Recepção: 14 Março 2018
Aprovação: 21 Agosto 2018
Resumo: Até o início a segunda década dos anos 2000, no Brasil, não houveram trabalhos acadêmicos de pós-graduação que assumissem o pensamento de libertação latino-americano como ponto de partida ou objeto de estudo em instituições de ensino e pesquisa não confessionais – talvez pela proximidade com a religião católica, que interpretada de um ponto de vista de tradições acadêmicas modernas europeias, aparece como sinônimo de “atraso” ou tradicionalismo pré-moderno. Todavia, na segunda metade do século XX, emerge na América Latina uma intensa produção de conteúdo em ciências sociais influenciados pela teologia da libertação, mas não necessariamente confessionais. Esta produção em diferentes campos de conhecimento passa a ser compreendida sob a alcunha de pensamento de libertação.
Palavras-chave: pensamento de libertação, realidade latino-americana, Departamento Ecumênico de Investigações.
Abstract: Until the beginning of the second decade of the 2000s, in Brazil, there were no academic postgraduate studies that assumed the Latin American liberation thought as a starting point or object of study in non-confessional teaching and research institutions - perhaps due to the proximity with the Catholic religion, which is interpreted from the point of view of modern European academic traditions, it appears as a synonym for “backwardness” or pre-modern traditionalism. However, in the second half of the 20th century, an intense production of content in social sciences emerged in Latin America influenced by liberation theology, but not necessarily confessional. This production in different fields of knowledge comes to be understood under the nickname of liberation thinking.
Keywords: thought of liberation, Latin American reality, Ecumenical Department of Investigations.
Introdução
Até o início a segunda década dos anos 2000, no Brasil, não houveram trabalhos acadêmicos de pós-graduação que assumissem o pensamento de libertação latino-americano como ponto de partida ou objeto de estudo em instituições de ensino e pesquisa não confessionais – talvez pela proximidade com a religião católica, que interpretada de um ponto de vista de tradições acadêmicas modernas europeias, aparece como sinônimo de “atraso” ou tradicionalismo pré-moderno. Todavia, na segunda metade do século XX, emerge na América Latina uma intensa produção de conteúdo em ciências sociais influenciados pela teologia da libertação, mas não necessariamente confessionais. Esta produção em diferentes campos de conhecimento passa a ser compreendida sob a alcunha de pensamento de libertação.
Destarte, nosso intuito é apresentar uma revisão histórica em língua portuguesa da formação do pensamento de libertação, como escola própria do pensamento latino-americano em sua passagem para além da teologia da libertação, tendo como hipótese tomar o Departamento Ecumênico de Investigações (DEI), fundado em 1977 em San José, Costa Rica, como locus de concentração de conteúdo e de fomento dessa corrente teórica propriamente latino-americana – especialmente sob a figura de Franz Hinkelammert. Mostraremos, portanto, como a partir do DEI é possível compreender o pensamento de libertação como escola, assim como seus desdobramentos em teorias contemporâneas.
Teologia da Libertação, Teoria da Dependência e o Golpe de Pinochet
Para que seja possível apresentarmos o DEI como lugar privilegiado e condição histórica necessária para o surgimento do pensamento de libertação, é necessário que retomemos os acontecimentos anteriores a sua fundação. Como afirma Michel Löwy, não se compreende a produção teórica latino-americana e os acontecimentos “sociais e históricos [...] como a emergência do novo movimento operário no Brasil e o surgimento da revolução na América Central” (2016, p. 74) sem o evento e os desdobramentos da teologia da libertação.
A conhecida história da constituição da teologia da libertação durante os movimentos sociais católicos durante a década de 1960, resultando no uso do termo de modo sistemático por Gustavo Gutierrez no início de 1970, mostra a influência da Doutrina Social da Igreja de décadas anteriores, debates e produções teóricas da época. A Teoria da Dependência, por exemplo e em especial, é crucial para o amadurecimento dessa teologia. Não apenas para esta vertente religiosa, como também para a constituição posterior do próprio pensamento de libertação, expresso nas mais diversas disciplinas de humanidades (filosofia, ciência política, economia, pedagogia, psicologia, sociologia, etc.).
