Tema Central

Dos livros-navios aos livros-mapas: o saber dos viajantes europeus e dos nativos na construção da cartografia da África meridional no século XVIII

Junia Ferreira Furtado
Universidade de Minas Gerais, Brasil

Claves. Revista de Historia

Universidad de la República, Uruguay

ISSN-e: 2393-6584

Periodicidade: Semestral

vol. 7, núm. 13, 2021

revistaclaves@fhuce.edu.uy

Recepção: 30 Outubro 2021

Aprovação: 03 Dezembro 2021



DOI: https://doi.org/10.25032/crh.v7i13.3

Resumo: As representações geográficas da África meridional nos mapas produzidos pelo geógrafo francês Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville se basearam nos relatos de viagem de navegadores, missionários, militares e funcionários portugueses e agentes a serviço da VOC neerlandesa, que frequentaram a parte sul do continente entre os séculos XV e XVIII. Eles registraram não só o que esses viajantes observavam enquanto se deslocavam pelo território, mas também o que não era possível de ser visitado, mas tornava-se conhecido pelo que lhes informavam os povos com quem entravam em contato, pois até a primeira metade do século XVIII, o conhecimento da geografia do sertão meridional africano era dependente do saber dos nativos porque a região era em grande parte desconhecida dos europeus. Esse artigo discute como os relatos de viagem europeus e os informes geográficos dos africanos foram reapropriados, no século XVIII, para a construção de uma cartografia europeia da África, centrando-se no projeto savant do embaixador português dom Luís da Cunha de patrocinar a publicação em francês de manuscritos portugueses acompanhados de mapas – os livros-mapas – que se tornaram poderosos instrumentos de intertradução do conhecimento geográfico da parte meridional do continente africano.

Palavras-chave: África, Dom Luis da Cunha, mapas geopolíticos, povos africanos, intertradução.

Abstract: The geographic representations of southern Africa in the maps produced by the French geographer Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville were based on the travel reports of Portuguese navigators, missionaries, military and employees and agents in the service of the Dutch VOC, who frequented the southern part of the continent between the 15th and 18th centuries. They recorded not only what these travelers observed as they moved along the territory, but also what was not possible to visit, which geography was informed by the Native peoples they contact. In the 18th century, European knowledge of the South Africa hinterland geography was dependent on them because the region was largely difficult to penetrate. This article discusses how European written travel accounts and African geographical oral reports were reappropriated in the 18th century to build a European cartography of Africa. It focuses on the savant project directed by the Portuguese ambassador Dom Luís da Cunha that sponsored French publication of Portuguese manuscripts accompanied by maps – the map books –, made by D’Anville, which have become powerful instruments for the intertranslation of geographic knowledge from the southern part of the African continent.

Keywords: Africa, Dom Luís da Cunha, geopolitical cartography, Native Africans, intertranslation.

1. Disputas geopolíticas na África meridional e as bibliotecas savants dos letrados portugueses

Entre setembro de 1731 e janeiro de 1732, o geógrafo francês Jean Baptiste D’Anville (1697-1782) produziu três cartas da África meridional, intituladas Carte particulière du Royaume de Congo et de ce qui recede depuis le cap de Lopo (setembro de 1731),[1] Carte particulière des Royaumes d’Angola, de Matamba et Benguela (novembro de 1731),[2] L’Ethiopie occidentale (janeiro de 1732).[3] A última carta consolida as duas anteriores e todas as três foram produzidas para compor o livro Relation historique de l’Éthiopie occidental, de Jean-Baptiste Labat (1663-1738), publicado na França em 1732. A publicação conjunta do livro e dos mapas, constituindo um livro-mapa iluminista, foi um desdobramento do projeto savant articulado pelo embaixador português dom Luís da Cunha (1662 e 1749), encetado em Paris, e que pretendia traduzir para o francês e publicar manuscritos raros portugueses acompanhados de cartas geográficas que davam a ver as possessões portuguesas (Furtado 2021).

A forma de representação da África meridional nos mapas de D’Anville publicados entre 1731 e 1732, não era isenta de interesses e estava relacionada ao que dom Luís da Cunha considerou serem os interesses geopolíticos de Portugal. No teatro das nações europeias, o alvorecer da década assistiu o embaixador negociando os interesses de Portugal na África e a produção de novas cartas atreladas a livros que publicizavam a anterioridade das conquistas portuguesas na África, não era mero acaso. Os anos finais da década de 1720 e os do início da de 1730 assistiram ao acirramento das disputas entre neerlandeses e portugueses pelo comércio africano, especialmente o de escravos, na Costa da Mina e em Angola. Era o ápice de uma relação turbulenta que começara quando a WIC (Companhia das Índias Ocidentais holandesa) se apossou de estabelecimentos lusitanos na costa oeste meridional da África, ocorrida no contexto das disputas de independência dos Países Baixos durante a União Ibérica, que unira entre 1580-1640 as coroas de Portugal e Espanha (Boxer 1965).

Em fins da década de 1720, o conflito se dava em duas frentes. A primeira, a interdição que a WIC impunha aos navios negreiros portugueses em seus entrepostos comerciais, que haviam sido tomados dos lusitanos no século anterior, especialmente o da Costa da Mina, impedindo que seus traficantes tivessem acesso ao mercado de escravos local e, durante essa disputa, embarcações foram apresadas por ambos os lados. Portugal, por seu turno, retaliava impedindo que os navios da Companhia comprassem escravos nos seus entrepostos, como em Angola, que os luso-brasileiros haviam conseguido retomar dos invasores flamengos (Boxer 1973). A segunda disputa dizia respeito ao comércio de escravos realizado diretamente entre comerciantes flamengos e brasileiros,[4] como eram chamados os negociantes nativos dos portos brasileiros. O comércio negreiro direto entre o Brasil e as possessões holandesas era aceito sem restrições, mas gerava prejuízos à Fazenda Real portuguesa e, por isso, a Coroa procurava o impedir. Diplomaticamente, a questão de fundo era a oposição entre a noção tradicional de mare clausurum, que resguardava os direitos exclusivos das nações europeias sobre suas conquistas ultramarinas, baseando-se nos privilégios decorrentes da anterioridade da descoberta, caso dos portugueses, e a defesa intransigente por parte da República dos Países Baixos do Mare liberum, proposto por Hugo Grotius, no século XVII, que feria de morte os interesses comerciais lusos, que a todo custo buscava resguardar seus direitos no ultramar (Kantor 2009, 233-239). Frente a esta e outras disputas que se acirravam entre Portugal e outras nações europeias sobre os territórios da África meridional, dom Luís da Cunha achou por bem divulgar por meio de livros-mapas o conhecimento geográfico que legitima as pretensões lusitanas nessa parte do continente. Um mapa, afinal, é sempre um instrumento de poder e, nesse caso, os que D’Anville produziu sobre a África em 1722 estavam a serviço dos lusitanos, o que era reflexo direto não só dos documentos consultados, mas também do patronato de dom Luís da Cunha sobre o projeto editorial savant que patrocinava em Paris.

Os manuscritos que o embaixador publicou como livros-mapas, na França, entre 1728 e 1732, constituindo seu projeto savant, foram garimpados nas bibliotecas dos nobres portugueses letrados, especialmente os reunidos na Academia Real de História Portuguesa, inaugurada por dom João V em 1720 (Mota 2003, 345-369). O responsável por localizá-los e trazê-los para a França foi o Joachim Legrand (1653/1733) que acompanhara, como secretário, o abade Jean d’Estrees (1666-1718), religioso e político, nomeado embaixador em Lisboa, em 1692, com o intuito de assegurar a neutralidade portuguesa durante a Guerra dos Sete Anos (1688-1697). Legrand também era um religioso, pertencendo à Congregação do Oratório, e tinha pretensões intelectuais. Uma vez em Portugal, dedicou-se a procurar e a colecionar descrições sobre as conquistas portuguesas no ultramar e, no retorno à França, começou a publicar os manuscritos mais interessantes que encontrou nas bibliotecas dos portugueses.

