría hacia un río. En unas filas silbaban, en otras gritaban: «—¡Que se dé vuelta!»; otros chistaban para que hicieran silencio. «—¡Pagamos para verla de frente!» Encendí la linterna y fui recorriendo las filas. No apuntaba al piso, sino a las caras. Entonces la furia se volvió contra mí. «—¡Apagá esa luz!»— gritaron (...). Yo seguí iluminando hacia los dos costados, alternadamente. Y lo iba haciendo con demasiada calma; hasta que parecía que tardaba más de lo necesario. Quería ver bien, no se me podía escapar nada. Una mujer se cubrió las piernas, después se largó a llorar histéricamente. Otra me insultó. Lo de la linterna les dio para todo. En la pantalla la mujer se había zambullido y nadaba; también alcancé a ver fugazmente un cielo cubierto a medias por unas ramas. Pero cuando alguien descubrió que llevaba sotana, lo que dijeron fue increíble; una o dos veces gritaron algo que me hizo reír. Desde que me fuera con la Lamar hasta que hiciese las cosas más inverosímiles con la linterna. De todo. Ese cine se venía abajo, golpeaban los asientos, escupían, pateaban. Lo mío era una provocación. Los estaba desafiando. Un exceso. Pero creo que yo iba repitiendo de memoria la lista de los emperadores romanos. Y hubiera podido silbar. O arrodillarme delante de la pantalla. Hubiese sido lo mismo. Yo era una cápsula, pensaba, no tenía cuerpo, nada por donde asirme, apenas oía, no me interesaba saber (...). Se les atraganta. Son pobre gente. Es la única oportunidad que tienen de gritar. Y yo era lo único macizo en medio de esa cosa disgregada. Si alguno hubiera dado una orden, un grito por encima de todos. No sé. No estoy seguro. Por fin, en una de las filas del medio, descubrí a los chicos. El que estaba sentado casi sobre el pasillo era Breyer y trataba de esconderse. Otro se deslizó de su asiento y quiso escabullirse hacia el fondo. (Viñas, [1957]2011:165‒166)

A cena mostra a fúria de Ferré diante do desejo que os garotos nutrem pelo sexo, cujas imagens são oferecidas, qual inconsciente óptico, como sugeriu Benjamin (2017c), pelo cinema. Aponta-se à antípoda do autocontrole corporal, colocando uma erótica que refuta a moral burguesa em vertente cristã, ao dar forma, pela imaginação, ao contrário da ascese – a prevenção do escândalo – promulgada pelo Padre Director. É o espaço da profanação em um sem-fim de elementos: fogem do ritual religioso para desfrutarem dos prazeres da carne; rompem com os ensinamentos morais da literatura de Wast; ainda que retornem ao seminário, não há culpa nas páginas subsequentes.

Ora, ao mesmo tempo em que se coloca, em Cony e Viñas, a culpa católica como expressão da moral burguesa, sobre este momento, o de maior liberdade exercida pelos garotos, não há imagens de culpabilização ou expiação. Relacionando cinema e desejo, coloca-se um jogo que atrai e repele o postulado existencialista: ao mesmo tempo em que os autores dão forma ao opressivo cerceamento da liberdade, apontando às contradições da moral burguesa (como queria Sartre), encontram também mecanismos narrativos para expressar a possibilidade de que aqueles que ali se encontram rompam com a lógica sartreana (efetuando, então, aquilo que, na estética de Sartre, pouco se encontra). Indicam, portanto, uma aporia na recepção do existencialismo na Argentina e no Brasil: pelo corpo, os personagens não se sentem propriamente culpados, tampouco espelham algo, mas situam-se, isso sim, no lugar de uma recusa, de uma potência-de-não, na medida em que, ao não se autocondenarem pelo desejo, discordam da violência da instituição sacerdotal. Se a proposta sartreana busca expressar o conformismo moderno, marcado pela não responsabilização, a recusa, em Cony e Viñas, se coloca como alternativa a este limite expressivo almejado pelo francês: é na gestualidade marcada pela não responsabilização, ou seja, quando agem anti-sartreanamente, que os personagens ganham potência para expressar os limites da ascese cristã. Se para Sartre a não escolha era já uma eleição, aquela que marcava a manutenção da estrutura burguesa, aqui a não escolha, a potência da recusa, faz sua vez contrária: denota o caráter opressivo de uma sociedade na qual estes personagens se situam; indica os constrangimentos sociais aos quais estão fadados como habitantes da contraditória modernidade; e, ainda, apresenta laivos da possibilidade de a isso se oporem, ainda que se mostrem por fora da intencionalidade da ação; aponta, portanto, à fruição do corpo como recusa da falsa moralidade – apostando, assim, antes no hedonismo do que na consciência.

