Recepção: 22 Abril 2024
Aprovação: 13 Maio 2024
Resumo: O presente artigo visa compreender e analisar o bairro da Liberdade, em São Paulo, como um campo de disputas que se dá entre o preterimento e o esquecimento de séculos da história negra e indígena e a supervalorização da presença e da cultura oriental. A partir da existência do Cemitério dos Aflitos e da Capela de Nossa Senhora das Almas dos Aflitos, símbolos da presença negra na Liberdade, percebeu-se que se perpetuam políticas que objetivam no apagamento da memória negra e africana, que são suprimidas diante da descaracterização de um “típico” bairro japonês. A liberdade, então, se torna um território que abriga dois mundos opostos e conflitantes, onde um deles é sepultado e esquecido.
Palavras-chave: Memória, Negros, Chaguinhas, Bairro da Liberdade, São Paulo.
Abstract: This paper aims to understand and analyze the Liberdade neighborhood, in São Paulo, as a field of disputes that occur between the neglect and forgetfulness of centuries of black and indigenous history and the overvaluation of the presence and oriental culture. From the existence of the Cemitério dos Aflitos and the Chapel of Nossa Senhora das Almas dos Aflitos, symbols of the black presence in Liberdade, it was realized that policies are perpetuated that aim to erase black and African memory, which are suppressed in the face of the mischaracterization of a “typical” Japanese neighborhood. The Liberdade neighborhood, then, becomes a territory that houses two opposing and conflicting worlds, where one of them is buried and forgotten.
Keywords: Memory, Blacks, Chaguinhas, Liberdade neighborhood, São Paulo.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo comprender y analizar el barrio Liberdade, en São Paulo, como un campo de disputas que se da entre el abandono y el olvido de siglos de historia negra e indígena y la sobrevaloración de la presencia y la cultura oriental. A partir de la existencia del Cemitério dos Aflitos y de la Capilla de Nossa Senhora das Almas dos Aflitos, símbolos de la presencia negra en el barrio Liberdade, se percibió que se perpetúan políticas que apuntan a borrar la memoria negra y africana, que son suprimidas frente a la caracterización errónea de un barrio japonés “típico”. El barrio de la Libertad se convierte, entonces, en un territorio que alberga dos mundos opuestos y en conflicto, donde uno de ellos queda enterrado y olvidado.
Palabras clave: Memoria, Negros, Chaguinhas, Barrio Liberdade, São Paulo.
INTRODUÇÃO
Entre as diversas formas de dominação, aquelas através da negação da história e da memória de povos historicamente perseguidos, são as mais complexas de se confrontar. A memória pode ser usada para manipular o passado, produzindo o esquecimento através de dispositivos que escondem a verdade ou até mesmo a construção de versões falsificadas de eventos pretéritos. Em alguns casos, para se compreender as relações de dominação e disputa acerca da memória de um lugar, é necessário escovar a história contrapelo[1].
O Brasil, ao longo da sua história, coleciona diversos ataques à memória. A memória dos povos que aqui já habitavam e a memória dos que para cá foram trazidos forçosamente, são constantemente alvos de ocultamento e deturpação. As tentativas de apagar e esquecer as memórias daqueles que lutaram e resistiram diante das injustiças, das crueldades e dos autoritarismos seguem em pleno funcionamento. O memoricídio se faz presente como política de uma nação que tem como mito fundante a democracia racial, que ao mesmo passo que impõe o esquecimento da brutalidade realizada pela escravidão e as heranças raciais desse processo, oculta a história, os feitos, os saberes e as territorialidades negras e indígenas.
A violência civilizatória direcionada aos indígenas e as diversas formas de dominação aplicada aos negros e negras serviram como base para a conformação do projeto político de soberania e da ordem social do Novo Mundo[2]. A escravidão reinventada nesse Novo Mundo foi a grande responsável por transformar todo o território que após 1822 viria a se tornar Brasil, em um imenso cemitério. As mortes e os sepultamentos são diversos: corpos, crenças, rituais, línguas, histórias, saberes, memórias etc. Todos esses assassinatos foram importantes para que se mantivesse a posse de um humano por outro. A escravização de negros africanos e indígenas nas colônias das Américas teve um papel crucial no desenvolvimento do capitalismo mundial. Desde então, um certo laboratório racial[3] se fortalece na persona do racismo, tornando-se uma criação necessária para a consolidação de uma ideologia hegemônica que atravessa vários períodos históricos.