Para ter acesso aos relatos de viagem de portugueses no além-mar, em Lisboa, Legrand inseriu-se no círculo da elite lusitana composta de nobres savants, que começavam a se reunir em academias privadas, bem ao gosto de um Iluminismo nascente, do qual dom Luís da Cunha era membro ativo (Furtado 2012, 122-133). Estes homens franquearam-lhe suas bibliotecas, prenhes de livros de viagem dos lusitanos nos séculos XVI e XVII, os livros-navios (Villas Bôas 2019), mas principalmente de manuscritos raros e inéditos que faziam circular o conhecimento mais atual do que os portugueses reuniam em seu périplo no além-mar. Foi na biblioteca dos condes da Ericeira, a qual teve o privilégio de frequentar, que Legrand encontrou os textos mais instigantes. O 4º conde Francisco Xavier de Meneses (1673-1743) era renomado intelectual, um letrado ou inteligente[5] como se dizia em Portugal à época (Furtado 2012, 85). Entre os manuscritos raros que garimpou na biblioteca do conde, e que encetou a colaboração cartográfica entre D’Anville e dom Luís, havia uma versão da descrição dos reinos do Congo, Angola e Matamba, de autoria do padre capuchinho Antonio Cavazzi de Montecuccolo (1621-1678).[6] Esse texto impactou diretamente o desenho da costa oeste - Angola, Congo e Benguela - nos mapas de 1731-1732 do geógrafo francês, que foram então produzidos para ilustrar a Relation historique de l’Ethiopie Occidentale, do jesuíta Jean Baptiste-Labat,[7] estabelecendo uma via de mão dupla entre o livro de viagem e a cartografia, cada um influenciando e modificando o outro, constituindo um novo gênero literário, o livro-mapa iluminista, típico do século XVIII.

2. Intertradução

Jordana Dym (2007, 83-85), lamenta a dissociação no estudo entre narrativas de viagem e os mapas que os acompanham, especialmente no que diz respeito ao campo da literatura. Desde o século XV, livros de viagem podiam (ou não) ser acompanhados de mapas, que conferiam visualidade às suas descrições e, para os geógrafos de gabinete, ambos possuíam relações intrínsecas, devendo ser lidos em conjunto. Mas, no século XVIII, ocorre uma inversão, os relatos de viagem é que acompanham os mapas, servindo de fontes de legitimação do saber geográfico empírico baseado no estatuto do ver, que os geógrafos de gabinete consolidavam em seus mapas. Era o início de um processo que se acirrou na segunda metade do século XVIII, no qual os autores iluministas começaram a questionar a credibilidade dos relatos que não fossem escritos pelos “filósofos viajantes”, como se autodenominavam os savants treinados nas recém-abertas academias de ciências, desacreditando as fontes tradicionais utilizadas até então, produzidas por pilotos, missionários e viajantes práticos dos séculos anteriores, acusadas de apresentarem muitos erros e imprecisões (Cañizares-Esguerra 2001, 12), que foram relidas com novo aparato crítico, o que chamo de intertradução.

Apesar, dos mapas de 1732 de D’Anville se basearem num texto de um missionário italiano (Cavazzi) a serviço da Coroa portuguesa no centro-oeste africano, o livro do capuchinho sofreu um processo de intertradução que resultou na sua publicação com alterações na França em 1732 por Labat. Ao reler e modificar o conhecimento geográfico produzido por nativos e europeus-viajantes em suas novas bases epistemológicas de tons iluministas, os europeus moldavam seus saberes originais, para ajustá-los aos seus propósitos e à sua nova maneira de compreender o mundo, assentada na empiria e apenas na observação direta do território, o que pode ser entendido como um processo de intertradução cultural. O conceito de tradução foi empregado, primeiramente pelos antropólogos,[8] para destacar as transformações que as ideias sofrem ao ser transferidas de um lugar para o outro, como as palavras que incorporam novos significados quando traduzidas em diferentes línguas. Propõe-se aqui o conceito de intertradução, pois agrega-se o prefixo inter, expressão latina que significa entre. Dessa forma, é possível destacar que essas transformações são operadas não só onde a nova ideia chega, quando é traduzida para servir aos propósitos locais e se adaptar a essa cultura, mas também ideias se irradiam dali, inclusive até o local de onde partira, modificando as próprias concepções iniciais que a haviam forjado. Interações e trocas de saberes se dão em múltiplas direções e não apenas a partir da Europa, como usualmente se pensa. Com essa perspectiva, pretende-se evitar as noções de centro e periferia, como polos opostos e hierarquicamente desiguais, normalmente decorrentes do emprego do conceito de tradução. A ideia de intertradução pressupõe um mundo multipolar e multicêntrico (Latour 1985, 154-179).

Isso é evidente com os mapas franceses sobre a África, produzidos na primeira metade do século XVIII por D’Anville. De um lado, ao circularem pela Europa, suas cartas transformaram a forma como os europeus passaram a representar o continente. Por outro lado, essa transformação contínua só foi possível porque novas cartas se valiam, na direção oposta, dos conhecimentos que os viajantes europeus construíam sobre o território meridional da África, especialmente os portugueses e flamengos, que, por sua vez, incorporavam seletivamente e segundo suas próprias bases epistemológicas, os saberes geográficos dos povos nativos com os quais entravam em contato. Trata-se, pois, de “um conhecimento em movimento que circula continuamente e que se inova e se altera à medida que se movimenta” (Furtado 2012, 76). Claro que, ao participarem desse processo de intertradução, os povos nativos, ao compartilharem seus conhecimentos ancestrais, não podiam saber, controlar ou prever que suas consequências, não raro, ao fim e ao cabo, seriam prejudiciais a eles próprios (Furtado 2021).

3. Um capuchinho no Congo

O historiador português Avelino Teixeira da Mota especula que as novidades introduzidas nos mapas da África, de D’Anville, na década de 1730, teriam ocorrido “utilizando possivelmente qualquer carta portuguesa hoje desconhecida” (Mota 1963, 16). Mas a mudança não se deveu a um mapa misterioso e sim a um conjunto de fontes - relatos de viagens de agentes e missionários portugueses, mas também de funcionários da VOC -, que lhe foram fornecidos pelo embaixador e sua entourage.[9] D’Anville as submeteu ao seu refinado processo de crítica metodológica, descartando algumas e selecionando outras informações geográficas, sob bases iluministas que davam prevalência às informações empiricamente verificáveis por esses viajantes. Entre as fontes que elegeu para desenhar o espaço do centro-oeste africano, destaca-se um manuscrito da Istorica Descrizione de tre regni Kongo, Matamba et Angola, que o padre capuchinho Antonio Cavazzi de Montecuccolo escreveu, encontrada na biblioteca dos condes da Ericeira, que continha uma História de Ginga, Reino de Matamba.[10]