Nesse âmbito, da relação entre a teologia da libertação emergente e a Teoria da Dependência que um autor deve ser considerado em especial: Franz Hinkelammert. Doutor em Economia pela Universidade Livre de Berlim, Hinkelammert vem para o Chile em 1963, como professor da Universidade Católica. Torna-se um intelectual importante do Instituto Latino Americano de Desenvolvimento (ILADES) e funda, também, o Centro de Estudos da Realidade Nacional (CEREN) – ambos fechados logo após o Golpe Militar dirigido por Pinochet em 1973. Por meio destes centros de pesquisa e formação de lideranças populares e sindicais, envolvidos com movimentos sociais e com a Unidade Popular e Salvador Allende, Hinkelammert participa dos debates e da produção que constituem a Teoria da Dependência em seu conjunto (Larraine, 1989; Jiménez, 1977). Ao mesmo tempo, por sua relação com os movimentos populares e acadêmicos católicos, torna-se um dos principais intelectuais da própria teologia da libertação em processo de amadurecimento. Nesse sentido, portanto, que podemos entender Hinkelammert em seu papel fundamental na constituição do pensamento de libertação para além da teologia.
No chile, durante a década de 1960, Hinkelammert conhece e passa a trabalhar junto ao brasileiro, sociólogo e teólogo da libertação exilado no país andino após o Golpe Militar de 1964, Hugo Assmann (1986), e ao também teólogo chileno Pablo Richard. Após o Golpe de Pinochet em 1973, todos estes e mais uma extensa lista de intelectuais, professores e professoras, lideranças populares e estudantis são ameaçadas e perseguidas. Como indica a nota de encerramento do CEREN publicada na revista Problemas del desarrollo, “o fechamento, dissolução, reorganização e intervenção de faculdades e centros universitários foi acompanhado de humilhações, perseguições, prisões e ainda assassinatos das mais prestigiosas personalidades acadêmicas do Chile”. O Chile, que havia sido local de encontros concentração de produções de conteúdo críticas na América Latina, de formações populares e acadêmicas, culminando inclusive no governo socialista de Allende, agora se torna dispersivo.
Deste modo, constituiu-se uma extensa rede de grupos de pesquisa, institutos, organizações e movimentos sociais, espalhados por vários territórios do continente. Com as séries de participantes dessa rede de relações exilados de seus países durante as décadas de 1960 e 1970, a capilaridade e alcance das produções críticas do grupo que se formava se potencializou, abrindo, inclusive, núcleos de pesquisa em universidades africanas, europeias e estadunidenses. É neste período conturbado e de tensões políticas que o DEI será fundado, com o encerramento do DEI e a extradição de Franz Hinkelammert, Hugo Assmann e Pablo Richard.
Costa Rica, 1977
Após as perseguições e o processo de dispersão de intelectuais e teóricos devido o advento de governos militares, entre eles o chileno em 1973, como já indicado, em 1977 Pablo Richard, Hugo Assmann e Franz Hinkelammert fundam em San José, na Costa Rica, o DEI. Inicialmente apoiado e financiado pelo Conselho Mundial de Igrejas, especialmente devido ao apoio de Julio de Santa Ana, com o intuito de “em diálogo com movimentos sociais e eclesiásticos da região e intelectuais orgânicos [...] contribuir com estes atores com elementos de análise crítica da realidade que possibilitem uma ação transformadora, desde perspectiva do pensamento social crítico, das teologias de libertação e da educação popular”.
Nesse processo de amadurecimento, o Departamento passa a cumprir o papel de de locus de concentração das produções realizadas em torno do pensamento de libertação. No DEI são realizados durante a segunda metade do século XX e início do século XXI cinco grandes congressos chamados Encontros entre Cientistas Sociais e Teólogos, que reuniam intelectuais latino-americanos e de outros continentes. Outro evento marcante é recriação da Revista Pasos em 1985, publicação idealizada por Hugo Assmann, mas que fora dissolvida nas perseguições políticas, e que agora seria editada e publicada pelo Departamento. Ativa até hoje, 169 volumes compõem o arquivo da Revista, que possuiu, entre outros, colaboradores como Fernando Martínez Heredia, Enrique Dussel, Raul Fornet-Betancourt e Leonardo Boff, além de artigos de intelectuais como Samir Amin, Emir Sader, Noam Chomsky, Vandana Shiva, Helio Gallardo e outros, publicados.