Do Império à República, o Brasil seguiu trabalhando arduamente no projeto de repressão aos povos “bárbaros” e “selvagens”. No ínterim desses dois períodos, uma parte do movimento republicano passa a pleitear a abolição da escravidão - que já tinha sido abolida em todo o restante do mundo -. A constituição do Brasil, isto é, a consolidação da pátria, do Estado e da nação, integra-se no mesmo período em que acontece a Abolição da escravatura no país. Dentre os símbolos que pudessem representar a nação “livre” e independente, o Hino da Proclamação da República era um dos mais importantes. Diante disso, a então recente República decidiu realizar um concurso para escolher o hino que passaria a simbolizar a nação brasileira. O recifense Medeiros e Albuquerque compôs o hino escolhido, em que diz: “Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”. No mesmo ano, em 1890, o ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, emite uma ordem que teria como consequência a queima de documentos referentes à escravidão, pois seus vestígios poderiam destruir a honra de uma pátria que não mais se beneficiava do sistema escravista.
Desde a invenção desse Brasil que finge não ter sido o principal importador de africanas e africanos escravizados das Américas, que os processos de apagamento da história nacional se intensificam. Tanto a letra do Hino da Proclamação da República quanto a queima dos documentos, já estabelece o começo do processo de esquecimento, não apenas da escravidão, mas também do povo negro que passa a ser apartado da sociedade e insivilibilizado.
Contrariando Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre sobre a suposta passividade negra e indígena, Cida Bento (2022) alega que a história dos quilombos, assim como de muitos importantes levantes e revoltas é omitida na historiografia oficial. Isso pode ter ocorrido para não prejudicar a imagem de país que comporta uma democracia racial ou, ainda, para não reconhecer o protagonismo negro na história nacional. Essa omissão da resistência negra e indígena na historiografia oficial nos revela que necessitamos entender sobre a memória coletiva, mas também sobre a amnésia coletiva.
Impor o esquecimento às memórias das populações negras é prática comum neste país. Nas artes, ciências, religiões, espaços públicos e outros territórios de expressão do ser, a presença negra é constantemente apagada pela mão invisível da colonialidade, que impõe o esquecimento das experiências de dor, prazer e resistência de ser negro e negra no Brasil (Missiatto, 2021). O esquecimento segue sendo assimilado até os dias atuais, como se todas as crueldades cometidas pela escravidão estivessem presas à um passado que não influencia o presente. Essa ciclicidade é expressada por Florestan Fernandes (2007) ao revelar que presente, passado e futuro se entrecruzam e se confundem de tal maneira que se pode ir de um estágio histórico a outro pelo expediente mais simples: o deslocamento pelo espaço. É caminhando pelo tempo do espaço que chegamos ao lugar maldito na cidade de São Paulo, onde encontra-se todos os sintomas de uma amnésia coletiva que insiste em ocultar um passado de flagelos, mas sobretudo de resistências.
O lugar maldito, localizado no bairro da Liberdade, é referente ao antigo Cemitério dos Aflitos ou Cemitério dos Enforcados (1779) e a Capela dos Aflitos, espaço de adoração ao santo popular Francisco José das Chagas, conhecido como Chaguinhas. Entre os séculos XVIII e XIX, o Cemitério do Aflitos funcionou enterrando todos aqueles que a sociedade paulista considerava inferiores: negros escravizados, indígenas, pobres e condenados à forca. A área que compreende o cemitério agregava diversas formas de tortura, punição e morte, se tornando palco de um dos momentos mais marcantes da história de São Paulo.