Cavazzi era originário de Modena, na Itália e, em 1632, entrou para a Ordem dos Capuchinhos, ordenando-se em 1639. Em fins de 1654, chegou a Angola, onde permaneceu por 13 anos, designado como missionário pela Congregação da Propaganda Fide, órgão da Cúria romana encarregada da propagação da fé católica, aos quais os capuchinhos estavam subordinados. Ao chegar a Luanda, foi designado para Matamba, reino da rainha Njinga/Jinga/Ginga - dona Ana de Sousa Njinga Mbandi (1582-1663) (Heywood e Thornton, 1-24). Em meados de 1667 deixou a África e partiu para o Brasil, onde ficou cerca de um ano, em seguida foi para a Europa, passando por Lisboa, chegando à Roma, em 1699. No Vaticano, foi recebido em audiência na Propaganda Fide, quando foi encarregado pelo Procurador Geral de escrever uma história da ação missionária dos capuchinhos na África. De Roma, dirigiu-se ao ducado de Modena, na Província de Bolonha, onde começou a organizar e reescrever os apontamentos que redigia desde Angola, baseando-se em suas observações, nas de outros missionários com quem conviveu e na literatura sobre a região, que pesquisara nos arquivos dos conventos capuchinhos de Pernambuco e de Lisboa e nos do Vaticano.[11] Na sua primeira estada na África, além de viver um período em Luanda, Cavazzi percorrera grande parte do interior de Angola, visitando as províncias do interior de Muxima, de Maopungo ou Pedras Altas do Dongo, de Lubolo, de Bembe, de Cabeso e de Rimba; as fortalezas portuguesas de Massangano e de Cambambe, às margens do rio Cuanza, e a de Embaca/Ambaca, nas do rio Lucala, na província de Lembo ou Alta Ilamba; os reinos de Oacco/Haco, Terras do soba Guzambambe; de Matamba, da rainha Njinga e de Ganguela, do Jaga Casanje; e as ilhas Quindongas. Entre 1664 e 1666, viveu na província de Sonho/Sogno/Soyo, no Congo, de onde partiu a pé pelo litoral até Angola, passando pela de Bamba. Depois de cerca de três anos na Europa, em maio de 1672, foi designado prefeito da Missão de Angola e Congo. Partiu da Itália para Luanda em fins do mesmo ano, deixando depositados, junto à Propaganda Fide, seus manuscritos para serem publicados, cuja fortuna foi atribulada. Residiu em Luanda de meados de 1673 até fevereiro ou março de 1677, partindo muito adoentado para Lisboa, onde ficou alguns meses no convento dos capuchinhos franceses se recuperando. Em julho de 1678, morreu em Gênova, a caminho de Roma.[12]

Por ter enfrentado vários percalços até ser aprovado, o manuscrito que Cavazzi deixara na Itália saiu à luz apenas um ano antes da sua morte, em 1687.[13] Os censores consideraram que algumas descrições dos ritos gentílicos eram contraproducentes para a propagação da fé e, por ordem do Procurador Geral da Propaganda Fide, o texto sofreu intervenções de estilo, alterações na ordem dos capítulos, cortes e acréscimos de texto realizados pelo padre Fortunato Alamandini, que domesticaram as cenas de costume e da natureza africana e salientaram o trabalho apostólico de evangelização dos missionários.

4. O manuscrito capuchinho

Não se conhece exatamente o texto final que Cavazzi submeteu para publicação junto à Propaganda Fide, mas seu índice dividia a obra “em três livros pertencentes à introdução e em seis respeitantes ao texto, ao todo nove livros, cada um dos quais se subdividia em capítulos e a narração ia até 1667”. No livro que foi impresso em Bolonha, em 1687, constam “apenas de sete livros, divididos em parágrafos numerados com algarismos”, sendo introduzidas “notícias referentes à sétima leva de capuchinhos para o Congo, que chegou a Luanda em 1668” e “o relato se estende até 1670”, que não constavam do índice original.[14] O padre Alamandini atualizou o texto de Cavazzi em relação ao que ocorreu nas missões capuchinhas entre 1668 e 1670, depois de sua partida da África, como também fez intervenções no trecho sobre a história da rainha Njinga, incorporando “elementos vindos de outra testemunha capital, o capuchinho Antonio Gaeta de Nápoles” (Heywood e Thornton, 2013, 23), que vivera três anos em Matamba e fora figura central na segunda conversão da rainha ao catolicismo, escrevendo um relato sobre seus feitos (Castro, 2013, 334). Também interferiu diretamente na escrita de Cavazzi, corrigindo o estilo e eliminando informações que considerou prejudiciais aos interesses da Propaganda Fide.

Uma versão primitiva, ilustrada, do original do texto de Cavazzi hoje se encontra em propriedade da família Araldi, em Modena, cidade na qual redigiu a maior parte do texto que entregara para publicação antes de retornar à África. O título do manuscrito é Missione Evangelica al Regno del Congo,[15] sendo constituído de 1.500 fólios, sendo dividido em três volumes (A,B,C), o volume A considerado por especialistas o mais importante, ao relatar a história da rainha Njinga. O texto integral foi redigido em Matamba, em 1665, sendo que o livro I é dedicado aos Jagas ou Imbangalas de Kasanje (145 p.), o II à história dos reinos do Ndongo e Matamba, concentrando-se na história da rainha (224 p.) e o III, mais curto, ao Kasange Ka Kinguri, que os capuchinhos tentaram converter ao catolicismo (41 p.).[16] Há também um versão incompleta intitulada apenas Istorica descrizione, que se encontra nos arquivos do Vaticano, “que poderia corresponder à […] versão intermédia”, com as intervenções de Alemandini (Heywood e Thornton, 2013. 23).

A descrição dos reinos do Congo, de Angola, de Matamba e de Benguela do padre Cavazzi, que Legrand encontrou na biblioteca dos Ericeira, chegara a ela pelas mãos do 3º. conde da Ericeira, Luís de Meneses (1632-1690), que foi Vedor da Fazenda Real, introduzindo reformas mercantilistas, à exemplo das que Jean-Baptiste Colbert (1619-1683) fizera na França. O conde também se dedicou à história e sua obra maior foi a História de Portugal Restaurado (1679, 1698), que descreve o período logo após a União Ibérica, que teve importantes desdobramentos na África, com a conquista de Angola pelos holandeses em 1641, quando os portugueses se refugiaram e resistiram no forte Massangano, no interior. As forças da WIC foram expulsas apenas em 1648 pela armada luso-brasileira enviada do Rio de Janeiro (Boxer 1973). Legrand descreve o manuscrito da biblioteca dos Ericeira como sendo, tal qual o dos Araldi, no formato in fólio, isto é, a folha de papel não foi dobrada ao ser encadernada, permanecendo no tamanho chamado “de mesa”, o mesmo formato da primeira edição do livro em Bolonha. O manuscrito também era dividido em três volumes, versando sobre os “reinos do Congo, Angola e de Benguela”, “compostos em Angola mesmo”, contendo “a história de Ginga Rainha de Matamba que merece ser melhor conhecida”. Joachim Legrand conhecia a primeira edição italiana e sabia que não era igual ao texto que trouxera de Lisboa, pois recomenda ao leitor que quem quisesse saber mais sobre a rainha “pode consultar uma História do Congo que foi impressa in folio, em Bolonha”.[17] O manuscrito chegou às mãos do 3º. conde da Ericeira depois que ele visitou Cavazzi, em Lisboa, onde o capuchinho permaneceu entre fins de 1677 e meados de 1678, após sua segunda estada na África, antes de seguir viagem para Roma. O religioso chegara na cidade muito adoentado, “com chagas e outros males” e, segundo rumores, os capuchinhos franceses, instalados no Hospício da Esperança, onde se abrigou, “puseram-no num quartinho sem luz e sem companheiro que o cuidasse”. Depois da visita, Ericeira apiedou-se de sua condição e intercedeu junto “ao superior do Hospício que lhe desse um quarto melhor, no que não foi atendido”.[18]

