Recepção: 15 Março 2017
Aprovação: 30 Agosto 2017
Resumo: Guerreiro Ramos expõe o racismo/sexismo epistêmico das ciências sociais no Brasil quando objetifica o negro brasileiro, o constrói e o apresenta como um humano estático, exótico, mumificado, problemático. Assim, faz uma potente crítica à violência epistêmica das ciências sociais no Brasil com as negras e os negros brasileiros, defendendo um pensar sociológico desde o Brasil, comprometido com a emancipação da população negra brasileira e da sociedade brasileira. Seu projeto intelectual foi criticar a colonialidade epistemológica e pensar a decolonialidade das ciências sociais brasileiras que vinha, até então, objetificando, fixando e estereotipando as negras e os negros brasileiros. Ao mesmo tempo, defende que a descolonização/decolonialidade dos estudos sobre o negro no Brasil já estava em curso não na vida acadêmico-intelectual brasileira, mas no ativismo negro. Assim ressalta o potencial decolonial/descolonizador da crítica do ativismo negro brasileiro através da apresentação da organização negra Teatro Experimental do Negro (TEN), fundada pelo ativista Abdias do Nascimento, em meados da década de 40. Por essa epistemologia efetivamente decolonial de Guerreiro Ramos produzida em plenas décadas de 40 e 50, defendemos que ele seja tomado como fundador dos estudos decoloniais no Brasil e na América Latina.
Palavras-chave: colonialidade, sexismo epistêmico, ativismo negro, universidade.
Abstract: Guerreiro Ramos exposes the epistemic racism / sexism of the social sciences in Brazil when he objectifies the Brazilian black, constructs and presents him as a static, exotic, mummified, problematic human. Thus, it makes a potent criticism of the epistemic violence of the social sciences in Brazil with black women and black Brazilians, defending a sociological thinking from Brazil, committed to the emancipation of the black Brazilian population and of Brazilian society. His intellectual project was to criticize epistemological coloniality and to think about the decoloniality of Brazilian social sciences that had, until then, objectified, fixed and stereotyped black women and black men. At the same time, he argues that the decolonization / decoloniality of studies on blacks in Brazil was already underway not in Brazilian academic-intellectual life, but in black activism. This highlights the decolonial / decolonizing potential of the critique of Brazilian black activism through the presentation of the black organization Teatro Experimental do Negro (TEN), founded by activist Abdias do Nascimento, in the mid-1940s. For this effectively decolonial epistemology of Guerreiro Ramos produced in the mid 40s and 50s, we defend that he be taken as the founder of decolonial studies in Brazil and Latin America.
Keywords: coloniality, epistemic sexism, black activism, university.
Introdução
A entrada dos movimentos negros na disputa pela universidade brasileira que só ocorre em finais do século XX - com a realização do I Seminário Nacional de Estudantes Negro na Bahia (Silva, 2005; Silva, 2018) - e a vitoriosa conquista da ampliação do acesso dos negros e negras ao ensino superior no início do século XXI, abriu uma agenda de descolonização/decolonialidade do conhecimento no Brasil. Meu projeto intelectual e acadêmico a partir de então tem sido tornar visível as experiências de produção de conhecimento de negros e negras. Isso me tornou interessada em práticas político-culturais e intelectuais negras de descolonização do conhecimento, desenvolvidas a partir das fronteiras do mundo moderno colonial. Nessa perspectiva, consideramos que o conhecimento crítico ao racismo/sexismo epistêmico, formulado pelos negros e negras brasileiros e expresso através de sua estética, cultura e política, pode contribuir para enfrentamento do que Grosfoguel (2011) denomina de “privilégio epistêmico”, para se referir ao fato de que o cânone do pensamento das ciências humanas nas sociedades ocidentalizadas é constituída das experiências sócio-históricas de homens brancos de apenas 5 países ocidentais – Itália, França, Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha. Consideramos, especialmente, que os saberes negros presentes nos terreiros de matriz africana, na política negra, nas rodas de capoeira e nas comunidades quilombolas podem contribuir para a descolonização/decolonialidade do conhecimento acadêmico no Brasil, pois são espaços negros de produção de conhecimento que, ainda que afetados pelos poderes coloniais através das estratégias de genocídios/epistemicídios e criminalização, sua história de abandono pelas autoridades republicanas e democráticas a partir do pós-abolição, talvez motivados pela lógica do “deixar morrer”, os converteram em espaços de epistemologias de resistências e ancestralidades.
É nesse sentido que consideramos a crítica decolonial latino-americana estratégica para o Brasil nesse momento, pois, se constitui como uma crítica ao eurocentrismo a partir dos saberes silenciados, pois subalternizados na América Latina, propondo uma perspectiva epistêmica que parta de lugares étnico-raciais subalternos para formulação de uma teoria crítica decolonial. Tomamos o conceito de racismo/sexismo epistêmico dessa crítica decolonial para pensar o silenciamento de negros e negras nas universidades brasileiras. Grosfoguel (2013) nos mostra como o racismo/sexismo epistêmico se constituiu como a base das estruturas epistêmicas das universidades ocidentalizadas. Assim, descreve os quatro genocídios que produziram estruturas de conhecimento fundadas no racismo/sexismo epistêmico: 1) contra os mulçumanos e judeus na conquista de Al-Andaluz em nome da “pureza do sangue”; 2) contra os povos indígenas no continente americano e depois contra os aborígenes na Ásia; 3) contra os africanos através do tráfico e escravização no continente americano; 4) contra as mulheres que praticavam e transmitiam seu conhecimento indo-europeu na Europa, queimadas vivas sob acusação de bruxaria. Nessa perspectiva, Grosfoguel (2013) sustenta que esses quatros genocídios ocorridos em torno do século XVI, foram, ao mesmo tempo, formas de epistemicídios que constituíram o privilégio epistêmico dos homens ocidentais e foram a condição de possibilidade socio-histórica para transformação de “eu conquisto, logo existo” no racismo/sexismo epistêmico do “eu penso, logo existo”.
Todos esses genocídios produziram historicamente o racismo/sexismo epistêmico definido por Grosfoguel (2011), a partir de Fanon, como uma hierarquia de superioridades e inferioridades em torno do conhecimento que produz o “privilégio epistêmico” de homens brancos de cinco países europeus, cujo conhecimento conformam o canône do pensamento das humanidades e das ciências sociais em todo mundo. O racismo/sexismo produz, por outro lado, uma inferiorização epistêmica do mundo não-ocidental na qual o conhecimento produzido a partir das experiências histórico-sociais e das concepções de mundo do Sul Global são inferiorizadas e segregadas em forma de “apatheid epistêmico” nas universidades ocidentalizadas. Como consequência, domina globalmente uma epistemologia imperial/colonial que impõe seus esquemas teóricos pensados para contextos muito distintos das situações da zona do não-ser e desconsidera a produção teórica produzida a partir desta. Mesmo a teoria crítica produzida na zona do ser, para a crítica decolonial, é insuficiente para compreender a experiência histórico-social de sujeitos posicionados na zona do não ser pelo racismo e que, portanto, vivem uma violência constante num estado permanente de guerra produzida por uma forte opressão racial. As universidades latino-americanas e caribenhas são herdeiras da dinâmica desses poderes/saberes coloniais aqui instalados a partir da invasão europeia.