Francisco José das Chagas, Chaguinhas, foi um cabo negro do Primeiro Batalhão de Santos no período do império português. Em 1821, ano anterior a Independência, ele e o praça Joaquim José Cotindiba, também negro, encabeçaram um motim pelo pagamento de soldos atrasados - espécie de remuneração militar -. O motim pela reivindicação de salários e de melhores condições de trabalho resultou na prisão e na condenação à morte de ambos, entretanto, quando procederam ao enforcamento do cabo Chaguinhas, dizem as narrativas, a corda se rompeu por três vezes seguidas, o mesmo acontecendo após uma última tentativa com um laço de couro. Chaguinhas foi então executado diretamente no chão, pelas mãos dos seus executores, para revolta dos populares presentes, que aclamavam o milagre de intervenção divina através das cordas rompidas, gritando: “Liberdade” - palavra que originou o nome do atual local (Sevcenko, 2004).
João José Reis (2018) expressa que há notícias de muitas conspirações, motins e revoltas em São Paulo, pouco conhecidas na época porque a imprensa silenciava para evitar pânico e incentivo à rebeldia. Foram comuns os pequenos levantes, nos quais escravizados assassinaram feitores e senhores e em seguida se entregavam ao subdelegado. Mas houve também revoltas que, embora logo sufocadas, tiveram como objetivo reivindicar a liberdade.
São Paulo, que fora uma das três maiores províncias cafeicultoras do país, teve que lidar com as rebeldias e as insubordinações de negros/negras e indígenas, que como resposta aos reveses que causavam as autoridades locais, tiveram seus corpos punidos, suas vidas ceifadas, suas histórias e memórias silenciadas. O Cemitério dos Aflitos, lugar onde eram despejados os desprezíveis, formaria o território dos excluídos.
Com o passar dos anos, esse território da exclusão tomaria uma forma completamente distinta. O bairro da Liberdade, na área central de São Paulo, passa a ser sinônimo da imigração japonesa, sendo tomado por símbolos que remetem ao Japão. A Liberdade, então, se torna um campo de disputas entre o preterimento e o esquecimento de séculos da história negra e indígena e a supervalorização da presença e da cultura oriental no bairro. Esse território abriga dois mundos opostos e conflitantes, onde um deles é sepultado e esquecido.
Do preterimento ao empretecimento
Em São Paulo, no século XVIII, se estabeleceu um circuito intenso de opressões e violências, esse ambiente era composto pelo Morro da Forca e pelo Largo do Pelourinho. Segundo Sevcenko (2004) foi nesse espaço em que foi assentado o patíbulo, desde 1775, por ordens do vice-rei, o Marquês de Lavradio. O autor afirma que este espaço estava longe de ser invisível, dado que ele foi escolhido justamente por ser visível de quase todos os quadrantes da cidade,
expondo assim cruamente a todas as gentes a força da justiça implacável de Sua Majestade Imperial pairando sobre todos os seus súditos e supliciando exemplarmente os réprobos, recalcitrantes e insubordinados, mas sobretudo intimidando os escravos rebeldes. Mesmo porque, a poucos metros dali, na conexão do Caminho de Santo Amaro com o Largo de São Gonçalo (atual Praça João Mendes), ficava o Largo do Pelourinho (atual Largo Sete de Setembro), ao lado da Cadeia, símbolo do poder municipal, onde os escravos eram açoitados aos olhos do público (p. 19).
A oeste do Morro da Forca se estendia o Cemitério dos Aflitos, o primeiro cemitério público da cidade - 1779 -, reservado ao enterro dos condenados, dos indigentes e dos soldados. As sepulturas rústicas não levavam nomes, datas ou bênçãos, tendo apenas uma cruz de pau. Era o cemitério dos anônimos, dos desprezíveis e dos indignos. Era também o cemitério dos escravizados (Sevcenko, 2004).