Ainda que fora de uma homologia simplificadora, a recepção do existencialismo na América, em Viñas e Cony, assume camada mais sociológica: ao colocarem a possibilidade da recusa, aquilo que em Sartre aparecera como regressão, indicam uma potência, a do sujeito que não se aprisiona ao esquematismo que ao francês era tão caro. Isso se dá por uma maior presença do corpo do que do imaginário. Furtando-se dessa liberdade que, em Sartre, deveria aparecer a todo custo, os autores logram expressar, pelas amarras que perpassam o corpo das personagens, os limites materiais da liberdade.

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Sebreli, J.J. (1997). Escritos sobre escritos, ciudades bajo ciudades. Sudamericana.

Sontag, S. (2020). Contra a interpretação. En Contra a interpretação e outros ensaios (pp. 15‒29). Companhia das Letras.

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Telles, L.F. (1999). Antes do baile verde. Rocco.

Viñas, D. (2011). Un dios cotidiano. EUDEBA.

Weber, M. (2004). A ética protestante e o .espírito. do capitalismo. Companhia das Letras.

Notas

[1] A posição do líder a indicar o caminho das massas é problemática em Sartre, e leva Juan José Sebreli (1997:534‒535) a ler Orestes como figura carismática «que desde lo alto se dirige al pueblo al que desdeña, o bien acepta inmolarse en el martirio para entregarse en un espectáculo solitario y grandioso que sirva de modelo al pueblo al que se le quita toda responsabilidad y toda participación en la acción».
[2] O segundo sexo, de Beauvoir (2014), fora recém publicado em 1949. Nele, discute o mito do eterno feminino como construção artificial da feminilidade por parte de uma operação masculinista. Daí o elogio de Masotta a Viñas: o romance mostraria o cerceamento da posição feminina, a da mãe de Ferré, por parte da posição masculina, a do pai. Lendo a partir de Beauvoir: um cerceamento das possibilidades das mulheres não como essência feminina, mas como construto histórico engendrado pelo masculino. Assim, antes de ser machista, o romance de Viñas, para Masotta, expressa o machismo ali existente.
[3] Andrea Cavalletti (2013) sugere que a potência da classe, em Benjamin, é a de abandonar a postura intermediária que a classe média buscaria para si, passando a entendê-la como um grupo (e não como classe) móvel entre proletários e proprietários; caberia ao proletariado estabelecer laços de solidariedade de classe entre si, como forma de um conhecimento – a consciência – que a classe dos proprietários não poderia acessar. O que se vê plasmado em Arlt, segundo Masotta (2008), é o exato contrário, ou seja, trata-se de uma camada média‒baixa que se volve não em consciência (não pode haver solidariedade entre os trabalhadores, já que não há personagens que o sejam), senão como espelho que mais não faz do que duplicar-se nas formas metálicas que aparecem na escrita de Arlt. Sua obra, sugere Masotta, expressa a contradição da moral burguesa, na medida em que inviabiliza a consciência de si, impossibilitada pela ausência de personagens do proletariado, dando forma, no lugar (por essa duplicação), à «classe» —que, para Benjamin lido por Cavalletti, não é classe— média (ainda que baixa): «la clase media carece de conciencia de sí, y solo tiene un turbado sentimiento de sí: el individuo de la clase media se autodesconoce a sí mismo y no sabe confesarse que su clase es ya el fruto podrido que se separa del árbol social» (Masotta, 2008:87).

Informação adicional

Para citar este artículo:: Schmitz Kremer, N. y Fernandez Vaz, A. (2024). Quadros sartreanos: un dios cotidiano, de David Viñas; Informação ao crucificado, de Carlos Heitor Cony. El taco en la brea, (19) (diciembre–mayo). Santa Fe, Argentina: UNL. e0142 DOI: 10.14409/eltaco.10.19.e0142



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