Mas o encontro dos dois não era questão apenas de caridade cristã e muito menos, da parte de Ericeira, desinteressado. O padre retornava de duas longas estadas nas possessões portuguesas do sudoeste africano e era um arquivo vivo do que se passara em Angola enquanto ali esteve, sendo provável que o conde soubesse que o religioso vinha carregado de apontamentos, como fizera da primeira vez que ali estivera (não é impossível que já tivessem se conhecido na ocasião). Estes lhe interessavam para compor a biblioteca e enriquecer os textos que escrevia, como a Relação do felice successo que conseguiram as armas do Serenissimo principe D. Pedro, nosso senhor, governadas por Francisco de Tavora, governador e capitão general do reino de Angola, contra a rebellião de D. João, rei das Pedras e Dongo, no mez de dezembro de 1671, que saiu anônima e sem o ano de impressão. As Pedras do Dongo, nas proximidades de Maopungo/Maopongo, foi um dos locais visitados por Cavazzi na sua primeira estada em Angola[19] e o religioso certamente estava por dentro do que ali se passara em 1671, pois durante esta sua segunda estada na África (1673-início de 1677), Francisco de Távora, 1º conde de Alvor (1646-1710), que a governou entre 1669 e 1676, ainda esteve no cargo a maior parte do tempo. Távora enfrentou várias rebeliões, primeiro contra o soberano do Sogno/Sonho e depois contra dom João Harry, ou João I, rei do Dongo, que se aliou ao primeiro soberano. Para combatê-los, o governador utilizou o recurso da chamada “guerra preta”, quando os portugueses empregavam forças militares dos Sobas e Jagas, chefes aliados locais, muitos deles convertidos ao cristianismo, para combater os insurgentes (Carvalho, 153-155). Cavazzi foi um informante privilegiado para Ericeira pois, como missionara no Dongo, era testemunha da geografia local e do que se passara durante o reinado do pai de dom João, o rei Ari ou Ngola Aiidi, que havia sido batizado pelos jesuítas como Filipe de Sousa. Pouco depois que Cavazzi partiu do seu reino, deixando outro capuchinho encarregado da missão, o rei morreu e seu filho dom João I, ao subir ao poder, em 1670, expulsou esse missionário e rompeu a aliança com os portugueses, pois as instâncias religiosas e civis eram interconectadas. O exército de dom João I foi derrotado pelas forças de Távora, em 1671, guerra que o 3º conde da Ericeira descreveu em seu manuscrito, exaltando a submissão do Dongo ao Império Português Restaurado. Ericeira forneceu a Cavazzi “algum subsídio para viver religiosamente” enquanto permaneceu em Lisboa e uma ajuda de custo para pagar os suprimentos em sua viagem de volta à Itália.[20] Não era só piedade, certamente recompensava o padre pela cópia manuscrita da Istorica descrittione de tre regni Congo, Matamba et Angola, em três volumes, que permaneceu em Portugal enriquecendo sua biblioteca até ser destruída no terremoto de Lisboa de 1751.

Mas seu conteúdo não está de todo perdido, podendo, em parte ser remontado pela tradução, em francês, promovida pelo grupo que dom Luís da Cunha mobilizou para seu projeto savant. Apesar de ter sido o oratoriano Legrand quem, por sua vez, levou uma cópia do manuscrito do capuchinho Cavazzi pertencente a Ericeira para Paris, o mesmo foi traduzido pelo dominicano Jean Baptiste Labat e publicado, em 1732, com o título Relation historique de l’Éthiopie occidental contenant la description des royaumes du Kongo, Angolle et Matamba.[21] Como Legrand, o padre Labat era um interessado no ultramar, tendo missionado nas Antilhas e se dedicou à edição de relatos de viagem.[22] Coube à D’Anville o estudo da geografia e a produção dos mapas que acompanharam a obra e a dom Luís, à distância, pois se encontrava em Bruxelas, a coordenação da empreitada.

5. A tradução francesa

No subtítulo da Relation historique de l’Éthiopie occidental, Labat informa que se trata da tradução de uma parte inédita do texto do padre Cavazzi – o manuscrito dos Ericeira -, acrescida de várias relações dos melhores autores portugueses, acompanhada de estampas e de cartas geográficas – os três mapas de D’Anville produzidos entre 1731 e 1732, que contribuíram para aprimorar a representação do território nos textos e ao mesmo tempo permitiam que o leitor visualizasse a geografia do território descrito no livro, facilitando sua leitura. Uma via de mão dupla entre livros de viagem e mapas estabelecera-se desde o início do sucesso do gênero literário de viagem na Era Moderna, mas agora o significado era outro. Seus mapas desempenhavam um papel mais complexo, pois, à medida que a obra escrita e a cartográfica iam sendo compostas lado a lado, o geógrafo ia selecionando as fontes que elegia como fidedignas e que eram representadas nos dois suportes narrativos, o texto e o mapa, ao mesmo tempo, um corrigindo o outro. Coube à D’Anville formular a concepção geográfica por trás da narrativa revisada e produzir as cartas impressas que os acompanharam.

O subtítulo da Relation historique de l’Éthiopie occidental, publicada por Labat, informa que o mesmo “contém a Descrição dos Reinos do Congo Angola e Matamba traduzido do italiano do padre Cavazzi”. A obra foi dividida em 5 volumes e não é igual ao texto da primeira edição, publicada em italiano, em Bolonha, apesar de coincidirem em vários pontos, sendo inclusive mais extensa. Labat explica, no Prefácio, seu método de trabalho e informa que não fez uma “tradução literal” e, chamando Cavazzi de “meu autor”, assegura que, tomando seu pensamento, o “traduziu livremente”, no entanto, “sem diminuir em nada as belezas do original”. Labat revela ainda que, “para preencher os vazios que se encontravam em algumas partes”, recorreu aos melhores historiadores espanhóis e portugueses a que teve acesso na excelente biblioteca de M. Couvey/Couvay, “secretário do rei e cavaleiro da Ordem de Cristo”.[23]

Foi dom Luís da Cunha quem apresentou Pedro Nolasco Couvay ao grupo savant encarregado da publicação – Labat, D’Anville e Legrand – engajando-o na empreitada. Enquanto o embaixador residiu na cidade, Couvay, um judeu português, fez parte de seu círculo social e intelectual,[24] tendo sido cooptado para financiar as compras que o embaixador realizava para dom João V. Como gratidão por seus serviços, o monarca concedeu-lhe o hábito da Ordem de Cristo[25] e dom Luís recomendou que fosse nomeado cônsul geral de Portugal,[26] o que de fato ocorreu. Mas não se tratava de um simples financista, “Couvay era renomado por suas grandes riquezas, seu espírito, seu gosto e suas luzes”,[27] sendo que dom Luís dizia ter o intelecto elevado e o considerava “muito inteligente”.[28] Era conhecido “por seu gosto pela literatura que lhe deu lugar de formar uma biblioteca”, na qual dispunha de uma coleção “considerável de livros espanhóis e portugueses”, “manuscritos os mais curiosos” e mapas que fazia dela “única na Europa”.[29] Seu acervo totalizava 3.731 obras e o catálogo não lista todos os títulos, mas dá bem a extensão e a abrangência da sua cultura. Couvay, por instâncias do embaixador, disponibilizou vários itens dela a Labat e a D’Anville, o que os ajudou a clarear a configuração do continente africano.[30]

O catálogo da biblioteca não fornece muitas pistas quem seriam os demais autores portugueses que foram utilizados para atualizar as informações de Cavazzi, mas Labat fornece pelo menos duas pistas na Relation historique de l’Ethiopie Occidentale. Tudo indica, no entanto, que um dos seus manuscritos raros que o grupo savant garimpou em sua biblioteca foi a Voyage du Père Michel-Ange & du Père Denis de Carli Capucins, Missionaires Apostoliques au dit Royaume du Congo. Por se tratar de uma “Relação Curiosa e Nova de uma viagem ao Congo”, Labat resolveu traduzi-la e transcrevê-la no final do volume 5 da Relation historique de l’Ethiopie Occidentale, a seguir ao texto de Cavazzi. A informação de que se tratava de um texto novo, que é escrita com letras em caixa alta na folha de rosto, antecede o texto dos dois capuchinhos e revela que Labat, aparentemente, desconhecia as edições italianas da Viaggio nel Regno del Congo, de Michelangelo Guattini (1637-1668) e Dionigi Carli (1627-1695), a primeira, de 1671, e a segunda, de 1672, ou pelo menos não as utilizou para a tradução.[31] Outro, foi o “Journal d’um voyage de Lisbonne à l’Isle de S. Thomé sous la Ligne”, que Labat informa que foi escrita, em português, por um piloto lusitano, em 1626, e que ele traduziu também para o francês inserindo-o também no fim do volume 5. O piloto saiu de Veneza e o relato se inicia em Lisboa e termina em São Tomé, onde o navio “deveria se abastecer de açúcar e outras mercadorias fabricadas na ilha e na costa africana vizinha”. O texto fornece medidas de distâncias e graus de latitude dos principais locais percorridos durante a viagem, que o autor pretende ser as mais exatas possíveis, informações preciosas para D’Anville aperfeiçoar sua representação da costa africana. Depois de serem abastecidos de 300 negros que seriam comercializados no Brasil, eles deixam a África e, no trajeto de volta, atingem a foz do Amazonas e dirigem-se à Baía de Todos os Santos, fornecendo preciosa descrição do local. Este relato foi, provavelmente, a base utilizada e a razão por que D’Anville desenhou, na parte esquerda da Carte de l’Afrique, que publicou em 1727, a costa do Brasil, entre o Rio de Janeiro e o Cabo de São Roque, destacando-se as cidades de São Salvador da Bahia e Olinda.[32] Já entre os livros da biblioteca de Couvay, é possível encontrar pistas do que serviu de fonte de informação geográfica sobre o continente. Há a Descrição da África, de Luís Marmol, de 1573; a África Portuguesa, de Manuel Severim de Faria de Sousa, de 1681 (D’Anville possuía um Plan du fort de Mozambique, tirado desse livro);[33] Les Voyages du sieur de Champlain de Saintonges Capitaine em la Marine, de 1634; a Relação do Novo Caminho que fez por Terra e Mar vindo da Índia para Portugal no ano de 1663, de Manuel Godinho, a Voyage de la rédemption des captifs, de Comelin, de 1721; e as Mémoires des Cafres, de Jean Pierre Pury, publicada em Amsterdam, em 1718.[34]