Conforme Flávio Gomes (2005), na cidade de São Paulo, em 1722, criou-se um regimento regulamentando ações dos capitães-do-mato para perseguir escravizados fugidos e destruir quilombos. Nas primeiras décadas do mesmo século, “particularmente durante a administração do governador Rodrigo César de Menezes, houve ferrenha perseguição a escravos fugitivos, salteadores, criminosos e indígenas” (p. 352). Nos anos iniciais do Brasil republicano, houve um crescente controle sobre a população recém liberta. A repressão foi um recurso constantemente usado pelos poderosos para expulsar das localidades indivíduos considerados “insubordinados”. O país seguiu imerso na racionalidade do escravismo, tão contrária à condição humana que uma vez instituído só se mantém por meio de uma vigilância perpétua e da violência brutal da punição preventiva. (FRAGA, 2018; RIBEIRO, 1995). Não é à toa que o espaço que compreende o bairro da Liberdade já funcionava como um centro de castigos, aflições e mortes. A paisagem urbana dessa área era formada, sobretudo, por aparelhos de torturas e sepultamentos.
Com o fim do cemitério, em 1858, e o início da reforma urbana, essa área passou a ser loteada, porém, as ossadas e os túmulos não foram retirados tampouco preservados enquanto acontecia a expansão do bairro. Um novo ordenamento urbano passou a ser adotado em finais do século XIX; a São Paulo que emergiu no início do século XX foi erigida a partir dos escombros e do ocultamento de seu passado colonial e escravocrata (Paiva, 2020). A configuração urbana da cidade foi feita para atender os interesses da elite paulistana, seguindo os mesmos padrões de exclusão do período escravocrata. A higienização no bairro da Liberdade integra-se ao processo de orientalização que se intensificou no final dos anos 1960, constituindo o primeiro e mais sólido núcleo nipônico do município de São Paulo.
O plano de orientalização da Liberdade, de autoria de Randolfo Marques Lobato, foi anunciado em 1969. Ele planejava transformar a região numa espécie de Chinatown nova-iorquina de modo a consolidar um núcleo oriental que teria condições de se tornar uma atração turística. No processo de seguir a construção típica de um bairro oriental, foi estabelecido que as três estradas principais da Liberdade seriam guarnecidas de portais — os “tori” — e pequenos jardins, semelhantes aos existentes em Tóquio (Onaga, 2022).
A instalação de ícones orientais se faz presente em todo o bairro, com direito a luminárias japonesas, memoriais, uma infinidade de lojas e restaurantes voltados à cultura nipônica. Os letreiros bilíngues e a estética japonesa tentam transformar a região em um típico bairro tradicional japonês. A influência oriental se tornou tão forte que a estação de metrô foi batizada de “Japão-Liberdade”. Entretanto, os símbolos orientais como cartão-postal do bairro compõem uma estética descaracterizada das culturas orientais e criam uma narrativa visual de que a imigração e a ocupação japonesa se deram de forma linear e uniforme. A descaracterização do bairro se alia às escolhas ideológicas de higienização urbana.
A liberdade como bairro “tradicional” japonês se enquadra naquilo que Eric Hobsbawm et al. (1984) denomina de tradição inventada. Inventar uma tradição, de natureza ritual ou simbólica, objetiva inculcar valores e normas de práticas e comportamentos, que “criam” seu próprio passado através da repetição. A ideia de que a Liberdade sempre foi unicamente oriental é uma invenção incrustrada no imaginário coletivo. A Liberdade resumida somente numa suposta tradição oriental serve para a criação e manutenção de imagens positivas de um passado não tão heroico e honroso de São Paulo.
