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O silêncio em FLICTS
Silence in FLICTS
Revista La Tadeo DeArte, vol. 7, núm. 7, pp. 120-149, 2021
Universidad de Bogotá Jorge Tadeo Lozano

Artículos

Revista La Tadeo DeArte
Universidad de Bogotá Jorge Tadeo Lozano, Colombia
ISSN: 2422-3158
ISSN-e: 2590-6453
Periodicidade: Anual
vol. 7, núm. 7, 2021

Recepção: 29 Fevereiro 2020

Aprovação: 02 Julho 2020

Resumo: Este artigo se propõe a refletir especificamente sobre o branco e a virada da página nas diferentes edições de FLICTS, de Ziraldo. Publicado originalmente em 1969, o livro foi o primeiro livro-álbum (picture book ou livro ilustrado) brasileiro, linguagem em que palavras, imagens e projeto gráfico constroem sentido. O livro sofreu grandes alterações em suas diferentes edições, as quais interferem significativamente em sua narrativa. Neste artigo, as versões são comparadas e analisadas com a intenção de evidenciar a importância do branco e da virada da página, ou seja, do espaço vazio e da composição/decupagem na construção de significado.

Palavras-chave: livro-álbum, livro ilustrado, virada da página, silêncio, branco.

Abstract: This article intends to reflect specifically upon the blank space and the turn of page in different editions of FLICTS, by Ziraldo. Originally published in 1969, the book was the first Brazilian picture book, a language in which words, imagens and graphic design together build up meaning. The book suffered a great amount of changes in its different editions, which tremendously interfere to the narrative. In this article, the different versions are compared and analysed with the intention of putting light on the relevance of white space and the turn of page, this is, the empty space and composition for creating meaning.

Keywords: Picture book, turn of page, silence, blank space.

Para falar do silêncio proponho o plural: os silêncios. Assim como há diversidade de vozes encarnadas em pessoas e textos, pode haver diversos silêncios disponíveis para serem percebidos por nossos sentidos. Pensando esta pluralidade, evito sacralizar o não dito. Tampouco tento abordá-lo como se se tratasse de um bem precioso para poucxs ou apenas para iniciadxs. [...]

Além do caráter social do silêncio, sua pluralidade e sua não essencialidade provêm da diversidade de silêncios, que não são uma enteléquia nem uma abstração. (Bajour 2019, 2)

APRESENTAÇÃO

Este texto tem como intenção analisar quatro diferentes edições de FLICTS, de Ziraldo, o primeiro livro-álbum [1] brasileiro, com ênfase na importância do espaço em branco e da virada da página como elementos narrativos. Ao longo do tempo — e nas diferentes editoras que o publicaram — FLICTS sofreu alterações de grande impacto em sua narrativa. A análise das diferentes edições se dá a partir de uma leitura comparativa, baseada em um referencial teórico que reflete o hibridismo dessa linguagem, a qual transita sempre explorando os limites — por vezes, inaugurando novos limites — nos campos da literatura, da arte e do design. Pensando “a presença do que se apresenta” (Bolliger 2020, p. 2), o método de análise aqui empregado se vale da fenomenologia, em uma tentativa de fundamentar os pressupostos da leitura a partir daquilo que se encontra no livro, levando em consideração que o livro-álbum, composto no entrelaçamento de texto escrito, imagem e elementos gráficos, não pode ser lido segundo um sistema estrutural fixo e definitivo, mas sim se valendo de uma análise dos fragmentos que compõem o todo de modo semelhante ao que propõe Dondis (2015, 29) em relação à sintaxe visual: “Não há regras absolutas: o que existe é um alto grau de compreensão do que vai acontecer em termos de significado, se fizermos determinadas ordenações das partes que nos permitam organizar e orquestrar os meios visuais”.

INTRODUÇÃO

FLICTS, de Ziraldo, em sua versão original, é um livro-álbum exemplar: as páginas duplas como unidade narrativa, sequenciadas em ritmo perfeito, a disposição do texto,[2] que se vale de recursos da poesia concreta — em que o suporte dita ou delimita a criação do texto poético — e que cede espaço às cores e às formas para, no virar das páginas, compor sentido; a presença do branco como elemento narrativo, a fonte carregada de significado, tudo conjugado dando vida a esse livro que se destina à dupla audiência.