Na contramão das fragilidades do estilo literário de Cavazzi, Labat acentua “que ele é uma testemunha ocular do que fala”, que “suas luzes” o tornaram “capaz de distinguir o verdadeiro do verossímil” e que “nada lhe escapa”. Sobre sua obra, afirma que era “exata” e “brilhante em todas as suas partes” e resultava de uma estada de doze anos “naquela parte da África”. Para conferir um estatuto de autoridade ao seu texto, garante que, no período que o padre lá esteve, “percorreu diferentes estados, sofrendo diferentes penas e perigos, que superam a imaginação, mas que lhe permitiram adquirir conhecimentos vastos e seguros de dentro e de fora deste país”. Ou seja, o leitor não deveria suspeitar do conteúdo informado, mesmo que aparentemente inverossímil, porque o autor tinha capacidade intelectual e se baseara apenas no que observou para escrever seu relato. Labat conta que quando Cavazzi retornou à Itália pela primeira vez, em 1668, fez “uma relação verbal do que ele havia feito” a seus superiores na Propaganda Fide, que “ficaram tão contentes, que o obrigaram a colocar por escrito” o que ele tinha visto. Seu texto versava sobre “a situação [do país], seu clima, sua bonança, seus incômodos, os costumes dos povos, suas diferentes religiões, seus costumes, seus usos, seu comércio, suas guerras e todas as generalidades que podem fornecer um conhecimento pleno, inteiro e perfeito”.[35] As diferenças entre a edição original e a francesa não podem ser creditadas somente à tradução livre que Labat empreendeu e às intervenções de Alamandini, mas também aos objetivos distintos das duas obras impressas (a italiana para exaltar a missionação sob a batuta da Propaganda Fide, a portuguesa para legitimar as pretensões geopolíticas da Coroa portuguesa na África) e a possível fidelidade, de Labat, ao estilo autoral de Cavazzi presente no manuscrito de Ericeira, mas é difícil precisar o peso de cada um.

6. O livro-mapa

O surpreendente do projeto savant que dom Luís articulou em Paris, entre 1728 e 1732, é que juntava esforços de atores que, a princípio, eram concorrentes entre si. Oratorianos, jesuítas, capuchinhos, coroas de Portugal e de França, afinal D’Anville servia à casa de Orleans e era geógrafo de Luís XV, eram peões que, separadamente, buscavam controlar a narrativa sobre a atuação de cada um no além-mar. Desde o século XVI, os livros-navios veiculavam relatos de viagens, que eram utilizados pelas nações europeias para justificar seu domínio ou usurpação de áreas coloniais (Villas Bôas, 116). Os inacianos, por sua vez, a partir de Paris e de outros centros europeus,[36] impulsionavam uma eficiente máquina de propaganda editorial própria, com destaque, no início do século XVIII, para a monumental coleção das Lettres édifiantes que descreviam suas missões pelo mundo.[37]

Com sua habilidade diplomática, o embaixador reuniu um grupo de origem heterogênea, com objetivos diversos, e fez valer sobre a narrativa das obras publicadas o que considerava ser o interesse dos portugueses. Seu projeto savant pretendia respaldar, frente a um público europeu amplo, o domínio geopolítico lusitano sobre a África meridional. O conhecimento aperfeiçoado da geografia, resultante do avanço lusitano para o interior que os livros publicados divulgavam, era fundamental para essa justificativa. O livro-navio do século XVII se transfigurava em livro-mapa no XVIII, pois a tradução para o francês atendeu a novos propósitos. O texto produzido por Labat tem como ponto de partida o manuscrito de Cavazzi encontrado na biblioteca dos Ericeira, mas o produto final é muito mais complexo do que apenas uma tradução, não se resumindo a uma versão em outra língua do texto original. Também não se tratou apenas de incorporar outros relatos à edição, que serviram de contraponto para corrigir e completar informações pontuais de Cavazzi. O novo texto e seus mapas foram moldados pela equipe savant com propósitos diferentes do que fora a intenção inicial da Propaganda Fide de servir para a edificação da obra missionária capuchinha e, por essa razão, a nova versão foi capaz de engajar uma equipe tão heterogênea. O primeiro objetivo deles foi acentuar a novidade geográfica que o texto original continha e, para tanto, a narrativa não ficou circunscrita aos itinerários de viagem dos capuchinhos, produzindo um novo mapa mental do Congo, de Angola e de Benguela. Isso explica a supressão de vários capítulos do livro original, que se atinham a exaltar o papel dos missionários no Congo, como também a fusão de outros e o corte de trechos inteiros para reunir os que descreviam a mesma região. Além de servir para aperfeiçoar a geografia, a tradução de Labat estava a serviço de um projeto mais amplo, o de publicizar o domínio da Coroa portuguesa sobre a maior parte da África meridional, legitimando-o. Nessa medida, livro-mapa se revela como um projeto de intertradução pois o conhecimento original se desloca de seu sentido inicial, se transforma e adquire outros significados e desempenha novas funções. Do ponto de vista de D’Anville, havia ainda a intenção de construir uma geografia humana, da qual ele foi um dos precursores que, revelava as transformações operadas nas populações nativas ao longo do tempo, principalmente as ocorridas sob o impacto dos colonizadores, especialmente os portugueses, o que também atendia aos interesses geopolíticos do embaixador.

No caso de Moçambique e arredores, dominicanos e jesuítas disputavam o domínio sobre a história da missionação na região. Os primeiros tiveram o monopólio até 1609, quando os inacianos aportaram na ilha.[38] Já no Congo e Angola, as disputas entre dominicanos, jesuítas e capuchinhos se acirraram depois da Restauração do Trono português, em 1640, pois misturaram-se aos enfrentamentos entre espanhóis e portugueses, que voltaram a ter interesses nacionais divergentes. Este cenário explica por que a Propaganda Fide encarregou Cavazzi de escrever a história da ação da Ordem dos Capuchinhos. Após a expulsão dos holandeses do centro-oeste africano, que haviam feito Portugal refluir sua presença na região, a Coroa viu, mais uma vez, que “a ação missionária era um elemento estratégico, já que garantia uma forma eficiente de aproximação com a população mbundu”. Mas, enquanto a Coroa considerava que os jesuítas se alinhavam incondicionalmente aos seus interesses, acusavam os capuchinhos “de serem aliados da Espanha”, e no oeste-africano, “longe de divergências em relação à doutrina, o que prevaleceu como elemento de discórdia foram suas filiações junto às monarquias ibéricas” (Carvalho, 142-143). Para o projeto editorial de intertradução sobre o Congo, Angola e Moçambique, dom Luís juntou um dominicano, que traduziu e editou dois manuscritos capuchinhos, um deles trazido da biblioteca de um nobre português por um oratoriano, outro encontrado na de um cristão-novo franco-lusitano, e o geógrafo francês ficou encarregado de representar o território.