Atualmente, como herança do antigo Cemitério, resiste a Capela de Nossa Senhora das Almas dos Aflitos. Sobrevivendo à duras penas, a Capela dos Aflitos abriga todas as formas de fé e devoção às almas de todos aqueles e aquelas que foram mortos e esquecidos. Toda a região ao redor da forca e do Cemitério passou a ser envolvida por uma dimensão sacra. A Capela dos Aflitos se torna um espaço sagrado repleto de significados, símbolos e representações que demarcam a territorialidade de uma religiosidade popular em torno do Chaguinhas;
Chagas teria se tornado então um mártir e um santo na devoção da população local. Um beato, Olegário Pedro Gonçalves, e um negro, Chico Gago, teriam erguido um cruzeiro aos pés do Morro da Forca, em frente ao qual teriam posto uma mesa para oferendas. Diz a lenda que velas acesas naquele altar improvisado jamais se apagavam, mesmo sob os mais fortes ventos daqueles altos de morro ou sob as tempestades mais torrenciais, confirmando a santidade do mártir Chagas. Multidões acorriam para cultuar o que passou a ser chamado de a Santa Cruz dos Enforcados. Criou-se uma festa anual, com grande afluxo popular, exacerbando o prestígio do culto e alarmando as autoridades (Sevcenko, 2004, p. 20)
A Capela é sufocada pela reorganização da paisagem a partir da orientalização do bairro, que não respeita tampouco contempla a compreensão do sagrado existente naquele espaço. A rua em que se encontra a Capela dos Aflitos é apagada pelos ícones orientais, como as lanternas japonesas que se sobrepõem à edificação original da Capela. Com a forte expansão urbana e a fixação dos japoneses no bairro, todo o entorno da Capela foi loteado e vendido, não havendo nenhuma preservação do Cemitério. Somente após o “asfixiamento” da Capela que houve seu tombamento: em 1979, tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT) e em 1991 pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP).
Por meio da criação da União dos Amigos da Capela dos Aflitos, a Unamca, que se teve uma articulação política em prol da preservação da Capela e do seu reconhecimento. Foi a partir da Unamca que se iniciou o trabalho para o tratamento adequado do que seria o sítio arqueológico que continha os resquícios materiais do antigo cemitério. Segundo a Revista Museu (2020), no local, foram encontradas ossadas de nove indivíduos, achadas em um estrato mais profundo do terreno onde, conforme apontam os estudos, foram sepultadas pessoas executadas, indígenas e escravizados. O estudo identificou ainda materiais diretamente associados a dois indivíduos, como parte da indumentária de um indivíduo e quatro contas de vidro azul junto ao pescoço de outro.
Quanto às contas de vidro, os dados levantados pelo estudo indicam que estas estavam vinculadas à religião de matriz africana, especialmente ao culto de Ogum - conclusão tecida a partir de outros contextos brasileiros, e respectivos estudos que ligam a prática de levá-los à sepultura aos costumes das populações de Guiné, Nação Cabinda ou Benguela”, conta a arqueóloga do Iphan-SP, Leila Maria França.
A mobilização da Unamca foi fundamental para que se interrompesse obras irregulares iniciadas na área tombada da Capela. Para fortalecer as histórias ocultas da Liberdade, a Unamca e o Museu de Território dos Aflitos (MTA), se articulam para conseguir a captação de recursos para a restauração da Capela e para a construção do Memorial dos Aflitos. Com o abandono público e as políticas urbanas de silenciamento, o sítio arqueológico e a Capela dos Aflitos se tornam espaços desconhecidos pela grande parte da população que mora e/ou visita São Paulo. A história negra e indígena é rejeitada nos espaços públicos das áreas centrais da grande metrópole paulistana.
São Paulo produz aqueles dois mundos com destinos opostos que Florestan Fernandes em 2007 já destacava: o mundo dos brancos e o mundo dos negros. Para ele, o mundo dos brancos foi profundamente alterado pelo surto econômico e pelo desenvolvimento social, ligados à produção e à exportação do café, no início, e à urbanização acelerada e à industrialização, em seguida. O mundo dos negros ficou praticamente à margem desses processos socioeconômicos, como se ele tivesse dentro dos muros da cidade, mas não participasse coletivamente de sua vida econômica, social e política. No mundo dos negros a cidadania é mutilada. É uma cidadania estraçalhada, dilacerada, conforme Milton Santos e Lélia Gonzales expressavam. Darcy Ribeiro, em 1995, evidenciava que a luta mais árdua da população negra foi, e ainda é, a conquista de um papel de participante legítimo na sociedade nacional. Dentre a lista de cidadanias mutiladas neste país, a negação da história e da memória negra e indígena nos territórios urbanos é uma delas.