Veremos que Guerreiro Ramos foi um cientista social negro que em plenas décadas de 40 e 50 do século XX, tinha profunda consciência de que a sociedade brasileira vivia um momento de independência sem descolonização, manejando com o conceito de colonialidade de poder para pensar o Brasil, antes de ser nomeado pelos estudos decoloniais latino-americanos nos anos 90. Quijano (2005) explica que o período colonial na América Latina não pode ser confundido com colonialidade pois colonialismo diz respeito às relações coloniais com administração colonial, e colonialidade, à reprodução das relações coloniais e do imaginário racista após a administração/independência colonial, mantendo intacta a hierarquia colonial fundamentada pela ideia de raça, nas qual euro-descendentes se mantêm no topo a subalternizar mulheres e homens negros e indígenas. Portanto, a colonialidade de poder nos permite compreender a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais no sistema-mundo capitalista moderno, dizendo respeito a uma relação sócio-cultural hierarquizada entre populações de origem europeias e não-europeias que reproduz as estruturas de poder colonial, nas quais as elites brancas mantêm um sistema de dominação fundamentado pela inferiorização das populações não-europeias.
Conheceremos ainda a epistemologia decolonial de Guerreiro Ramos. A decolonialidade é um projeto político-epistêmico que pretende alargar a descolonização ocorrida nos séculos XIX e XX, na América, na Ásia e na África, enfrentando o que a colonialidade deixou intactas – as hierarquias coloniais fundamentadas por uma forte opressão racial e de gênero. Assim, se a decolonialidade diz respeito a um devir da superação da colonialidade como contexto marcado pelas heranças racistas/sexistas do colonialismo, a epistemologia decolonial se refere ao enfrentamento da inconclusão da descolonização moderna, no plano epistêmico.
Um Guerreiro invisibilizado pelo racismo/sexismo epistêmico da universidade no Brasil
É a partir da crítica decolonial latino-americana que meu projeto de tornar visível a experiência intelectual de negros e negras como estratégia de combate ao racismo/sexismo epistêmico no Brasil, que me interessei por Guerreiro Ramos. Oliveira (1995) diz que chegou até Guerreiro Ramos interessada pela questão nacional, tentando entender o que significava sua “sociologia nacional”. Isto me fez me perguntar sobre quando me despertou o interesse em conhecer Guerreiro. Lembro que participava de um programa de formação avançada de jovens pesquisadores em relações étnico-raciais, de diferentes estados brasileiros e países, no Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, no ano de 2003. Nesse curso tínhamos professores também de diversos estados do Brasil e de diferentes países como Ramon Grosfoguel, Achile Mbembe, João Reis. Era uma aula da Professora Giralda Seyferth - que na época era professora adjunta no Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro - quando um dos meus colegas discentes apresenta seu tema de pesquisa sobre Arthur Ramos, e se refere a crítica que Guerreiro fez a esse intelectual. Nesse momento, a Professora Giralda o interrompe e faz uma fala sublinhando que Guerreiro não era um sociólogo/cientista, mas um militante. Essa foi a primeira vez que ouvi falar desse tal Guerreiro Ramos. Fiquei incomodada com aquela observação da Professora Giralda, pois a sua narrativa produzia uma interdição no interesse dos alunos e alunas em conhecer Guerreiro Ramos - já que não era um cientista, mas “apenas um militante”. Tal narrativa também configurava o que mais tarde passei a entender como manifestação do racismo/sexismo epistêmico, cuja uma das manifestações é exatamente a instalação da dicotomia saber ativista x saber científico, exacerbando a impossibilidade do conhecimento gerado pelas/os ativistas negras e negros ser considerado como científico, ou, colocando-o na mais baixa hierarquia da cientificidade. Esse caso ilustra bem uma das formas de como o racismo/sexismo epistêmico opera nas universidades brasileiras e tem como efeito de poder, o silenciamento e apagamento de negros e negras no ambiente acadêmico.
Estudando a produção intelectual de Guerreiro, constato que essa sua exclusão da ciência social brasileira é mais grave, pois Guerreiro tinha uma sólida formação acadêmica: ingressou na primeira turma do Curso de Ciências Sociais, da Faculdade Nacional de Filosofia (FNL), na Universidade do Brasil, na qual se tornou Bacharel em Ciências Socais em 1942 e, paralelamente, cursou Direito na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, curso que havia iniciado ainda em Salvador, se formando em 1943. Além disso, Guerreiro possuía diversas experiências profissionais tanto como sociólogo quanto no ensino de sociologia, além de escrever e publicar sobre diversos temas filosóficos e sociológicos desde os 17 anos ainda em Salvador. Schwartzman (1983) reconhece a grande erudição e brilho intelectual de Guerreiro Ramos, exemplificando o seu talento através da publicação do seu artigo sobre a sociologia de Max Weber, em 1946, na Revista do Serviço Público do Departamento de Administração do Serviço Público (DASP), o qual mostra que Guerreiro havia lido e escrito sobre a principal obra de Weber, Economia e Sociedade, num momento em que nem na França e nem nos Estados Unidos ela era conhecida[1].
Mas ainda assim, Guerreiro não pôde fazer carreira docente na universidade brasileira. Foi excluído e silenciado pela instituição universitária brasileira. Muitos autores, que recentemente passaram a se interessar por Guerreiro, falam em uma solidão intelectual. Schwartzman (1983) reconhece a solidão desse intelectual negro na década de 50 no Brasil, enfatizando que o trabalho intelectual de Guerreiro se deu de forma quase isolada, pois, fora do ambiente acadêmico, não tinha sustentação institucional. Reconhecido como uma figura singular dentro do pensamento social brasileiro, no entanto, relegado durante muito tempo ao esquecimento na academia, ou mais do que isso renegado, marginalizado, silenciado pelo “establishment” universitário brasileiro por décadas. Figueireido e Grosfoguel (2007, p. 37) analisam a trajetória de Guerreiro Ramos para ilustrar o quanto tem sido difícil consolidar uma intelectualidade negra na universidade brasileira, chamando à atenção de que Guerreiro convivia num ambiente acadêmico cujo estudos sobre o negro se consolidava a partir, quase que exclusivamente, por pesquisadores brancos, pois “quase não havia pesquisadores negros nas ciências sociais e os poucos que haviam eram marginalizados”. Os autores constatam que houve uma “política do esquecimento” da contribuição de Guerreiro no âmbito acadêmico, definida como um “mecanismo pelo qual apagamos da memória das novas gerações, a contribuição acadêmica de autores negros” (Figueiredo e Grosfoguel, 2007, p.36).