Com todas essas características, a obra oferece a oportunidade de um novo olhar para a produção literária para crianças: FLICTS não é mais um livro infantil, mas sim um trabalho que desperta o interesse de qualquer leitor, independentemente de sua idade, fazendo com que se reflita sobre o livro como um todo e, por consequência, sobre a leitura como um ato complexo e que envolve vários, se não todos, os sentidos, orquestrados de modo a construir significado.

Embora seja um objeto literário, o livro-álbum se estabelece como uma linguagem específica, um sistema de códigos e elementos que, funcionando de acordo com certas regras, comunica sentido. Não se limitando à competência verbovisual, o livro-álbum pede que se compreenda a conjugação de todos os aspectos que o constituem: estéticos, narrativos, de conteúdo e emocionais, compostos no intercâmbio e no equilíbrio constantes entre imagem, palavra, elemento gráfico e objeto. Caracteriza-se, portanto, pela conjugação de imagem(ns), palavras — expressas ou implícitas — e projeto gráfico. Tais elementos, em diálogo constante, constroem a narrativa e têm papel fundamental para a compreensão e interpretação do livro.

Este artigo se propõe a analisar diferentes edições de FLICTS sempre considerando a obra como um todo, com suas particularidades e com o mundo específico que ela propõe. A análise, portanto, detém-se em como os elementos constitutivos de tal obra se comportam dentro de seu ambiente específico, na arquitetura do livro, nas diferentes versões analisadas e como isso reflete na interpretação do leitor. Vem daí a escolha pela fenomenologia como um referencial teórico, já que, de acordo com Sérgio Bolliger (2020, 2), a fenomenologia

é o método de ir às coisas mesmas. Um método bem fundado e bem fundamentado, porque repousa na possibilidade de acesso ao puro apresentar-se do que se apresenta; na descrição, sem pressupostos outros, do que assim puramente se apresenta, bem como das estruturas dessa presença.

Como nos ensina Donis A. Dondis (2015, 4, ênfase no original) em sua introdução à Sintaxe da linguagem visual:

O modo visual constitui todo um corpo de dados que, como a linguagem, podem ser usados para compor e compreender mensagens em diversos níveis de utilidade, desde o puramente funcional até os mais elevados domínios da expressão artística. É um corpo de dados constituído de partes, um grupo de unidades, determinadas por outras unidades, cujo significado, em conjunto, é uma função do significado das partes. Como podemos definir as unidades e o conjunto? Através de provas, definições, exercícios, observações e, finalmente, linhas mestras, que possam estabelecer as relações entre todos os níveis de expressão visual e todas as características das artes visuais e de seu significado.

Publicada pela primeira vez em 1969, FLICTS revela grande ousadia editorial e excelência gráfica, e inaugura um novo olhar para a produção nacional. Os dez mil exemplares de sua primeira edição, da editora Expressão e Cultura, esgotaram-se e, assim, uma reimpressão de mesma tiragem foi feita.

Anos depois, em 1976, a obra foi relançada pela editora Primor. Essa nova edição tem diferenças drásticas e, a meu ver, extremamente prejudiciais ao livro, pois corrompe a linguagem, o que torna o ritmo claudicante e embaralha a composição. As edições posteriores, todas da editora Melhoramentos, também trazem uma compreensão parcial da obra, para dizer o mínimo. Há aqui um interesse especial em refletir especificamente sobre o branco e a virada da página nas diferentes edições de FLICTS e sua interferência na construção de sentido.

Entende-se o branco aqui não como a cor, mas a ausência, como o que não está preenchido, um espaço que evidencia a materialidade do objeto, o vazio — possibilidade de criação, tanto para o autor quanto para o leitor. É também repouso: um interstício entre imagens narrativas que, em uma sequência, compõem significado. Muitas vezes, o espaço em branco precede a virada da página, como se a anunciasse. O virar da página é um momento de suspensão, uma nesga de tempo entre o que já é passado e o que está por vir. É um instante tanto de tensão quanto de pausa, que não apenas evidencia o ritmo da leitura, mas possibilita ao leitor o tempo e a quietude intrínsecos ao ato de ler. O branco e o virar de páginas são, assim, silêncio, tempo e suspensão.

A estrutura do original de 1969: uma leitura

Composto por nove cadernos de oito páginas, costurados e colados às guardas, o livro tem 23,5cm x 27,8cm. Capa e miolo foram impressos em couchê branco de 150g/m², com fonte grotesca.


Figura 1.
capa da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.


Figura 2.
Imagens da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.