Trata-se, portanto, tendo em vista este breve histórico de participação e envolvimento ativo com tensões e experiências sociais, políticas e econômicas latino-americanas, intelectuais e lideranças populares, de um movimento que tem como ponto de partida e de chegada a realidade da América Latina. A constituição deste tem, de um modo ou de outro, o DEI como locus privilegiado da realidade latino-americana e fundamental para a constituição do pensamento de libertação.
Pensamento de libertação, o que é? Uma curta história das ideias
O pensamento de libertação, para o qual consideramos o DEI como garantidor de sua constituição, enquanto conjunto de produções em diferentes áreas das ciências sociais e humanidades, é diversificado em suas expressões, com distinções e discussões internas. Todavia, há eventos históricos originários (como os que anteriormente apresentamos) e pressupostos teóricos gerais comuns, dos quais alguns devem ser destacados. O uso do termo “libertação” ganha força na América Latina durante o século XIX, nos movimentos e lutas por independências nacionais. Entretanto, seu uso criterioso como categoria em produções teóricas ganha espaço no final da década de 1950 e início da década de 1960, sob o binômio dependência-libertação – sendo uma de suas primeiras escolas a Teoria da Dependência (Pinto, 2012). Todavia, interpretando as relações econômicas globais e a relação entre desenvolvimento e subdesenvolvimento das economias nacionais, entre centro e periferia, a Teoria da Dependência não se voltava às relações de exploração internas, no âmbito social ou de relações sociais mais próximas.
Nesse espaço, a Teologia da Libertação que se constituía quase que concomitantemente e que da Teoria da Dependência também é devedora, a partir das atuações e envolvimento de clérigos e religiosos em movimentos sociais e suas lutas, sob o binômio opressão-libertação passa a discutir as tensões de exploração entre os centros de poder e as periferias nas cidades e campos, e entre atores sociais, lançando mão da figura do “pobre” como sujeito revolucionário e de libertação a partir de interpretações marxistas de luta de classes (Amadeo, 2007). Contudo, o uso limitado desta categoria teológica, não tornava possível a avaliação das críticas internas necessárias a outras relações de opressão – como as de gênero e raça. Ou seja, tomar a frente de luta de classes sem levar em consideração as relações coloniais internas a esta própria categoria também se apresentava como limitante a processos almejados de libertação (Sung, 2008).
Desta feita, pouco depois, no início da década de 1970 se constitui a filosofia da libertação a partir do debate entre Salazár-Bondy e Leopoldo Zea. Dispondo da pergunta sobre a existência ou não de uma filosofia latino-americana, Salazar-Bondy responde de maneira negativa, ressaltando que enquanto houverem estruturas de dominação, não há como se produzir uma filosofia própria do continente. Reagindo ao proposto, Zea afirma que existe sim uma filosofia latino-americana em dois sentidos:
existe conteúdo de culturas que resistem aos processos de colonização, e
tematizar a dominação e as lutas de libertação seriam conteúdo de uma filosofia própria desde a América Latina.
Assim, na tensão entre os polos dominação-libertação se constituiria um pensamento próprio latino-americano (Lima, 2016). Como desdobramentos desses processos se constituem as filosofias e escolas interculturais na América Latina, a Teoria Decolonial, o fortalecimento da filosofia andina e do pensamento crítico latino-americano, não apenas em filosofia, mas em outros campos de conhecimento que se colocam criticamente à modernidade e suas relações de poder.
Com isso, em geral se colocam como pensamento de libertação um conjunto de teorias e expressões em diferentes áreas que tomam como ponto de partida geral o binômio dominação-libertação, tendo em consideração:
as relações de colonialidade,
a crítica às estruturas modernas eurocêntricas, e
tomando como lugar epistêmico os campos, instituições, atores e sujeitos que sofrem com a dominação – visando projetos de libertação.
Nesse quadro geral é possível compreender, por exemplo, desde a Pedagogia da Libertação de Paulo Freire até as propostas recentes de Libertação de Juan José Bautista.
Hinkelammert, o DEI e o pensamento crítico latino-americano contemporâneo
A melhor notação do DEI sob a figura de Hinkelammert como locus privilegiado para a constituição do pensamento de libertação é possível, agora, dadas as narrativas históricas e de desenvolvimento das ideias que expusemos. Tendo em vista os limites que a teologia da libertação demonstrou em seu processo de amadurecimento e a formulação da Teoria da Dependência também com seus limites, Hinkelammert realiza um papel fundamental atuando em ambas as linhas de pensamento durante período histórico em que eclodem todos esses processos – sempre ligados aos movimentos sociais e às transformações e tensões político-econômicas da América Latina.