A grandeza de Guerreiro Ramos reside exatamente nos motivos de sua exclusão da universidade brasileira. Oliveira (1995, p. 9), que elaborou um dos melhores trabalhos sobre Guerreiro, reconhece isso ao afirmar que seu livro “traz um sentido de homenagem a este intelectual que reagiu aos cânones da institucionalização das ciências sociais no Brasil e talvez por isso mesmo tenha sido esquecido, marginalizado, excluído do panteão dos cientistas socais brasileiros”. A autora também, partilha da mesma sensação que tenho ao tomar conhecimento do legado de Guerreiro: “sua capacidade de provocar surpresa e admiração, seu talento para levantar questões que estavam e estão na ordem do dia e que se expressam nas indagações `que país é este? `qual o papel das elites intelectuais nessa sociedade?`” (Oliveira,1995, p. 9).
A coragem epistemológica desse guerreiro provocou seu silenciamento. Teve a ousadia de propor uma ruptura epistemológica com a ciência branco-europeia ao defender, dentre outras coisas, a necessidade de uma ciência social engajada com as transformações necessárias ao Brasil pós-abolição, para integração da sua maioria excluída - negra e pobre - nos processos de modernização capitalista que se iniciava nos anos 40-50. E a partir da sua inserção no Teatro Experimental do Negro (TEN), produz a crítica mais ousada às ciências sociais no Brasil, e que ainda hoje a desafia: seu poderoso racismo/sexismo epistêmico herdado da nossa colonialidade de poder, nos termos de Quijano (2005).
A minha formação como cientista social é testemunha do silenciamento desse intelectual genial - baiano de Santo Amaro, filhos de negros pobres, criado com mãe lavadeira em Salvador da década de 30 - que ousou falar, mas pouco foi ouvido nas universidades brasileiras. Eis um magnífico exemplo da tese de Spivak (2010) – esse subalterno ousou falar, mas não foi ouvido, portanto não pôde o subalterno Guerreiro falar nas universidades brasileiras. E hoje estar falando aqui, por uma atitude de verdadeiro combate intelectual ao racismo epistêmico brasileiro, pois, mesmo excluído da universidade brasileira, produziu conhecimento e publicou fora da academia – Departamento de Administração do Serviço Público (DASP), Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP), da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Mas essa sua produção se deu principalmente no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), como um dos fundadores e diretor do Departamento de Sociologia. É o próprio Guerreiro que diz o que pretendiam com o ISEB: “ Nós pretendíamos ser uma coisa equivalente – assim era a ideia inicial - ao Colégio de França. Queríamos ser uma instância de processamento do pensamento brasileiro. Uma ideia muito, muito alta” (Oliveira, 1995, p. 155). Em outro momento reflete: “O ISEB foi uma grande intenção, que não encontrou pessoas à altura. O que é o Colégio de França? É o órgão que reconhece as pessoas que não tem carreira na universidade, mas que são grandes luminares, não importa que tenham título ou não” (Oliveira, 1995, p. 157).
Mas ainda assim, nunca ouvi falar de Guerreiro Ramos durante meus 4 anos de graduação em ciências sociais na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, a qual ele mesmo ajudou a fundar[2]. Só em 2016, no Congresso 70 anos da UFBA, realizado pela/na própria Universidade Federal da Bahia, de 14 a 17 de julho, para pensar os rumos desta universidade, aconteceu, dentre os diversos eventos que o compôs, uma mesa em homenagem a Alberto Guerreiro Ramos[3], no qual ocorreu o lançamento da reedição do seu livro Mito e verdade da revolução brasileira e a palestra do Professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Onildo Ouriques[4], sobre Guerreiro Ramos, sua obra e trajetória. Esse, decididamente, foi um fato histórico na UFBA, pois, pela primeira vez, ocorreu um evento para divulgação do pensamento desse santamarense[5] que é parte da história desses 70 anos da Universidade Federal da Bahia. Já na abertura do evento, o Professor e mediador, João Almeida, afirmou -“Um dos mais importantes intelectuais brasileiros, que indagando aos meus alunos se o conheciam, diziam `nunca ouvi falar´, ou, no máximo, `já ouvi falar´, expressão que acredito significar que não querem assumir que nunca ouviram falar”. Por sua vez, o Reitor e filósofo João Salles, sinaliza “conheço Guerreiro a partir da Administração, mas isso não diminui a dívida que temos com ele”. Ouriques (2016) começa sua palestra afirmando que “ a maioria das pessoas não conhecem Guerreiro Ramos (...) Eu nada sabia sobre Guerreiro Ramos durante toda minha trajetória acadêmica na Universidade Federal de Santa Catariana, não só eu, mas toda uma geração. E olha que já era curioso de ver o que não estava no currículo”. Mais adiante, analisa essa ausência de Guerreiro, a partir da colonialidade eurocêntrica da universidade brasileira: “O colonialismo que comanda a vida universitária brasileira permite que a pessoa se forme na graduação sem conhecer Guerreiro Ramos, mas não é possível se formar sem conhecer Habermas, Foucault, etc.”.
Guerreiro foi vítima do racismo/sexismo epistêmico que caracteriza a universidade brasileira desde seu surgimento - foi excluído, isolado e silenciado – devido a seu solitário e ousado pensamento decolonial já nas décadas de 40-50 no Brasil. Guerreiro foi vítima porque demonstrou cientificamente através da revisão que fez na teoria social brasileira, a existência desse mesmo racismo nos estudos sócio-antropológicos do negro no Brasil, mas não apenas demonstrou, propôs ousadas alternativas epistemológicas de mudança. Guerreiro produziu uma epistemologia que considera que a produção de conhecimento científico só faz sentido em articulação com compromisso político de mudança social. Isso fazia todo sentido num contexto de Brasil na década de 40-50, que há pouco tempo havia abolido a escravização racial, deixando uma massa negra entregue à própria sorte, fora da nova ordem nacional de consolidação do capitalismo industrial. Só que hoje Guerreiro não estaria mais sozinho - senão no Brasil, pelo menos no mundo - pois a partir da década de 80, essa crítica virou escola através dos estudos subalternos, pós-coloniais e, especialmente, dos estudos decoloniais latino-americanos, que enfatizam que o racismo/sexismo epistêmico é estruturante das sociedades com história de colonização.