FLICTS, em sua versão original, após apresentar as doze cores que atuarão em sua narrativa na capa, oferece ao leitor o silêncio — ou a solidão e o isolamento, que o leitor experimenta junto à pobre cor Flicts. O primeiro caderno é quase inteiramente branco: as guardas brancas antecedem uma dupla de páginas brancas para só depois mostrar novamente o título, centralizado na página da direita, sozinho em meio à imensidão branca da página dupla. Não há nenhuma outra informação: apenas a palavra “FLICTS”. O leitor ainda não sabe que Flicts é o nome de uma cor. Uma cor que não se encaixa em nada, que não se identifica com nenhuma outra. Uma cor isolada, que vive em busca da integração. Se voltar às capas, perceberá que já no título a cor não se encaixa entre as outras, tampouco se assemelha a qualquer uma delas. Flicts fica isolado entre duas faixas com quadradinhos coloridos, harmonicamente organizados na capa, até mergulhar, em completa solidão: as páginas em branco que abrem o livro.

Mais uma virada e percebemos que o título cresceu, retomando o tamanho da capa, ocupando o centro da página de ponta a ponta. No topo, centralizado com o título, o nome do autor, Ziraldo, em preto, uma cor que, como o branco, abriga todas as cores. Enquanto o branco as reflete, no preto, elas são absorvidas. Para Kandinsky, o branco é uma pausa, um silêncio à espera de ser rompido. É puro, representa o início e a eterna possibilidade — talvez porque nele se encontrem todos os raios coloridos (Barros 2011).

A cor branca ainda prevalece, pronta para receber outros elementos narrativos ou evidenciar o isolamento que aflige Flicts. Avança-se mais uma página para encontrar em fontes delicadas, que causam pouquíssima interferência, os créditos à esquerda e a dedicatória à direita, na parte inferior da página, deixando que o branco predomine na dupla. Na próxima prancha, a página esquerda prolonga o branco, que na direita oferece metade do espaço às palavras do editor. Compreensível: esse editor precisava falar — FLICTS era diferente de tudo que já se publicara no Brasil, era para ele “uma nova dimensão em livro” como foi aqui explicitado.


Figura 3.
Imagens da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.

Mais uma virada de página e na dupla seguinte, à direita, encontramos um quadrado de cor ocupando três quartos da página, em tensão com a esquerda toda branca, e uma faixa branca onde se lê: “Era uma vez uma cor/Muito rara e muito triste/Que se chamava Flicts”, o que para muitos pode ser o começo da história, mas não para o leitor de livro-álbum, que sabe que a história começa no momento pega o livro em mãos e se dispõe à leitura.

E aquela massa de cor, comprimida pelo branco, em conjugação com o texto, conta ao leitor que Flicts é uma cor, aquela cor que não se parece com as outras, que não se encaixa em categorias conhecidas. Não é bege, não é ocre, não se assemelha a nada na natureza, não combina com as cores do arco-íris, não se encaixa em nenhuma bandeira.

As duas páginas duplas seguintes não contam com nenhum branco: a primeira é totalmente vermelha e a segunda, amarela. A fonte é preta, e a disposição do texto na página não apenas o potencializa, mas também dá força à cor:


Figura 4.
Imagens da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.

Ao virar a página, encontramos uma faixa azul de ponta a ponta, ligeiramente menor (5mm) do que a parte inferior branca com a inscrição na página da direita: “nem a paz que tem o Azul”. Branco e azul são cores que remetem à paz. Aqui, o branco ganha outro significado: cria a imagem do horizonte, retoma sua conotação de paz, cede espaço ao azul e ambos, em harmonia, ocupam a página. O leitor sente certo acalento depois das cores que gritavam nas páginas anteriores.


Figura 5.
Imagens da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.

Porém, o acalento não dura muito. Dura apenas o tempo em que o leitor fica naquela dupla, pois a seguinte é como uma avalanche sobre ele: uma faixa Flicts inclinada ocupa a parte central do livro. Há um movimento de avanço, de subida: a faixa sai da parte inferior da página da esquerda — a página protegida — e sobe inclinada invadindo a direita. Na página esquerda, o texto expõe a fragilidade da cor; na da direita, bombardeia o leitor com o sentimento de isolamento de Flicts, na voz do narrador. Sufocado, o leitor decide virar a página para ver o que espera a pobre cor: uma dupla em branco, a vastidão da solidão. Aumentada, a fonte ocupa a parte inferior da página direita, como um ponto final — e pesado — à exclusão de Flicts. O branco traz também uma ideia de possibilidade — ele é espaço a ser preenchido pela narrativa.