Japão-Liberdade e África-Liberdade são dois mundos que coabitam e disputam o mesmo território. É como se houvesse uma fronteira imaginária que dividisse dois lados: um sobreposto ao outro. Essa divisão é imposta pela dinâmica do capital que opera através de políticas colonialistas e racistas. A luta racial envolve, sobretudo, a luta de classes.
Em meio a Liberdade, os resquícios afro-pindorâmicos[4] continuam excluídos e desrespeitados. No bairro não se encontra nenhuma placa de sinalização indicando a localização da Capela dos Aflitos, muito menos informando sobre a existência do antigo Largo da Forca e do primeiro cemitério público da cidade, onde foi sepultado um dos grandes mártires negros de São Paulo, atualmente reconhecido como santo popular. A Capela da necrópole permanece no final de um beco, onde as lanternas orientais vermelhas saltam à vista e a grande quantidade de automóveis estacionados no estreito beco, embaralham a paisagem, suprimindo a Capela.
Pensando no poder discursivo das paisagens, a Liberdade narra histórias. Indo de encontro com Augustin Berque, a paisagem é uma marca, justamente pelo seu caráter de contar algo. Na Liberdade, de imediato, se conta uma história genérica da ocupação oriental no bairro, que tenta esconder aquela sombra de um passado imerso na barbárie. Tal como quando os europeus passam a considerar os artefatos estranhos e “feios” como símbolo da arte africana[5], a Capela dos Aflitos é tida como uma marca negra que deve ser limpa e esquecida entre as paisagens.
Projetos urbanísticos que disciplinam a cidade e a paisagem desempenham um papel estratégico. Essa Liberdade completamente voltada à venda de uma cultura oriental gera concentração de riqueza a partir da circulação e do consumismo. A África-Liberdade se resume à uma certa estranha morbidez que não se encaixa na estética alegre e colorida que as atrações que Japão-Liberdade oferecem. Quando um grupo é excluído do processo de organização urbana, se nega um direito coletivo que permite reinventar a cidade. O direito à cidade é a liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e as nossas cidades, sendo um de nossos direitos humanos mais preciosos, ainda que um dos mais menosprezados, conforme David Harvey (2014).
A intenção não é culpabilizar a população nipo-brasileira que habita e circula pela Liberdade, mas sim focalizar a violência estimulada pelo Estado ao apagamento da territorialidade negra e indígena e do esquecimento da memória dos seus ancestrais, uma vez que a “violência é necessária para construir o novo mundo urbano sobre os escombros do velho” (Harvey, 2014, p. 82). A construção de novos espaços urbanos a partir da limpeza de negros e indígenas é pratica comum em São Paulo desde o século XVII, que se valia do seu caráter desbravador expressado pela epopeia bandeirante[6].
Enquanto Japão-Liberdade recebe mais de 180 mil pessoas para o maior festival oriental de rua do Brasil, o Toyo Matsuri, a Capela e o Cemitério dos Aflitos sequer recebem atenção quando denunciam que a Capela necessitava urgentemente de uma restauração, o mesmo abandono acontece em relação a preservação do sítio arqueológico e a construção do Memorial dos Aflitos. Existe um esforço coletivo para que a Capela, o Cemitério e Chaguinhas não desapareçam e continuem sendo inscrições negras na memória da cidade. Resiste um coletivo que subverte a ideia de cidade-mercado e lutam para que as histórias e os corpos que querem esconder, sejam vistos. Esse coletivo que saúda todos aqueles e aquelas que outrora foram torturados, condenados, mortos e enterrados no Cemitério dos Aflitos, entende que as almas dos excluídos, dos indigentes, dos negros e dos indígenas não se findaram nos seus sepultamentos. São esses movimentos que vão para o lado contrário das normas estabelecidas que fazem as cidades rebeldes[7].