Talvez, se Guerreiro tivesse sido contemporâneo da obra do português Boaventura Souza Santos, teria utilizado a expressão epistemicídio (Santos, 1995), pois ele tinha consciência de sua ‘”morte intelectual” na academia brasileira: “Eu fui um sujeito que teve militância como sociólogo, e todo mundo está aí me dando como morto, mas no fundo repetindo meu perfil”. (Oliveira, 1995, p. 171). Assim, o epistemicídio é o não reconhecimento das diferentes formas de conhecimento pelas quais os indivíduos e grupos constroem significado e sentido para suas existências ao redor do mundo, ou, mais do que isso, é a morte de um conhecimento local perpetrada por uma ciência vinda de fora e imposta como superior, acarretando a liquidação ou a subalternização dos grupos sociais cujas práticas assentavam em tais conhecimentos. Salientamos que tal ciência que vem de fora, vem através dos intelectuais locais/nacionais, que vítima da colonialidade dos poderes/saberes, escondem o lugar desde de fora dela, se intitulando ou travestindo de local/nacional. É isso que criticava Guerreiro, já na década de 50 do século passado no Brasil e é disso que foi vítima, pois para provocar a morte intelectual do conhecimento que ele produziu sobre o Brasil, foi apagado na academia brasileira. E para os argumentos de que sua marginalização do espaço acadêmico brasileiro se deveu a sua militância, Boaventura é um exemplo de sociólogo branco, reconhecidíssimo pelas academias mundiais, que tem construído uma sólida carreira acadêmica indissociável do ativismo, entendido, no caso dele, especificamente, como uma atuação no plano acadêmico para colocar em visibilidade a diversidade epistêmica do mundo.
Guerreiro também tinha consciência da dimensão racial de sua exclusão e silenciamento na universidade brasileira, ou, em outros termos, do racismo/sexismo epistêmico a que foi brutalmente submetido pela academia brasileira. Inicialmente ele afirma: “ O Brasil é o país mais racista do mundo, do meu ponto de vista. Há um negócio contra o preto” (Oliveira, 2003, p. 174). Essa afirmação se torna ainda mais relevante considerando que no momento da sua fala, Guerreiro estava no centro do poder acadêmico do mundo – nos Estados Unidos - localizado numa potência capitalista, com uma história de explícita e legalizada segregação racial branca contra negros. Mas, Guerreiro fala mais, indo no centro da colonialidade de poder dos brancos brasileiros: “Muita gente ficou chateada comigo porque queria que eu fosse da cozinha, da copa. Mas eu entrava no grupo e era par, daí o choque: ´como é que você é par? Eu sou bem-nascido (...)´”. E continua descrevendo o imaginário dos brancos brasileiros sobre ele: “Mas como? Com essa cor? Ele não diz isso. Mas é o que está pensando: `Com essa cor você quer ser o nacional´”? E Guerreiro afirma: “Eu queria ser o nacional, nada menos do que o máximo. Estou disputando nessa linha” (Oliveira, 2003, p. 175). Outra epifania do racismo/sexismo epistêmico que Guerreiro viveu no Brasil, é quando ilustra sua afirmação de que o Brasil não lhe deu o que merecia, através da narrativa de sua ficha no Conselho de Segurança, quando foi cassado como deputado pela ditadura militar que se instala no país em 1964: “Alberto Guerreiro Ramos, mulato metido a sociólogo”.
“Palavra de honra: `metido a sociólogo´. É a minha ficha no exército. Eu olhei para o coronel e disse: `Cadê a ficha do dr. Afonso Arinos´. Ele me deu a ficha de Afonso Arinos, e eu disse: `Mas seu coronel não tem a cor do Afonso Arinos! Por que é que na ficha que o Exército brasileiro fez de mim tem a minha cor? E depois tem esse negócio `metido a sociólogo´. Eu não sou metido a sociólogo. Eu sou um dos maiores sociólogos do mundo´” (Oliveira, 1995, p.162).
Guerreiro Ramos é exilado nos Estados Unidos onde obtém reconhecimento e sucesso na carreira acadêmica universitária se firmando no campo da administração – torna-se professor titular do Programa de Doutorado em Administração Pública da Universidade do Sul da Califórnia, atuando junto a maior escola de Administração do mundo – School of Public Administration.
Nesses novos tempos contemporâneos de valorização de estudos de crítica da cultura e da sociedade, a importância de Guerreiro, que o fez marcar seu tempo, para Oliveira (1995, p. 14-15) não é tanto por sua teoria, “mas principalmente pelo seu trabalho de crítica, de demolição do pensamento bem-comportado, e que exatamente disso, extraiu sua força”, chamando à atenção que Guerreiro instalava o combate/debate até nos títulos de suas obras: “Cartilha brasileira do aprendiz do sociólogo. Quem passa imune por este título? Ciência em hábito versus Ciência em ato”.
A minha tarefa com Guerreiro se alia ao que Spivak (2010) considera ser a tarefa do intelectual pós-colonial – investigar silêncios - pois, assim como existe uma relação histórica entre a mulher e o silêncio, existe uma relação ainda mais profunda entre negras/negros e o silêncio no Brasil. Se a violência do racismo/sexismo epistêmico torna o pensamento de subjetividades negras invisíveis ou transparentes como parte do processo de produção do subalterno como aquele cuja voz não pode ser ouvida, a minha tarefa é “questionar a inquestionável” mudez das/dos intelectuais negras e negras, que nesse caso aqui, é Guerreiro Ramos. Se a violência do racismo/sexismo epistêmico nos impõe uma episteme que torna a fala da/o subalterno /o silenciosa, desqualificada, minha tarefa como intelectual decolonial é ampliar o número de falantes que atuam diretamente na produção de conhecimento, como uma estratégia de subversão das estruturas de subalternização. Assim, nos termos dos estudos decoloniais apresento a “episteme de fronteira” de Guerreiro Ramos, colocando a sua diferença colonial no centro da minha produção intelectual.
A colonialidade epistêmica das ciências sociais no Brasil
Como os intelectuais do campo decolonial, pós-colonial e subalterno, Guerreiro produz conhecimento para mudança social por isso “quer, deseja, aposta em mudanças, em transformações da sociedade brasileira” (Oliveira, 2006, p. p. 183), pois é ele o próprio subalterno que fala aos gritos fora da universidade, mas ainda assim não pôde ser ouvido. Guerreiro, cujos ancestrais vieram do mais longo e, para o tempo dele, recente colonialismo racializado das Américas, entendia o contexto de seu país - de independência sem descolonização, vivendo numa mais velha República ainda no sentido de que as marcas da escravidão e colonização estavam por toda parte daquele Brasil que se modernizava e se industrializava. Oriundo da população cuja história, a partir do pós-abolição, se caracteriza pela exclusão socio-econômica como política pública de Estado no Brasil, Guerreiro ansiava por mudanças macro-estruturais que incorporasse a maioria da população (negra) na sociedade brasileira. Por isso fala tanto em transição de uma “mentalidade colonial” para uma “mentalidade autenticamente nacional”, ou seja, uma mentalidade emancipada das amarras da colonialidade. Considera que o momento em que o Brasil vivia, entre as décadas de 40 e 60, ideal para essas transformações, pois a sociedade vivia um contexto de transição - em vias de se constituir como nação autônoma, nos planos econômico e cultural, de sua condição de colonialidade.