Figura 6.
Imagens da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.

Viramos a página, quase sem coragem. O que nos move é a promessa da história. O que vai acontecer? Onde Flicts vai parar?

Não é na caixa de lápis de cor que encontramos à esquerda da dupla, desenhada apenas com linhas, faixas de 24 cores, a dobra do caderno e muito branco. Flicts está na página espelhada, em que as 24 cores foram substituídas pelo branco. Ele não cabe em caixa nenhuma — está para fora. A disposição do texto da página direita é relevante, parece formar um pedestal para Flicts. Mas, por que a desamparada cor, excluída, banida de todo espectro, estaria em um pedestal? Só virando a página para descobrir.


Figura 7.
Imagens da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.

E para quê? Para encontrar um jardim colorido, em que as cores se misturam entre si. Flicts fica à margem, separado pelo branco, que é a cor do fundo, e uma cerca de palavras, que o isola das outras cores. As palavras “com o pobre Flicts” empurram o quadradinho da cor para o porvir do livro. Flicts aqui funciona como um virador de página, exatamente na parte inferior direita da página aventuresca, que nos obriga a virar a página e descobrir o novo, aquela que nos faz seguir adiante na narrativa.


Figura 8.
Imagens da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.

Um arco-íris sobre fundo branco ocupa toda a dupla seguinte. O texto é diagramado ao centro da semicircunferência, dividido em duas colunas pela espinha do livro. Todas as cores estão nessa página, inclusive o branco e o preto, menos Flicts. E todas, aparentemente, se divertem.

Mas e o protagonista da história, se pergunta o leitor, onde estará? Com isso em mente, vira a página e encontra o arco-íris invertido, de ponta cabeça, um movimento das cores que sugere grande diversão. No branco, que ocupa a maior parte da página, a frase no meio do livro, com a fonte aumentada, grita: “Mas ninguém olhou para ele” e, agora, é o texto que funciona como virador de página, convidando o leitor a acompanhá-lo, curioso para saber o que anunciam aqueles dois pontos.


Figura 9.
Imagens da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.

As sete cores que compõem a cor branca deixaram a curva e se fizeram faixas retas, intercaladas por faixas brancas, ocupam a dupla de páginas de ponta a ponta, sem deixar qualquer espaço para Flicts. O leitor talvez se pergunte se a cor solitária não caberia nesse branco. Aqui, o branco é ocupado pelo texto escrito, que traz a fala de cada uma das cores. Elas dizem que Flicts não cabe ali, cada uma a seu modo.


Figura 10.
Imagens da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.

Na dupla que segue, as sete cores remetem ao disco de Newton em meio à página, no fundo branco. A massa de texto está disposta de modo que se intua movimento: o círculo gira e, nesta roda, dá-se continuidade à leitura; nas duas duplas seguintes, encontra-se o mesmo disco, com as cores cada vez mais esmaecidas, pois se sabe que, no movimento veloz, as cores se misturam e geram o branco. A dupla seguinte é evidentemente toda branca, com o texto organizado para que as características de Flicts fiquem em evidência — sempre brincando com a aliteração das palavras — e usando, pela primeira vez, a palavra “branca” no texto.


Figura 11.
Imagens da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.

Na página da esquerda, um texto alinhado à direita nos conta que Flicts quer se enquadrar. A partir da seguinte, uma série de cores em composições que remetem a bandeiras ocupa as próximas páginas, até que a bandeira da Inglaterra ocupa uma dupla inteira, seguida de outras três para chegar a uma menção à bandeira do Brasil, que não podia na época ser reproduzida. Em edições posteriores, isso foi alterado como se vê na reprodução das páginas na próxima seção deste artigo.


Figura 12.
Imagens da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.


Figura 13.
Imagens da edição de 1976 da editora Primor
Fonte: acervo pessoal.

Flicts fica sempre à parte. O branco, que também tem protagonismo nessa história, alude à solidão e contribui para construir o isolamento de Flicts na narrativa, ao mesmo tempo que se faz espaço de criação, um espaço em potencial, que há de ser ocupado, criando um paralelo metafórico com a cor que busca um lugar no mundo.