As diferenças, por vezes evidentes, às vezes sutis, entre a edição produzida por Labat e o original de Bolonha do texto de Cavazzi, não podem ser explicadas apenas pelas intervenções de Alamandini, pela liberdade da tradução francesa e pelas diferenças do manuscrito da biblioteca do Ericeira e particularmente pelos interesses, por vezes divergentes, de cada um dos que se envolveram na publicação do original italiano e da tradução francesa. O projeto editorial savant, capitaneado por dom Luís da Cunha, não era apenas uma contribuição ao conhecimento empírico e objetivo da África meridional, pois o embaixador fazia pairar sobre as publicações que patrocinou o que considerava ser os interesses geopolíticos de Portugal. É o que se observa desde a organização geral das duas obras. O que aparentemente era uma operação científica neutra de tradução, visando aperfeiçoar o conhecimento do território, num processo de intertradução, dava a ver o domínio dos portugueses na região.

Como exemplo, o novo capítulo, o de número três, intitulado “Os rios consideráveis que correm no Congo, e particularmente do Zaire e sua origem”, já que a hidrografia não merecera mais que um parágrafo da pena de Cavazzi. Tal acréscimo se explica pelo interesse de D’Anville, em aperfeiçoar as informações geográficas constantes na obra e que podiam ser visualizadas nos seus mapas encartados, e o de dom Luís, pois os rios, especialmente o Zaire, o Cuanza e o Cunene, eram essenciais à penetração dos portugueses na região, e os dois últimos, em particular, para a execução de seu projeto de travessia entre as duas costas que ele pretendia viabilizar com o aumento do conhecimento geográfico necessário à empreitada,[39] o que desnuda os interesses geopolíticos lusitanos no processo de intertradução do texto. As modificações têm sentido evidente, o texto passa a se centrar nos relatos de viagem das missões-expedições dos capuchinhos, salientando seu papel de informantes da geografia e instrumento para a penetração do domínio português, sendo apagados ou resumidos os acontecimentos que não reforçam ambos os sentidos da obra.

As eliminações de capítulos inteiros visaram circunscrever o texto aos relatos de viagem de Cavazzi, pois o conhecimento do território era necessário para produzir uma geografia objetiva da região, construída com o que foi observado pelo padre, temperando suas informações com as de outros viajantes. O sentido religioso da obra é eclipsado pelo geográfico e o que tem relação apenas com o primeiro é eliminado. A reorientação do texto explica por que dom Luís se dispôs a patrocinar esse projeto editorial savant. Na contramão da política tradicional de sigilo com que Portugal buscava cercar suas conquistas, o livro-mapa divulgava a geografia africana ao público europeu e esta publicidade adquiria um sentido geopolítico a favor dos interesses lusitanos, o que a princípio não parece evidente. Ao longo de sua carreira, dom Luís foi se tornando um ponto de inflexão na arte da diplomacia portuguesa, propondo novas formas de negociação política dos territórios do ultramar (Furtado 2021, 45-74), e seu projeto savant de intertradução dos conhecimentos sobre a África desempenha importante papel na configuração de novas estratégias geopolíticas. Foi a partir do Tratado de Utrecht que ele percebeu a importância do conhecimento geográfico e dos mapas que o representavam como instrumentos de afirmação do domínio metropolitano sobre os territórios conquistados (Furtado 2013, 104). Por essa razão, engajou D’Anville nos projetos de cartografia moderna que abraçou na primeira metade do século XVIII, representando as partes meridionais da África e da América, onde considerava fundamental demonstrar a expansão da presença lusitana assegurando o domínio de um extenso território sempre em expansão (Furtado 2018, 53-83.

O projeto editorial savant de intertradução de relatos de viagem do século XVII que o embaixador promoveu sobre a África meridional, entre 1728-1732, era o oposto da política portuguesa tradicional, de sigilo. Pretendia embasar os direitos de domínio dos lusitanos sobre uma larga faixa do território, entre o Congo e Angola, a oeste, e Moçambique, a leste, na publicidade do conhecimento geográfico que seu avanço para o interior angariara, o que ocorrera com o apoio das ordens religiosas – capuchinhos, no oeste, e jesuítas, no leste. Não é mero acaso que, do ponto de vista cartográfico, a culminância do projeto é a L’Ethiopie occidentale (figura 1), finalizada em janeiro de 1732, que retrata as possessões portuguesas nas duas costas, facilmente conectadas a partir do dominium português sobre o extenso território que se estende entre elas no sertão africano.

7. A geografia vivida dos mapas de 1731-1732

O projeto geopolítico savant de dom Luís se revela na reescritura, por Labat, de vários trechos do texto de Cavazzi, desnudando o processo editorial de intertradução, ou seja, de transformação do livro-navio do século XVII em livro-mapa no XVIII, que mudaram o desenho da costa oeste nas cartas de D’Anville. A intertradução do livro original do capuchinho resultou em um novo mapa mental do Congo, de Angola e de Benguela que, de forma inédita em relação à cartografia vigente, criou um território que não apresenta continuidade entre os reinos das duas costas.

O texto de Cavazzi indica a localização dos lugares visitados pelos capuchinhos pela altura em graus de latitude, pelo tempo percorrido para vencer o trecho, e pela distância em léguas ou milhas do ponto de partida ou de outra referência. Quissama, por exemplo, capital do reino de Dongo, estava “situada a 11 graus do Equador, perto da foz do caudaloso rio Cuanza, ao sul de Luanda”, enquanto o rio desaguava a “12 léguas da cidade de Luanda” e era “navegável até Cambambe, fortaleza dos portugueses, a 150 milhas de distância”. Já no seu deslocamento entre a cidade de Loango, capital do reino de mesmo nome, e Malembo/Malemba, ao sul, Cavazzi gastou “três dias de viagem”.[40] D’Anville transformou todas as medidas de tempo dispendido nos percursos em medidas de distância e representou nos mapas as localidades, as províncias e os acidentes geográficos vivenciados pelos capuchinhos. É possível perceber nelas o reflexo dos itinerários de viagem descritos por Cavazzi. Para chegar a Matamba, reino da rainha Njinga, o primeiro a missionar, o religioso partiu de Luanda e foi até a fortaleza de Massangano/Massingano, situada nas margens do Cuanza, próxima da confluência com o rio Lucala. Na Carte particulière des Royaumes d’Angola, de Matamba et Benguela, de 1731, D’Anville posiciona o forte português no local informado pelo padre, a montante do encontro dos dois rios e a seis léguas do de Cambambe, situado rio acima. Em seguida, seguindo o Lucala, Cavazzi caminhou durante oito dias até a fortaleza de Ambaca/Embacca, onde, segundo ele, o rio se divide em sete canais. D’Anville insere um signo para representar o forte e outro a indicar a jurisdição religiosa que os portugueses exerciam sobre a região e desenha os canais (les canini) do Lucala. De Ambaca, abandonando a margem do rio, o capuchinho dirigiu-se para o sul, atravessando “durante quatro dias um campo aberto, desabitado e inculto” e, depois de cruzar dois rios, o último deles de nome Cole, chegou a uma colina, de onde avistou Santa Maria de Matamba/Ste. Marie de Matamba, capital do reino, onde Njinga tinha seu palácio e os portugueses, em seu reinado, edificaram uma igreja. Segundo Cavazzi, o nome da localidade se explica porque “o padre Antonio [de Gaeta, em 1656,] trouxera um belíssimo quadro da Virgem copiado do de Santa Maria Maior, em Roma” e o expôs e decidiu “dedicar numa cerimónia solene o templo e toda cidade à Mãe de Deus, de modo que esta foi a partir de então chamada Santa Maria de Matamba”.[41] D’Anville posiciona a vila, representada por uma edificação religiosa, na vasta planície a sudoeste de Ambaca, entre dois rios (Icolé, o segundo que Cavazzi atravessara, e Vamba) que desaguam no Lucato, afluente do Cuanza. Junto ao seu nome, esclarece que foi “construída pela rainha Njinga/Zingha, em 1659, [e] foi destruída após a sua morte”, informação também fornecida por Cavazzi.[42] Sob o nome do reino de Matamba, escreve “que a rainha Njinga/Zingha o tornou célebre”, revelando a importância simbólica da africana, apesar de ter se passado cerca de 70 anos desde sua morte em 1663, cujos funerais foram acompanhados por Cavazzi. Sua conversão ao catolicismo, ainda que oscilante, garantiu o domínio português do reino e sua interiorização para o oeste de Angola.