Para viabilizar o caminho da constituição do Brasil enquanto sociedade autônoma dessa condição de colonialidade que diagnostica, Guerreiro vislumbrava a exigência e a urgência de superar o que hoje podemos denominar de “colonialidade epistemológica” dos cientistas sociais brasileiros. A relação saber/poder de tal colonialidade tinha como efeito a insistência dos cientistas sociais brasileiros em explicar o Brasil a partir de teorias euro-americanas. Nessa perspectiva, ao entender o negro como um problema, para Guerreiro inventaram um ser negro. É nessa perspectiva que Guerreiro Ramos (1995) expõe o racismo/sexismo das ciências sociais brasileiras cujo intelectuais brancos e homens, ao tornarem o negro um tema/objeto/problema, inventa um negro no Brasil – estático, exótico, mumificado, problemático.
Embora Guerreiro já desde a década de 40, revele um pensamento com vocação descolonizadora, o radicalismo de sua produção intelectual, no sentido de grau máximo de ruptura com as ciências sociais que até então vinha se institucionalizando no Brasil, se alarga a partir de sua inserção no Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1948 - uma das principais organizações negras do Brasil, fundada em 1944, por Abdias do Nascimento, marcando a luta dos negros e negras no Brasil dos anos 40.
É assim que o projeto intelectual de Guerreiro Ramos (1995, p.163) se direciona para revisar criticamente a produção das ciências sociais no Brasil sobre o negro, considerando essa uma “tarefa preliminar necessária para a elaboração de uma consciência sociológica, verdadeiramente nacional, da situação do homem de cor brasileiro”. Nos nossos termos, Guerreiro tem um projeto intelectual de descolonização/decolonialidade das ciências sociais no Brasil, especialmente dos seus estudos sobre o negro, com o objetivo de alcançar uma sociologia que ele denominava de “nacional”, ou seja, que fosse comprometida com a autodeterminação da sociedade brasileira.
Guerreiro apresenta uma tradição de estudos socioantropológicos sobre o negro, a partir de Nina Rodrigues, que herdam sua colonialidade epistemológica pois, nos termos de Guerreiro, “transplantam literalmente” às ciências euro-americanas para pensar os negros no Brasil, convertendo-nos em tema. Para Guerreiro, essa corrente que torna o negro “tema“ de especialistas, é inaugurada por Nina Rodrigues (1862-1906) e continuada através das obras de Arthur Ramos, Gilberto Freyre e seus discípulos. Se caracteriza por “adotar um ponto de vista estático, acentuando minuciosamente o que na gente de cor a particularizava em comparação com os restantes contingentes étnicos da comunidade nacional” (Ramos, 1995, p169). Com o título de Sociologia do negro, ideologia da brancura, Guerreiro em O Problema do Negro na Sociologia Brasileira (1954), reflete, especialmente, sobre a tradição dos estudos do negro como “problema” pela sócio-antropologia produzida no Brasil até sua época, levantando várias perguntas:
“(...) que é que, no domínio de nossas ciências sociais, faz do negro um problema, ou um assunto? A partir de que norma, de que padrão, de que valor, se define como problemático ou se considera tema o negro no Brasil? Na medida em que se afirma a existência, no Brasil, de um problema do negro, que se supõe devesse ser a sociedade nacional em que o dito problema estivesse erradicado? (...) Uma determinada condição humana é erigida à categoria de problema quando, entre outras coisas, não se coaduna com um ideal, um valor, ou uma norma. Quem a rotula como problema, estima-a ou a avalia anormal. Ora, o negro no Brasil é objeto de estudo como problema na medida em que discrepa de que norma ou valor? (Ramos, 1995, p. 190)
Guerreiro Ramos (1995, p. 164) identifica que os estudos de sociologia e antropologia no Brasil sobre o “o nosso problema do negro” reflete a pequeníssima escala da existência de uma ciência brasileira, já que o trabalho científico no Brasil é carente em grande medida de funcionalidade e de autenticidade pois, além de não contribuir para a autodeterminação da sociedade, o cientista social no Brasil “é, via de regra, um répétiteur, hábil muitas vezes, um utilizador de conceitos pré-fabricados, pobre de experiências cognitivas genuinamente vividas e, portanto, uma vítima dos `prestígios´ dos centros europeus e norte-americanos de investigação”. Após procurar “o problema do negro”, Guerreiro Ramos (1995) encontra apenas um: a pele em que ele habita, pois como nos lembra, os compositores baianos Jorge Portugal e Lazzo Matumbi, a pele negra é “alma nua”, a pele negra “ é linguagem e a leitura é toda sua”! Guerreiro Ramos (1995, p.92), portanto, conclui que “o que parece justificar a insistência com que se considera como problemática a situação do negro no Brasil é o fato de que ele é portador de uma pele escura. A cor da pele do negro parece constituir o obstáculo, a anormalidade a sanar. Dir-se-ia que na cultura brasileira o branco é o ideal, a norma, o valor, por excelência”.
À semelhança de Fanon (2008), Guerreiro defende que essa leitura das ciências sociais do Brasil sobre a pele negra é resultado da patologia cultural promovida pelo processo de europeização do mundo que tem abalado os alicerces das culturas que alcança. Tal patologia cultural, para Guerreiro Ramos (1995, p. 194) é promovida pelo lugar de superioridade em que a cultura ocidental se apresenta às culturas não europeias. É essa patologia cultural responsável pela ambivalência na sua avaliação estética por parte desses grupos subordinados por esse projeto de europeização do mundo. O resultado desse processo é que “o desejo de ser branco afeta, fortemente, os nativos governados por europeus” e “o negro europeizado, via de regra, detesta mesmo referências à sua condição racial, pois, “ele tende a negar-se como negro”, sinalizando ainda que tecnicamente tal “desvio existencial” é observado em toda parte em que populações negras estão sendo europeizadas (Ramos, 1995, p. 195). Sua conclusão é que a colocação do "problema do negro", na sociologia brasileira, “é, à luz de uma psicanálise sociológica, um ato de má fé, ou um equívoco”, o qual “só poderá ser desfeito através da tomada de consciência pelo nosso branco ou pelo nosso negro, culturalmente embranquecido, de sua alienação, de sua enfermidade psicológica”, para a qual “os documentos de nossa socioantropologia do negro devem ser considerados como materiais clínicos”, pois se constituem em uma “visão alienada ou consular do Brasil, de uma visão desde fora do país”, ainda que “redigidos por brasileiros, eles “se incluem na tradição dos antigos relatórios para o Reino ... ainda que, hoje, o Reino se metamorfoseie na UNESCO, sediada em Paris ...” (Ramos, 1995, p.197).
Guerreiro Ramos (1995) localiza em Nina Rodrigues, fundador de uma antropologia do negro no Brasil, a emergência primeira de uma fala, no âmbito da ciência nacional, de um “problema do negro”. Nina, para Guerreiro Ramos (1995, p.183), não teve espírito científico pois “foi um verdadeiro beato da ciência importada e, por sua atitude dogmático-dedutiva, foi impermeável às lições dos fatos da vida nacional”. E fundamenta: “ Foi um beato e um copista. Não cita um escritor estrangeiro sem empregar um adjetivo laudatório. Um dos seus livros, As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil (Bahia, 1894), é dedicado à Lombroso, Ferri, Garofalo, Lacassagne e Corre, `em homenagem aos relevantes serviços que os seus trabalhos estão destinados a prestar à medicina legal brasileira´”.