O jogo entre os elementos gráficos, verbais e imagéticos é extremamente bem-sucedido, compondo uma narrativa fluida e com ritmo perfeito. O leitor quase se anima com a composição tão equilibrada, mas, ao virar a página, depara-se com um muro, uma faixa Flicts que divide a página direita, enquanto, em uma fonte enorme, o texto anuncia a exaustão de Flicts. Diminuído, o texto à direita do muro reforça a falta de forças da cor, que se coloca o mais perto possível da página protegida, como se não quisesse ir adiante.

Avançando na sequência, encontra-se uma prancha praticamente toda branca, com Flicts na mesma posição, mas já “subindo e sumindo”, como as palavras delatam. São elas que nos contam que Flicts sumiu totalmente, o que a dupla que segue quase toda em branco — devido à presença do texto — confirma.


Figura 14.
Imagens da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.

Cinco duplas em que o único branco que aparece é a cor das fontes que encerram o livro.


Figura 15.
Imagens da primeira edição original de 1969
Fonte: acervo pessoal.

Novas edições: outros FLICTS?

Em 1976, Flicts é reeditado em casa nova. A editora Primor não apenas muda a capa e reduz o tamanho, mas também elimina o “branco excessivo”:

Esgotado há anos, ressurge Flicts, o grande sucesso de Ziraldo no campo da literatura infantil. Nesse intervalo, tornou-se conhecido internacionalmente, com edições em diversos países da Europa. Sua história, um poema em prosa, é a de uma cor Flicts “muito rara e muito triste” que simplesmente não encontra lugar na terra. [...] Graficamente está ainda mais bonito nessa nova edição. Seu tamanho foi diminuído, tornando de fácil manuseio; a utilização do papel cuchê[3] valoriza a excelente impressão. A capa dura foi modificada para melhor, com utilização de outra página interna de efeito mais interessante do que a da primeira edição. Quanto ao miolo, houve uma diminuição drástica do número de páginas (de 82 para 44), sem nada se perder do original. Ao contrário, a condensação só trouxe benefícios ao livro, evitando os grandes espaços brancos que sobravam na edição anterior. (Sandroni 1976 citado em Resende 2013, 51)

Muitas das características peculiares à linguagem do livro-álbum parecem não ser compreendidas pelos especialistas e pelo mercado na época, como ilustra a crítica de Laura Sandroni. A jornalista e crítica literária fez parte do grupo que, em 1968, criou a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, entidade da qual foi a primeira diretora executiva. Sua coluna sobre literatura infantil no jornal O Globo, de 21 de novembro de 1976, apresenta um parecer absolutamente equivocado do ponto de vista dos elementos gráficos como componentes narrativos, dos silêncios e da composição da obra, sem contar no que diz respeito a essa linguagem, que abria caminho para muitos outros autores que a compreenderam.

Na nova edição, a capa empresta a imagem da caixa de lápis de cor, colocando o título e o nome do autor fora dela. Ao abrir o livro, veem-se os créditos e a dedicatória já impressos na guarda, combinada à folha de rosto com suas devidas informações — nome do autor, título e editora. Era a isso que se referia Laura Sandroni ao mencionar “um efeito mais interessante do que na primeira edição”? O couchê brilhante também traz outra qualidade à leitura — pior, com reflexos indesejados — e, como se não bastasse, a cor Flicts foi ligeiramente alterada e já se assemelha ao ocre, cor que reinará em edições posteriores até se transformar em mostarda, como veremos a seguir. Ou seja, Flicts já não é mais uma cor que não se parece com nenhuma outra.

Embora a entrada do leitor no livro pelo silêncio tenha sido eliminada, uma vez que a página 2 em branco não faz jus a toda a trajetória silenciosa oferecida na primeira versão tampouco à sensação de ver a cor perdida na imensidão solitária e o livro ter sido reduzido à praticamente sua metade, há quem se engane — como lemos anteriormente — pensando que o original não sofreu alterações. Possivelmente, o que tais pessoas entendem como original seja apenas o texto escrito, que não foi cortado, de fato, porém sofreu modificações fundamentais com a condensação das páginas, a falta de respiro, a perda de ritmo e o rompimento da linguagem, tendo seu significado transformado. Um livro ilustrado fala por meio do entrelaçamento de todos seus elementos compositivos — as palavras, as imagens e os elementos gráficos e materiais. A alteração de qualquer um deles afeta diretamente a narrativa, como veremos a seguir.


Figura 16.
Sequência da 1ª edição de 1969
Fonte: acervo pessoal.


Figura 17.
Mesma sequência na edição de 1976
Fonte: acervo pessoal.