Outra viagem descrita por Cavazzi foi às ilhas Quindongas/Chindongas, no Cuanza, situadas entre os reinos de que Bondo e Haco/Oacco. Enumera-as como sendo dezoito[43] e D’Anville repete a informação e desenha o trecho do rio coberto pelo arquipélago, destacando a de Danji/Dongit, única a ser nomeada pelo religioso que afirmou tratar-se da ilha principal. O impacto da descrição de Cavazzi pode ser medido comparando-se com o desenho do arquipélago na Royaumes de Loando, Congo, Angola, Benguela & c, de 1725. Nela, D’Anville denominara as ilhas de Quidangas, ou de Qitonga, as desenhou em número de quatro e as situou entre a “capitania de Maopungo/Mapungo” e as Terras do Jaga/Giaga Cassange, “na extremidade mais distante do reino de Angola”, representando o acidente geográfico mais a oeste conhecido dos portugueses,[44] “onde há uma guarnição de negros. Na L'Ethiopie occidentale, de 1732, o arquipélago fica no interior da Angola portuguesa, entre os reinos de Mapongo e Malemba, e o lago Saxia é desenhado a montante dele. Cavazzi avistou o lago quando foi a Malemba, queixando-se que os nativos se prostraram em adoração a ele, como faziam com os rios e as lagoas, mas não fornece sua localização.[45] Sem informações precisas, D’Anville escreve abaixo da lagoa que “não se tem um conhecimento bem distinto” dela.

D’Anville desenhou todos os locais visitados e descritos por Cavazzi, destacando as mesmas informações geográficas que o padre forneceu, como a fortaleza existente na província de Tamba, as minas de sal que abundavam na de Quisama e as de ferro na de Cabeso, situadas nas montanhas que, no mapa, cobrem seu território. Na província de Haco/Oaaco, ao sudoeste do Cuanza, situa a capital, Quibaia/Kibaia, que foi cercada pelo Jaga/Giaga Cassange, esclarecendo, num texto, que também se chamava “Kindongo” e era a “residência de Guzambambe/Guzam-Bambé”, que Cavazzi convertera ao catolicismo depois de sua submissão aos portugueses. Na direção norte, do outro lado do rio Cuanza, na Província de Oarii, avista-se Maopungo/Maopongo, representada por um pequeno monte encimado por uma bandeira, abaixo do qual D’Anville escreve “ou Fortaleza das Pedras”. Ele indica a sudoeste deste ponto, com o texto “salto da Coanza”, a grande cachoeira da Coanxa, que Cavazzi visitou e descreveu como sendo “uma cascata de 150 pés de altura”.[46] A noroeste dela, na outra margem do rio, posiciona as terras do temido Jaga/Giaga Cassange, chamadas de Pequena Guanguela/Petit Guanguelle, onde situa Polongono - o “quilombo/chilombo ou campo do Cassange”. Os elementos geográficos que destaca na província são os mesmos descritos pelo religioso, que informou que o reino é quase todo coberto por uma planície, exceto por duas pedras altas, uma delas de nome Quissala/Chissala, desenhada no mapa. D’Anville também representa, no rio Lunino, um lago da dimensão “de um tiro de mosquete”, chamado pelos locais de cacimba que, de acordo com o padre, fornece água salobra e “sujeita à corrupção”.[47]

Aspecto interessante são os símbolos gráficos distintos que D’Anville empregou para representar os assentamentos portugueses e africanos. Igrejas e capelas indicam as cidades e vilas onde os primeiros se instalaram e as missões, como Santa Maria de Matamba, onde os religiosos atuaram. Em ambos foram edificados templos católicos e sua jurisdição variava de acordo com a hierarquia eclesiástica e administrativa de cada um. Já os núcleos urbanos africanos são representados por um círculo, às vezes encimado por uma bandeira. O capuchinho informa que as localidades nativas eram chamadas de “Libatas [que], na língua do país, são um ajuntamento de casas, de cabanas, ou sobretudo de choupanas pouco altas”[48] e as bandeiras as associam aos estandartes que os chefes ostentavam, apontando o centro urbano dessas chefaturas. Os assentamentos dos jagas, intitulados campos, são desenhados com um círculo encimado por uma barraca com sua bandeira no topo, como Maopungo e Palongono, que D’Anville indica ser o quilombo ou campo do Jaga Cassange. A capital do reino de Anzinco, Monsol, a nordeste do rio Zaire, também é representada como um acampamento circular em cujo centro fica o palácio do rei com sua bandeira e D’Anville informa que eles são, como os jagas, “cruéis antropófagos”. Esta forma de representação reflete a descrição de Cavazzi de que eram locais provisórios, fáceis de construir e de transportar, em oposição às aldeias fixas, as libatas africanas (Castro, 344). Os símbolos distintos não refletem apenas a perenidade ou a provisoriedade das edificações de cada um desses lugares, sendo escolha intencional do geógrafo que serve para hierarquizá-las por meio dos binômios interconectados entre si: religião e idolatria, civilização e barbárie, os primeiros atributos dos europeus e os últimos dos africanos. Os símbolos geográficos deixam ver que as localidades portuguesas são fixas, estáveis e civilizadas, enquanto os domínios dos nativos são precários e selvagens. Mesmo entre os africanos, D’Anville, baseando-se nas observações de Cavazzi, estabelece distinções entre os Sobas, que são chefes imbuídos de poder político e administrativo reconhecido pelos portugueses (Lopes 2004, 635), e os Jagas, que se recusam a abraçar o Catolicismo ou a submeter-se politicamente aos lusitanos. Enquanto os primeiros são associados a Reinos ou Províncias, os territórios dos últimos são chamados de Terras e seus estabelecimentos, por consequência, representados como mais bárbaros, móveis e transitórios.

A mesma distinção pode ser observada nos símbolos usados para indicar as instalações militares. Os fortes lusitanos, como Massangano, Cambambe e Molls, o último tomado da VOC, são indicados com o desenho de uma planta baixa, quadrangular com seus bastiões de uma fortaleza europeia. Abaixo do campo do Jaga Calanda, ao sul de Ambaca, na direção de Matamba, D’Anville insere uma intrigante espada árabe curva, a cimitarra, originária da Pérsia e que foi difundida no mundo islâmico até o século XIV. Cavazzi se refere ao Jaga Calanda e afirma que era súdito dos portugueses “mas independente”, lamentando-se que vivesse “acorrentado pelas bárbaras leis dos jagas […]. Todavia parece um tanto abrandado no ímpio costume de matar as crianças”. Completa que Calanda mantinha à disposição dos lusitanos “um poderoso exército de soldados aguerridos, que não fazem caso da própria vida”[49] e a espada era referência a esta força militar aliada. Mas o recurso à espada árabe como símbolo para representá-la a distingue das forças militares portuguesas, pois não era ordenada e nem se comportava como as primeiras, sendo bárbara e selvagem.