O espaço da Capela e do Cemitério, além de ser um território rebelde, é também sagrado. Abrigando uma grande diversidade de religiões, ali se encontram cristãos e afro-religiosos que de formas distintas reverenciam Chaguinhas e as outras almas que ali habitam. Uma outra reivindicação da África-Liberdade se refere justamente as inscrições do sagrado: que o culto e a devoção a Chaguinhas se torne patrimônio imaterial do Estado de São Paulo. Sendo uma manifestação cultural e religiosa legítima, mantida por duzentos anos, o culto a Chaguinhas deve ser preservado como um legado e representado e reconhecido nas narrativas, no espaço urbano e nas paisagens da Liberdade.
As disputas no território da Liberdade também se dão no âmbito do discurso político, que muitas vezes se torna a arma mais potente que os grupos denominados vencidos consigam incansavelmente se manterem na arena e de forma legítima expor suas origens, legados culturais, históricos, conhecimentos e propriedades – mesmo que deste último ponto não sejam considerados herdeiros diretos por conta de no passado colonial não terem exercido o direito de acesso a propriedades. Geny Guimarães (2015) aponta que a disputa desses grupos também pode ser integrante do projeto-processo de construção da nação no qual o grupo marginalizado também tem direito às suas próprias representações ou autorrepresentações patrimoniais, entendidas como nacionais, mas silenciadas e apagadas no tempo e no espaço.
O racismo é entendido como o elemento gerador de conflitos na discussão patrimonial de algumas cidades, pois é capaz de desequilibrar as relações pessoais, hierarquizá-las e promover o silenciamento de legados patrimoniais do grupo inferiorizado. Tal disputa ocorre pelo fato de que domínios sobre territórios e territorialidades representam poderes: logo o patrimônio se torna um meio de se alcançar poder-violências de apropriações e apagamentos de legados culturais de grupos inferiorizados (p. 106).
A única homenagem pública a uma pessoa negra na Liberdade é referente a escultura da sambista Deolinda Madre, mais conhecida como Madrinha Eunice. Deolinda foi a fundadora da primeira escola de samba na cidade de São Paulo, a Lavapés. Em setembro de 2023, a estátua de Madrinha Eunice sofreu uma ameaça de dano e de ocultamento devido a montagem de um palco para a realização do Festival Cultura Geek, executado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. O palco superposto à escultura de Madrinha Eunice é mais um exemplo da negligência para com os patrimônios materiais e imateriais que representam a cultura e a identidade negra na Liberdade.
A patrimonialização de um mártir e santo negro que foi assassinado por se revoltar contra o império e exigir melhores condições de trabalho é certamente algo que a elite conservadora paulistana não quer que se dissemine, pois enegrecer a cidade é falhar no projeto de dominação. Adentrar o território da Liberdade é se deparar com políticas de inimizade[8] que se expressam através do memoricídio. A aniquilação do outro também se dá a partir da negação da sua memória, pois a memória não diz respeito apenas às recordações, mas, sobretudo, é uma construção coletiva que demonstra e atribui valores ao passado e fortalece os laços de comunidade. Por se tratar de heranças africanas, negras e indígenas, o apagamento da memória e da história desses povos na Liberdade se efetua por ações de poder que se realizam por meio do racismo, pois como denunciava Milton Santos: a escravidão marcou os territórios, marcou os espíritos e marca hoje as relações socias deste país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Antes do bairro ser sinônimo da ocupação e da cultura japonesa, um cabo negro já deixava sua marca na história e na memória da Liberdade, entretanto, essa marca negra sofre diversas tentativas de esquecimento e apagamento. O memoricídio se perpetua nessa parte de São Paulo através da conformação urbana em que prevalece apenas um único tipo de paisagem e uma única história. A orientalização descaracterizada da Liberdade serviu e serve como política de higienização da população negra e indígena, desconsiderando a ocupação, a territorialidade e a sacralidade desses povos no bairro da Liberdade. O abandono público em relação a patrimonialização e a preservação do Cemitério e da Capela parmenece ao longo dos anos, contribuindo para que a Liberdade continue a ser reconhecida pela sua característica comercial e turística imersa num mundo oriental. A África-Liberdade não tem sua história contada, sua memória preservada, seus patrimônios restaurados e suas crenças valorizadas, isto é, as inscrições negras e africanas são relegadas, substituídas e enterradas.
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Notas