A paz do azul se perde na segunda edição, não há silêncio, nada está estático. A disposição das cores na dupla reformulada gera movimento, como se as cores andassem adiante, o que é reforçado pela virada de página que revela Flicts como uma continuidade da página anterior. Na versão original, a cor se lança ao futuro, toma a posição de frente, sobe, ataca. Na posterior, protege-se no canto da página, acuada. Já a dupla seguinte da versão original, toda branca, em que as palavras “nada que seja Flicts” se repetem, ganhando força e refletindo a solidão da pobre cor, perde potência na nova versão, quando a imensidão branca é rompida pela barra Flicts e o texto que a acompanha, perdendo a suspensão do virar a página, que dá a chance de o leitor respirar, reorganizar seus pensamentos, levantar questões e hipóteses, rever sua leitura e se preparar para o prosseguimento da história. Ao leitor, lançam-se as palavras que acabam perdendo o significado sem os elementos que as complementam e modificam na versão original — o silêncio do branco e do virar da página, a composição equilibrada, a tensão da cor que corta a página e se lança ao futuro. Vê-se menos quando as informações se sobrepõem umas às outras. Mais do que isso, vê-se algo diverso.


Figura 18.
Sequência da 1ª edição de 1969
Fonte: acervo pessoal.


Figura 19.
Mesma sequência na edição de 1976 da Primor
Fonte: acervo pessoal.

A falta de movimento dos arcos compridos na página de menores dimensões e com pouco branco (fundo) que se esticam em faixas que ocupam a página é facilmente notada (como se fosse uma legenda).

É o que pode ser observado nas próximas sequências em que o significado enfraquece quando alguns elementos são modificados, como a disposição dos discos, do texto que acompanha a imagem e a ausência de ritmo nas páginas da versão mais econômica produzida pela editora Primor, em que as viradas de página e o espaço vazio foram reduzidos.

Modificações da edição da editora Primor trouxeram a certas passagens massificação/aceleração do ritmo visual e narrativo, o que acarreta não só a perda de leveza e de apuro estético, como interfere na produção de sentidos. Na edição da editora Melhoramentos, há um corte em uma das cirandas, prejuízo ou defeito inadmissível da forma circular. Nas edições das duas editoras, os textos que acompanham as três cirandas perdem a disposição dinâmica no espaço, o que, na edição original, integrava a palavra aos sentidos visuais da cor e do movimento do giro. (Resende 2013, 60)


Figura 20.
Sequência da 1ª edição de 1969
Fonte: acervo pessoal.


Figura 21.
Mesma sequência na edição de 1976 da Primor
Fonte: acervo pessoal.

Na sequência de bandeiras, o uso do branco é curioso. Inserem-se faixas da cor devido à redução das imagens que causam certa confusão nas páginas como pode ser visto nas reproduções a seguir. Em 1977, FLICTS passa a ser editado pela Melhoramentos e sofre outras alterações, das quais talvez o que se note imediatamente seja a substituição da bandeira da Inglaterra pela do Brasil, como se vê abaixo. Tal mudança radical foi inserida com uma pequena — e malresolvida — alteração na narrativa que causa certo estranhamento no leitor.

O texto de duas duplas condensado em uma, sem as imagens, perde o sentido como pode ser visto nas reproduções abaixo.


Figura 22.
Edição original, 1969
Fonte: acervo pessoal.


Figura 23.
Edição Primor, 1976
Fonte: acervo pessoal.


Figura 24.
Edição Melhoramentos, 1997
Fonte: acervo pessoal.


Figura 25.
Edição comemorativa dos 50 anos da Melhoramentos, 2019
Fonte: acervo pessoal.

Porém, no que diz respeito ao branco, parece-me ainda mais grave a alteração da sequência narrativa. O livro da Melhoramentos (não o da edição comemorativa) conta com 48 páginas e parece aproveitar a oportunidade para inserir um pouco mais de silêncio. Além de insuficiente, o retorno do espaço vazio não contribui em nada para a narrativa. Ao contrário, um leitor atento, que considera o branco em sua leitura, ficará confuso com a nova composição. Nessa edição, o branco parece ser apenas espaço que sobrou. A sequência foi alterada de tal forma que o silêncio e o branco perdem sentido.