O projeto político-intelectual de descolonização/decolonialidade das ciências sociais brasileiras de Guerreiro Ramos
Mas Guerreiro Ramos não apenas expõe o racismo/sexismo epistêmico das ciências sociais no Brasil, mas também apresenta propostas epistêmicas para a sua descolonização/ decolonialidade. Assim para superação dessa colonialidade epistemológica estruturada pelo racismo/sexismo epistêmico, Guerreiro Ramos (1995) afirma um lugar negro de fala imprescindível de ser assumido também pelos brancos-mestiços brasileiros, se quiserem efetivamente compreenderem a condição negra e bem interpretar o Brasil. Esse é o ponto de partida ou “a propedêutica sociológica” para a elaboração de uma “hermenêutica do negro no Brasil”, de acordo com Guerreiro (1995, p.199). Assim Guerreiro Ramos já desafiava o lugar de fala desse discurso acadêmico-intelectual, já em meados do século XX, ressaltando que o estudo do negro como “um problema” sócio-antropológico no Brasil é reflexo, por um lado, dos processos de identificação dos intelectuais brancos-mestiços brasileiros, tanto do ponto de vista étnico-racial quanto dos interesses político-sociais e epistêmicos, com a eurodescendência, como hoje nos chama à atenção os estudos decoloniais latino-americanos. Mas, por outro lado, reflete também a negação da sua própria negritude e a desvalorização da negritude como lugar social e epistêmico. Portanto, apenas a partir dessa experiência de afirmação do investigador como negro, é possível emergir uma sócio-antropologia decolonial no Brasil, na perspectiva de Guerreiro Ramos. Dessa forma:
“(...) descortino a precariedade histórica da brancura como valor. Então converto o `branco´ brasileiro, sôfrego de identificação com o padrão estético europeu, num caso de patologia social. Então passo a considerar o preto brasileiro, ávido de embranquecer-se, embaraçado com a sua própria pele, também como um ser psicologicamente dividido. Então descobre-se-me a legitimidade de elaborar uma estética social de que seja um ingrediente positivo a cor negra. Então se me afigura possível uma sociologia científica das relações étnicas. Então compreendo que a solução do que, na sociologia brasileira, se chama o `problema do negro´, seria uma sociedade em que todos fossem brancos. Então capacito-me para negar validade a esta solução” (Ramos, 1995, p. 199).
Para descolonizar as ciências sociais no Brasil, Guerreiro Ramos defende ainda, de forma inaugural no Brasil, a necessidade dos estudos da branquitude no Brasil. Se uma das manifestações do racismo/sexismo epistêmico da nossa colonialidade é uma relação sujeito branco/objeto negro nas ciências sociais do Brasil, Guerreiro propõe converter também o branco em objeto de estudo. Esse gesto descolonial de tematizar o branco, “no esforço de indução da paidea da sociedade brasileira”, parecia, para Guerreiro Ramos (1995, p.201/202), naquele seu momento, “tático e estrategicamente necessário”, pois “utilizando uma observação de Sartre, pode-se dizer que, no Brasil, o branco tem desfrutado do privilégio de ver o negro, sem por este último ser visto. Nossa sociologia do negro até agora tem sido uma ilustração desse privilégio”. Esse é o privilégio epistêmico do branco brasileiro que Guerreiro nos convoca a combatê-lo através da tematização do branco, nos chamando à atenção de que já havia iniciado essa tematização no artigo Sociologia Clínica de um Bahiano Claro publicado em "O Jornal", no, Rio de Janeiro, em 27 de dezembro de 1953. No entanto, Guerreiro deixa explicito que essa não é uma atitude de revanche, mas um processo epistemológico “a ser abandonado tão logo se alcance aquele objetivo”. Qual seria esse objetivo? Guerreiro (1995, p.202) responde com uma afirmação de esperança, pois percebe naquele momento que “a estrutura econômica e social do país possibilita uma nova fase dos estudos sobre relações de raça no Brasil” caracterizada “pelo enfoque de tais relações, desde um ato de liberdade do negro”, pois:
É minha convicção que desta mudança de orientação resulte não um conflito insolúvel entre brancos e escuros, mas uma liquidação de equívocos de parte a parte, e consequentemente, uma contribuição para que a sociedade brasileira se encaminhe para o rumo de sua verdadeira destinação histórica - a de tornar-se, do ponto de vista étnico, uma conjunctiooppositorum (Guerreiro, 1995, p.202).
Guerreiro Ramos coloca a brancura como obstáculo para organização da nação, fazendo o mesmo diagnóstico de Fanon (2008) sobre a representação branca sobre os negros, e, atribuindo à uma atitude imperialista, a classificação da brancura com atributos enobrecedores e da negritude com atributos pejorativos. É olhando para o branco brasileiro, em Patologia social do branco brasileiro (1955) que Guerreiro identifica seu sentimento de vergonha com as origens raciais da população do Brasil e dele mesmo. Não se identificando com o contexto étnico do pais, há um protesto racial dos brancos brasileiros, para Guerreiro Ramos (1995), elaborado em nome da ciência e de uma sociologia alienada dos problemas nacionais: “A sociologia do negro tal como tem sido feita até agora, à luz da perspectiva em que me coloco, é uma forma sutil de agressão aos brasileiros de cor e, como tal, constitui-se num obstáculo para a formação de uma consciência da realidade étnica do país” (Guerreiro, 1995, p. 201). O que ele está dizendo é que os cientistas sociais branco-mestiços manifestam um protesto contra si próprios, como reação ao sentimento de inferioridade que sentem com relação à sua ascendência de matrizes africanas, internalizado desde o colonialismo no Brasil. Tal protesto se caracteriza pelo fato de que, para se sentirem superiores aos negros e negras e mais próximos da “superioridade” da branquitude europeia, tematizam o negro - fixando-o como objeto de estudo congelado numa imagem de absolutamente Outro do branco - inferior, exótico, estranho, etc. – utilizando para isso a “transplantação literal”, portanto, sem crítica, da epistemologia europeia de inferiorização negra e de super-valorização branco-europeia. É assim que Guerreiro defende que a tematização do negro pelos cientistas sociais brasileiros é um “disfarce étnico” da inferioridade sentida com relação à sua identidade negra, portanto, uma estratégia de embranquecimento dos branco-mestiços brasileiros.