Como também expõe Ramón Grosfoguel, no processo de constituição do pensamento de libertação em outras áreas para além da teologia, esta encontrava seus limites ao:
utilizar instrumentos teóricos marxistas de maneira redutiva, ou seja, inserindo a “classe” como categoria crítica, mas não a combinando com os âmbitos de gênero e raça (assim, reproduzindo certa estrutura eurocêntrica), e
ao não avançar na crítica econômica para além da figura teológico-crítica do “pobre” (Martínez Andrade, 2013).
Para Grosfoguel, então, será Hinkelammert uma “abertura, quando fala de uma economia para a vida [...]; o projeto do Departamento Ecumênico de Investigações da Costa Rica, firmado na figura de Franz Hinkelammert e outros autores centro-americanos, está próximo aos debates decoloniais do momento. Daí a importância de se realizar diálogos inter-epistêmicos”. Mesmo Jung Mo Sung (2008), teólogo leigo e economista coreano-brasileiro, colaborador e pesquisador do DEI, assume e reapresenta criticamente o mesmo apontamento de Grosfoguel, reforçando a necessidade do passo para além da teologia, do uso criterioso dessa disciplina como ferramenta teórica e, também, da constituição de teorias que potencializem frentes de libertação.
O DEI e em diálogo com os conteúdos produzidos a partir do Departamento, são promovidos debates e se formam uma série de correntes distintas e intelectuais que trabalham sob as condições teóricas que indicamos anteriormente, constituindo o pensamento de libertação. A partir das publicações do DEI são promovidos e alimentados debates em torno de Economia Política, Ecologia, Política, Pensamento Social, além das áreas já citadas como Filosofia e Teologia.
Conclusão
Dado o que pretendemos sucintamente apresentar, cremos ter indicado um campo de pesquisa historicamente privilegiado para o estudo da realidade latino-americana e, no Brasil especialmente pouco explorado. As contribuições significativas do DEI – que já datam mais de 40 anos de produção – tem estado fora de nossos debates. Faz-se importante, nesse sentido, retomar e articular seus conteúdos e ferramentas teóricas centrais dos intelectuais que o compõem, assim como sua história.
Nesse ínterim, é no bojo do fortalecimento de teorias decoloniais, epistemologias do Sul, teorias críticas não-eurocêntricas, e dada a importância de movimentos e processos de libertação da segunda metade do século XX e início do século XXI nos países periféricos, que desejamos instigar este tema como objeto de pesquisa. Cremos ser importante tomar em conta escola de pensamento latino-americana que se lança como crítica e que, ao mesmo tempo, não tem ocupado espaço em nossos debates e produções.
Referências
Amadeo, Javier (2016) “Mapeando o marxismo”. In: BORON, Atilio [org]. A teoria marxista hoje: problemas e perspectivas. CLACSO, Buenos Aires
Assman, Hugo (1986) “Economía y teologia: algunas tareas urgentes”. Cristianismo y Sociedad, n. 87, Ciudad de México
Martínez Andrade, Luis (2013) “Entrevista a Ramón Grosfoguel”. In: Metapolítica, n. 83, outubro-dezembro
Jiménez, Roberto (1977) América Latina y el mundo desarrollado. Universidad Católica Andrés Bello: Caracas
Larraine, Jorge (1989) Theories of Delevopment: capitalismo, colonialismo and dependency. Políty Press: Londres
Lima, Bruno Reikdal (2016) Contribuição para uma crítica geografizada do pensamento. In: REBELA, v. 6, n. 3, Universidade Federal de Santa Catarina: Florianópolis
Löwy, Michael (2016) O que é cristianismo da libertação: religião e política na América Latina. Expressão Popular: São Paulo
Pinto, Simone (2012) “O pensamento social e político latino-americano: etapas de seu desenvolvimento”. In: Revista Sociedade e Estado. vol 27, n. 2, maio/agosto
Sung, Jung Mo (2008) Teologia e economia: repensando a teologia da libertação e utopias. Fonte Editorial: São Paulo