Quando vemos, fazemos muitas coisas ao mesmo tempo. Vemos, perifericamente, um vasto campo. Vemos através de um movimento de cima para baixo e da esquerda para a direita. Com relação ao que isolamos em nosso campo visual, impomos não apenas eixos implícitos que ajustem o equilíbrio, mas também um mapa estrutural que registre e meça a ação das forças compositivas, tão vitais para o conteúdo e, consequentemente, para o input e output da mensagem. (Dondis 2015, 25)

O livro-álbum, tal qual mensagens visuais, também oferece a visualização de muitas coisas ao mesmo tempo e pede que o leitor se concentre em áreas específicas e busque o equilíbrio entre os elementos oferecidos à leitura e as forças compositivas — palavras, imagens e componentes gráficos e materiais — dessa linguagem. Como toda boa leitura, pressupõe o desvelamento de camadas, diversas aproximações e permite variadas interpretações.

Ampliando o que diz o autor e pesquisador Odilon Moraes sobre a relação entre a palavra e a imagem na composição de sentido nos livros ilustrados — nomenclatura que prefere a livro-álbum — com outros elementos compositivos da narrativa, alertando os leitores que é necessário desconfiarem dos fragmentos que compõem as obras, uma vez que o significado se constrói quando concluído o trajeto, ou um dos trajetos, proposto pelo livro:

Aqui me parece necessário dizer que o livro ilustrado, na maneira com que joga com a fragmentação e com a necessidade de um leitor atento a esse jogo nos coloca em uma espécie de desconfiança em relação às palavras que lemos assim como às imagens que vemos. Sendo elas fragmentos de um todo, podem mudar de significado ao final da história ou mesmo na página posterior. A palavra pode ser negada constantemente pela imagem e vice-versa. Ainda assim, os fragmentos só podem ou devem fazer sentido completo após o todo transcorrido ou, ao menos, ao fim de uma sequência. Aprendemos a partir das experiências de leitura do livro ilustrado a sair dos fragmentos em busca do todo e a nos posicionar frente a imagens e palavras, assumindo que suas incongruências podem estar a nos dizer algo. (Moraes 2019, 173)

Edição comemorativa: versão fac-símile?

Foi com uma imensa alegria que os leitores apaixonados por FLICTS receberam a notícia da edição comemorativa dos 50 anos do livro, em que se prometeu a reedição do livro de acordo com a versão original, preservando os brancos e a composição das sequências.

Em matéria do Estadão por ocasião do lançamento de tal versão, para a qual Adriana Lins, a designer responsável e sobrinha do autor, foi entrevistada, lê-se:

A edição comemorativa de 50 anos resgata o livro idealizado por Ziraldo, com 80 páginas, conta Adriana, responsável pelo projeto gráfico. Segundo ela, a partir da segunda edição, o livro foi reduzido para 40 páginas — as páginas duplas se transformaram, de maneira geral, em simples — para ser adotado nas escolas e é assim que a maioria dos leitores conhecem a obra. “Recuperamos a diagramação e a tipografia originais. É exatamente o projeto que Ziraldo pensou e fez, mantendo as páginas brancas, os silêncios”. (Reis, B. 2019)

No entanto, o primeiro caderno do livro, na versão original praticamente branco, é todo ocupado por cores e textos, sem deixar as páginas em branco traçarem a solidão de Flicts. Não há respiro, foi tudo ocupado; a cor flicts, que antes era única, sem nenhuma semelhança com qualquer cor existente, tornou-se mostarda.

As perguntas com que Didi-Huberman (2010, 35) nos faz mergulhar em sua discussão sobre o vazio em O que vemos, o que nos olha cabem ao livro perfeitamente: “O que é um volume portador, mostrador de vazio? Como mostrar um vazio? E como fazer desse ato uma forma — uma forma que nos olha?”. Embora afirme a importância do silêncio e do branco em seu discurso, a designer ocupa — ou permite que se ocupe — todo aquele espaço vazio que inicia — e é fundamental — para a narrativa do livro, como se cedesse ao horror vacui sem nem perceber, permanecendo no conhecido, naquilo que é facilmente decifrável.