Após apresentar como vinha operando a colonialidade de poder/saber das ciências sociais no Brasil, especialmente seu racismo/sexismo epistêmico em relação aos negros e negras brasileiros, representado pelos estudos sócio-antropológicos produzidos até a década de 50, Guerreiro apresenta uma outra corrente de ideias sobre as negras e negros, gestada no interior das práticas político-intelectuais de uma organização negra – o Teatro Experimental do Negro (TEN). É a partir da experiência do TEN, que Guerreiro Ramos vai delineando sua proposta de descolonização/decolonialidade das ciências sociais no Brasil, pois, defende que a descolonização dos estudos sobre o negro já estava em curso, não na academia, mas no ativismo negro. Tal decolonialidade, para Guerreio Ramos (1995), é resultado do amadurecimento de ideias presentes em diversas manifestações dos movimentos negros no Brasil:
os trabalhos do africano Chico Rei que, em Minas Gerais, no princípio do século XVIII, organizou um movimento para alforriar negros escravos; as confrarias, os fundos de emancipação, as caixas de empréstimo, irmandades e juntas, instituições que recolhiam contribuições de homens de cor destinadas à compra de cartas de alforrias, as insurreições de negros muçulmanos no Estado da Bahia; os chamados quilombos, aldeamentos de negros fugidos, como a famosa República dos Palmares, em Alagoas, verdadeiro Estado de negros; o movimento abolicionista em que sobressaíram Luiz da Gama e José do Patrocínio, intelectuais negros, e outras iniciativas e associações como o Clube do Cupim em Recife, as Frentes Negras de São Paulo e da Bahia” Guerreiro ( 1995, p.202/203).
No entanto, a descolonização/decolonialidade das ciências sociais do Brasil, para Guerreiro (1995, p.202/203), é corporificada pelo Teatro Experimental do Negro (TEN) que vem se constituindo, desde 1944, sob a liderança de Abdias do Nascimento, na “manifestação mais consciente e espetacular da nova fase, característica pelo fato de que, no presente, o negro se recusa a servir de mero tema de dissertações `antropológicas´, e passa a agir no sentido de desmascarar os preconceitos de cor” (Guerreiro Ramos,1995, p.205). Assim, Guerreiro Ramos passa a nos apresentar as ações decoloniais do TEN, especialmente a publicação sistemática do seu jornal Quilombo, as realizações das Convenções Nacionais do Negro - a primeira em São Paulo (1944) e a segunda no Rio de Janeiro (1947) -, da Conferência Nacional do Negro (Rio de Janeiro, 1949) e do I Congresso do Negro Brasileiro (Rio de Janeiro, 1950). Guerreiro apresenta um artigo de Abdias do Nascimento, publicado no Jornal Quilombo, no qual, ao falar sobre o I Congresso, aponta a necessidade de enfrentamento desse processo colonial de poder-saber das ciências sociais no Brasil, com relação às negras e aos negros brasileiros: “(...) Sempre que se estudou o negro foi com o propósito evidente ou a intenção mal disfarçada de considerá-lo um ser distante, quase morto, ou já mesmo empalhado como peça de museu” (Jornal Quilombo apud Guerreiro,1995, p.206/207). Nessas conferências, convenções e congressos o TEN utilizava a seguinte estratégia de enfrentamento do racismo/sexismo epistêmico das ciências sociais no Brasil: convidava os acadêmicos brasileiros, à exemplo de Arthur Ramos, com o intuito de que eles aprendessem com essa nova epistemologia do negro que o TEN praticava/representava. Ainda assim os “ilustres da ciência oficial” viam o trabalho dessa organização negra com desconfiança, pois no fundo, “percebiam que o TEN representava uma mudança de 180 graus na orientação dos estudos sobre o negro. Mas os ativistas do TEN eram “pacientes” com eles - “atraíram-nos mesmo para as suas reuniões, certos de que, na medida em que fossem sinceros, poderiam ser recuperados”. (Ramos,1995, p.205). Guerreiro defende que o I Congresso do Negro Brasileiro, “marca definitivamente a nova fase dos estudos sobre o negro” no Brasil e se refere ainda a um documento[6], elaborado em 1949, no qual, “o sentido prático do movimento” político do TEN era definido (Guerreiro, 1995, p. 207). Nele, podemos perceber que o TEN parte de um diagnóstico preciso da situação das negras e dos negros no Brasil após a abolição da escravidão racial em 13 de maio de 1888 - a condição jurídica de cidadão livre dada ao negro pela abolição da escravidão, foi um avanço “puramente simbólico, abstrato”, pois, do ponto de vista socio-cultural, tal liberdade não se configurou. Aliás o Brasil é um caso típico de descolonização apenas político-administrativa, na qual, não apenas as hierarquias raciais são mantidas, mas também a escravização racial. A abolição da escravidão na colonialidade republicana brasileira manteve a massa negra presa às desigualdades sociais como afirmam os compositores baianos Jorge Portugal e Lazzo Matumbi: “No dia 14 de maio eu saí por aí, não tinha trabalho nem casa nem para onde ir (...)! “
Para Guerreiro, portanto, o Teatro Experimental do Negro foi quem primeiro desenvolveu efetivamente práticas político-intelectuais de enfrentamento à colonialidade de saber-poder no Brasil, especialmente do seu racismo/sexismo epistêmico contra negras e negros brasileiros, já que “foi, no Brasil, o primeiro a denunciar a alienação da antropologia e da sociologia nacional, focalizando a gente de cor, à luz do pitoresco ou do histórico puramente, como se se tratasse de elemento estático ou mumificado”. Guerreiro ressalta que o TEN formulou, portanto, uma prática discursiva que desafiou o cânone da ciência social no Brasil, pois a ênfase na alienação da antropologia e da sociologia nacional em relação aos negros e negras, se tornou num “leitmotiv” de todas as ações do TEN, representando “uma reação de intelectuais negros e mulatos” que, para Guerreiro (1995, p.205), tinha como objetivo, dentre outros, ”formular categorias, métodos e processos científicos destinados ao tratamento do problema racial, no Brasil” (Ramos, 1995, p. 206).
Mas a potência decolonial do pensamento de Guerreiro Ramos não termina por ai. Para viabilizar o caminho da constituição do Brasil enquanto sociedade autônoma dessa condição de colonialidade que diagnostica, Guerreiro vislumbrava a exigência e a urgência de superar a colonialidade epistemológica dos cientistas sociais brasileiros que insistiam em explicar o Brasil a partir de teorias euro-americanas, por isso defende a necessidade de produção de uma sociologia que ele denominava de “nacional”, “autêntica”. Para tanto, Guerreiro cria um método/epistemologia: a redução sociológica. Sua ideia sobre tal método/epistemologia foi publicada originalmente em A redução sociológica, em 1958 - como resultado do que vinha apresentando em aulas, conferências e livros - último livro publicado no Brasil por Guerreiro Ramos, mas reeditado em 1965. Apesar de discreta fora do Brasil, a recepção de A Redução foi maior entre os intelectuais latino-americanos, a partir da sua publicação no México, em 1959, cuja introdução escrita por Oscar Uribe Villegas ressaltava “o potencial de descolonização acadêmica contida nas propostas do sociólogo brasileiro” Bariani (2015, p. 23).