Por expandir o interior desconhecido e desconectar os reinos de ambas as costas, os mapas de D’Anville de 1731-32 representam uma novidade cartográfica, uma inflexão significativa em relação aos mapas anteriores, inaugurando um novo momento na representação europeia da África meridional (Furtado 2017, 202-215). Ao representarem os reinos africanos da costa leste e oeste com a organização espacial conferida pelos portugueses, sua cartografia, articulada ao livro-mapa de Legrand, dava a ver a história da interiorização lusitana na África meridional. O projeto savant que dom Luís da Cunha orquestrou legitimava, ao olhar das demais nações europeias, as pretensões geopolíticas da Coroa portuguesa no território. Nesse sentido, apesar de muitos destes territórios já estarem fora do domínio português, cuja presença, especialmente na costa oriental recuara desde fins do século XVII, a história e a geografia se tornavam armas poderosas e cristalizavam, no presente, uma série de relações de poder que existiram no passado, com vistas a legitimar sua expansão futura. O novo projeto de intertradução savant de narrativas de viagem do século XVII, encetado por dom Luís da Cunha e articulado conjuntamente com D’Anville, Legrand e Labat, com a ajuda dos nobres letrados portugueses, promoveu o maior conhecimento da África meridional entre a República de Letras europeia. Com ele, o embaixador rompia com a tradicional política de sigilo dos portugueses em relação aos seus territórios ultramarinos, mas a publicidade conferida ao novo conhecimento não estava a serviço apenas do bel prazer intelectual, pois legitimava, frente a uma audiência especializada e ampla, a longa e constante presença dos portugueses na África meridional, que se interiorizava com a submissão dos Sobas do sertão. Os missionários capuchinhos, caso de Cavazzi, foram instrumentos empregados pelos portugueses e, principalmente, testemunhas do processo. O domínio sobre a geografia objetiva, isto é, baseada na observação direta desses agentes religiosos à serviço da Coroa de Portugal, legitimava publicamente as pretensões lusitanas de dominum sobre o amplo território africano meridional e desnudava a ilegitimidade dos avanços neerlandeses e franceses sobre esta parte do continente. Não por acaso, no Prefácio da Relation historique de l’Ethiopie Occidentale, de Labat, nenhuma referência é feita aos relatos produzidos à serviço da VOC, nem pela Companhia de Comércio Francesa e, nos seus mapas de 1731-1732, D’Anville não representou os territórios colonizados por holandeses e franceses junto ao Cabo da Boa Esperança. Resultado do processo de intertradução iluminista, o livro-mapa, longe da neutralidade científica que aparenta, se revela como um poderoso instrumento de geopolítica. ♦

8.1 Fontes manuscritas

Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT). Ministério dos Negócios Exteriores (MNE). Livro 793, f. 407, 6 de agosto de 1724.

ANTT. MNE. Livro 59, 1721.

ANTT. MNE. Livro 790, 1721.

Bibliliotéque Nationale de France (BNF). Département des Cartes et Plans (DCP). GE BB-565 (14, 63). D’Anville, Carte particulière des Royaumes d’Angola, de Matamba et Benguela, Novembro 1731.

BNF. DCP. GE DD-2987 (8259). J. B. Bourguignon D’Anville, Carte particulière du Royaume de Congo et de ce qui précède depuis le cap de Lopo, Setembro 1731.

BNF. DCP. GE DD-2987 (8252). D’Anville, L'Ethiopie occidentale, Janeiro 1732.

BNF. DCP. Ge DD-2987 (8330). Manuel de Faria, Plan du fort de Mozambique, 175…

Robert Bosch Colection (RBC). Manuscrito n.539 (2). Second Mémoire concernant l’Amérique méridionale, d’Anville, 31 Aout 1779.

Sociedade Geográfica de Lisboa. Manuscritos. Res 3-C-16 e Res 3-C-17. J. B. Bourguignon D’Anville, Description Géographique de la partie de l’Afrique, qui est au sud de la ligne Equinoxiale, représentée dans une Carte que j’ai dressée par l’ordre et confortement au dessein de Son Excellence Monseigneur Dom Louis da Cunha, Ambassadeur Extraordinaire et Plenipotentiaire du Roi de Portugal.

8.2 Bibliografia e fontes impressas

“Journal d’um voyage de Lisbonne à l’Isle de S. Thomé sous la Ligne, fait par un Pilot Portugais en 1626. Écrit en Portugais & traduit en François para le Père Labat”. In: Labat, Jean-Baptiste. Relation historique de l’Ethiopie Occidentale, v.5, p.270-408.

Alencastro, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Bluteau, Rafael. Dicionário da língua portuguesa. Ampliado por Antônio de Morais. Lisboa: Oficina de Simão Thadeo Ferreira, 1739, v. 2, p. 159.

Boxer, Charles R.

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Notas

[4] Alencastro, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Esse comércio envolvia a troca de produtos produzidos no interior do Brasil, especialmente tabaco e cachaça, que caíra no gosto da elite africana. Ver Furtado, Junia F. “From Brazil’s central....”, p. 127-160.
[5] O termo intelectual para se referir à elite intelectual luso-brasileira do século XVIII não é anacrônico. O dicionário de Bluteau registra os termos intelectual e intelectivo como aquele “dotado de faculdades, inteligente. O que tem potência capaz para compreender e entender as coisas do discurso”. O autor reconhece a existência de uma virtude e uma alma intelectual dotada de entendimento. Bluteau, Rafael. Dicionário da língua portuguesa, v. 2, p. 159.
[9] Venho chamando este grupo de funcionários régios portugueses de Emboabas Ilustrados. Furtado, Junia F. “O oráculo que Sua Majestade foi buscar...”, p. 373-400.
[21] Labat, Jean-Baptiste. Relation historique de l’Ethiopie Occidentale, 5 vol. Isso se deveu provavelmente porque Legrand se encontrava atribulado com outro projeto de intertadução editorial articulado por dom Luís da Cunha, a publicação da Relacion Historique d’Abissinie, du R.P. Jerome Lobo de la Compagnie de Jesus, que saiu em Paris/La Haye, por P. Gosse e J. Neaulme, em 1728. D’Anville contribuiu com essa edição desenhando vários mapas, inclusive uma carta do continente, intitulada L’Afrique. Furtado, Junia F. Quebra-cabeça africano, p. 263-284.
[22] Como a Nouveau Voyage aux isles Françoises de l'Amérique, publicada em 1722, no qual relata suas experiências pessoais. Em 1728, publicou a Nouvelle Relation de l’Afrique occidentale, sobre a atuação da Companhia Francesa do Senegal e, em 1730, a Voyage du chevalier des Marchais en Guinée, isles voisines, et à Cayenne.
[29] Robert Bosch Colection (RBC). Manuscrito n.539 (2). Second Mémoire concernant l’Amérique méridionale, d’Anville, 31 Aout 1779, f. 13-14. “Sr. Pierre Nolasque Couvay, secretário do rei, cavaleiro das ordens do Rei de Portugal, [...] é renomado por suas grandes riquezas, seu espírito, seu gosto & suas luzes”. Catalogue des livres de la bibliothèque de feu Mr. de Couvay, p. v.
[30] Mais tarde, o mesmo ocorreu com seu mapa da América meridional. Furtado, Junia F. Oráculos da geografia iluminista, p. 387-391.
[34] Catalogue des livres de la bibliothèque de feu Mr. de Couvay, p. 172. As edições que Couvay possuía podiam não corresponder à primeira publicada.
[36] É o que Bruno Latour chama de centros de cálculo. Latour, Bruno. “Les vues de l’éspirit…”, p. 5-29; Latour, Bruno. Science in action.
[37] Lettres Édifiantes et Curieuses, v. 9, p. 254. D’Anville participou desse esforço, editando e publicando, sob seu nome, o levantamento cartográfico que os missionários jesuítas fizeram da China e, em 1734, produziu um mapa do Paraguai para compor o volume 34 da coleção.
[38] “Parece não haver razões para duvidar da ameaça que os jesuítas, ao estabelecerem-se em Moçambique, passavam a representar para os dominicanos, que ali desfrutavam de uma esfera de atuação exclusiva” até 1609. Lobato, Manuel. “Introdução”, p. 13.
[39] O projeto pode ser visto em Cunha, D. Luís da. “Carta de 1725”, p. 375-378; Furtado, Junia F. “A Travessia da África”. In: Quebra-cabeça africano, p. 85-106.
[43] Cavazzi primeiro as numera em quatorze, depois dezessete e finalmente dezoito. Leguzzano, Pe. Graciano Maria de. (ed.) Descrição Histórica dos três reinos, v. 1, p. 21, nota 10.
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