[…] um verdadeiro horror e uma denegação do vazio: uma vontade de permanecer nas arestas discerníveis do volume, em sua formalidade convexa e simples. Uma vontade de permanecer a todo custo no que vemos, para ignorar que tal volume não é indiferente e simplesmente convexo, posto que oco, esvaziado, posto que faz receptáculo (e concavidade) a um corpo ele próprio oco, esvaziado de toda a sua substância. (Didi-Huberman 2010, 39)

As escolhas editoriais, e aqui se incluem aquelas referentes ao projeto gráfico, parecem ir de encontro ao que afirma a designer responsável, que alega ter recuperado o branco e os silêncios fundamentais para a obra. De fato, o mesmo número de páginas foi mantido, mas a ocupação das páginas iniciais, com tantos paratextos, apenas demonstra desconfiança em relação ao leitor e desconhecimento sobre o livro e a própria linguagem. Talvez, para além do medo do vazio que gera desconforto em quem não consegue permanecer nele, haja também uma necessidade de ocupar todo o espaço com informação — um verdadeiro bombardeio — que parece ser fruto da necessidade de reiteração da importância do livro. Porém, esse livro fala por si só.

[…] evidenciar intenções estéticas sedutoras em suas distintas linguagens, propõem ruídos que depreciam o estético e reduzem a polissemia, privilegiando funções extraliterárias que se manifestam univocamente. [...]

No plano da edição (uma das formas de mediação entre os textos e xs leitorxs), o hiperdizer manifesta-se, com frequência, em contracapas, prólogos, orelhas, catálogos e outros meios de divulgação. [...] Tais intromissões revelam a desconfiança quanto à possibilidade de xs leitorxs produzirem sentidos por si mesmos. (Bajour 2019, 5)


Figura 26.
Edição comemorativa dos 50 anos, editora Melhoramentos, 2019
Fonte: acervo pessoal.

A entrada no livro por meio do branco silencia o leitor, colocando-o em estado de suspensão. O que está por vir, o que aquela palavra desconhecida — “Flicts” — na capa quer dizer em meio às cores, tão bem organizadas e separadas pelo branco, de forma que possam ser vistas isoladamente? Como afirma Bajour (2019, 3), “seguir os rastros do silêncio é uma maneira de ativar a sensibilidade pensante” e devemos nos deixar levar por ele.

CONCLUSÃO

Se considerarmos que FLICTS originalmente surgiu como um livro-álbum exemplar, em que há equilíbrio total entre seus elementos compositivos, tecendo uma narrativa forte na dança perfeita entre palavras, imagens e elementos gráficos e materiais, suas transformações ao longo do tempo, de acordo com a visão aqui apresentada, foram extremamente danosas. Negligenciando a real importância do espaço em branco e do ritmo imposto pela composição, que culmina no virar das páginas, as edições posteriores à original causam enorme prejuízo no potencial metafórico, com a dilaceração e recomposição aleatória dos fragmentos que compõem o todo. Além disso, prejudicam a leitura ao eliminar praticamente o espaço em que o leitor — tecendo o sentido ao se relacionar com as forças compositivas da narrativa, do livro — se coloca na obra. Decisões editoriais, muitas vezes derivadas de necessidades comerciais, podem ser fatais, impedindo que a obra se manifeste em sua totalidade.

Referências

Bajour, Cecilia. «Silenciografias: marcas do não-dito em leituras, textos e mediações». Entreletras (Araguaína), n.º 10(2) (2019). https://doi.org/10.20873/uft.2179-3948.2019v10n2p17

Barros, Lillian Reid Miller. A cor no processo criativo — um estudo sobre a Bauhaus e a teoria de Goethe. São Paulo: Editora Senac, 2011.

Bolliger, Sergio. «O que é pensar?». Em Ações compositivas: encontro catalisador transdisciplinar, organizado por Maria F. de Mello e Vitória M. de Barros, 44-54. São Paulo: BookNando Livros Ltda, 2020.

Didi-Huberman, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.

Dondis, Donis Adonis. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

Moraes, Odilon. Quando a imagem escreve — reflexões sobre o livro ilustrado. Dissertação de mestrado, UNICAMP, 2019.

Pinto, Ziraldo Alves. Flicts. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1969.

Pinto, Ziraldo Alves. Flicts. Rio de Janeiro: Primor, 1976.

Reis, Bia. 2019. «Livro histórico, Flicts, de Ziraldo, chega aos 50 anos com edição comemorativa». Jornal O Estado de São Paulo (2019). https://cultura.estadao.com.br/blogs/estante-de-letrinhas/flicts-ziraldo-50-anos/.

Resende, Vania Maria. Ziraldo e o livro para crianças e jovens no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013.

Notas

1 Também chamado de “picture book” ou “livro ilustrado”.
2 A palavra “texto” isolada, neste artigo, sempre se refere ao texto verbal.
3 O original utiliza papel couchê fosco de 150 m/g²; a edição de 1976 passa a usar couchê brilhante.


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