Entendemos, como Lynch (2015), que com A redução sociológica, Guerreiro sistematiza uma nova epistemologia para ciência social brasileira se desamarrar da colonialidade epistemológica em que vivia, especialmente no que que diz respeito aos estudos sobre o negro – presa às teorias racistas europeias. Constata haver um problema epistemológico, do qual o Brasil era uma vítima exemplar – ideias produzidas nos centros do mundo eram importadas e aplicadas literalmente ao contexto latino-americano, caracterizado pela dependência cultural da colonialidade ou do “semicolonialismo”. Tal problema epistemológico conduzia a alienação da ciência social na periferia e a carência de uma teoria capaz de promover a consciência crítica da região e superar os obstáculos da colonização. Lynch (2015, p. 27) ressalta que Guerreiro chama para si tal incumbência, deixando explícito que “orientava-se conforme um projeto de antemão deliberado de desenvolver uma sociologia brasileira abrangente e de caráter pós-colonial”.
Guerreiro Ramos tinha, portanto, plena consciência do quanto e de como nos afetava o etnocentrismo europeu na produção das ciências, pois, afirmava: “ O ideal da sociologia universal nos países líderes do pensamento sociológico é, assim, um sintoma de etnocentrismo. Nos países culturalmente coloniais, é uma superafetação compensatória do complexo de inferioridade de certos elementos da elite” (Guerreiro Ramos, 1953, p. 9 apud Oliveira, 1995, p. 95). Lynch (2015, p. 31) nos mostra que Guerreiro tinha um profundo conhecimento a respeito dos efeitos de poder da colonização sob a produção intelectual dos países colonizados, impondo-lhes dificuldades para a tarefa de construir sua própria sociologia, ao contrário dos países centrais que: “Por possuírem `[...] a consciência da liberdade, da personalização´ (Ramos, 1996, p.47), as sociedades cêntricas se orientariam por uma consciência crítica. Era essa `aptidão autodeterminativa que distingue a pessoa da coisa´ (Ramos, 1996, p. 48) que as permitia ter existência histórica”. No entanto, isso não ocorria “nas sociedades coloniais ou semicoloniais, cuja cultura refletiria sua dependência estrutural face às antigas e novas metrópoles” pois , “os países periféricos não teriam história própria, sendo `[...] versões da história dos colonizadores, ou material etnográfico desses povos´ ( Ramos, 1953, p. 11)”, já que a “sociedade dependente ou colonial não existia para si, vendo-se como prolongamento e instrumento das sociedades metropolitanas; viveria num mundo da natureza, representando-se através de uma consciência ingênua no mundo” (Lynch, 2015, p. 31). Mas, Guerreiro era um otimista pois entendia que “nenhuma sociedade estava fadada a ser eternamente semicolonial”, pois “ o afloramento de uma consciência crítica era indício de que a nação estava a ingressar em um patamar superior de existência, no qual adquiriria autonomia cultural e passaria a integrar a história universal”. Tal otimismo de Guerreiro era alimentado pelo cenário internacional de independência dos países africanos e asiáticos, já que essas ex-colônias, “aspirando-se a ser sujeitos de seus destinos”, viriam reagindo “[...] num esforço de repensar a cultura universal na perspectiva da auto-afirmação dos seus respectivos povos” (Lynch, 2015, p. 32). A sociologia era compreendida por Guerreiro como estratégica para a descolonização/decolonialidade das sociedades, por isso queria uma sociologia que possibilitasse aos cidadãos comuns e leigos desenvolverem uma leitura crítica do mundo.
Apesar da influência explícita de Husserl em A Redução - para “estabelecer um método de apropriação crítica de conceitos e teorias cunhados na Europa e nos Estados Unidos e utilizados largamente na teoria sociológica” evidenciando “como esse repertório deriva da experiência social e histórica dessas sociedades” – essa obra, para Maia (2015, p. 52) “incorpora uma decidida marcação `periférica´”, visível no fato de Guerreiro dirigir-se ”preferencialmente aos cientistas sociais de países em desenvolvimento” pois, são eles que lidam com “o problema do falso universalismo de teorias e conceitos extraídos de outras realidades nacionais”. Assim, a marcação periférica de A Redução como uma ferramenta para a produção de uma ciência social mais autônoma e menos alienada é ainda visível, para Maia (2015, p. 53), nas referências utilizadas por Guerreiro já nos capítulos iniciais – Anta Diop, Mohamed Labadi e Aimé Césaire.
Ouriques (2016) informa que Guerreiro abriu um debate intenso entre nacionalistas e marxistas, ao fazer uma crítica devastadora a adoção, de forma irrestrita, por grande parte da esquerda no mundo - inclusive a brasileira - do marxismo-leninismo como ideologia de Estado, a partir da experiência russa. Apesar de reconhecer a capacidade intelectual e revolucionária de Marx e Lenin, Guerreiro entendia o “marxismo-leninismo”, e aí reside sua sabedoria, para Ouriques (2016), como um fenômeno tipicamente nacional, que só poderia ser compreendido a partir das condições socio-históricas que possibilitaram sua emergência e da história da intelligentzia russa. Portanto, o que Guerreiro criticava era adoção pelos intelectuais de esquerda no Brasil, representado naquele momento pelo Partido Comunista Brasileiro, do marxismo-lenismo como ideologia de Estado considerado como uma solução de caráter universal.
Conclusão
Consideramos que Guerreiro Ramos foi um intelectual negro brasileiro que exercitou um pensamento decolonial em plena periferia latino-americana que chamamos de Brasil, entre as décadas de 40-50, único país falante da língua colonial portuguesa, localizada numa das mais baixas posições da hierarquia global linguística. Mais do que isso, defendemos aqui que Guerreiro antecipou o pensamento decolonial, já que sua produção sociológica no Brasil se deu principalmente entre as décadas de 40 e 50 do século XX. Assim, proponho que Guerreiro seja considerado fundador dos estudos decoloniais no Brasil e na América Latina, especialmente de uma perspectiva negra, assim como Fanon é considerado o fundador dos estudos pós-coloniais e decoloniais.
Fundamentamos tal defesa a partir da epistemologia decolonial que se apresenta na produção intelectual de Guerreiro Ramos ainda nos anos 50, marcadamente pelo pensamento crítico que produz a partir de corpo/lugar de negro subalternizado do Sul Global. Mas também por sua crítica a importação das teorias europeias e estadunidenses para pensar o Brasil e o negro, pois tais teorias não levavam em conta a singularidade de uma país como o Brasil – independente, mas não descolonizado - afirmando que quando importamos teorias euro-americanas, estamos importando o seu imperialismo, antecipando, assim, Spivak (2010). A decolonialidade de seu pensamento se apresenta ainda quando afirma um lugar negro de fala imprescindível de ser assumido, inclusive pelos intelectuais branco-mestiços brasileiros, para compreenderem o Brasil de forma decolonial.
O que fizemos aqui foi colocar o pensamento de Guerreiro Ramos no centro desse artigo como estratégia de subversão das estruturas coloniais colocando em visibilidade as suas contribuições intelectuais fundamentais para se compreender o Brasil e a América Latina. Precisamos inserí-los na tradição latino-americana de pensamento crítico que vem tensionando as trajetórias hegemônicas das ciências sociais.
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Notas